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  • A deselegância do Cardeal Scherer

    A deselegância do Cardeal Scherer

    Conheci dom Angélico Bernardino Sândalo quando eu era repórter no Estadão e escrevia sobre religião. Ele me chamava de ‘irmão’. Não era uma exclusividade. Todo mundo é ‘irmão’ de d. Angélico. Até pessoas das quais não gosta. Nunca perguntei o motivo desse tratamento. Imagino que seja para lembrar que somos todos filhos de um mesmo pai. Também imagino que foi essa ideia de fraternidade que o levou, desde a ordenação sacerdotal, a se voltar mais para as pessoas carentes, os que perderam tudo, os migrantes, os sem-teto, os sem-terra, os excluídos.

    Na década de 1970, esse interesse do padre Angélico pelos pobres chamou a atenção do então arcebispo de São Paulo, o franciscano Paulo Evaristo Arns. E quando o papa Paulo VI disse a ele que devia dividir seu trabalho e nomear um bispo auxiliar para cada milhão de fiéis da arquidiocese, o primeiro nome que veio à cabeça de d. Paulo foi o daquele padre. Logo depois de sagrá-lo bispo, despachou-o para a periferia, o extremo da Zona Leste, bandas de Itaquera, na época uma das regiões mais carentes da cidade. Lá, o bispo se entrosou tão bem com o povo que até trocou de time: deixou o Palestra Itália pelo Corinthians.

    D. Angélico foi um dos principais conselheiros de dom Paulo nos anos da ditadura. Acompanhou-o, lado a lado, no episódio do assassinato do jornalista Vladmir Herzog, numa dependência do Exército. Editou o jornal católico O São Paulo. Enfrentou a censura à imprensa. Por onde passou estimulou movimentos populares por habitação, creches, transportes.

    Hoje, com 85 anos, aposentado, vive numa casa modestíssima na Zona Norte. Às vezes é chamado para alguma celebração especial. No ano passado ministrou o sacramento da extrema-unção à esposa do ex-presidente Lula, Marisa Letícia, de quem era amigo há quase quarenta anos.

    Agora o chamaram para o ato ecumênico que celebraria o aniversário de Marisa. Era para um ser ato no interior do sindicato. Mas, com a decretação da prisão de Lula e a multidão que se aglomerava do lado de fora, acabou transferido para a rua. E foi assim que o País viu o bispo ao lado do ex-presidente.

    Como era de se esperar, nesses tempos de polarização política e de ódios, a imagem dos dois em rede nacional provocou reações furiosas, quase fratricidas, entre católicos. D. Angélico foi xingado das piores coisas. Como nos velhos tempos da guerra fria, o chamaram de bispo da batina vermelha. Um colunista político disse que rezou uma missa negra, confundindo, como vários outros jornalistas, ato ecumênico com missa.

    D. Angélico desceu do caminhão assim que encerrou o ato e Lula começou a discursar. Ninguém prestou atenção nele quando seguiu por uma rua estreita e íngreme, à procura da condução que o levaria para casa. Trajava calça cinza, de cós muito alto, e camisa branca com mangas longas. Os passos eram lentos e amparados pelas mãos da irmã Carmem Julieta, que o acompanha sempre.

    No dia seguinte, a assessoria do arcebispo de São Paulo, cardeal Odilo Scherer, divulgou uma nota sobre o assunto. É um texto curto e objetivo. Começa preocupado em isentar o cardeal: diz que ele não tem nada a ver com o ato ocorrido em São Bernardo e explica que “aconteceu fora da jurisdição e responsabilidade do arcebispo e da arquidiocese de São Paulo”. Depois desse ato de lavar as mãos, o texto faz a afirmação que logo em seguida se transforma em manchetes de sites, jornais, rádios e TVs: “O arcebispo lamenta a instrumentalização política do ato religioso”.

    Li e reli a nota. Parece feita às pressas, com o objetivo de dar satisfações aos católicos mais direitistas, e suscita uma pergunta óbvia: se o arcebispo metropolitano não tem nada a ver com aquilo, a quem cabe a responsabilidade? É assim que o cardeal joga a bomba no colo do bispo de Santo André, d. Pedro Cipolini.

    Para entender melhor é preciso explicar que a Igreja Católica tem uma divisão própria de territórios. De acordo com essa divisão eclesiástica, São Bernardo faz parte da diocese de Santo André. Indiretamente, portanto, o cardeal está perguntando o seguinte ao irmão e bispo vizinho: como é que você permite que um ato desses ocorra em sua jurisdição?

    O alvo mais óbvio da nota, no entanto, é d. Angélico. O cardeal divulgou a nota sem dar um telefonema para o bispo emérito que mora na mesma cidade e a poucos quilômetros de distância. Nem sequer para avisá-lo. Tratou-o, de acordo com os tempos de guerra, como inimigo.

    Faltou elegância, no mínimo, ao cardeal. Como arcebispo metropolitano, poderia ter conversado com o bispo de Santo André ou se dirigido à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Por outro lado, em vez engrossar e estimular o conflito, poderia ter exercido o papel de pastor, acalmando os ânimos e pedindo orações para o Brasil.

    Como entender essa reação do cardeal? Existem algumas pistas. D. Scherer é um expoente do conservadorismo católico. Em 2013, no conclave que elegeu o sucessor do papa Bento XVI, o nome dele figurou na lista dos preferidos da ala conservadora. Mas não prosperou. Se é mesmo o Espírito Santo que orienta o conclave, ele deve ter soprado no ouvido dos cardeais, que, após dois papados conservadores, seria melhor optar por uma cabeça mais arejada e reformadora. E eles elegeram o jesuíta Bergoglio, hoje papa Francisco.

    Em 2014, o papa afastou o cardeal Scherer e outros três cardeais da cúpula do Banco do Vaticano, instituição financeira envolvida numa série de escândalos, inclusive com suspeitas de lavagem do dinheiro do crime organizado. Foi uma demonstração de que ele veio mesmo para mudar.

    No Brasil, o cardeal é um dos poucos integrantes da CNBB que defendem abertamente as propostas do governo Temer para a reforma da Previdência. Antes disso, ele já havia apoiado a proposta que congelou gastos públicos.

    Em São Paulo, Scherer procurou demonstrar proximidade com João Doria – tucano que lastreou sua campanha eleitoral para a prefeitura em ataques ao PT e a Lula. Chegou a falar de maneira positiva, em duas ocasiões e publicamente, a respeito da ‘farinata’ que Doria pretendia distribuir nas escolas públicas.

    O cardeal até posou ao lado do prefeito tucano quando ele divulgava o tal composto alimentar. No final da história, porém, ficou falando sozinho. O valor nutritivo do composto era tão duvidoso e polêmico que foi posto de lado. Pelo próprio Doria, que já se afastou da prefeitura para se candidatar ao governo do Estado, após ter prometido aos seus eleitores que jamais deixaria o cargo antes de terminar o mandato.

  • Doria buscou até a bênção da igreja para salvar ração humana

    Doria buscou até a bênção da igreja para salvar ração humana

    O cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, tem se colocado ao lado do prefeito João Doria na defesa da distribuição dos alimentos liofilizados, popularmente conhecidos como “ração para pobre”.

    Perdendo na política, Doria recorreu ao que há mais de velho na política: a legitimação ideológica da Igreja.

    Talvez o papa Francisco não concordasse com a ideia mas, por alguma razão, o arcebispo deu a bênção ao projeto de Doria. Se você não se lembra quem é o arcebispo, os Jornalistas Livres lembram (e ao que tudo indica, os estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e o Papa Francisco também).

    Em 2012, dom Odilo nomeou como reitora a professora Anna Cintra, última colocada na eleição interna da universidade. Foi a primeira vez que o primeiro colocado da lista tríplice não foi indicado para ocupar a vaga. No dia 12 de março de 2013, ele participou do Conclave Papal, na Capela Sistina, na cidade do Vaticano, na condição de um forte candidato a sucessor de Bento XVI, que havia renunciado dias antes. Foi derrotado pelo cardeal Jorge Mario Bergoglio,  arcebispo metropolitano de Buenos Aires, o papa Francisco. Em 2014, foi a vez do papa Francisco impor mais uma derrota a dom Odilo e outros três cardeais que integravam a comissão que supervisionava o Banco do Vaticano, após diversas denúncias de corrupção na instituição.

    João Doria, entre a cruz e a espada, foi obrigado a recuar. Deus sabe quais acordos estavam por trás da “ração” de Doria e dom Odilo, mas é certo que o prefeito não desistiu totalmente da ideia e já anunciou que voltará à carga, oferecendo a tal “farinata” (o nome italiano é a mais ridícula gourmetização do Bonzo) aos moradores de rua. Por que não desistiu da proposta? E a licitação? Doria parece não querer desperdiçar o “alimento” feito com alimentos desperdiçados. Por se colocar contra este projeto, a vereadora paulistana Sâmia Bomfim (PSOL) foi hostilizada pelo prefeito.

    Não se sabe do que é feita a ração. Qual o seu conteúdo nutricional. Como sua qualidade será controlada. Um adulto diabético pode ingeri-la? Alguém com intolerância a lactose pode consumi-la? Um vegetariano? E os alérgicos? A ração do Doria é na verdade um projeto canhestro de gestão da fome. Não dá autonomia alimentar e dignidade ao pobre, mas o humilha com um composto seco à moda dos alimentos para cães. Falta a Dória tanta ética como transparência na proposta da ração.

    No fim, Doria parece ter perdido. Nem a igreja conseguiu salvar a alma do projeto.

    Não consigo não lembrar daquele trecho bíblico que ensina a fazer aos outros o que desejamos que nos façam. Será que Doria, Scherer e seus apoiadores comeriam a ração que desejavam distribuir?