Não sei por onde começar! Pelo Corona Vírus ou pelo Demônio que está vomitando monstruosidades contra o povo brasileiro? Pela capacidade de destruir dessa maldita pandemia ou pela desenfreada ação de um grupo cujo líder foi eleito por milhões de desinformados —inocentes ou não.
Mas os dois fatores se unem num mesmo objetivo que é a destruição. Comecemos então pelo vírus que foi menosprezado pelo outro “vírus”.
O Brasil tinha tudo para se livrar da peste, porque ela não chegou de surpresa aqui. Ela começou na China, ainda em janeiro, se espalhou pela Europa em fevereiro e deu sinais claros de que chegaria aqui tão furiosa como lá.
Mas, o Brasil como os Estados Unidos, ambos governados por idiotas, menosprezaram a sanha devastadora do novo vírus. “Era um simples resfriado” gritaram os dois. E se mostraram presentes em espaços públicos como a desafiar a pandemia. O resultado veio em março e hoje estamos assistindo a uma verdadeira hecatombe, a um massacre de milhares de brasileiros, seja dos castelos ou dos barracos.
Desprezo pela Ciência e pela vida
E o “asno” que governa o Brasil, investindo-se da condição de ditador, isolando-se até mesmo do seu “I love you Trump”, que reconheceu seu erro, continua a minimizar o vírus, pregando receituário negado pela ciência, e condenando a solução médica do isolamento. Para coroar suas arbitrariedades demitiu o Ministro Mandeta, da Saúde, nomeou outro médico, Nelson Teich, que não suportou mais do que 29 dias no cargo e se demitiu.
Junto com esses, o demônio já havia demitido o Sérgio Moro porque queria interferir nos rumos da Policia Federal, “para proteger a família e amigos”. Sérgio Moro também escolheu o momento para se desentender com ele, quando percebeu que seu “patrão” não lhe presentearia mais com uma vaga no STF, depois de já ter recebido de presente, por serviços prestados durante as eleições presidenciais, o Ministério da Justiça.
O “chefe”, aos gritos de que “quem manda aqui sou eu”, ou que “ministro que não seguir minha cartilha vai para a rua”, entrou definitivamente em cena para desafiar a tudo e a todos. Fez manifestações contra Congresso, contra STF, pregou um novo AI-5, xingou jornalistas, pouco se importando com as consequências de seus atos, porque acredita que tem a guarda dos militares que o rodeiam.
Formou-se uma contraposição, constituída pela Rede Globo de Televisão, pelos novos desafetos do “rei Bolsonero” e pelo “herói Sergio Moro”.
Agora, surgiu um novo ator que é o empresário Paulo Marinho, um homem que foi muito próximo do Bozo e seus filhos, com denúncias contundentes contra ele, os filhos e membros da Policia Federal.
Num momento como esse, ninguém pode se colocar como única oposição
A Frente Ampla, no passado, foi formada por Carlos Lacerda, Jango Goulart e Juscelino Kubitschek, independente de ideologias. “Diretas Já” teve em seu bojo Lula, Ulysses Guimarães, FHC, Tancredo Neves, Orestes Quércia, entre outros, com as mais variadas tendências políticas. Tanto na Frente como nas Diretas existia um inimigo comum.
Hoje nós temos um inimigo comum, e não vejo razão para não se unirem outra vez, o Lula de ontem e o Lula de hoje, com FHC, o governador Dória, Flavio Dino, Boulos, Ciro Gomes, e todas as forças que se opõem a esse governo semi-ditatorial que aliciou os militares para tentar dar o golpe definitivo na democracia e implantar, possivelmente, a mais sangrenta ditadura.
Está faltando reação: a sociedade civil precisa se engajar nessa luta.
OAB, ABI, entidades ligadas à cultura, sindicatos, associações de classe, membros do Congresso Nacional e do Judiciário precisam sair dessa modorra e enfrentar o inimigo. Somos todos covardes, esperando um milagre que não acontecerá se as forças vivas dessa nação não se manifestarem. Hoje o que estamos vendo são notas vazias de repúdio, nada mais do que isso.
Nem o povo pode ir às ruas por conta dessa maldita Covid-19, que mesmo menosprezada pelo “grande vírus” tem sido, neste caso, sua aliada. As multidões não podem protestar pelas ruas.
Como a única maneira de se manifestar em protesto, atualmente, é o panelaço, o povo tem se debruçado sobre o parapeito das janelas. Tudo nos incomoda, tudo nos aflige e nossas armas limitam-se ao som estridente, mas passageiro, dos panelaços que também não bolem com a estrutura criada por esse verdadeiro anticristo.
“Deus, salve o Brasil”, suplicamos. Mas não adianta. Deus não é mais brasileiro. Só a Frente Ampla pode livrar o País do pior.
*Humberto Mesquita é jornalista e escritor, repórter e apresentador de debates na TV.
Entrevista exclusiva a Nícolas Horácio/EstopimColetivo
“O povo brasileiro não é como Bolsonaro. Dos 55% de votos que ele teve, seguramente, o núcleo duro dele é de 15 a 20 milhões de votos. Esse é o eleitorado que abraça as teses de violência pra resolver o problema da segurança, de preconceito, de racismo, de desqualificação da mulher, de desprezo pela democracia, pela liberdade de expressão, a visão pró norte-americana e esse abraço de urso ao neoliberalismo de mercado, que é, na verdade, entregar o país ao capital financeiro, na nossa opinião, evidentemente. Acho que nós temos que fazer essa disputa também com o eleitorado dele. O eleitorado não vai ficar com ele” (José Dirceu)
Ele esteve no centro do poder no governo Lula e foi cogitado para a sucessão presidencial depois de chefiar a Casa Civil, um dos mais estratégicos ministérios do país. Condenado a mais de 30 anos de prisão, teve a trajetória política interrompida e, no estilo Graciliano Ramos, escreveu um livro de memórias no período do cárcere. Fundador do PT, ex-militante do PCB e da luta armada, José Dirceu responde os processos em liberdade como um dos mais polêmicos personagens da política brasileira na atualidade. Por fora do tabuleiro político, continua atuando como um importante intelectual para a militância do PT, através de sua força e influência.
Em Florianópolis desde o dia 15 de novembro, foi recepcionado pela amiga e ex-ministra Ideli Salvatti, conversou com lideranças de outros partidos da esquerda, como PSOL e PCdoB, com militantes da juventude do PT e dos partidos aliados. Na segunda-feira (19/11), realizou sessão de autógrafos do livro “Zé Dirceu – Memórias Volume 1”, no qual narra momentos importantes da história brasileira e deixa seu ponto de vista sobre a conquista do poder pelo Partido dos Trabalhadores, o legado dos seus dois governos e a análise do processo intervencionista que culminou com a violação da democracia.
Em entrevista ao Estopim Coletivo, de Florianópolis, Dirceu conta detalhes do livro que será lançado em pelo menos 25 capitais brasileiras e indica como o PT, agora na oposição, deve se comportar nos próximos anos.
A Entrevista
No lançamento do seu livro em Brasília, você disse que o PT está em uma defensiva e precisa de estratégia política. Qual deve ser essa estratégia? E qual a sua participação nela?
Zé Dirceu: Minha participação vai ser como filiado. Eu não pretendo, nem devo voltar para a direção do PT e muito menos participar diretamente do partido.
Eu quero andar pelo Brasil, lançar meu livro, fazer palestras e participar de seminários. Quero estar com os movimentos, com a CUT, o MST, os partidos aliados. Eu tenho diálogo com PCdoB, com PSB e quero estar com a juventude. Eu tenho priorizado esses três eixos.
Quando eu digo que estamos em uma defensiva, não é só o PT.
Essa coalizão que elegeu Bolsonaro não é só uma coalizão religiosa, com os setores militares e partidos. Ela tem uma cabeça que é o capital financeiro internacional e tem uma política que é pró Estados Unidos.
É uma coalizão que pretende fazer grandes mudanças no Brasil, basta olhar a pauta dele. Começa pela política externa, que ele vai virar totalmente, não só a nossa política externa, como a dos tucanos também. Por isso que pelo menos alguns tucanos estão contra.
Nós temos força, mas nós viemos sofrendo derrotas desde 2013.
Você se refere às grandes manifestações de 2013?
Zé Dirceu: Sim, porque eram manifestações contra o aumento das tarifas em São Paulo e foram capturadas, com papel muito forte da Rede Globo e dos setores que financiaram aquela mobilização, para um movimento contra o governo da Dilma, o PT e que com a Lava Jato fez uma escalada de criminalização do PT e do próprio Lula, levando ao impeachment da Dilma e a prisão do Lula, que culmina com a eleição do Bolsonaro.
Nesse sentido, nós temos que reconhecer a derrota, ao mesmo conhecer as nossas forças e a necessidade de repensar o que vamos fazer nos próximos anos.
Temos algumas tarefas óbvias: a liberdade do Lula; a oposição a pautas como Escola sem Partido que, na verdade, é escola com partido, o deles.
Por outro lado, o governo vai anunciar uma série de medidas, nós temos que apontar alternativas. Não podemos apenas ficar contra. Se ele vai fazer uma Reforma Tributária, temos que apresentar nossa visão e para a Reforma na Previdência, a mesma coisa.
Você vem articulando essas conversas nos estados?
Zé Dirceu: Não. Eu não articulo. Eu Tenho relações, porque desde 1965 eu sou militante político e eu participei dos principais eventos do país a partir de 1979.
Participei da clandestinidade, da luta armada, participei da geração de 1968, fui do PCB, depois, fui um dos fundadores do PT, então tenho muitas relações.
Procuro, sou procurado e converso, exponho a minha opinião e tentando ajudar nesse sentido, nessa linha.
Mas exerce influência, certo?
Zé Dirceu: É. Influência eu exerço, mas não significa que eu vá participar de direções do PT, disputar mandatos ou participar de governos. Eu nem posso, porque estou inelegível.
Aqui em Santa Catarina você fez algumas conversas com militantes de outros partidos. Sentiu possibilidade de unificação da esquerda aqui? Há caminhos pra isso?
Lançamento e palavra de resistência em Florianópolis
Zé Dirceu: Eu acredito que há sim, na base. Temos que começar pelas lutas concretas em cada cidade, em cada estado, pelas agendas que estão colocadas.
Acho que a Reforma da Previdência é uma questão fundamental, a Escola sem Partido é outra, a defesa da liberdade de manifestação, esses ataques ao MST, ao MTST, ao João Pedro Stédile e ao Guilherme Boulos, nós não podemos aceitar.
A agenda da anulação da condenação do Lula é importante e nós devemos construir uma agenda a partir dos sindicatos e da juventude, da luta das mulheres.
Nós devemos construir uma agenda de oposição, porque temos legitimidade e fomos para oposição por decisão do eleitorado. Nós temos 47 milhões de brasileiros e brasileiras para representar e, no caso do PT, um mínimo de 30 milhões, que foi a votação do Haddad no 1° turno em aliança com PCdoB e com o PROS.
Então, nós temos obrigação de exercer essa oposição, essa fiscalização, apresentando propostas e alternativas e temos que resolver nossos problemas, como a debilidade na área das redes.
Quais redes? As redes sociais?
Zé Dirceu: Isso. Elas são importantes desde 2008, na eleição de Obama, depois na eleição do Trump, que gerou uma crise internacional, e quando chega a eleição aqui nós não estamos preparados?! Alguma coisa tá errada.
Mesma coisa a nossa presença nos bairros, na luta do dia a dia do povo trabalhador no bairro. Temos que analisar e tomar medidas com relação a isso.
Você acha que faltou ser mais presente nas redes sociais para ganhar o público?
Zé Dirceu: Sem dúvida nenhuma. A rede social é um potencializador e quando você tá ausente também lá no bairro, o potencial aumenta, porque você não tem como contraditar e responder. Se você não responde nas redes, não responde nas casas, na igreja, na lotérica, no açougue, no cabeleireiro, no supermercado.
Depois que nós saímos na rua com o Vira Voto, nós crescemos muito. Porque é sempre importante o contato pessoal, o diálogo, o olho no olho, o debate, a reunião, a experiência de vida em comum. Eu aposto muito também na juventude nesse sentido. Acho que ela pode e dever ter um papel importante.
Você disse recentemente que o PT perdeu a eleição ideologicamente. O povo brasileiro é como o Bolsonaro?
Zé Dirceu: O povo, não é como Bolsonaro. Dos 55% de votos que ele teve, seguramente, o núcleo duro dele é 15 a 20 milhões de votos. Esse é o eleitorado que abraça as teses de violência pra resolver o problema da segurança, de preconceito, de racismo, de desqualificação da mulher, de desprezo pela democracia, pela liberdade de expressão, a visão pró norte-americana e esse abraço de urso ao neoliberalismo de mercado, que é, na verdade, entregar o país ao capital financeiro, na nossa opinião, evidentemente.
Acho que nós temos que fazer essa disputa também com o eleitorado dele. O eleitorado não vai ficar com ele. Essa questão dos médicos cubanos, que é uma coisa totalmente estúpida que ele fez, porque os médicos nunca se envolveram em política no Brasil, nunca participaram de nenhuma atividade que não fosse trabalho médico, ele não pensou nos 30 milhões de brasileiros, brasileiras, as famílias, as mães, os idosos, as crianças que são atendidos por esses médicos.
Essa história de que os médicos cubanos foram nomeados no lugar dos brasileiros, todo mundo sabe que não é verdade, porque os médicos não querem ir para essas cidades.
Dois terços [dos recursos] vão para o governo, mas os filhos deles estudam em escolas públicas até o ensino universitário. Eles têm hospitais públicos fantásticos. Em Cuba tem atendimento, o país não tem violência. O país tem segurança e um bem estar básico.
As dificuldades e a escassez ocorrem em parte por causa do bloqueio e por uma série de questões que os cubanos estão procurando resolver agora.
Poucos sabem que os cubanos estão fazendo uma Constituinte, agora, que se discute em todos os bairros, fábricas, escritórios, lojas, no campo. Milhões e milhões de cubanos estão discutindo a Constituição do país. Poucos sabem disso.
O que o Brasil vai descobrir no seu livro? O que há de novo nele, por exemplo, em relação ao seu processo?
Zé Dirceu: Eu procuro contar a história do Brasil, contando a minha história e da minha geração, que lutou contra a ditadura e foi pra clandestinidade, participou de ações armadas de resistência.
Depois as vitórias do MDB, o que foram os governos militares, particularmente, o governo Geisel e, depois, o que foi o surgimento da luta contra a carestia, das pastorais, das comunidades eclesiásticas de base, do sindicalismo autêntico, do PT, da CUT.
O livro passa pelas Diretas, o Collor e o impeachment dele e conta a trajetória das eleições até o Lula ser presidente. Eu procuro sempre mostrar como o Brasil era no cinema, no teatro, na música, como eram os meios de comunicação.
Existe algum fato na sua biografia que ninguém sabia ainda?
Zé Dirceu: Tem fatos que eu relato pela primeira vez, como o dia em que eu pedi demissão e eu conto como foi a reunião. Chorei naquele momento e explico o que significava aquilo para mim. Foi uma reunião com Lula feita para concretizar minha demissão.
O depoimento do Carlos Cachoeira, que mostra toda a operação Valdomiro Diniz, CPI dos correios, mensalão, hotel Naoum, foram tudo escutas telefônicas dirigidas contra o PT negociadas com a direção da Veja, o Policarpo Jr. com o Cachoeira, com os Arapongas, com escutas ilegais para montar fatos políticos negativos pra fazer matérias contra os adversários deles.
Veja passou impune. A CPI não teve condições de convocar o Roberto Civita. O Policarpo Jr. nunca respondeu perante a justiça sobre isso.
Contando o que vivi, busco contar a história do Brasil, tentando tirar lições disso. Conto, por exemplo, como foi possível lutar e derrotar uma ditadura e de onde surgiu a luta.
Nós vamos enfrentar esse problema agora. Como lutar? De que forma lutar? Com quem lutar? Eu procuro, na verdade, transmitir para as novas gerações a minha experiência, com erros, acertos e a experiência do PT, da esquerda, inclusive recontando a experiência do Brasil com relação à esquerda, o papel do PCB.
Os tenentes, qual foi o papel dos tenentes? O que foram as Forças Armadas da República até a Constituição de 1988? Elas sempre foram uma força determinante na disputa política brasileira.
A revolução de 1930 foi uma revolução militar e civil. Toda a luta dos tenentes, a Coluna Prestes também é, 1935 é, 1932 é, 1937 é, 1946 é.
Em 1950 e 1955 eles tentam dar o golpe. Em 1961, eles tentam dar o golpe e a resistência popular armada impede e, em 1964 eles dão, governam o país até 1985 e voltam agora a exercer um papel moderador no país.
Graúna, personagem genial de Henfil, uma espécie de voz do inconsciente coletivo do Brasil
Por Luara Ramos e Camila Moreno, especial para os Jornalistas Livres
“Mas sei que uma dor assim pungente Não há de ser inutilmente A esperança Dança na corda bamba de sombrinha E em cada passo dessa linha Pode se machucar”
(João Bosco e Aldir Blanc)
Nesse ano completaremos 30 anos sem Henfil. Criador da Graúna, que marcou gerações de luta e militante pelas Diretas Já e por um país mais justo, democrático e igualitário, Henfil certamente se entristeceria se visse o que ocorre no Brasil de hoje, o país do golpe, onde aqueles que assaltaram o poder insistem em usar de maneira cínica até mesmo a linguagem e a arte de quem lutou contra toda a forma de opressão.
Henfil assistiria à campanha idealizada pelo seu irmão, “Natal sem Fome”, ter que ser relançada porque o país voltou pro Mapa da Fome. Henfil assistiria à história se repetindo com a operação da PF “A Esperança Equilibrista”, título, que remete à canção de João Bosco e Aldir Blanc – imortalizada na voz de Elis Regina – e que também faz menção ao “irmão do Henfil“, àquela época exilado. Esta música, que se tornou um hino da anistia, nos mostra o que parentes e sobreviventes dos horrores da ditadura já sabiam: a anistia “ampla, geral e irrestrita”, que também perdoou torturadores, não aplacou o terror, apenas o escondeu. A operação que levou professores coercitivamente parece rir dos que resistem, como se dissesse: o tempo de vocês dançarem na corda bamba se foi. O tempo da esperança acabou.
Desde sua promulgação em 1979, a Lei da Anistia não corrigiu o ranço da nossa sociedade policialesca, resultando em números assustadores de violência e abuso policial, que se antes aconteciam nos becos das favelas, com autos de resistência forjados gerando genocídio da juventude negra, agora são televisionados para o deleite de quem patrocina e apoia o assassinato de reputações porque ainda não podem apoiar a morte literal de seus adversários. O estado de exceção nunca foi exceção: herança maldita de um passado colonial e escravocrata, a polícia brasileira sempre foi política. E a política, como sabemos, há 500 anos é dominada por “herdeiros”.
A campanha “Natal sem Fome” foi relançada recentemente com apoio massivo de artistas como no passado recente. A classe artística agora empresta novamente sua imagem a uma campanha cujo objetivo é muito nobre. Afinal, como já disse Betinho: “quem tem fome tem pressa”. É possível afirmar, aliás, que os artistas foram os primeiros a sentir o golpe. Afinal uma das medidas de Temer assim que tomou posse foi dissolver o Ministério da Cultura, que até hoje ninguém sabe se realmente existe ou não, tamanho é o descaso com as políticas culturais. Mas voltando à campanha: sua última edição aconteceu há 10 anos, quando as políticas de erradicação da miséria ainda engatinhavam. De lá pra cá o Brasil saiu do Mapa da Fome, para o qual ameaça voltar devido às políticas de austeridade de Michel Temer. Os cortes expressivos em programas já considerados de sucesso, como o Bolsa Família, além da estagnação econômica, criaram o ambiente perfeito para o desespero. A cada dia é possível observar o crescimento de desempregados e, consequentemente, de trabalhadores informais e da população em situação de rua. As “reformas” aprovadas e as que devem vir em seguida, como a da previdência, também ajudam a empurrar os mais pobres para um cenário em que a humilhação é sempre o prato do dia. Com a nova legislação trabalhista nem mesmo o emprego será capaz de salvar da miséria e as novas leis para a aposentadoria querem que o povo trabalhe até a morte. Tudo isso sem falar no congelamento dos investimentos em saúde e educação por 20 anos, que vão piorar os índices de desenvolvimento. É retrocesso goela abaixo. Como diria Millôr, contemporâneo de Henfil n’O Pasquim: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.
Henfil se entristeceria com a situação da educação, o principal alvo desde os primeiros minutos do golpe. A Reforma do Ensino Médio feita por meio de medida provisória lembra bastante certos acordos “MEC-Usaid” que colocavam o sistema educacional brasileiro totalmente a serviço dos interesses estadunidenses. A educação que prevê senso crítico é chamada agora de doutrinadora. Henfil talvez desse risada, talvez ficasse chocado, ao saber que Paulo Freire se tornou um inimigo do país e que a principal questão a ser corrigida na nossa educação é a ideologia de gênero e a doutrinação política. Agora a nova “reforma” prioriza o ensino técnico também para atender as demandas do capital internacional, visando baratear a mão de obra e esvaziar a formação, uma vez que prioriza disciplinas tecnicistas em detrimento da história, da filosofia e da sociologia. A oferta do espanhol substituída pelo inglês, decisão que combina com o esvaziamento do Mercosul. Empregos? Só se for os que não pagam nem a corda com a qual nos enforcaremos. E aqui é preciso ressaltar a perversidade da relação entre o desmantelamento da indústria nacional, a recessão econômica que, vendida como herança maldita do governo Dilma, só fez piorar com a crise política e mais uma vez a “deforma trabalhista” que foi aprovada sob a justificativa de que acabaria com o desemprego, mas seus defensores não lembraram que o Brasil ainda registrava sensação de pleno emprego no início de 2014 sem precisar retirar nenhum direito do trabalhador!
Além do ensino médio, as universidades – outrora motivo de orgulho para a juventude que via na graduação uma oportunidade e do país para a produção de conhecimento – agora é atacada como gasto, sob o discurso de que não gera emprego ou riqueza e que estudantes custam caro. A UERJ resiste, mas seus servidores (assim como milhares da gestão criminosa de Sérgio Cabral) já não recebem há algum tempo. Na UFSC a perseguição resultou no terrível e ainda mal explicado suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier. A narrativa na grande mídia é a mesma já usada anteriormente com políticos: primeiro acusa, depois se apuram os fatos. E o fato é que na manhã do dia 06 de dezembro, reitor, vice-reitora e mais 7 professores da UFMG foram levados coercitivamente para depor sob a acusação de desvio de verba do Memorial da Anistia.
A denúncia contra os professores da federal mineira não apresenta provas e os depoentes nem sequer receberam qualquer aviso. Foram levados à força, mesmo que nunca tenham se recusado a prestar esclarecimentos. A obra em questão, que se arrasta desde 2008 principalmente devido a problemas técnicos – uma vez que se trata de um prédio histórico – não recebe repasse do Ministério da Justiça desde o ano passado. O delegado responsável afirma que foram desviados pelo menos R$ 4 milhões sob um esquema de bolsas de pesquisa não pagas e uma “editora fantasma”. A investigação que começou em março deste ano ainda não deu conta de produzir provas, mas garantiu o espetáculo do dia. A vice-reitora Sandra Regina Goulart Almeida foi eleita para ocupar o principal cargo da universidade e a composição da lista tríplice seria na semana seguinte. Coincidência?
Quem quiser crer no acaso, que fique à vontade, Henfil não acreditaria. Mas próximo ao aniversário do Ato Institucional nº5, que feriu de morte artistas, instaurou a censura, perseguiu e matou militantes da resistência, nos deparamos com o recrudescimento da polícia, aparelhada escancaradamente para servir aos interesses de quem deveria ser alvo de suas operações. O Brasil, um dos países-alvo da Operação Condor, que espalhou terror e retrocesso durante décadas de ditadura na América Latina – com contribuição bélica e econômica dos EUA historicamente registradas – nunca revisitou seu passado e todas as vezes que tentou fazê-lo, sofreu com a represália dos setores mais conservadores da sociedade que não apenas financiaram os anos de chumbo, como se beneficiaram deles. Ou será que a Rede Globo vai pedir desculpas novamente depois de 50 anos?
E quais seriam os interesses por trás da intimidação de professores? O golpe é contra quem pensa, quem produz intelectualmente, quem questiona, quem critica, quem ri, quem dança, quem interpreta, quem canta, quem sonha… Porque o golpe é antes de tudo um projeto de entrega. O desmonte da Petrobras foi só o início. Vale voltar um pouco na história e lembrar que os indícios da existência de uma grande reserva de petróleo são da década de 1970, mas naquela época, auge da ditadura e do “milagre econômico”, o Brasil não tinha nem sequer tecnologia para explorar as riquezas do seu próprio quintal. Preferia, no entanto, ser eterno capacho dos Estados Unidos, estes sim mui “solidários” e diretamente interessados no ouro negro que movimento economias mundiais. Corta para 2012, quando sob pressão do Movimento Estudantil, é aprovado o investimento dos royalties do pré-sal para a educação. Àquela época, durante o 65º Congresso de Entidades Gerais da UNE, que ocorria num Rio de Janeiro que recebia ao mesmo tempo a Rio+20 e a Cúpula dos Povos, o debate amadurecia sobre como, por quê e para quem destinar o dinheiro vindo da exploração, ao mesmo tempo em que se falava em energia renovável e até se deveríamos de fato utilizar o petróleo como fonte de energia, uma vez que todos sabem seu potencial devastador numa conjuntura de aquecimento global.
Hoje já não podemos decidir nada, o pré-sal foi entregue e os brasileiros não verão benefício algum. Outro fato daquele junho de quatro anos atrás: golpe “institucional” no Paraguai. A “casualidade” se dá por causa de um nome: Liliana Ayalde. A embaixadora que serviu até poucos meses antes da queda do presidente eleito Fernando Lugo se transferiu para o Brasil onde atuou até janeiro de 2017. Até os menos afeitos a teorias da conspiração devem estranhar tantos movimentos semelhantes. E caso ainda duvidem bastante é só dar uma rápida olhada nos documentos vazados pelo Wikileaks: de âncora racista da vênus platinada até presidente golpista e o José Serra (que ocupou o Itamaraty quando virou ministro de Relações Exteriores do golpe), que nunca escondeu sua vontade de entregar o petróleo nacional nas mãos dos EUA, diversos personagens já passaram pelas conversas com embaixadores, empresários e representantes dos interesses norte-americanos. Se o Brasil fosse um país sério essa gente já estava detida por crime de lesa-pátria e Henfil poderia escrever uma nova versão de seu “diário de um cucaracha” que alguns brasileiros parecem mesmo ter sangue de barata correndo em suas veias.
Henfil assistiria a uma nova experiência neoliberal sendo implantada no país, onde a ordem é privatizar tudo, inclusive a educação, o conhecimento e a arte, que é o último refúgio de humanidade que uma sociedade pode ter. Ficaremos condenados à exportação de commodities, à flutuação dos preços internacionais (comandados pela mão bem visível das maiores economias e potências bélicas mundiais). Exportar inteligência? Tecnologia? Isso não é papel de um país de “terceiro mundo”. A terceira via construída pelos BRICs padece sob a ganância de quem paga a miséria dos outros povos em dólar. Por isso os ataques não são apenas no plano econômico. Não basta empobrecer a população e convencê-la de que a meritocracia é possível numa sociedade desigual: é preciso torná-la completamente imbecil. Só assim se mina a resistência, só assim os canalhas serão eternos vencedores. E sabemos todos que os “vencedores” é que contam a história. Depois de estar na China (antes da Coca Cola!), Henfil veria suas principais críticas ao modelo chinês implantadas de maneira arbitrária agora bem perto, na sua própria terra.
Graúna, o bode Francisco de Orelana e o cangaceiro Zeferino: cadê a Esperança?
Talvez Henfil chorasse ao ver que o maior líder popular vivo no Brasil pode ser condenado sem nenhuma prova, somente para não ser Presidente da República. Em um país que nunca acertou suas contas com o passado, uma denúncia significativamente menor que as malas do Geddel gera tanto constrangimento e o Estado de Direito segue sendo violado, não é necessário só resistir: é urgente contra-atacar. Henfil certamente lutaria, nas ruas, com ideias e com arte, pois sabia que na luta de classe todas as armas são boas. É bem verdade o que Henfil escreveu em uma de suas cartas-crônica para a dona Maria, sua mãe: “O atual sistema, para governar, nos fez pessimistas. E pessimista não dorme, não faz amor, não faz partidos, não incomoda, não reclama, não briga. Que diabo de país é este? Pessimistas de todo o Brasil, uni-vos! Somos a maioria. Às ruas!”
Um artista como Henfil, que sabia que o verdadeiro humor deve ser um soco no estômago de quem oprime, não teria motivos para rir, mas inúmeros motivos para continuar lutando.
ÀS RUAS!
*Luara Ramos é mineira, mas atualmente mora no Espírito Santo. Otimista incansável, acredita no amor, no time do GALO e no poder popular.
*Camila Moreno é carioca, mineira, brasiliense e vascaína. Acredita no povo organizado e no poder da arte.
Em entrevista aos Jornalistas Livres o pesquisador Emilio Chernavsky, autor da tese de doutorado pela USP “No mundo da fantasia: uma investigação sobre o irrealismo na ciência econômica e suas causas”, conta um pouco da recente história econômica no Brasil e faz um alerta em relação à contra-reforma trabalhista que está em tramitação no Senado:
“Individualmente, para cada unidade produtiva, reduzir o custo de salários pode ser interessante. Mas se todos fizerem isso, cai a demanda da economia e não vai ter mais para quem vender.”
O pesquisador ainda elucida como o país passou de uma situação de ciclo virtuoso, em que o Estado interveio positivamente na economia através de políticas de aumento do salário mínimo e ampliação de benefícios sociais, por exemplo; para um ciclo contrário, de recessão econômica, com perda de direitos e renda, aumento da desigualdade e pobreza.
Achávamos que canções como “Brejo da Cruz” de Chico Buarque, que aborda a miséria, a exclusão, o sofrimento, a fome de crianças e a total ausência do Estado nas periferias mais pobres do Brasil, fosse ficar no plano da arte e da história. Jamais pensaríamos que os meninos desassistidos dos Brejos da Cruz espalhados pelo Brasil fossem novamente perder o mínimo de dignidade conquistada nos últimos 13 anos.
O menino da canção “Brejo da Cruz”, de Chico Buarque (1984), escapou da fome, da pobreza, foi à escola, cresceu, andou de avião, teve um filho. Agora este pai jardineiro, na tentativa de proteger o futuro do filho e aflito com sua lembrança sombria do brejo de sua infância de fome, encontra-se com a cruz na frente do brejo do Congresso Nacional. Virou Jesus. E ninguém pergunta de onde essa gente vem. (leia a letra da canção no final da entrevista)
Manifestação contra as reformas trabalhistas e previdenciária. Brasília, 24 de maio de 2017. foto: Tiago Macambira
Jornalistas Livres: De onde surgiu essa pauta da reforma trabalhista? Por que a reforma trabalhista enviada ao congresso era mais enxuta e só depois foi ampliada com emendas oriundas da CNI (Fiesp), CNT e FEBRABAN? Foi uma janela de oportunidade dentro do golpe? Ou o golpe foi pra isso mesmo?
Emilio Chernavsky: Foi a janela de oportunidade para realizar o “sonho de consumo” das federações patronais. Nos últimos anos (desde 2003), o mercado de trabalho foi ficando cada vez mais apertado; os patrões perderam um poder de barganha para o trabalhador de uma forma que ele nunca tinha tido dentro dessas regras (Constituição de 1988), principalmente de 2005 até 2014.
Jornalistas Livres: Por quê?
Emilio Chernavsky: Você tem uma dinâmica virtuosa em que o aumento do salário mínimo, regulado por lei, conduz à expansão da renda no mercado de trabalho e também fora dele, via transferências da previdência. Isso aumentou a demanda interna na economia que, ao aumentar a procura por trabalho, diminuiu o desemprego. Com desemprego menor, o trabalhador tem condições de exigir salários maiores, que lhe permitem consumir mais, realimentando o ciclo de expansão da demanda. Esse ciclo virtuoso interno foi ainda ajudado por outro, de origem externa, o chamado boom das commoditiesque, ao aumentar seus preços e volumes, permitiu a entrada da moeda estrangeira (como o dólar), necessária para pagar as importações que também cresciam e, ao aumentar a oferta, ajudavam a controlar os preços no país.
Além da mudança das regras de aumento do salário mínimo, os governos do PT tomaram outras medidas que ajudaram a aumentar a renda do trabalhador e as transferências da previdência. São importantes nesse sentido, por exemplo, o esforço da formalização com a criação do MEI (micro empreendedor individual), e a facilitação no reconhecimento de direitos com mudanças regulamentares e a expansão de agências do INSS. Ou seja, ao mesmo tempo em que se aumentava o valor dos benefícios com a elevação do salário mínimo, aumentava-se também o número de pessoas com direito aos benefícios; dando impulso à demanda interna na economia.
Jornalistas Livres: Trocando em miúdos, esse dinheiro fruto do contínuo aumento do salário mínimo e das transferências previdenciárias vai ser gasto direta e indiretamente com o pequeno comércio (padaria, mercado, cabeleireiro, restaurante, loja de sapato, confeitaria, bicicletaria, pequenas fábricas e empresas de serviços)?
Emilio Chernavsky: Isso! Comércios, serviços… que acabam tendo que contratar mais gente. Inclusive a indústria que atende ao mercado nacional cresceu muito naqueles anos. As pessoas começaram a comer mais, comprar geladeiras pra guardar alimentos, máquina de lavar, carro… Jornalistas Livres: Aí então você entra naquele famoso ciclo virtuoso… Emilio Chernavsky: E com dois motores iniciais: a demanda externa e as políticas de expansão dos benefícios sociais e de aumento do salário mínimo. Por conta disso, o desemprego caiu e o salário aumentou ininterruptamente de 2003 (início do governo Lula) até o fim de 2014. Então, o que aconteceu? Os trabalhadores com mais poder de barganha podiam sair de um emprego ruim e mudar para um melhor, caso as condições de trabalho e o próprio salário não melhorassem. Essa situação foi favorecendo o lado do trabalhador e, com o crescimento da economia, também dos empresários até 2010 – 2011 – e alguns setores até 2014.
Além disso, os jovens começaram a entrar cada vez mais tarde no mercado de trabalho, a estudar mais, a querer melhores salários; tivemos também uma mudança demográfica e as mulheres passaram a ter filhos um pouco mais tarde e com isso não mais se submetiam a qualquer trabalho.
Com esse aumento relativo do poder de barganha dos empregados e o consequente aumento do salário, as margem de lucro foram encolhendo desde 2010 / 2011, ainda que o lucro tenha em muitos casos se mantido alto. Com a queda, o empresário, principalmente do setor de serviços em que o custo da mão de obra impacta mais na redução de seus lucros, vai querer ver salários menores…
Jornalistas Livres: Suponha que eu seja um pequeno empresário… Em um primeiro momento, reduzir os salários vai-me fazer bem, mas, num segundo momento, isso fará bem para a economia de modo geral?
Emilio Chernavsky: Individualmente, pra cada unidade produtiva, reduzir o custo dos salários pode ser interessante. Mas se todos fizerem isso, cairá a demanda da economia e não haverá para quem vender. E com a redução dos custos de salários, com a reforma trabalhista e a redução das aposentadorias, prevista pela reforma previdenciária, a queda da demanda vai se aprofundar ainda mais.
Jornalistas Livres: Logo, efetuar essas reformas é dar um tiro no próprio pé….
Emilio Chernavsky: Apoiar reformas draconianas nessas áreas em um momento em que o mercado de trabalho se encontra deprimido é um tiro no pé, já que vai reduzir a renda de muitos entre os próprios apoiadores. Os empresários tiveram anos de ouro e muitos ganharam muito dinheiro ao mesmo tempo em que muitas empresas foram criadas. E muitos, especialmente parte daquele novo pequeno empresariado que não tinha vivido longos tempos ruins como tivemos no passado, considerava que essa situação seria permanente. Ao perceberem que não é, e nos últimos anos verem seus lucros cair, a única solução que lhes ocorreu foi a que pareceu fazer sentido do ponto de vista individual. Daí apoio a essas medidas.
Jornalistas Livres: Se o trabalhador e o empresário (pequeno e médio) perdem com essa reforma, a quem ela interessa afinal?
Emilio Chernavsky: Parte das empresas vai quebrar, mas de alguma forma vão continuar a existir empresas prestando serviços e produzindo. E as que ficarem, sobreviverão a custos menores e com taxas de lucro maiores.
Jornalistas Livres: E com isso vai aumentar a importância econômica dos oligopólios?
Emilio Chernavsky: Você tem sim uma forte tendência à concentração dos mercados em muitos setores e, quando se reduz seu tamanho, que é o que tende a acontecer em muitos casos, os mercados tendem a se oligopolizar.
Jornalistas Livres: E o que ocorrerá em relação à formalização do mercado de trabalho?
Emilio Chernavsky: Provavelmente, haverá uma formalização em determinados setores, mas o próprio trabalho formal tende a se precarizar, já que as reformas trabalhistas são em sua essência precarizantes, facilitando as demissões e reduzindo a remuneração.
Jornalistas Livres: É como se precarizasse as relações de trabalho da classe C sem ainda ter formalizado as relações das classes D e E.
Emilio Chernavsky: É uma boa analogia.
Jornalistas Livres: E todas essas alterações propostas farão o emprego aumentar? Com essas novas flexibilizações de horários de serviços, o empresário vai poder contratar mais?
Emilio Chernavsky: Vai poder, mas dificilmente o fará. Com o fim da hora extra (ou banco de horas individual) e com essa situação de crise, o trabalhador vai trabalhar o quanto ele conseguir. Dessa forma o empregador não vai precisar, num primeiro momento, contratar novos empregados para responder a um hipotético aumento da demanda.
Jornalistas Livres: Como fica a segurança jurídica nas relações trabalhistas? Não tende a diminuir?
Emilio Chernavsky: Nosso sistema jurídico é custoso e gera incerteza. O sistema tributário é muito confuso, regressivo e também incerto, pois dá muita discricionariedade à fiscalização. A crítica liberal que aponta nossa excessiva burocracia é verdadeira. Isso é custo. E tendo todos esses custos, uma indústria mais velha, redução da escala produtiva e com a logística um tanto problemática não iremos concorrer, por exemplo, com a China, ainda que os custos trabalhistas cheguem a ser o mesmos que os praticados naquele país. Em resumo é isso: vai haver diminuição do mercado interno, aumento da pobreza e aquele pequeno empresário que defende essa precarização do trabalho vai dançar. E as contas públicas vão piorar muito, pois a arrecadação vai continuar caindo ou ficará estagnada..
E além disso tudo teremos uma situação inédita no país, em que a próxima geração que entrará no mercado de trabalho terá uma situação muito mais difícil que seus irmãos ou amigos mais velhos que, por exemplo, obtiveram bolsas de estudo para entrar na universidade, participaram de programas de habitação, não tiveram que entrar tão cedo no mercado de trabalho etc.
Referência mundial no campo da ciência social, o premiado pensador Boaventura de Sousa Santos esteve no Brasil para lançar seu novo livro A difícil democracia (Boitempo Editorial). Em uma análise primorosa da situação política atual, Boaventura discute o que chama de “democracia de baixa intensidade”, reflete sobre as causas das crises que envolvem países da América Latina, Europa e África e, principalmente, alerta para a urgente necessidade de ‘reinventar as esquerdas’, subtítulo da obra. O sociólogo chama a atenção para as consequências políticas, econômicas e sociais após períodos em que o poder (ou apenas o governo) esteve com as esquerdas. Alerta para a ameaça fascista aberta sob a bandeira do combate à corrupção, que se impõe como proteção à democracia.
“A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”, escreve. Para ele, o crescimento de movimentos fascistas “é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia.”
Autor reconhecido e premiado no mundo todo, Boaventura escreve sobre sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador. Entre seus livros mais importantes estão Um discurso sobre as ciências (1988), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994), Reinventar a democracia (1998), Democracia e participação: o caso do orçamento participativo de Porto Alegre (2002), Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (2015).
Boaventura recebeu a reportagem dos Jornalistas Livres para uma conversa sobre Brasil, colonialismo, esquerdas e democracia. “O capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e atua com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. Não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado. Tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. Nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós coloniais.”
Sobre o Brasil, Boaventura afirma: “O País estará em um impasse durante um tempo. O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política. Os partidos de esquerda, em nenhuma condição, se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. Se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Não podemos governar na base de conciliação com grupos de direita que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB e com o PSDB, não sejamos ingênuos.”
Ele diz que a saída pode estar em um novo partido de esquerda, que esteja baseado mais nos movimentos sociais e menos nos interesses partidários. “O presidente Lula é um fator muito importante. Se ele voltar à presidência, não vai poder governar como governou. Se ele não voltar a ser presidente, o mito estará intacto. A aceitação que ele continua a ter é absolutamente notável e todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo. Lula foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro. Mas é preciso que digamos publicamente que temos consciência para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.”
Entrevista: Gustavo Aranda e Maria Carolina Trevisan, Jornalistas Livres Fotografia: Ângelo Lorenzetti Apoio: Daniel Grilli Agradecimentos:
Ivana Jinkings
Yumi Kajiki
Por Esther Solano, socióloga, professora da Unifesp e uma das organizadoras do ato, especial para os Jornalistas Livres
Domingo (11/6) celebrou-se o ato “Mulheres pelas Diretas e por Direitos”, no Largo do Arouche, centro de São Paulo, convocado por organizações, movimentos, entidades feministas e feministas autônomas.
Nós, mulheres, queríamos o grito e ontem tivemos grito.
Grito contra Temer, pelas Diretas e por nossos direitos. Contra a reforma trabalhista, a reforma da previdência, contra a PEC 55/2016, contra a PEC 29/2015 que veta o aborto legal. Contra todas as formas de violência sofridas por nós, mulheres. Contra a LGBTfobia. Contra o genocídio da juventude negra e periférica.
O ato foi lindo. Foi um ato de luta e foi de amor. De luta porque teve muita mulher guerreira por trás do palco, organizando o evento durante uma semana intensa. Teve muita mulher guerreira no palco: cantoras, poetisas, políticas, representantes de movimentos. Teve muita mulher guerreira na frente dele com uma plateia que vibrou em cada #ForaTemer e em cada palavra-pancada que saia do microfone. Foi um ato de amor, de abraço, de acolhida porque houve muita mulher negra, muita mulher periférica, houve mulheres trans com o microfone na mão. Muitas delas nunca teriam um lugar num ato da esquerda masculina. Muitas delas não só não têm voz na política reacionária e patriarcal dos donos do poder, como também sua voz é frequentemente anulada no campo progressista que supostamente está do nosso lado.
O lugar da mulher na História sempre foi o esquecimento, o silêncio, a margem. O lugar do invisível. Lugar de quem foi forçada a se manter na sombra. Lugar de quem teve a palavra negada.
Mas as mulheres não queremos mais a invisibilidade. Queremos sair da escuridão, do lar e queremos ganhar as ruas, as cidades, as escolas, os Congressos. Queremos conquistar os espaços que sempre foram masculinos. As mulheres queremos voz. As mulheres exigimos voz.
O momento é de luta e nós somos da luta.
Não queremos mais nem o esquecimento nem o silêncio.
“Nem recatada e nem do lar. A mulherada está nas ruas para lutar”
Ontem tivemos a palavra. Ontem nos sentimos representadas. Ontem a mulher de periferia esteve presente. Ontem a mulher negra esteve presente. Ontem a mulher trans esteve presente.
Homens de esquerda, isso é representatividade. Lembrem no próximo ato, no próximo comício, no próximo debate, na próxima mesa redonda. Sem representatividade, a esquerda não é esquerda.