Jornalistas Livres

Tag: direitos indígenas

  • Governo Dilma fica inerte enquanto os ruralistas intensificam os ataques contra os povos indígenas no MS

    Governo Dilma fica inerte enquanto os ruralistas intensificam os ataques contra os povos indígenas no MS

    Na noite deste domingo, 30, por volta das 21 horas, famílias indígenas de Ñanderú Marangatú sofreram novamente com ataques paramilitares de fazendeiros armados e seus jagunços. Os indígenas, fragilizados, famintos e aterrorizados, não esboçaram resistência, pois segundo eles o que houve ontem à noite “não foi confronto, foi uma nova tentativa de massacre”.

    Desta vez o acampamento de retomada das famílias Guarani e Kaiowá foi invadido por mais de 60 pistoleiros, que entraram realizando disparos e ameaçando crianças, velhos, mulheres e homens. O novo ataque foi realizado sobre o território sagrado de Ñanderú Marangatú, no local onde se encontra a fazenda denominada Piquiri, sobreposta aos 9.300 hectares de chão tradicional homologados pela Presidência da República.

    Ainda com as cicatrizes e traumas do ataque, um dia antes, em que o líder indígena Simião Vilhalva, de 24 anos, foi assassinado pelas milícias dos ruralistas à beira de um córrego onde procurava seu filho, as famílias relatam que apenas tiveram tempo de juntar alguns poucos pertences e correr para o meio da mata, buscando segurança para não serem também assassinadas.

    Apavorados e revoltados, os indígenas denunciam a inoperância das forças de segurança em garantir a vida e integridade de suas famílias. Em mensagens enviadas por telefone indagam:

    “Eles não estavam aqui para impedir o conflito? Para impedir massacre? Como, então, caminhonetes se juntam em bandos, entram, atiram, matam e eles não fazem nada como se nem enxergassem isso? Eu vou dizer o que eles estão fazendo. Esta Força Nacional está deixando os fazendeiros invadirem nosso território e se apossarem das sedes, aí eles vêm e fazem cordão contra nossa comunidade. Estão garantindo a devolução de nosso território para os fazendeiros, e a DOF (Departamento de Operações de Fronteira), além de acompanhar os jagunços, mesmo quando estão armados, agora ajudam a levar comida para eles e abastecer os bandidos que mataram o Semião”, desabafa, inconformada, uma das lideranças. (Matérias jornalísticas veiculadas ontem registraram o momento da entrega de alimentos, a qual a liderança se refere.)

    Uma das poucas verdades advindas dos pronunciamentos ruralistas até agora é de que a soberania nacional está ameaçada. Realmente está, porém não pelas participações de “indígenas paraguaios”, como tentam argumentar os ruralistas e seus sindicatos, mas sim pelas ações milicianas e paramilitares dos próprios fazendeiros. Desrespeitando a democracia e os direitos individuais e coletivos, essa “gente de bem” decidiu deliberadamente abrir uma temporada de “caça aos índios”, e promover reintegrações de posse à revelia da lei, com as próprias mãos. Desse modo, investem sobretudo contra famílias indefesas, o que, além de temerário e covarde, se constitui em crimes diversos e devem ser punidos nos rigores da lei.

    Enquanto isso, o governo — em especial o Ministério da Justiça — assiste inerte a bandidagem de latifundiários sem tomar providências efetivas de defesa dos povos indígenas e nem apontar algum tipo de intervenção. Os indígenas denunciavam, desde o primeiro ataque, que o clima continuava tenso e que não se sentiam seguros com as estratégias de “segurança” adotadas pela Força Nacional que, segundo eles, estava mais interessada em manter seguros os fazendeiros do que evitar novas invasões milicianas pelo perímetro da terra indígena. O silêncio do governo continuou: sequer lamentaram publicamente o assassinato de Semião.

    José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, em sua última declaração voltada aos Guarani e Kaiowá, realizada em Brasília, no início deste mês, afirmou que não “baixaria nenhuma portaria declaratória” (procedimento demarcatório essencial e de sua responsabilidade) por conta da conjuntura de alta violência e de “ataques de direitos” advinda dos produtores rurais e da própria Justiça. Cardozo afirmava que não poderia baixar as portarias porque teria plena consciência da violência sofrida pelos indígenas. Afirmou, por fim, que não estaria disposto a agir como um “Pôncio Pilatos” frente à crucificação de “Jesus Cristos Kaiowás”. Pois bem, neste momento o ministro age exatamente como um Pôncio Pilatos, assistindo ao acirramento da violência. Ao lavar suas mãos da responsabilidade em garantir a segurança destas famílias, Cardozo condenará quantos outros indígenas ao mesmo destino de Semião?

    Os Guarani e Kaiowá, diante da dor da perda de sua liderança, exigem que seja feita justiça. Exigem a punição imediata aos assassinos e mandantes e intervenção do Ministério da Justiça para garantir a segurança das famílias e coibir crimes e a continuidade do esbulho de seus territórios. Enquanto houver silêncio e inércia das autoridades responsáveis pela garantia da ordem e da justiça, a cada dia uma nova lápide de indígena assassinado será erguida, pois a intenção de matar é publicamente declarada por fazendeiros em reuniões e em depoimentos que circulam nas redes sociais. Até quando, senhora presidente da República e senhor ministro da Justiça, isso vai perdurar?

  • Guarani Kayowaa: a dolorosa retomada

    Guarani Kayowaa: a dolorosa retomada

    Depois de quase duas décadas de espera, a comunidade Guarani Kayowaa está retomando áreas da Terra Indígena Ñanderu Marangatu, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Lideranças relatam que tiveram sua aldeia invadida esta semana por agentes do Departamento de Operações da Fronteira (DOF) e que foram ameaçados com disparos de armas de fogo.

    Os Guarani Kayowaa cansaram de esperar. Querem avisar a toda a sociedade que dezoito anos já foi tempo bastante aguardando uma solução oficial para a demarcação de seu tekoa (território sagrado) no município de Antônio João, na fronteira do Brasil com o Paraguai. A Terra Indígena ÑanderuMarangatu, com cerca de 9 mil hectares, teve sua demarcação homologada em março de 2005 pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva. Poucos meses depois, porém, o Supremo Tribunal Federal, anulou a conquista. Com essa decisão, o presidente do STF na época, Nelson Jobim, atendeu aos apelos dos que alegam ser donos das terras. Teve início, então, uma sucessão de sofrimentos para a comunidade que hoje conta com cerca de mil indígenas. Mortes por assassinato, fome, atropelamento. Despejos. Invasões.

    Na semana passada, os Guarani Kayowaa decidiram retomar o território. Homens, mulheres e crianças seguiram para a chamada Fazenda Primavera, cujas terras são reivindicadas pelo ex-prefeito da cidade, Dacio Queiroz Silva (PMDB). “Pouco tempo depois de ocupar a fazenda o Departamento de Operações da Fronteira (DOF) apareceu e fez ameaças aos indígenas. Os guaranikayowaa recuaram então um pouco, por prudência. Mas na terça-feira, dia 25, por volta das 14h, os policiais do DOF invadiram e atacaram a área da aldeia. Não foi nem na área de retomada esse ataque, foi na aldeia mesmo”, denuncia um dos membros da organização indígena AtyGuasu, que não quis se identificar.

    Segundo ele, durante a invasão teriam sido feitos disparos com armas de fogo. Em comunicado, a comissão AtyGuasu relata que os invasores procuravam pelas lideranças da comunidade, entre eles o líder conhecido como Loretito. “Felizmente não houve vítimas nesse ataque. A comunidade está muito assustada, mas decidiu resistir e ampliar a retomada para as áreas de outras fazendas que estão dentro da Terra Indígena”, afirma o representante da organização.

    A reportagem tentou entrar em contato com a regional da Funai em Ponta Porã, sem sucesso. Em comunicado divulgado esta semana, o DOF não responde às denúncias feitas pelos Guarani Kayowaa, mas alega que no sábado teria participado de uma ação para “socorrer e liberar reféns de índios, após invasão de propriedade”. Exibindo fotos divulgadas anteriormente pelos indígenas em redes sociais como se fossem imagens de divulgação do próprio órgão, o DOF acusa dos Guarani Kaiowaa de ter feito reféns um adulto e dois adolescentes durante a retomada da Fazenda Primavera e de tê-los ameaçado com flechas e armas de fogo. A Comissão AtyGuasu diz que todas as acusações são falsas.

  • Fragmentos da terra da água

    Fragmentos da terra da água

     

    Era muito cedo ainda para o dia, mas a noite já não escurecia tanto. Pegamos as vacinas, o médico cubano , a enfermeira, técnicos e agentes indígenas de saúde, nossa grande equipe conta 10 pessoas e dois barcos e um só rumo: vacinar e identificar todos os índios em todas as diversas aldeias e suas etnias. Agora, estamos nas antigas terras dos índios Kalapalo, território esse evacuado as pressas por eles no século passado, contam em histórias tristes que as mulheres e as crianças, seus velhos também, iam morrendo pelo caminho padecidos de sarampo. Hoje voltam para as terras em pequenas novas aldeias, lugares sagrados e miscigenados com Matipu, Nafukuá, Kuikuro.

    Foto: Hélio Carlos Mello

    Estamos abrigados no Culuene, uma aldeia ponto de apoio e vigilância com o limite sul do PIX, a membrana de contato com o território dos povos da terra do Alto Xingu.

    Os muitos dias intensos de trabalho já realizado são recortados pelo radical silêncio das noites, pois todos dormem cedo em suas redes. Do sono que perco nas madrugadas percebo que há hoje um certo trânsito de barcos naquele trecho de rio, algo incomum nas terras indígenas.

    Na manhã seguinte vejo onde de fato estou, pois alta noite se fazia quando aportamos a água limpa dos rios que navegávamos cede aqui espaço a imensas manchas de espuma marrom rodeando os cantos do rio Culuene. Ao longo do dia vou entendendo a enorme pressão que se faz no limite do parque com a sociedade envolvente, no caso moradores, fazendeiros e turistas que frequentam intensamente as pousadas de pescarias que se contituem nas margens do rio no município de Gaúcha do Norte e com estradas de acesso as cidades de Canarana e Querência.

    Passei a transitar esse trecho com meus amigos indígenas, a apreender os limites da área e toda a voracidade, ainda insipiente, dos investimentos no setor hoteleiro que tendem a se intensificar com o poder do apelo do turismo da pesca. Nosso achado foi a antiga placa da FUNAI, que anuncia o limite da Terra Indígena soterrada no leito do rio, entre a mata. Bravamente houve o desterro da placa pelos Waurá, Kuikuro e Kamaiurá que me acompanham. Colocamos a placa toda enferrujada no local, mesmo sabendo que cabe a FUNAI anunciar e zelar pelos limites das terras indígenas, bem como mediar conflitos nas zonas de pressão. Fica evidente que o município de Gaúcha do Norte tem que criar um legislação ambiental para a ocupação das margens do Culuene. Ao IBAMA cabe fiscalizar o resguardo dos recursos naturais.

    Foto: Hélio Carlos Mello

    A poluição das águas vinda pelo turismo e a invasão de pescadores é apenas uma das ameaças que começam a interagir com as aldeias e as etnias e seus clãs. Hoje os jovens estão animados com a grande pescaria em rede, e a rede é o wi-fi que seduz a todos. As motos passaram a ser fundamentais também, facilitando o trabalho nos caminhos de roça e no percurso do rio. Grandes TVs também encontraram seu lugar na grande casa ovalada em sapé habitada por muitos. A mercantilização das grandes festas e rituais também salta aos olhos.

    O incrível mundo novo da tecnologia passa a se mostrar como uma eficiente arma inventada pelo homem branco, cabendo apenas aos índios decidirem que caminho tomar para preservar a cultura originária da sedução das parafernálias que o mercado renova a cada dia.


    Seja Jornalista Livres! Apoie a construção da nossa rede de jornalistas independentes: catarse.me/jornalistaslivres

     

     

  • Todo macaco no mesmo galho e a tristeza não é senhora

    Todo macaco no mesmo galho e a tristeza não é senhora

     

    Na noite do dia 16 de abril, durante um debate no bairro do Bixiga em São Paulo, descubro que a serenidade e a vida longa são atributos de mulheres que decidiram seguir um caminho entre livros, mato, rios e índios. A descoberta me acende quando observo, entre as pessoas da plateia, as fotógrafas Maureen Bisilliat e Claudia Andujar, ao lado de Betty Mindlin, antropóloga.

    Foto: Luz del Fuego

    Carmen Junqueira, também antropóloga e professora emérita da PUC, uma das palestrantes, revela sua apreensão e melancolia , após a exibição de um vídeo inédito registrando o recente contato com a etnia Mahsco Piro, que transita na fronteira entre Peru e Brasil. “Quero dizer que esses grupos, que deveriam ser a base de nossa democracia são, ao contrário, aqueles que têm de ser moídos, porque é o que se faz desde sempre. Aqueles índios do passado que conseguiram sobreviver ou aqueles que conseguiram se equilibrar dentro da comunidade. Que não foram laçados ou para trabalhar em fazendas ou, as meninas, postas a trabalhar como domésticas nas cidades vizinhas aos territórios”. Sem resiliência, o caminho do índio tem sido uma via crucis na nossa história, com exceção de um breve período de Marechal Rondon, no início do século 20,em que a matança de índios teve uma trégua. Apesar de toda gravidade, a antropóloga enaltece o privilégio que o Brasil tem de ser contemporâneo de povos que vivem em comunidades quase igualitárias. “Isso para um país que vive com uma vergonhosa distribuição de renda, com uma exploração terrível, só essa lembrança de um futuro que nós almejamos em igualdade já é alimento para nós lutarmos a favor dessas populações”, conclui. Na inusitada casa do bairro paulistano que abrigou o debate reuniram-se o médico Douglas Rodrigues, coordenador do Projeto Xingu, um programa cinquentenário de extensão da Escola Paulista de Medicina, além de André Villas-Bôas, secretário executivo do Instituto Socioambiental. Foram mediados pela jornalista Laura Capriglione, do Jornalistas Livres. “O desvendamento da questão indígena, apesar de estarmos no século XXI, é a proposta desse debate e o desvelamento é uma tradição desse território dos Jornalistas Livres”, diz Laura Capriglione.

    Foto: Hélio Carlos Mello

    Jornalistas Livres, para quem não o conhece, é um coletivo de comunicadores, recentíssimo, que tem como pressuposto a defesa da democracia. Laura afirma que pela primeira vez em muitos anos, décadas, tem gente com coragem de chegar numa avenida e defender a intervenção militar, e defender a ditadura militar, e torturadores se apresentando no meio da avenida Paulista sendo aclamados como heróis do povo brasileiro, torturadores que ceifaram tantas vidas e infelicitaram tanto uma parcela enorme de nossa juventude. Nesse exato momento, os Jornalistas Livres constituíram-se com base em dois princípios: o amor irrestrito pela democracia e o respeito apaixonado pelos direitos humanos. Por isso, para esse grupo, é tão importante destacar a questão indígena, como concernente a uma das parcelas da população mais violentadas por um modelo de desenvolvimento que ignora o direito à autodeterminação dos povos e o próprio direito à sobrevivência, conclui ela.

    O médico Douglas Rodrigues toma a palavra, aludindo à motivação que os coletivos instigam e à revelação de novas etnias, que excita os indigenistas. Ele revela à plateia do século 21 que o país ainda tem muitos grupos indígenas que vivem em estado de isolamento, abstenção essa que mais parece uma estratégia desses grupos para enfrentar o desenvolvimento. Ele explica que o contato é apenas o momento oficial de nossa sociedade com os “descobertos”, pois os avistamentos são apontados pelas populações do entorno dessas regiões.

    Foto: Mídia NINJA

    A primeira consequência disso pode ser a depopulação do território provocada por agentes patológicos, bem como por conflitos. A imunização é fundamental nessa para evitar os grandes riscos de mortalidade. As referências de contato de índios isolados nesse momento no território brasileiro chegam a 102, sendo os grupos já identificados 27. Douglas revela que esses grupos estão fugindo, o isolamento é uma estratégia de sobrevivência frente aos vários programas de infraestrutura para financiar esse projeto de desenvolvimento do novo século, que possui vários equívocos. Diz ainda que, às vezes, infelizmente o contato é a última fronteira de proteção dos isolados. Falta hoje uma política clara que tire o índio da invisibilidade, que haja coragem e seja continuada, conclui ele.

    Por fim, o indigenista André Villas-Bôas, do ISA, revela o quanto foi influenciado na sua juventude, em seu empenho indigenista, pelas fotos das revistas Cruzeiro, Atualidade e a revista norte-americana Life. Aliás a fotografia foi fundamental na manutenção de territórios tradicionais às etnias. A fotografia é arte fundamental na decisão desse caminho. A geração à qual André pertence testemunhou toda violência da década de 70, do regime militar com a construção de estradas, tais como as BRs 364, 163, 158, Transamazônica, Perimetal Norte, que ensejaram grandes etnocídios , mas ao mesmo tempo, contraditoriamente, foi no período militar que alguns dispositivos legais trouxeram um mínimo de segurança. Destoando com o que até então, foram dados os primeiros passos para que se constituísse legitimidade para a demarcação territorial para os povos tradicionais. Talvez possamos um dia fazer uma análise sociológica desse fenômeno militar que batia com uma mão e protegia com a outra.

    Foto: Hélio Carlos Mello

    Temos vários momentos na história brasileira em que isso fica patente com os povos indígenas. Essa geração de André também testemunhou o período da Assembleia Constituinte, e celebrou conquistas incríveis para os índios, face à fragilidade que existia na legislação. Hoje, é muito duro testemunhar o ataque e retrocesso que se pretende em relação a esses direitos conquistados em 1988. É algo que nos abate permanentemente. Essa PEC 215 enseja uma discussão muito mais profunda do que se os índios devem ter terra ou não. Essa PEC nos faz refletir sobre o país que nós queremos para o futuro, conclui.

     


     

    Saiba mais sobre os Jornalistas Livres

    #JornalistasLivres em defesa da democracia: cobertura colaborativa; textos e fotos podem ser reproduzidos, desde de que citada a fonte e a autoria. mais textos e fotos em facebook.com/jornalistaslivres.

  • Parlamentares versus parentes

    Parlamentares versus parentes

    Brasília, 16 de abril de 2015, terceiro dia de Mobilização Nacional Indígena no 11º Acampamento Terra Livre. É hora de mais de 500 indígenas se pintarem para a guerra, descerem até o poder legislativo da República e ocuparem o Congresso Nacional, organizados em fila indiana para passar pelo cordão de isolamento da Polícia Legislativa. E lá vou eu de novo, junto com esse povo que (não) sou eu, pisar naquele chão de elite branca que (não) é meu.

    Foto: Mídia NINJA

    Rompido o cordão de isolamento, a rampa do Congresso Nacional é do povo indígena — o que valeu apenas para aqueles que tivessem nome e sobrenome passados à Câmara pela organização da Mobilização Nacional Indígena.

    Foto: Mídia NINJA

    Como a provar que todo dia é dia de demagogia nas duas casas legislativas do Brasil, deputados e senadores são uníssonos em comemorar e homenagear o Dia Nacional do Índio, o 19 de abril, data solitária paliativa num oceano de 364 outros dias. A Câmara dos Deputados recebe com carinho e reverência o espetáculo multicolorido de “parentes” vindos de avião, ônibus e carro das cinco regiões do Brasil com S.

    Foto: Mídia NINJA

    A casa toda se levanta para cantar, em português, o Hino Nacional Brasileiro. Alguns indígenas cantam junto, outros mantêm silêncio (ir)reverente.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Assentados nos postos rotineiramente ocupados pelos deputados, @s índi@s batucam a internet dos parentes brancos e produzem a cena espetacular de ocuparem, uma vez na vida, os assentos mais poderosos do país que antigamente era só deles. A Rede Globo e demais emissoras (multi)nacionais ignoram solenemente o espetáculo extraordinário de cores e significados.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Enquanto isso, nos subterrâneos, os astutos senhores atualmente liderados pelo peemedebista Eduardo Cunha preparam o bote apelidado PEC 215. Sob a tarja de Proposta de Emenda à Constituição, a 215, esse é o eufemismo ruralista-especulativo para designar o estupro (mais um estupro) que pretende sequestrar do poder executivo para o legislativo (ou seja, para os homens — e algumas mulheres — de Cunha e do também peemedebistaRenan Calheiros) a tarefa de (não) demarcar e homologar terras para os habitantes originários do Brasil que foi ficando com Z.

    (“Parente” é o termo amoroso pelo qual os descendentes indígenas de nosso país se tratam e se reconhecem uns aos outros.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Superstar entre os parentes na sessão matinal na Câmara, a ex-senadora acreana Marina Silva, da (não-)Rede e do (não-)PSB, é estrela maior entre uma constelação de cocares, penas de pássaros e tons não-pálidos de peles humanas. A terceira colocada nas eleições presidenciais de 2014 diz que “não sabia que iria falar”, antes de observar que esta é sua primeira aparição pública desde a campanha e de sacar de um papel apontamentos para um discurso de forte identificação e empatia com os parentes presentes.

    O discurso é mais brando que o que Marina fez menos de 24 horas antes na plenária pública da tenda de circo do acampamento instalado no gramado da Esplanada dos Ministérios, no qual reafirmou lealdade às causas indígenas, criticou as incoerências político-eleitorais e a política de demarcações da presidenta Dilma Rousseff e afirmou ter se aliado “a uma das candidaturas” do segundo turno de 2014 por causa, entre outras, do compromisso da candidatura em questão em não apoiar a PEC 215.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Na Câmara, Marina demonstra que as demarcações diminuíram drasticamente nos governos petista, em comparação aos governos tucanos pré-2003, e troca a ordem dos fatores: não menciona a aliança que fez no segundo turno, mas nomina o tucano Aécio Neves em pessoa, dando conta de um suposto compromisso do senador mineiro com a não-aprovação da PEC anti-indígena pró-ruralista.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    A demagogia pró-indígena dos congressistas recende a antídoto para a feia cena de dezembro passado, quando a Câmara usou de violência para impedir a entrada dos parente numa sessão da “casa do povo” (leia aqui como a mídia tradicional inverteu a notícia, acusando índios de “invasores” e agressores). Sob os crucifixos católicos que adornam os plenários laicos de Câmara e Senado, agora tudo é paz, todos amam os índios, tudo é festa preparatória para a chegada do 19 de abril.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    O músico paraibano Chico César toma o microfone para saudar os “parentes” e entoar uma canção provocadora decalcada das epopeias folk do (não)parente do norte Bob Dylan.

    Pajelanças à parte, o tratamento “diferenciado” se conserva. No início da sessão, mais deputados que índios ocupam as tribunas (onde está a Rede Globo, que ainda não chegou para dar holofotes indigenistas aos representantes do povo?). Mais indígenas que congressistas são relegados às últimas falas.

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Irredutível diante do dominador, o cacique caiapó (e mato-grossense) Raonidiscursa em sua própria língua. ”O homem branco não quer ouvir o que temos a dizer”, lamenta ao microfone um cacique faminto do almoço que começa a tardar.

    Foto: Mídia NINJA

    (Na noite de quarta-feira, depois de ouvir Marina discursar, assisti a uma minúscula reportagem da Globo do Distrito Federal sobre a marcha indígena do dia. Não houve nenhuma ínfima menção à PEC 215, menos ainda ao que ela significa. O locutor afirmou que a passeata era a favor da reforma agrária — termo que não ouvi da boca de nenhum indígena nesses dias. A manifestação interrompeu o trânsito, sublinhou a Globo, que, definitivamente, não é — ou não quer ser — parente de ninguém que seja não-branco. Sim, nós somos racistas, sinhozinho.)

    Foto: Jardiel Carvalho / Foto Coletivo RUA

    Os parentes não se mostram convencidos pela encenação parlamentar. Balançam chocalhos (arcos e flechas foram proibidos de entrar), fazem algazarra contra o pretendido estupro à Constituição de 1988, forçam no grito manso os deputados a vestir a camiseta “não à PEC 215″ que trouxeram como presente de índio para branco. ”Veste! Veste! Veste!”, exigem com firmeza inclusive de uma inicialmente hesitante Marina Silva. A parenta que quase foi presidenta acaba por cobrir parte do vestido verde-amarelo-elegante com a camisa que diz ser sua para sempre.

    Foto: Mídia NINJA

    O festim demagógico se repete como farsa na parte da tarde, no auditório do Senado. A segunda casa legislativa se revela mais exclusiva, exclusivista, restrita e restritiva que a Câmara. Agora a polícia legislativa não quer permitir nem mesmo a entrada dos chocalhos. Na iminência de ser privados de mais uma parte importante de suas identidades, índias e índios ameaçam ir embora para o acampamento, e dali para casa. A comissão de Direitos Humanos do Senado consegue desenlaçar o impasse: os chocalhos entram no salão azul dos brancos homens (e algumas mulheres).

    Foto: Mídia NINJA

    Sob o crucifixo católico que (como na Câmara) adorna o topo da mesa diretora, o aparentemente parente João Capiberibe, do PSB do Amapá, preside uma sessão à qual pouquíssimos parentes-de-Senado estão presentes. Homens e mulheres pintados, seminus e calçados de havaianas tomam assento nas cadeiras paulistas em que cotidianamente se refestelam, lado a lado, os senadores José Serra, Aloysio Nunes (PSDB) e Marta Suplicy (PT ou ex-PT?).

    Foto: Mídia NINJA

    Parente paranaense, me vejo sentado na cadeira do conterrâneo Roberto Requião (PMDB), antes de notar que, no Senado, ele se senta lado a lado com os irmãos-adversários de aldeia Gleisi Hoffman (PT) e Álvaro Dias(PSDB). Não é só no aldeamento demarcado: também no parlamento os parentes rivais são forçados (forçados?) a dividir o mesmo lugar no espaço uns com os outros.

    São tristonhos os primeiros discursos de senadores na tribuna. “Veste! Veste! Veste!”, os agora cerca de 80 parentes no Senado constrangem os parlamentares a assumir a camisa-emblema que só na hora do voto eles revelarão no duro se é ou não é a sua. Capiberibe e um senador do PR de Tocantins se (des)ajeitam na camisa anti-PEC. Os chocalhos balançam, felizes, mas não necessariamente crédulos. O paraibano Cássio Cunha Lima, do PSDB, aparece sorridente para cumprimentar conterrâneos indígenas, mas não cobre peito com o “não à PEC 215″. Os chocalhos sabem a hora de emudecer.

    Foto: Mídia NINJA

    Um cacique põe o dedo na ferida de poderosos sejam executivos, legislativos, judiciários, laicos ou religiosos, em discurso que não será ouvido pelos ausentes Marta, Serra, Aloysio, Aécio, Renan, Requião, Gleisi, Álvaro: “Não adianta falar que defendem os índios, os LGBTs, os quilombolas ou as mulheres, se vocês não defendem de verdade”. Dos assentos onde poderiam estar os senadores, os chocalhos gritam, misturados a trinados que evocam os pássaros das florestas brasileiras com S.

    Foto: Mídia NINJA

    Capiberibe anuncia que vai se ausentar da presidência da sessão para acompanhar uma ainda mais exclusiva delegação indígena ao encontro do vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB. É o mais perto que os parentes chegarão da presidenta Dilma nesta jornada, pelo menos até o instante em que este #JornalistaLivre tem de debandar da “casa do povo” e do convívio com parentes e (não-)parentes, para voar de volta à terra adotiva dos bandeirantes de São Paulo.

    (Você viu no Jornal Nacional da quinta-feira 17 se Dilma ou Temer recebeu nossos parentes indígenas? Você viu nossos parentes na tela da Globo?)