Jornalistas Livres

Tag: Direito Penal Ecõnomico

  • A Ópera dos Canalhas

    A Ópera dos Canalhas

     

    Il vino si fa con l’uva
    Ditado italiano

    O liberalismo conseguiu fazer conviver no Brasil o discurso liberal e a escravidão. O romantismo dos discursos liberais destoava da realidade da qual se falava. Todas as rebeliões dos liberais no Brasil nenhuma teve por fundamento a liberdade. Pura canalhice. Os liberais brasileiros no século XIX usaram e abusaram do discurso sobre a liberdade, justificando suas condutas de transformar pessoas em mercadoria. Enfim, o discurso liberal das oligarquias bacharelescas justificou no século XIX a escravidão.

    No Brasil do século XXI, magistrados da alta oligarquia bacharelesca do Judiciário se utilizam da teoria do domínio do fato para justificar a seu bel prazer o combate à corrupção [1]. Pura canalhice! O brio da Toga oculta um objetivo político inconfessável: destruir o PT e afirmar a desfaçatez persecutória ao ex-Presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2017, o caso exemplar da aplicação desvirtuada da teoria do domínio do fato é a sentença de um juiz da Vara Federal de Curitiba condenando o ex-presidente Lula a mais de nove anos de prisão. Paulo Nogueira Batista Jr. sintetizou o absurdo da sentença condenatória. Disse ele:

    “O ex-presidente foi condenado em primeira instância por crime de corrupção passiva. Ora, para caracterizar tal crime, parece que há pelo menos dois requisitos indispensáveis. Primeiro, comprovar o recebimento pelo corrupto de um favor ou benefício. No caso, o tríplex em Guarujá. Segundo, comprovar que o acusado se valeu de um cargo para prestar alguma contrapartida ao corruptor, no caso a OAS. Quanto ao primeiro aspecto, o juiz reconhece que não tem provas de que o tríplex pertence ou tenha pertencido a Lula. Alega, entretanto, que o ex-presidente era ‘proprietário de fato’. O juiz comprova a “propriedade de fato”? Comprovou-se o uso frequente do imóvel por Lula e seus familiares? Não. O que se alega simplesmente são uma ou duas visitas de Lula e dona Marisa ao tríplex. Uma, talvez duas visitas. Parece caricatura, mas não é. Quanto ao segundo aspecto, como o juiz comprova a contrapartida? Não precisa comprovar. A sentença alega: ‘Basta para a configuração que os pagamentos sejam realizados em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam’. Atos de ofício indeterminados. A citação é literal”. (Paulo Nogueira Batista Jr., “Ponto Paragrafo”. In: https://oglobo.globo.com/opiniao/ponto-paragrafo-21613089, Acesso em 23/07/2017).

    O ativismo judicial a serviço da direita brasileira tornou-se protagonista da cena política brasileira pelo menos desde o dito “Escândalo do Mensalão” (2005). O Poder Judiciário brasileiro tem protagonizado pelo menos nos últimos 12 anos, o tenor da Ópera dos Canalhas que tomaram de assalta a República Federativa do Brasil. Como diria Lévy-Strauss: Tristes Trópicos.

    Um detalhe: utilizamos canalha não como ofensa pessoal, mas como característica de uma conduta moral atávica da classe dominante brasileira e seus aliados de “classe mélia” bacharéis e pseudoilustrados, que, de modo cínico, justificam seus interesses particularistas de serviçais históricos da oligarquia dominante dizendo combater pelo interesse geral. No Dicionário Houaiss existe uma longa (e precisa) definição do verbete “canalha”. Vejamos:

    Canalha. 1. relativo a ou próprio de pessoa vil, reles. 2 que ou aquele que é infame, vil, abjeto; velhaco • 3 conjunto de pessoas infames, abjetas, desprezíveis. Etimologicamente a palavra canalha deriva do italiano canaglia, tendo sido utilizado mesmo antes do ano de 1338. A palavra deriva. de cane ‘cão’ + suf. coletivo e depreciativo -aglia. Nesse caso, significa “conjunto de pessoas desprezíveis’ ou ainda, ‘pessoa malvada’. Como sinônimos e variações temos: abjeto, acanalhado, baixo, bocório, cafajeste, chulo, desbriado, desgraçado, desonroso, desprezível, escroto, espurco, feio, ignóbil, ignominioso, imundo, incorreto, indecoroso, indigno, infame, inominável, inqualificável, intolerável, mal-afamado, mariola, mesquinho, miserável, mísero, moleque, mucufa, obnóxio, odioso, ordinário, pangarave, patife, pífio, pulha, rebaixado, reles, ribaldo, sacana, sem-vergonha, soez, sórdido, sujo, terrulento, torpe, tratante, tratista, velhaco, vergonhoso, vil, vilão. Ver também como sinonímia de pulha, rale e súcia.

    Abertura

    Assistimos pelo menos nos últimos doze anos uma tremenda ofensiva de frações da burguesia neoliberal brasileira ligadas ao polo hegemônico do imperialismo norte-americano, o mesmo que apoiou a ditadura militar e os governos de direita na América do Sul. Ás vésperas da eleição de 2006, produziu-se nos laboratórios da media de direita o “Escândalo do Mensalão”. O objetivo latente da media neoliberal articulada com frações da oligarquia bacharelesca do alto Judiciário era criar um clima politico e social para derrotar Lula nas eleições de 2006 e impedir a sua reeleição. Era preciso inovar na fundamentação jurídica para condenar a cúpula do PT e o próprio Presidente Lula acusando-os de corrupção. Deste modo, utilizou-se com deturpada criatividade, a teoria do Domínio do Fato, adequando-o ao ativismo judicial da direita brasileira.

    No Brasil, fez-se uma mistura à brasileira da teoria do domínio do fato com a Razão Cínica, que não é novidade na cena brasileira, pelo menos desde o século XIX (a vanguarda do atraso civilizatório da terra brasilis deveria impressionar e fascinar, por exemplo, o filósofo alemão Peter Slotedijik, autor de “Crítica da Razão Cínica” que, se fosse brasileiro, teria incluído em seus cinismos cardinais, o cinismo judiciário).

    Entretanto, em 2006, o tiro saiu pela culatra: a articulação juridico-midiática do Escândalo do Mensalão fracassou no seu intento político, pois Lula foi reeleito, derrotando o candidato do PSDB, José Serra. Entretanto, a ofensiva juridico-midiática contra o PT e suas lideranças politicas prosseguiu, encarcerando importantes quadros da estratégia de poder petista (p. exemplo, o ex-ministro José Dirceu).

    Foi notável a habilidade política de Lula em lidar com o poder oligárquico brasileiro, dividindo-o e algumas vezes, confundindo-se com ele. A partir de 2007, após reeleger-se para a Presidência da República, Lula aproximou-se do PMDB de Michel Temer buscando criar uma maioria política capaz de avançar no projeto reformista do PT (o emblema do lulismo, “reformismo sem reformas” ou “reformismo fraco”, como diria André Singer). Imbuído de pragmatismo politico intrínseco à inteligência sindical de Lula, o lulismo “confundiu-se” com a banda fisiológica da oligarquia brasileira (o PMDB de Michel Temer) visando isolar a direita neoliberal aliada aos interesses do Departamento de Estado norte-americano.

    O governo Lula enfrentou com sucesso os impactos imediatos da crise financeira de 2008 no Brasil. O sucesso da economia brasileira e os programas sociais com transferência de renda, tal como o Bolsa Família, impulsionou sua popularidade. O Escândalo do Mensalão e a acusação de corrupção contra o PT, cruzada ideológica levada a cabo pela mídia neoliberal e a oligarquia bacharelesca liberal do alto Judiciário brasileiro, não impediu que Lula elegesse sua candidata a Presidência da República em 2010 – Dilma Rousseff pelo PT, tendo como vice-presidente Michel Temer, do PMDB. Lula cumpriu o acordo feito com o “cacique” peemedebista Michel Temer logo após as eleições de 2006, indicando-o como “sombra” de Dilma Rousseff. Entretanto, como iremos ver, o pragmatismo do lulismo levaria o PT a pagar um alto preço político mais tarde.

    O sucesso da empreitada do PT levada a cabo por Dilma Rousseff foi bruscamente interrompida com a conjuntura da economia mundial aberta pela crise do capitalismo global que chegou ao Brasil na primeira metade da década de 2010. A desaceleração da China (2013) e a queda dos preços das commodities (2014), além de erros pontuais na política macroeconômica conduzida pelo Ministro Mantega no primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014), contribuíram para uma das maiores crise da economia brasileira dos últimos tempos.

    O Ministro da Fazenda de Dilma errou ao manter a apreciação do real em detrimento da indústria nacional (embora a redução da inflação no começo do governo Dilma, tenha aberto espaço para que o câmbio fosse desvalorizado sem que isso implicasse rompimento da meta de inflação, a politica de desindustrialização se manteve); ao adotar uma politica de benefícios fiscais para o empresariado brasileiro iludindo-se com a perspectiva de que eles voltassem a investir (os benefícios fiscais concedidos pelo governo Dilma Rousseff, de 2011 até 2015, passaram de 408 bilhões de reais!); e ao conter preços das tarifas dos serviços públicos (por exemplo, petróleo e energia elétrica) como estratégia para manter a inflação na Meta. Além disso, a rendição em 2013 à politica do Banco Central, que diante da retomada inflacionária voltou a aumentar juros num cenário de flagrante desaceleração da economia. Entretanto, os erros de condução macroeconômica e a profunda inabilidade política de Dilma Rousseff diante do desmoronamento da arquitetura política do lulista (dissenções no PMDB e rompimento do PSB), indicavam algo mais profundo: os limites do neodesenvolvimentismo diante da crise estrutural do capitalismo brasileiro.

    Presto Agitato

    A luta de classes num cenário de avanço da crise da economia e inquietação social, polarizou esquerda e direita no seio da sociedade brasileira. A manipulação midiática da TV Globo e redes afins e a ofensiva jurídica com a nova operação “desmonta PT” – a Operação Lava Jato – iniciada em 2014, ano da eleição para a Presidência da República, criou um clima de guerra às vésperas da eleição de 2014.

    Por um lado, a alta classe média hegemonizada pela mídia neoliberal de direita foi as ruas contra o governo Dilma. Desde 2013, o ano das jornadas de julho, a rebelião do precariado que se tornou a revolta da “classe média” coxinha, movimentos sociais – MBL, Vem Pra Rua, Revoltados On-Line – financiados pelo empresariado brasileiro – e provavelmente com dólares – aproveitaram a crise político-moral no País para instalar nas ruas a pauta da direita brasileira. A baixa “classe média” inquieta pela proletarização – parte dela sob inspiração de ideologias “esquerdistas” sedentas da luta de classes e pregando a luta pelo socialismo – também insurgiu-se como oposição contra o governo Dilma confundindo-se objetivamente com a demanda politica da direita reacionária.

    Apesar dos desvarios à direita e à esquerda da “classe média” brasileira, a nova classe trabalhadora (que Lula errou ao denominá-la “nova classe média”), a classe operária organizada e o subproletariado – beneficiários dos Programas Sociais – conseguiram reeleger por uma pequena margem de votos, Dilma Rousseff em 2014, derrotando o candidato do PSDB, Aécio Neves. Foi uma vitória de Pirro. Mais uma vez, Lula, cabo eleitoral de Dilma, demonstrou sua notável força política de líder popular. A nova derrota politica da direita brasileira – a terceira derrota eleitoral em pouco mais de dez anos! – seria inaceitável para o bloco no poder da oligarquia brasileira. O bloco de poder recomposto no Brasil não deixaria impune o atrevimento da esquerda petista.

    Presto Bruscamente

    A arquitetura política do lulismo construída em 2006 desmoronou-se mesmo antes da eleição de Dilma Rousseff. O projeto neodesenvolvimentista do PT estava condenado. Em 2014, Lula, Dilma e o PT ganharam no voto popular, mas perderam efetivamente na correlação de força no interior da sociedade política e do aparelho de Estado, incluindo Parlamento e os estamentos da Procuradoria-Geral da República, Ministério Público Federal, Polícia Federal e o alto Poder Judiciário (elite política de classe média de extração oligárquico-bacharelesca sob hegemonia liberal).

    O Congresso Nacional, eleito em 2014, tinha dentro de si uma composição-bomba, financiada pelo grande capital e articulada em bancadas para fechar com a pauta empresarial da direita conservadora. A conspiração efetiva pelo “desmonte do Brasil” vinha, pelo menos desde 2013. A burguesia brasileira de extração colonial-escravista, diante da crise profunda do capitalismo brasileiro, no calor do Golpe em processo, expressou-se em 2015 por meio do Programa do PMDB – “Ponte para o Futuro” – que sinalizava, logo após Dilma ser reeleita, para a necessidade de uma nova ofensiva neoliberal no Brasil. O Golpe era uma crônica de uma morte anunciada.

    Eleita em 2014, com o PT sob fogo cruzado da Operação Lava Jato e sem maioria política no Congresso Nacional (a arquitetura de alianças política do lulismo tinha implodido – a burguesia não queria mais o PT!), e diante do aprofundamento da crise da economia brasileira – caos da economia criada pelo empresariado nacional, capitaneado pela FIESP e CNI – Dilma cometeu erros cruciais na resistência politica: por exemplo, iludiu-se (?) indicando Joaquim Levy, homem do Bradesco, para o Ministério da Fazenda acreditando que pudesse acalmar a burguesia rentista que comanda o bloco no poder recomposto. Outro erro politico: manteve como Ministro da Justiça, o débil José Eduardo Cardoso que, com seu republicanismo venal, assistiu impassível movimentações do golpismo nas barbas da Polícia Federal; indicou para a Procuradoria-Geral da República, Rodrigo Janot, homem do corporativismo do Ministério Público Federal, outro articulador passivo do golpe de 2016; e manteve como articular politico o insosso Aluízio Mercadante. Enfim, contra canalhas o republicanismo, além de ineficaz, é burro. Em 31 de agosto de 2016, Dilma Rousseff seria destituída por impeachment num ritual macabro de venalidade parlamentar nunca antes visto na história desse país.

    Teoria do Domínio do Fato e a Razão Cínica

    A Operação Lava Jato, nascida em 2014, e que hoje acusa e condena o ex-Presidente Lula é personagem principal da Ópera dos Canalhas, o processo do Golpe de 2016 que propiciou que uma quadrilha de bandidos profissionais da política, tomassem de assalto o Parlamento brasileiro e o Palácio do Planalto. A Operação Lava Jato é o baixo-barítono que acompanha o alto Judiciário como barítono do Golpe parlamentar-juridico de 2016. Como tenores e contratenores temos o Congresso Nacional. O contralto, mezzo-soprano e soprano são compostos pelos postos-chaves do aparelho de Estado no Brasil (STF, Procuradoria-Geral da República, Polícia Federal, Mídia neoliberal hegemônica). Em 2017, após a canaglia destituir inconstitucionalmente a Presidenta Dilma Rousseff (PT) e empossar o Vice-presidente Michel Temer (PMDB) como Presidente da República, digladiam-se entre si para ver quem dá prosseguimento ao desmonte da Nação e a espoliação dos direitos do provo brasileiro.

    O exercício de memória história torna-se fundamental para nos fazer lembra que vinho é feito de uva, assim como a digna Justiça que condena Lula é a mesma que foi colaborou (e colabora) com os desdobramentos da Ópera dos Canalhas, utilizando com desfaçatez da Teoria do Domínio do Fato, artifício jurídico perigosíssimo nas mãos de oportunistas de plantão da alta estratégia política conspiratória credenciada pela CIA e Departamento de Estado norte-americano.

    No Brasil, a teoria do domínio de fato foi temperada no bom ecletismo culinário tupiniquim, pela Razão Cínica que crassa na pós-política da hipermadoria senil. O choque de capitalismo de FHC, Lula e Dilma produziram cidadãos reclusos em seu narcisismo, armados de cinismo até a alma.

    Os juristas da Toga oligárquica brasileira apenas expressam a cultura de “classe média” pós-ditadura militar. O medo do povo produz monstros. O advento da razão cínica na hipermodernidade senil anuncia um aprofundamento das mistificações constitutivas do sistema ideológico do capital – política e ideologia jurídica, impondo profundas limitações ao modo tradicional de operar o Estado democrático de direito. Como se sabe, tais mistificações apareciam como inerentes à realidade social burguesa, como condição necessária para que ela própria se reproduza.

    Contudo, como bem observou Slavov Zizek, a compreensão da ideologia nessa forma clássica pressupunha, segundo ele, que os agentes comprometidos diretamente na prática utilitária, assim como os analistas superficiais dos acontecimentos econômicos, desconhecessem os pressupostos objetivos de suas crenças. Disse ele que a melhor expressão dessa inocência por ignorância fora fornecida pelo próprio Marx quando declarara nas páginas de “O Capital”, sobre a redução do trabalho concreto ao abstrato, que ela ocorria realmente por meio das práticas sociais cotidianas dos agentes econômicos – e porque não, jurídico-políticos -, mas que “eles não sabem, mas o fazem”.” (ZIZEK, Slavov. “Eles não sabem o que fazem: O sublime objeto da ideologia”, Zahar Editores, 1992)

    Entretanto, Zizek concorda com Peter Sloterdijik (“Crítica da Razão Cínica”, Estação Liberdade, 2012) que o funcionamento da ideologia se tornara cínico. Segundo ele, “o sujeito cínico tem perfeita ciência da distância entre a máscara ideológica e a realidade social, mas, apesar disso, contínua a insistir na máscara”. [o grifo é nosso] Portanto, o filósofo Sloterdijk, num acesso de sinceridade cruel, propusera uma mudança na fórmula expressiva da ideologia: ao invés de afirmar que “eles não sabem, mas o fazem”, ter-se-ia de proferir que “eles sabem muito bem, mas fazem assim mesmo”. Enfim, a elite togada brasileira que utiliza a teoria do domínio do fato para perseguir lideranças políticas de esquerda, tal como o ex-Presidente Lula, sabe muito bem o que faz e faz assim mesmo.

    Voltemos à questão inicial do nosso artigo: a elite oligárquica bacharelesca do alto Poder Judiciário no Brasil possui impressa em seu DNA de extração colonial-escravista, medos e preconceitos atávicos contra o povo e seus representantes políticos. A burguesia canalha brasileira e sua “classe média” herdaram do passado lúgubre da formação histórica do Brasil, o estigma do sentido da colonização (vide Caio Prado Jr.). Isto não é nenhuma novidade. Desde 1964 vislumbramos os desvarios da miséria brasileira nos golpes nosso de cada dia (lembram da operação midiática da TV Globo contra Lula nas eleições para Presidência da República em 1989?). Os canalhas apostam no Alzheimer nacional: a doença degenerativa da memória pública que assola o povo brasileiro.

    A magistral “Ópera dos Canalhas” que se encena diante dos olhos perplexos da Inteligência brasileira prossegue fazendo a nova (e insana) revolução burguesa no Brasil – revolução e contrarrevolução. Os canalhas se digladiam entre si. Na politica da Triste República, a grotesca aliança pós-trágica entre mídia neoliberal, burguesia rentista, classe média imbecilizada e povo inquietamente sonolento (que o lulismo na sua era dourada embalou com o canto do consumo e meritocracia) parece levar o País para a convulsão social.

    2018 é a incógnita da Incógnita. Como ato grotesco da Ópera dos Canalhas, a condenação de Lula por uma sentença histriônica que o condena em provas, pois se utiliza, com sua Razão Cínica, do artifício jurídico da teoria do domínio do fato, apenas compõe mais um ato de desvario da elite barítona de Toga do pobre capitalismo brasileiro rumo ao abismo histórico.

    [1] A teoria do domínio do fato foi criada por Hans Welzel em 1939 e desenvolvida pelo jurista Claus Roxin, em sua obra Täterschaft und Tatherrschaft de 1963, fazendo com que ganhasse a projeção na Europa e na América Latina. Como desdobramento dessa teoria, entende-se que uma pessoa que tenha autoridade direta e imediata sobre um agente ou grupo de agentes que prática ilicitude, em situação ou contexto de que tenha conhecimento ou necessariamente devesse tê-lo, essa autoridade pode ser responsabilizada pela infração do mesmo modo que os autores imediatos. Tal entendimento se choca com o princípio da presunção da inocência, segundo o qual, todos são inocentes, até que se prove sua culpabilidade. Isto porque, segundo a teoria do domínio do fato, para que a autoria seja comprovada, basta a dedução lógica e a responsabilização objetiva, supervalorizando-se os indícios. Ela foi utilizada pela primeira vez no Brasil, no julgamento do “Escândalo do Mensalão”, para condenar José Dirceu, alegando-se que ele deveria ter conhecimento dos fatos criminosos devido ao alto cargo que ocupava no momento do escândalo, além de os crimes terem sido aparentemente perpetrados por subordinados diretos seus. Entretanto, conforme declarou o próprio jurista Claus Roxin, a decisão de praticar o crime “precisa ser provada, não basta que haja indícios de que ela possa ter ocorrido”.

    * Giovanni Alves (giovannialves@uol.com.br) é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da RET (Rede de Estudos do Trabalho) – www.estudosdotrabalho.org ; e do Projeto Tela Crítica/CineTrabalho (www.telacritica.org).. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais “O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000)”, “Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório” (Boitempo Editorial, 2011), “Dimensões da Precarização do trabalho” (Ed. Praxis, 2013), “Trabalho e neodesenvolvimentismo” (Ed. Praxis, 2014) e “Labirintos do labor” (Ed. Praxis, 2017, no prelo). E-mail: giovanni.alves@uol.com.br. Home-page: www.giovannialves.org

    Notas

    1 Esse artigo do professor Giovanni Alves foi originalmente publicado em: http://editorapraxis.com.br/a-opera-dos-canalhas/

    2 Essa matéria recebeu o selo 019-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario

  • Quando corrigiremos as aberrações do Mensalão?

    Quando corrigiremos as aberrações do Mensalão?

    Reproduzimos a matéria “O papel da mídia” de Miguel do Rosário, de O Cafezinho, com introdução de César Locatelli, dos Jornalistas Livres.

    Introdução

    Passados alguns anos é hora de rever e corrigir as aberrações paridas pelo Supremo Tribunal Federal e pela Procuradoria Geral da República na Ação Penal 470, que ficou conhecida como “Mensalão”. Não há mais dúvidas que esse julgamento abriu a porteira para as ilegalidades e arbitrariedades cometidas no Brasil nesse último período. Da mesma forma, não hesitamos em atribuir categórico protagonismo às redes de televisão, rádios, jornais e revistas da mídia conservadora na ruptura democrática por qual passa o país.

    Comecemos pelo papel do sistema de justiça brasileiro.

    Não podemos mais dizer que o país vive em um Estado Democrático de Direito, se é que podemos dizer que um dia nele vivemos, dada a ausência de direitos que desde sempre aflige os pobres e os negros. A diferença é que, desde o Mensalão, os adversários políticos escolhidos pelas elites brasileiras passaram também a não ter direitos. São inúmeras as evidências de que a lei e a Constituição nunca regularam a convivência social e, agora, não mais regulam a convivência política.

    Relembremos a imaginosa versão dos fatos cantada em prosa e verso pelos meios de comunicação tradicionais brasileiros e aceita pelos ministros do STF:

    Henrique Pizzolato, na função de diretor de marketing do Banco do Brasil, desviou cerca de 74 milhões de reais do banco para a agência de publicidade DNA, de Marcos Valério. Pizzolato recebeu cerca de 300 mil reais desse montante e comprou um apartamento. Parte do dinheiro foi distribuído mensalmente a políticos, como os deputados do PTB capitaneados por Roberto Jefferson. Parte dos recursos foram para o PT via empréstimos falsos firmados com o Banco Rural. A estratégia elaborada por José Dirceu e outros membros do governo Lula tinha como objetivo comprar o apoio a projetos do governo como a reforma da Previdência. Delúbio Soares cuidava dos aspectos operacionais do esquema. O Supremo Tribunal Federal (STF), que tinha Joaquim Barbosa na função de relator do processo e presidente da casa, condenou cerca de 38 pessoas envolvidas com o que se apelidou de Mensalão.

    Assim é a versão dos fatos que está impregnada nas pessoas por todos os cantos do Brasil.

    A tragédia é que, nesse curto parágrafo acima, há 7 erros crassos cometidos pelo STF.

    1 Não havia dinheiro público

    Os 74 milhões não eram do Banco do Brasil, uma empresa pública, mas da Visanet, uma empresa privada. Se não há dinheiro público, não há peculato, ou seja, não há apropriação de dinheiro ou bens públicos por funcionário publico. A fantástica história teria morrido no nascedouro se os ministros do STF tivessem acatado esse fato.

    2 O diretor de marketing do Banco do Brasil não tinha gestão sobre os recursos

    O acordo do Banco do Brasil com a Visanet era que o banco determinava onde queria que os recursos fossem aplicados. A gestão financeira e a relação com as agências de propaganda eram de responsabilidade da Visanet. O banco sequer tinha contrato com a agência de publicidade. A agência de publicidade tinha que prestar contas à Visanet. No entanto, se inocentassem Henrique Pizzolato o caso todo desmoronaria.

    3 O dinheiro não foi desviado

    Há notas fiscais e documentos de transferência que comprovam que os 74 milhões foram efetivamente usados na promoção do cartão Ourocard Visa. Os recursos foram usados para patrocinar torneios de tênis, vôlei de praia, anúncios em aeroportos e muitos outros eventos de marketing. Foram feitos pagamentos inclusive para a TV Globo por campanhas de Dia dos Pais, Dia da Crianças e Natal. As comprovações de que não houve desvio dos 74 milhões foram, simplesmente, desconsideradas.

    4 Pizzolato tinha dinheiro declarado para comprar seu apartamento

    O exame do imposto de renda de Pizzolato não comprovou que os recursos, que o STF concluiu terem sido sua parte no desvio, foram usados na compra do apartamento. Pizzolato tinha poupado, ao longo de 20 anos de trabalho, um montante suficiente para a compra do apartamento.

    5 Nada foi comprovado contra José Dirceu

    Embora fossem quebrados os sigilos telefônico e bancário de José Dirceu, acusado de chefe do esquema, nada foi encontrado. Mesmo assim, ele foi condenado com base na teoria do domínio do fato: pelo alto cargo que ocupava no governo e no PT “era evidente” que José Dirceu tinha participação no desvio. A ministra Rosa Weber lançou mão da seguinte pérola ao condená-lo: “Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”.

    6 Não houve mensalão, não houve pagamentos mensais a congressistas

    A tímida reforma da Previdência feita durante o governo Lula contou com apoio dos políticos conservadores do Congresso que, embora fizessem oposição forte ao presidente, apoiaram a reforma. Além dessa evidência, o processo não comprova a tese de pagamentos mensais (mensalão) a congressistas.

    7 Os empréstimos do Banco Rural ao PT não eram falsos

    O Partido dos Trabalhadores pagou os empréstimos que tomou junto ao Banco Rural.

     

    Reproduzimos aqui a excelente matéria escrita por Miguel do Rosário, do blog O Cafezinho, publicada em 7 de junho de 2013.

    A conspiração

    O papel da mídia

    Uma das virtudes fundamentais no espírito de um jornalista é a ojeriza a teorias de conspiração. É uma virtude, no entanto, que beira um vício, porque o mesmo pensamento racional, a mesma objetividade, que nos aconselha a manter distância de discursos paranoicos e teorias de conspiração, nos obriga a aceitá-los quando estamos diante de documentos e provas irrefutáveis.

    A divulgação de milhares de documentos secretos da diplomacia norte-americana, pelo Wikileaks, consistiu, por exemplo, numa inesquecível vitória moral para milhares de pessoas que acusavam, há décadas, os EUA de promoverem golpes de Estado em países do terceiro mundo. Na época, um divertido argumento fez sucesso nas redes sociais: “sabe aqueles malucos que viviam culpando a CIA por tudo? Estavam certos.”

    A bem da verdade, não foi apenas o Wikileaks. Algumas leis que obrigam a divulgação de documentos do governo americano com mais de trinta ou quarenta anos, também ajudaram.

    Mas ser jornalista não é dizer a verdade. Essa é a função, talvez, de filósofos. Jornalistas divulgam documentos e fatos concretos, e a verdade que buscam é apenas aquela que podem comprovar com base neles. O uso da lógica, porém, não é vetado aos jornalistas. Nem a imaginação, desde que usada com parcimônia.

    No processo do mensalão, todavia, a imaginação se tornou a virtude fundamental do jornalismo político. Reportagens, colunas, análises, passaram a se descolar cada vez mais de qualquer prurido factual e inaugurou-se uma nova era quase psicodélica na imprensa brasileira. Teorias eram montadas e desmontadas sem qualquer escrúpulo. O fato de inúmeras denúncias serem desmentidas no dia seguinte não tinha mais importância. Um clima de total liberdade de expressão enfim se instalara nas redações nacionais.

    Quando os historiadores se debruçarem, daqui a alguns anos, sobre o mensalão, o tradicional rigor acadêmico possivelmente lhes obrigue a dividir o tema em várias seções: política, midiática, partidária, jurídica.

    Em meu modesto esforço para escrever sobre um caso ainda em curso, e portanto ainda influenciado pelo clima barra pesada, sufocante, de tribunal, eu vou tateando em todas as áreas, mas a corda que uso para não cair são documentos. Por isso tenho sido repetitivo quanto ao caso Pizzolato. É que me parece o caso mais surreal, kafkiano e… documentado. A sua inocência é documentada.

    Se a grande mídia fizesse uma ampla reportagem sobre os erros na condenação de Pizzolato, mostrando os documentos, apresentando-os a juristas conceituados e pedindo sua opinião, testemunharíamos uma sumária desmoralização da Ação Penal 470. Aliás nota-se hoje um barulhentíssimo silêncio nos grandes jornais e nas redes de TV sobre o debate tão aceso nas redes sociais e blogs, sobre os erros do STF. A ruptura da mídia com a sociedade se tornou completa. O artigo da Inês Nassif, por exemplo, abordando a suja história do Laudo 2828, que inocenta Pizzolato, tornou-se imediatamente o mais lido em todos os principais blogs políticos no país, mas o assunto é virtualmente proibido na grande imprensa. A mesma coisa vale para o erro crasso de Barbosa quanto a data da morte de José Martinez.

    A nossa presidenta gosta de repetir o clichê supostamente pró-democrático, sobre preferir o barulho da imprensa ao silêncio da ditadura. É uma frase bonita, mas a verdade é que o único barulho que a imprensa quer ouvir, no caso do mensalão, é o da tampa de um caixão se fechando. A nossa mídia não é boba. O espaço à divergência se dá apenas em questões não estratégicas. E o mensalão é um assunto absolutamente estratégico para os grandes grupos de mídia, que se tornaram, assumidamente, o grande partido do conservadorismo brasileiro.

    Entretanto, mesmo durante o julgamento, quando o assunto ocupava, diariamente, várias páginas de jornal, e hegemonizava o noticiário televisivo, havia muitos mais fogos de artifício do que conteúdo. Não havia um debate sério sobre o tema. O tal “barulho da imprensa”, tão ao gosto da nossa chefe de Estado, era apenas um rufar histérico dos tambores da oposição. Os réus, porém, não eram só aqueles perfilados na denúncia da Ação Penal 470, mas toda a sociedade, incluindo os elementos raivosos que pagavam anúncios no Facebook para promover páginas repletas de indizível rancor. Todos são vítimas do maior processo de manipulação da informação de que temos notícia.

    O mensalão foi o canto do cisne da grande mídia brasileira. O escândalo é deflagrado exatamente no momento em que a internet ainda não havia sido “apropriada” pela sociedade. Os únicos blogs políticos estavam em mãos da grande mídia de oposição: Noblat e Reinaldo Azevedo. A imensa ágora pública, caótica e democrática em que se tornou a internet brasileira não havia se constituído nos anos de 2005 e 2006. A imprensa reinava sozinha. Se hoje ela ainda tem um poder descomunal para influenciar o espírito nacional, naquela época esse poder era quase absoluto.

    Uma das seções mais importantes no estudo do processo do mensalão, portanto, é o papel da mídia. É um papel que ainda está sendo desempenhado. Hoje, sexta-feira 07 de junho, uma notícia deixou inteiramente perplexa a grande nação de internautas: o único jornalista convidado pelo ministro Luiz Fux para dar uma “aula pública” aos ministros do STF sobre financiamento de campanha será Merval Pereira, colunista e membro do conselho editorial do jornal O Globo.

    A promiscuidade entre a grande mídia, em particular a Rede Globo, e o STF, parece não encontrar limites. Até mesmo os juízes mais resistentes à pressão da mídia, como Lewandowski, ligavam para Merval, no dia seguinte a sessões, para “explicar” seus votos. Joaquim Barbosa, por sua vez, liga regularmente para Merval para justificar seus destemperos.

    E Ayres Britto escreveu o prefácio do livro de Merval Pereira sobre o mensalão enquanto ainda era presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)!

    Se a mídia é um poder terrível em qualquer parte do mundo, uma concentração absoluta numa só empresa empresta-lhe um ar perigosamente antidemocrático.

    A maior parte da “pressão social” alardeada pela grande mídia, e usada pelos próprios ministros do STF como justificativa para a incrível criatividade com que se portaram no julgamento da Ação Penal 470, a ponto de ser qualificado, de maneira promissoramente corajosa pelo mais novo ministro, Luís Roberto Barroso, de “um ponto fora da curva”, veio da Rede Globo. Com toda certeza, os ministros se portavam no tribunal com um olho não na população brasileira, não na História, mas em como seriam caricaturizados no Globo no dia seguinte. As notinhas de Ancelmo Gois sobre Joaquim Barbosa, alardeando sessões de aplauso no metrô de Ipanema e shows da Marisa Monte, e mencionando, orgulhosamente, a criação de um site para lançar sua candidatura presidencial, parecem ter surtido um efeito narcótico poderoso no espírito de todos os juízes. Da mesma maneira, a mídia incitava agressões verbais ou mesmo físicas contra Lewandowvki, único ministro que ousou se contrapor, e mesmo assim timidamente, à agressividade inacreditável do relator.

    No início do texto, eu falava na ojeriza a teorias de conspiração como importante virtude jornalística. Mencionei também que esta virtude pode se tornar um vício se nos recusamos, mesmo diante de evidências, em aceitar a existência de uma conspiração. O que vimos no processo do mensalão nos traz esse dilema. Todos os fatos, documentos, ações, discursos e posturas, apontam para uma conspirata política. Uma conspirata da qual participaram os dois procuradores gerais da república, Joaquim Barbosa, a oposição, a mídia. O próprio governo, vergado, intimidado, aterrorizado com a possibilidade de um golpe, talvez tenha pactuado, em parte, com tudo isso, sacrificando seus próprios companheiros em prol da sobrevivência. Enfim, estamos diante de um jogo político extremamente barra-pesada.

    Mesmo com evidências, porém, este é um terreno que devemos trilhar com cuidado. Não podemos largar a corda que nos impede de cair no abismo. O mensalão ainda é uma história cheia de segredos, desagradáveis para todos os lados. É um processo e um julgamento ainda em curso. No próximo capítulo, faremos algumas incursões na seara propriamente política da nossa história, comentando seus desdobramentos presentes e futuros.

    Notas

    1 Para ler os outros textos de Miguel do Rosário, em O Cafezinho:

    Prefácio: Mensalão, a história de uma farsa

    Capítulo 1: Acusações contra Pizzolato lembram Dreyfus e Kafka

    Capítulo 2: O caso Visanet

    Capítulo 3: As bombas lá fora

    Capítulo 4: Tirem as crianças da sala

    Capítulo 5: As bombas aqui dentro

    Capítulo 6: A história não anda de avião

    Capítulo 7: O julgamento do povo

    Capítulo 8: O maior fiasco da história

    Capítulo 9: O papel da mídia

    2 Essa matéria recebeu o selo 018-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario

     

     

     

     

  • O avesso do avesso do avesso (Sampa, Caetano Veloso)

    O avesso do avesso do avesso (Sampa, Caetano Veloso)

    1 O Direito Alternativo

    Nos anos setenta do século passado, alguns juristas revivem uma velha questão que não era desconhecida dos romanos: os pretores tinham autoridade para suavizar as fórmulas rigorosas das primeiras leis romanas, norteando-se por princípios úteis para administração da justiça como a equidade e humanidade. A questão passa a ser revivida por juízes italianos na busca por um direito vivo — com alguma inspiração no jusnaturalismo — e que pudesse por cobro a um positivismo exacerbado e aparentemente neutro que ignorava situações sociais de injustiça.

    No Brasil, esse pensamento repercute em meio a uma ditadura que se findava (anos 80), mas que continuava a ter um arcabouço jurídico repressivo e obscurantista que poderia ser compensado por uma reinterpretação legal. Embora a discussão acadêmica e doutrinária date de período anterior à Constituição de 1988, foi seu texto que deu um grande instrumental para reinterpretação de normas infraconstitucionais segundo valores mais humanistas.

    O assunto estava no plano doutrinário e entranhava algumas poucas decisões de magistrados progressistas, muitos dos quais do sul do país, quando em 25 de outubro de 1990, o já extinto Jornal da Tarde (órgão de imprensa pertencente ao grupo Estado de São Paulo, com conhecido viés conservador) publica uma longa matéria intitulada Juízes Gaúchos colocam direito acima da lei. A matéria assinada pelo jornalista Luiz Maklouf, dentre outras coisas, tinha por escopo desmoralizar o magistrado Amílton Bueno de Carvalho, um dos próceres dessa forma de pensar, sugerindo que ele decidia segundo sua cabeça e contra legem. Se o objetivo da reportagem era escarnecer alguns magistrados gaúchos — e o objetivo era esse mesmo — o resultado acaba servindo para divulgar a existência de juristas preocupados com a estagnação do Direito e com a já conhecida ineficácia da prestação jurisdicional. O debate acadêmico, açulado pela polêmica jornalista, acaba propiciando um Encontro Internacional de Direito Alternativo realizado em Florianópolis no ano de 1991 e também a edição de farta literatura, em grande medida publicada pela Editora Acadêmica. (1)

    O movimento de direito alternativo nunca consistiu numa doutrina contra lei. Embora se reconhecesse o Direito Positivo como uma conquista democrática, a crítica ao mito da neutralidade ou da valoratividade era um de seus motes. Também se podia contemplar uma crítica ao sistema vigente, sempre condescendente com valores liberais exacerbados; combate irrestrito à miséria da população que não via (especialmente antes da Constituição de 1988) o reconhecimento de direitos coletivos e que contemplava problemas sociais com um viés individualista; uma simpatia pela teoria do direito de mote crítico que reinterpretava a lei a partir da Constituição Cidadã; uma crítica à fonte única do direito e da interpretação mecanicista das normas efetuadas por meio de um método hermenêutico ortodoxo de matriz formal/técnico/ dedutivo. (2)

    A riqueza da discussão não deixou de ter críticos à direita e à esquerda. Reconhecer que o direito não é um todo orgânico, coerente e completo, com suas antinomias e lacunas, e que a lei como fonte privilegiada do Direito necessita de uma busca de seu sentido por meio da interpretação (e é o intérprete que sempre executa esse papel trazendo consigo sua ideologia e seus valores pessoais) é dar ensejo a uma longa discussão quanto ao próprio papel do operador do direito e em particular do juiz. Para outros, a defesa estrita da legalidade no sentido de proteção dos despossuídos constituiria unicamente um emprego instrumental da jurisdição. (3) Para outros, ainda, permitir uma maior elasticidade ao mecanismo de interpretação da lei, poderia dar ensejo a uma prática alternativa perigosa por parte de um jurista reacionário que adaptaria sua interpretação a uma desautorização ou solapamento dos valores fundantes do Estado de Direito.

    Embora não tenham sido poucas as discussões sobre o tema, a dogmática penal teve certa carência no debate. (4) O protagonismo coube ao direito civil e trabalhista, cabendo ao Direito Penal mais uma condição de observador privilegiado e polemista — partícipe — do que propriamente a de executor de uma proposta — autoria. A meu juízo isso se deveu em grande medida aos paradigmas mais estreitos do direito penal, em muitas questões adstrito ao princípio da legalidade. Não que não se possa conceber um direito penal “penetrado” ou “influenciado” por considerações político criminais, dentro de uma concepção de “sistema aberto”. Segundo tal perspectiva a política criminal passaria a ter uma importância central na própria dogmática, auxiliando o jurista na operação de hermenêutica no âmbito das categorias penais. (5) Mas a verdade é que os limites da legalidade, em nossa esfera do saber, tem restrições não conhecidas na área extrapenal.

    Embora o direito alternativo nunca tenha sido um movimento de juristas contra a lei, de pessoas pregadoras do voluntarismo jurídico, não se pode deixar de ter em conta que os detratores do direito alternativo conseguiram, em alguma medida, criar uma falsa imagem segundo a qual o direito alternativo é o direito sem lei, apesar da lei ou mesmo contra a lei.

    Embora tal visão não seja correta, somente para os efeitos deste artigo, vou usar tal sentido em tópico que se segue.

    2 Avesso da Lei

    Em 2014, sob coordenação de Thiago Bottino, Professor da FGV-Rio, gestou-se uma das mais bem elaboradas pesquisas empíricas na área penal que tive conhecimento. A pesquisa intitulou-se “Panaceia Universal ou Remédio Constitucional?  Habeas Corpus nos Tribunais Superiores”. A pesquisa foi patrocinada pelo Projeto “Pensando o Direito e as Reformas Penais no Brasil” do Ministério da Justiça.

    A razão precípua da pesquisa foi um movimento importante de restrição ao uso do Habeas Corpus em Tribunais Superiores (STJ e STF), em grande medida por haver um acúmulo significativo de impetrações desse Remédio Constitucional naqueles Tribunais. No entanto, mais importante do que simplesmente impedir o ajuizamento das ações é entender os fatores que geram essa pressão sobre os tribunais superiores e atacar as causas do excesso de habeas corpus que visem à, apenas, impugnar decisões de instâncias inferiores. O projeto proposto “dispôs-se a identificar as principais teses jurídicas que são levadas aos tribunais superiores para que se possa pensar em políticas públicas (legislativas e jurisprudenciais) que permitam conciliar a proteção da liberdade de locomoção com o sistema de competências das diversas instâncias judiciárias”. (6)

    Um exemplo do problema enfrentado foi a constatação de que determinadas teses jurídicas, se não acolhidas pelas instâncias inferiores, pressionam os tribunais superiores. É dizer: muitas matérias sumuladas, seja pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, são sistematicamente descumpridas ou inobservadas por instâncias inferiores do Judiciário. Em formato de Habeas Corpus, os Tribunais Superiores passaram a ser instâncias recursais de ações que descumprem suas súmulas ou suas correntes jurisprudenciais pacificadas por órgãos de segundo grau dos Estados.
    O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, julgou 1.624 Habeas Corpus no ano de 2007. No ano seguinte, foram 5.440. Em 2009 a escala ascendente continuou, batendo em 6.183, permanecendo em níveis elevados, desde essa época. (7)

    No Superior Tribunal de Justiça a situação foi ainda mais dramática, pois o crescimento estendeu-se até o ano de 2011, sendo certo que o volume total de casos é quase seis vezes maior o do STF (considerando os picos de impetrações), alcançando a marca de 36.000(trinta e seis mil) habeas corpus em apenas um ano. Em 2007 eram 24.294 Habeas Corpus. Em 2011 esse número é alçado a 36.570. (8)

    A surpresa —será ?— fica por conta da altíssima concentração de casos com origem no Tribunal de Justiça de São Paulo. 43,8% das ações de Habeas Corpus são oriundas de São Paulo (guerreando decisões do TJ/SP). É importante entender a dimensão disso, uma vez que não é compatível com dados de população (São Paulo concentra apenas 21,63% da população brasileira), nem com dados de população prisional  (embora seja o Estado com a maior população carcerária, com 35,71%). O elevado percentual de casos oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo sugeriu o aprofundamento das pesquisas nesses casos.

    No estudo dos casos mais frequentes, correspondentes aos tipos punitivos, verificou-se que Cinco crimes eram recorrentes: estupro; furto (simples e qualificado); homicídio qualificado; tráfico de drogas; roubo (simples e majorado). Do total de Habeas Corpus impetrados, 72,59% correspondiam a esses crimes. (9)

     

    No que concerne ao conteúdo das ações, apenas cinco temas (dentre os 41registrados) correspondem a mais da metade de todas as discussões (54,30%),destacando-se os temas ligados à progressão de regime, prisão cautelar, regime inicial de cumprimento de pena, erro na dosimetria e excesso de prazo. (10) O problema pode ser visualizado pelo quadro a seguir reproduzido:

    Na maioria dos casos levados aos tribunais superiores acerca dessa combinação “crime” + “tema” as decisões contestadas em sede de HC condenavam o réu ao cumprimento inicial de pena em regime fechado com base na periculosidade do agente ou na gravidade abstrata do delito, a despeito da regra do art. 33, § 2º autorizar, pelo critério da pena definitiva, a adoção de outros regimes. O caso do roubo é paradigmático, pois embora uma pena de 5 a 8 anos possa ser cumprida em regime semiaberto desde o início, muitos Desembargadores do Tribunal de Justiça paulista condenam a penas inferiores a oito anos, porém do regime inicial fechado. Muitas vezes o fundamento é apenas a apreensão social que esse delito causa!

    Essa questão jurídica aparecia associada, por vezes, aos casos em que não existiam outras circunstâncias desfavoráveis que acentuassem a culpabilidade do réu, senão a violência inerente ao próprio tipo penal. Essa matéria, contudo, já fora sumulada pelo STF em 2003 (Súmulas 718 e 719 do STF) e ainda pelo STJ em 2010, no Enunciado nº 440.

    Senão vejamos: Súmula nº 440, STJ: “Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito.” Súmulas nº 718, STF: “A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”. No mesmo diapasão a Súmula 719 do Pretório Excelso: “A imposição de regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea”.

    Dessa forma, o altíssimo percentual de concessão desses HC’s e RHC’s  foi facilmente identificado: a resistência dos tribunais inferiores de aplicarem os enunciados 718 e 719, da Súmula do STF, posteriormente reafirmado pelo verbete nº 440, do STJ, além de outras matérias sumuladas sobre temas diversos cuja discordância é expressa pelo julgador “a quo”.

    Portanto, não obstante já fosse entendimento sumulado que a gravidade abstrata do delito não é fundamentação idôneo para imposição de regime
    inicial de cumprimento de pena mais gravoso, por diversas vezes os tribunais superiores se viram obrigados a julgar HC’s e RHC’s apenas para reafirmar sua jurisprudência.

    A tese repudiada pelos tribunais superiores (e recorrente nas fundamentações dos tribunais de segunda instância) é a de que o regime fechado é o único compatível com a gravidade do delito de roubo —quando não de furto, estelionato ou apropriação indébita — e da periculosidade presumida dos autores desse tipo de crime. Infere-se que o juízo acerca da periculosidade do agente – previsto na Lei nº. 6.416/77, expurgada do ordenamento na Reforma Penal realizada pela Lei nº. 7.209/1984 – ainda é largamente empregado por magistrados de primeiro e segundo graus de jurisdição. (11)
    Poderia discorrer longamente sobre a pesquisa acima mencionada, tal sua riqueza. No entanto, não é este o objetivo deste trabalho, mas sim destacar que a postura refratária de parte do Poder Judiciário Paulista, em grande medida colabora para entulhar os Tribunais Superiores com questões cujos temas estão pacificados em sede daquelas Cortes.

    Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça possuem jurisprudência firme (tanto que sumuladas, muitas delas) sobre temas que são ignorados por alguns Magistrados paulistas. E isso produz um assoberbamento de trabalho das Cortes Superiores, bem como causa grandes problemas humanitários para pessoas que permanecem no cárcere sem qualquer fundamento legal.

    Essa tendência, embora já existisse anteriormente, passa a ser tornar uma preocupação explícita no ano de 2010. O primeiro sinal da Escolha de Sofia já vinha encartado no título do artigo de Mohamad Ale Hasan Mahmoud: O cabimento do Habeas Corpus: uma escolha dramática. No corpo do trabalho o argumento era assim vazado: “Por mais que a ideia apresentada vá restringir o exercício da ampla defesa, é importante ter claro que a manutenção do status quo apenas representa a perpetuação de justiça tardia que, na lição de Ruy, cristaliza injustiça qualificada. Trata-se de escolha dramática, à luz da reserva do possível. Sendo inviável erradicar todos os tumores, pensa-se, deve-se cauterizar os que se encontram nas áreas vitais. É tempo de racionalizar o uso do habeas corpus, a bem do próprio direito de liberdade.” (12)

    Coincidência ou não, o autor do artigo, então Assessor da Ministra do STJ, Maria Thereza de Assis Moura, dá o pontapé inicial em um jogo que teria na própria Julgadora uma das mais enfáticas defensoras da restrição da admissibilidade do remédio heroico. As cartas foram colocadas na mesa, e o jogo passa a ser jogado com mais rigor. Na Escolha de Sofia, o abandonado foi o jurisdicionado pobre.

    As iniciativas de tentar corrigir o assoberbamento do trabalho pela restrição da admissibilidade de algumas hipóteses de Habeas Corpus, em minha visão, é o avesso da lei. Nada há que autorize — e muito menos o excesso de trabalho de Ministros — a limitação de um direito representado pelo remédio constitucional heroico. Qualquer restrição dessa natureza é o avesso da lei.

    3 O avesso do avesso do avesso

    Voltemos ao direito alternativo. Embora não se imagine como correta a assertiva segundo a qual o direito alternativo esteja à margem da lei ou julgue contra a lei, parece que a pecha jornalística aderiu aos defensores dessa linha de pensamento. Um jurista conservador e bem informado — ou mesmo alguém que nada leu sobre o assunto — acha que praticar o direito alternativo é julgar contra a lei. (13) Pois utilizemos esse conceito.
    Escolhi alguns julgados representativos do direito alternativo pelo avesso, destacando temas diferentes, embora haja verdadeira corrente de seguidores que professam essa ideia.

    A. O primeiro julgado diz respeito ao Habeas Corpus nº 0232315-83.2012.8.26.0000, decidido pela 9ª Câmara do TJ/SP. A decisão foi unânime e teve como Relator o eminente Desembargador Souza Nery. O tema principal do v. Acórdão, dentre outras questões de menor relevo para este artigo, é a discussão da possibilidade de concessão de liberdade provisória para o crime de roubo.
    Senão vejamos:

    “Tal como alvitrado, com a costumeira propriedade, pelo ilustre e ilustrado parecerista, o pleito não está no caso de ser acolhido.

    Senão, vejamos:

    A concessão da pretendida liberdade provisória é absolutamente incompatível com o crime imputado ao paciente. É que, em matéria de roubo a mais intranquilizadora expressão da criminalidade nos dias presentes devem ser observadas as seguintes regras:

    A. não se relaxa prisão em flagrante formalmente perfeita;

    B. não havendo prisão em flagrante, decreta-se a prisão preventiva;

    C. se, por desatenção, o réu livrou-se solto, decreta-se sua prisão preventiva quando da prolação da sentença.

    Instrumento de garantia do direito de ir e vir, reservado aos cidadãos ordeiros, que fazem bom uso de sua liberdade, o habeas corpus não pode ser degradado à função de “chave de cadeia” para quem assalta quando está indo, e torna a assaltar quando está vindo…”

    E, mais adiante, arremata:

    “A ousadia crescente das pessoas como o paciente envolvidas na criminalidade, sua absoluta desconsideração pela boa-fé alheia e a tranquilidade com que exercem sua funesta atividade de infringir as leis para obter vantagem ilícita, estão a exigir uma atuação serena embora rigorosa e enérgica do Poder Judiciário, que não se pode despir de suas responsabilidades no tocante a tal estado de coisas”.

    Comentário: O Supremo Tribunal Federal, em inúmeros arestos (HC 99.832), já decidiu não caber, nem mesmo para os crimes chamados hediondos, em se tratando de prisão cautelar, uma limitação ao exercício da liberdade per se. Devem ser analisados os eventuais requisitos da prisão preventiva (artigos 312 e 313 do CPP). Não existentes, a regra de livrar-se solto deve ser observada. Em outras palavras: a gravidade abstrata do delito não é suficiente para justificar a constrição cautelar da liberdade. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.

    B. O segundo Acórdão a analisar discute o reconhecimento da existência de maus antecedentes e em que hipóteses isso se aplica. É da lavra do eminente Desembargador Grasi Neto, da 7ª Câmara do Tribunal de Justiça. Trata-se da Apelação nº0047533-27.2010.8.26.0576, decidido por unanimidade dos julgadores.

    “Em uma abordagem meramente superficial, a denominação ‘maus antecedentes’ não seria, aparentemente adequada para designar envolvimentos do réu com investigações ou processos judiciais de natureza criminal que fossem posteriores aos fatos que estão sendo julgados; igual ponderação caberia quanto às passagens anteriores que não tivessem redundado em condenação do acusado.
    Ao empregar referida expressão “maus antecedentes” o legislador não estava se referindo, todavia, às condenações criminais que antecederiam no tempo a prática dos fatos cuja reprimenda se esteja dosando; cuidar-se-iam, antes, de “circunstâncias sociais de cunho negativo”, cuja existência deve
    preceder logicamente não o momento da prática delituosa, mas a ocasião da prolação da sentença penal pelo Juiz de Direito”

    E, mais adiante, arremata:

    “Não se desconhece a edição do Enunciado n. 444 da Súmula de Jurisprudência do Colendo STJ, editado em abril de 2010, segundo o qual ‘é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base’.
    Ao elaborá-lo, acreditamos, todavia, tenham os integrantes daquela Corte se afastado da melhor interpretação do texto Magno, mesmo porque a análise acima tecida de modo algum vulnera princípios constitucionalmente assegurados. Caso fosse essa a hipótese, e isso apenas a título de argumentação, a questão deveria ter sido inclusive objeto de enunciado vinculante, que teria que emanar não do STJ, mas do Pretório Excelso, Corte superior à qual incumbe precipuamente, pondere-se, a guarda da CF/88”.

    Comentário: Os antecedentes — sempre criminais — foram transformados em “circunstâncias sociais de cunho negativo”, sendo ignorado que o artigo 59 tem a rubrica de “conduta social” que alcançaria hipoteticamente tal ideia. Ademais, como o próprio nome já o expressa, antecedentes devem ser sempre precedentes ao ato delituoso e não ao ato decisório, posto que o autor de um delito deve se responsabilizar por seus atos, não podendo prever se um dia será ou não julgado por ele e quando isso ocorrerá. A inobservância da súmula 444 dá-se por razões puramente ideológicas. Evidentemente que esse fato dará ensejo a reforma pela Corte Superior, caso haja a interposição de recurso. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.

    C. A terceira decisão analisada foi proferida em primeira instância pelo Ilustre Magistrado Italo Morelle. Foi proferida nos autos 020502.53.2013.8.26.0050. A discussão que nos interessa destacar diz respeito à dosimetria penal em um crime de roubo.

    “De se decantar e exalçar o caráter preventivo gera e especial da pena, o que apenas se consegue, impondo sanções mais robustas (apesar de nossa lastimável LEP, que dará chão a efetiva sanção bem menor), mormente, em crime frequente, ordinário e regular, como o que em vista. A população, apavorada com a criminalidade jamais dantes vista, fazendo de suas moradas veros quartéis, valendo-se de segurança privada em calçadas (isto para os que podem, pois os pobres estão “ao Deus dará”, em todos os seus estamentos, clama por penas mais rigorosas (principalmente em se tratando de veículos). Crê este humilde operário do Direito que o Poder Judiciário deve estar atento e sensível a tanto, pois chegamos ao paroxismo, ao zênite, em que o sonho de consumo da classe média é um carro blindado; para motos, o máximo que se pode, ou seja, o rastreador e seguro (que pesa no bolso dos motociclistas).

    E, em embasamento ao encimado, fosse a pena do corréu César mais elevada, provavelmente não praticaria o mesmo crime pelo qual pouco tempo permaneceu recluso ( serviria como exemplo prevenção geral – aos demais encarcerados). Ressocialização, vênia concessa, para criminosos habituais, em maioria supra summo , posto tenham-se gasto tintas e tintas quanto a tanto (e ainda que o sistema fosse adequado e ideal), é vã utopia de pretensos filósofos. Esbarra no livre arbítrio! Sem a candidez ou ingenuidade de Pangloss do expoente do Iluminismo Voltaire, o sujeito é criminoso, apetece-lhe o crime e até jacta-se se tem reputação de mais perigoso. Jamais laboraria de sol a sol, em jornada mensal, para perceber paga de um salário mínimo ou até metade mais, se, com um roubo de carro, uma “saidinha de banco”, etc., angaria 10, 20 mil reais. E, se mal sucedido, receberá (e riem-se ao deixar estabelecimentos prisionais para audiência onde será julgado, o cognominado “ 05 e 04”; é acicate para persistir na senda delituosa, pois vale a pena (nos dois sentidos) . A áspide, ante ameaço, não titubeará em destilar sua peçonha na vítima indefesa. Mas se a ameaça for realmente de monta (caráter preventivo geral  — penas mais duras) empreenderá fuga.”

    E ao fim e ao cabo, sentencia um dos corréus por roubo:

    “Fixo a pena-base para o corréu Cesar em 07 anos de reclusão e 17 dias-multa (intermediaria, 03 anos além do piso e 03 anos aquém do máximo abstrato, para que não se diga rigor excessivo).

    Ante a reincidência específica do corréu Cesar, alço a pena em 1/5, remetendo a 08 anos, 04 meses e 24 dias de reclusão e 20 dias-multa.
    O concurso de agentes, assim o foi, com apenas dois rapaces, pelo que acresço as reprimendas em 1/3, englobando, para o corréu Cesar, 11 anos, 02 meses e 12 dias de reclusão e 26 dias-multa.

    Á míngua de outras circunstâncias ou causas de oscilação, definitivas em tais patamares.”

    Comentário: Na primeira fase do cálculo penal a pena é aumentada em 75% (três anos além do piso e três anos aquém do máximo abstrato) para que não se diga rigor excessivo. Superadas as duas fases outras do artigo 68 do CP, o magistrado aplicou pena de 11 anos, 2 meses e 12 dias, lembrando-se que para tal dispositivo penal, art. 157 do CP, o preceito secundário prevê pena de 4 a 10 anos. Não só súmulas são inobservadas, mas neste caso, a própria lei. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.

    D.     A quarta decisão é da lavra do eminente Desembargador Renato Nalini, ora Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Foi proferida em 1996, no então Tribunal de Alçada Criminal. O aresto foi julgado em 4 de novembro, Ap. 1.030.173/2, 11ª Câmara. Talvez seja a mais importante das decisões citadas, porquanto muito seguida no Tribunal de Justiça por inúmeros Desembargadores. No caso em tela trata-se de um crime de roubo em que o acusado silencia na fase policial. Vejamos a abordagem do silêncio do acusado:

    “Na polícia, todos restaram silentes. E dessa opção pelo silêncio, nem Eduardo — f — nem Rogério —f— poderão extrair proveito. Pois se manter silente na fase policial, embora assegurado pelo texto fundante, chega a comprometer os acusados. A reação normal do inocente é bradar contra a acusação injusta, e não se reservar para oferecer explicações apenas perante o juízo. Essa posição é própria de quem necessita de uma estratégia para oferecer resistência ao pleito ministerial.
    De qualquer forma, não é apenas o silêncio na polícia que existe a incriminá-los….”

    É bom que se esclareça que este não é o único caso assim julgado pelo insigne Magistrado, o que nos permite supor que tal interpretação não foi acidental. Veja-se o Acórdão da 11ª Câmara, julgado em 3/3/1997, em que se afirma:

    “….embora a opção pelo silêncio derive de previsão constitucional, ela não inviabiliza o convencimento judicial no sentido desfavorável aos réus, pois a reação normal de um inocente é proclamar, com insistência e ênfase, a sua inocência, não se reservar para prestar esclarecimento apenas em juízo.”

    Comentário: A autoridade intelectual e moral do Relator autoriza supor que seu exemplo tornou a ideia aqui defendida verdadeira referência de um direito alternativo às avessas. O caso, aqui, não é de descumprimento de uma simples súmula não vinculante ou mesmo de uma norma infraconstitucional, como o Código Penal. Estamos diante de uma inobservância de um princípio constitucional por Aquele que se transformou em referência nessa forma de pensar.

    4 Conclusão

    Lá se vão alguns anos quando ouvi pela primeira vez que São Paulo é diferente de todos os demais Estados da Federação. Também ouvi, alhures, que São Paulo pode ser dissemelhante, distinto ou divergente — e ignorar o ordenamento — pois é a locomotiva da Nação e aqui tudo se autoriza ser díspar. Aqui e acolá recolhi assertivas e observações que em última instância diziam ser melhor descumprir as súmulas, leis ou quiçá a Constituição a libertar alguém que mereça estar preso. Os grupos acadêmicos paulistas foram em sua maioria refratários aos juristas defensores do Direito Alternativo. Mas os últimos anos autorizam a afirmação segundo a qual quem mais pratica o Direito Alternativo são os Juízes Paulistas

    São Paulo é realmente diferente. É curioso que em uma cidade com grandes representantes da Música Popular Brasileira, como Os Mutantes, Titãs, Demônios da Garoa, Adoniran Barbosa, Germano Mathias, Rita Lee, dentre tantos outros, ninguém conseguiu decifrar São Paulo melhor do que o baiano Caetano Veloso. A obra-prima com loas à vida paulistana, Sampa, é composta falando das principais características da capital paulista. A poluição, a recepção para os migrantes, as múltiplas culturas e o sonho de quem vem de fora, integram a composição. É difícil compreender a beleza na dura poesia completa das suas esquinas ou da deselegância discreta das tuas meninas. Afirmar que alguma coisa possa acontecer no seio de alguém quando se cruza a Ipiranga com a Avenida São João só há de se admitir quando o poeta é genial e faz do feio o belo; da esquina mais poluída a mais límpida manifestação do coração humano.

    Mas uma coisa o mais paulista dos baianos não poderia imaginar. Que à mente apavora o que ainda não é mesmo velho. E que também no Direito Penal, inovaríamos criando um Direito Penal Alternativo que é refratário às leis e que pensam pairar acima delas. Ele também não poderia imaginar que no centro jurídico da capital paulista o sonho feliz de cidade fosse dar ensejo apressadamente a chamar nosso Estado de realidade, já que somos o avesso do avesso do avesso.

    Referências

    1 Alguns trabalhos merecem destaque: Lições de Direito Alternativo (dois volumes e autores diversos, publicados em 1991 e 1992, obra organizada por Edmundo Lima de Arruda Jr.); Magistratura e Direito Alternativo (obra escrita por Amílton Bueno de Carvalho, 1992, Ed. Acadêmica,); Direito alternativo na jurisprudência (Ed. Acadêmica, 1993, por Amílton Bueno de Carvalho); também merece menção a Revista de Direito Alternativo, sob direção de Amílton Bueno de Carvalho, com artigos de renomados juristas nacionais e estrangeiros. (anos de 1992 e 1993) além de inúmeras outras obras de grande circulação nacional.

    2 ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é direito alternativo. Caputado em 12/1/2015, http://lediorosa.jusbrasil.com.br/artigos/121941896/o-que-e-direito-alternativo.

    3 BERGALLI, Roberto. Usos y riesgos de categorias conceptuales: conviene seguir empleando la expresíon “uso alternativo del derecho”?, in Revista de Direito alternativo, vol. 1, 1992, Ed. Acadêmica, p. 34.

    4 Exceção para o excelente artigo de Salo de Carvalho, intitulado Direito alternativo e dogmática penal: elementos para um diálogo. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, p. 69-84, 2º. Semestre de 1997. Peço vênia para citar breve trecho do trabalho: “Assim, o MDA (movimento de direito alternativo) não representa, em tese, um local diametralmente oposto à Dogmática, mas utiliza a Dogmática no sentido de remodelamento (tática de curto e médio prazo) e na visualização de possibilidade de superação paradigmática (utopia em sentido positivo ou utopia concreta), tendo como principal referencial os Direitos Humanos. É que a construção crítica da Dogmática não pode representar um fim em si mesmo ou um processo de relegitimação do paradigma em crise. A crítica precisa atuar dentro do próprio paradigma, mas localizando-se teleologicamente na construção de um novo modelo.” Op. Cit., p. 79.

    5 ROXIN,  Claus. Política Criminal e sistema jurídico penal. Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 22.

    6  Pesquisa citada, p. 9.

    7 Op. Cit., p. 31.

    8 Op. Cit., p. 32.

    9 Op. Cit., p. 38.

    10 Op. Cit., p. 38.

    11 Op. Cit. p. 86 e seguintes.

    12 Boletim do IBCCRIM, nº 213, Agosto de 2010.

    13 Reafirmo que uma das apreensões que se tinha com o movimento do direito alternativo era o eventual receio que juristas conservadores se apropriassem da ideia de que poderiam julgar à margem da lei e da Constituição e que passassem a decidir em desfavor do indivíduo submetido à jurisdição penal em desrespeito aos direitos e garantias individuais.

     

    Notas

    1 Esse artigo do porfessor e criminalista Sérgio Salomão Shecaira foi originalmente publicado no livro Direito penal econômico: estudos em homenagem ao professor Klaus Tiedemann, editora LiberArs.

    2 Essa matéria recebeu o selo 017-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario