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  • A guerra entre o STF e a Lava Jato

    A guerra entre o STF e a Lava Jato

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com charge de Cau Gomez

     

    Na última semana, vimos mais um capítulo da guerra total que está sendo travada entre o Supremo Tribunal Federal e a Operação Lava Jato. Talvez tenha sido a batalha mais importante de todas. O STF perdeu e se fragilizou ainda mais. Já há algum tempo que o Supremo não é mais tão supremo assim.

    Conto para quem ainda não sabe:

    Dois jornais, vinculados à extrema direita e especializados na produção de fakenews em escala industrial, publicaram informações vazadas da Operação Lava Jato. Dias Toffoli, presidente da Suprema Corte, é mencionado como participante de esquema de corrupção envolvendo a Construtora Odebrecht.

    Afobado e assustado, Dias Toffoli pediu ajuda ao colega Alexandre de Moraes. Os dois juntos colocaram os pés pelas mãos e censuraram as revistas, violando todos os preceitos constitucionais que garantem a liberdade de imprensa.

    A reportagem trazia uma delação em estado bruto, sem nenhum suporte comprobatório, como é procedimento típico da aliança firmada entre a Lava Jato e a imprensa, que hoje é a força mais poderosa do sistema político brasileiro.

    Quando os alvos eram Lula e Dilma, o STF silenciou, se omitiu, achou melhor não confrontar os operadores que contavam com grande apoio da opinião pública. A Lava Jato cresceu, cresceu e, ao que parece, tornou-se mais suprema que o próprio Supremo.

    Bastava um processo por difamação, reivindicando reparação por danos morais. Mas quando os ministros, passando por cima de todos os ritos previsto em lei, ordenaram a derrubada das reportagens, aqueles que são conhecidos pelo jornalismo desonesto e falacioso foram alçados à condição edificante de censurados e perseguidos.

    A Lava Jato venceu a narrativa!

    Se a reportagem era, de fato, uma fakenews, tornou-se uma questão menor. O país inteiro só fala que dois ministros supremos censuraram a imprensa. O caso está com Edson Fachin, que tem uma batata quentíssima nas mãos. Se aliviar a barra dos colegas, vai junto pra vala comum. Se encaminhar a questão para a plenária da corte (o que provavelmente será feito), não haverá meio termo: ou os ministros entregarão em bandeja de prata a cabeça de dois dos seus ou agirão com espírito de corpo e se tornarão alvo da artilharia pesada que já está montada e muito bem municiada.

    Seja qual for o resultado, o STF foi derrotado. Uma derrota dura e com consequências imprevisíveis.

    Politicamente, os operadores da Lava Jato são muito mais inteligentes que a maioria dos ministros do STF. Têm Know-how, foram treinados para isso. Alexandre de Moraes e Dias Toffoli morderam a isca, fizeram exatamente aquilo que a Lava Jato queria e, sim, cometeram crime de responsabilidade.

    Se a Lava Jato conseguir derrubar dois ministros do Supremo Tribunal Federal, tomará de assalto a instituição mais importante da República. Duas vagas estarão disponíveis. Não faltariam candidatos: Marcelo Bretas, Sérgio Moro, Dallagnol.

    A pergunta que fica é: como chegamos nesse ponto? Como a crise institucional se agravou tanto?

    Primeiro, é importante saber que as democracias não morrem do dia para a noite. A decadência começa aos poucos, e vai se espalhando como câncer em movimento de metástase.

    As democracias começam a morrer quando a política passa a ser tutelada por atores que não estão diretamente submetidos à soberania popular. É exatamente isso que está acontecendo no Brasil desde 2005, quando o próprio STF utilizou a Ação Penal 470 para arbitrar um conflito que pertencia ao mundo da política, e nele deveria ser resolvido.

    A democracia começou a morrer quando o STF atropelou o direito com a teoria do domínio do fato. A democracia começou a morrer quando Rosa Weber disse, com a tranquilidade típica dos tiranos, “condeno mesmo sem provas”.

    Desde então, o STF é personagem com presença constante no noticiário exibido em horário nobre, um pouquinho antes da novela das oito. Os brasileiros minimamente atentos à crônica política conheceram os nomes dos 11 ministros da suprema corte. A opinião pública passou a monitorar a atuação do órgão que tem a prerrogativa de manter-se olimpicamente acima da sociedade, zelando pela manutenção do marco civilizatório.

    Somente assim, é possível que o Supremo seja, de fato, supremo, que reúna condições para, quando necessário, contrariar a opinião pública.

    Uma das principais funções do Supremo é, exatamente, contrariar a opinião pública. Nem sempre a vontade da maioria é a vontade da lei. A democracia morre definitivamente quando o Supremo Tribunal Federal passa a ser monitorado e fiscalizado como se fosse um vereador de bairro.

    Agora, o STF terá que tomar uma das decisões mais difíceis de sua história diante de uma opinião pública indócil que ele mesmo alimentou com sangue e vísceras por mais de dez anos.

    “Não podemos deixar o ódio entrar na nossa sociedade”, disse Dias Toffoli. Já entrou, já tomou conta de tudo.

    No começo era festa. Os ministros eram aplaudidos no aeroporto. Máscaras com o rosto de Joaquim Barbosa se tornaram moda de Carnaval. Mas como nem tudo na vida são flores, sob os holofotes, os gemidos nunca são apenas de prazer. Como diria o poeta baiano das camisas floridas e das ideias confusas, há dor e delícia em ser o que é.

    Chegou a hora de gemer de dor.

     

  • Até quando vai o lawfare com Lula?

    Até quando vai o lawfare com Lula?

    No mesmo dia em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é capa no jornal francês L’Humanité como um possível candidato ao Nobel da Paz, na terça-feira 29, ele é terminantemente proibido pela Justiça Federal de ir ao velório de seu irmão mais velho Genival Inácio da Silva, 79 anos, carinhosamente chamado de Vavá, que morreu devido a um câncer. No dia seguinte, quarta 30, quando o ministro do STF Dias Toffoli liberou a ida de Lula à São Bernardo, já era tarde demais: Vavá já estava sendo sepultado e enterrado. 

    Nem quando Lula foi preso por 24 dias durante a Ditadura Militar, em 1980, por liderar uma greve no ABC Paulista, ele deixou de ter este mesmo direito garantido, e foi liberado a comparecer ao velório de sua mãe, Eurídice Ferreira, conhecida também carinhosamente como “Dona Lindu”, pelo diretor-geral do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Romeu Tuma. 

    Vítima de perseguição política desde suas primeiras atuações como metalúrgico sindicalista, o lawfare com Lula se intensifica após o período de seu mandato presidencial, culminando em sua prisão e, mais uma vez, em um direito gravemente cerceado que acomete não só ao ex-presidente, mas ao Estado de Direito, aos Direitos Humanos e à Democracia brasileira. Sobre isso, o advogado de defesa de Lula, Cristiano Zanin, concedeu entrevista exclusiva aos Jornalistas Livres, nesta matéria.

    Pela Lei de Execução Penal 7210/84, Lula deveria ter seu direito assegurado desde o primeiro pedido de sua assessoria de defesa jurídica para o superintendente da Polícia Federal do Paraná em Curitiba, conforme parágrafo único, imediatamente após a morte de Vavá. O artigo 120 da Lei, que consta na petição, é claro:

    “Os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semi-aberto e os presos provisórios poderão obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer um dos seguintes fatos:

    – falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão;

    Parágrafo único. A permissão de saída será concedida pelo diretor do estabelecimento onde se encontra o preso.”

    Ainda de acordo com a petição dos advogados de Lula, “a Lei de Execução Penal é ancorada na proteção constitucional dada à família (CF/88, art. 2262) e em aspectos humanitários, tornando imperioso, e com o devido respeito, o acolhimento do pedido ora formulado”.

    Ou seja, não haveria a necessidade de uma ação judicial para além da PF, submetida ao Ministério da Justiça, na qual Sérgio Moro, o mesmo ex-juiz que prendeu o ex-presidente e que dizia publicamente que nunca seria político, é o ministro. Para a presidenta do PT e deputada federal Gleisi Hoffman, Moro deve explicações à sociedade brasileira sobre a declaração de incompetência da PF para levar Lula ao velório e enterro de seu irmão Vavá. E complementa: “Eu fico pensando qual é a estrutura da Polícia Federal para combater o crime organizado nesse país, se a mesma polícia não tem condições de prover a segurança pra que uma pessoa vá ao velório e enterro de seu irmão”.

    Visto que o tempo era curto e a Polícia Federal não se manifestava, a defesa de Lula entrou imediatamente com pedido de liberação também na 12ª Vara Criminal em Curitiba, mas a juíza Carolina Lebbos expediu intimação para o Ministério Público Federal se manifestar, antes da apreciação judicial. O MPF, por sua vez, pediu para a PF se manifestar com prazo de um dia. A defesa peticionou nos autos chamando a atenção para a ausência de necessidade de manifestação do MPF, no caso, e para o quanto a demora significa perigo de perecimento do direito.

    Na madrugada de quarta, Carolina Lebbos negou o requerimento de Lula. No despacho, ela afirma que a decisão final cabe à Polícia Federal, que alegou dificuldades logísticas para fazer a viagem. Além de “indisponibilidade de transporte aéreo em tempo hábil”, pois os helicópteros estariam todos em Brumadinho (MG), atuando na tragédia anunciada da Vale, o delegado Luciano Flores de Lima alegou “ausência de policiais disponíveis para assegurar a ordem pública” e “perturbações à tranquilidade da cerimônia fúnebre pelo aparato necessário para levar Lula”.

    A defesa recorreu, mas, com o mesmo argumento, o desembargador de plantão do TRF-4, Leandro Paulsen, manteve a proibição, pois considerou haver possibilidade de confronto entre apoiadores e opositores do ex-presidente. O pedido chegou até o Supremo Tribunal Federal, nas mãos de Tóffoli, que liberou a ida de Lula a São Bernardo para encontrar exclusivamente com os seus familiares, em uma Unidade Militar, somente quando Vavá já estava sendo sepultado e enterrado, o que parece um tanto sádico.

    E, assim como em tantas outras situações que o ex-presidente vem sendo extorquido de seus direitos, como por exemplo estar preso sem trânsito em julgado por causa da ação do “Tríplex no Guarujá”, ter tido sua candidatura à presidência, legal, impugnada pelo TSE mesmo após intervenção da ONU, conceder entrevistas à imprensa, ter visitas religiosas e de Fernando Haddad na condição de advogado, Lula não pôde se despedir de seu ente querido na qual mantinha laços afetivos paternais por ser seu irmão mais velho e muito presente em sua vida.

    “O Lula hoje é mais que um preso político. Lula hoje é um refém de uma lógica perversa que impõe ao tratamento que é dado a ele uma forma de sinalização pra tentar intimidar todos e todas deste país que tem coragem de insurgir. Se Lula quisesse ter fugido, ele teria fugido antes de se entregar, em abril do ano passado. Mas Lula não fugiu e nunca teve essa intenção porque acredita que poderá provar sua inocência”, disse o líder do PT na Câmara dos Deputados, Paulo Pimenta, em ato de protesto pela proibição da ida do ex-presidente ao velório do irmão.

    EXCLUSIVA com ZANIN

    Sobre as decisões que claramente ferem princípio de dignidade humana do ex-presidente e o lawfare que ele vem sofrendo, o advogado de Lula, Cristiano Zanin, concede ENTREVISTA EXCLUSIVA para o Jornalistas Livres.

    1. Qual a gravidade desse cerceamento do direito do ex-presidente Lula de ir ao velório do irmão? 

    Cristiano Zanin: Impedir Lula de participar do funeral do irmão é uma conduta muito grave por parte do Estado porque negou ao ex-presidente um direito expressamente previsto na lei e que está lastreado em razões humanitárias. Lula está sendo tratado como uma pessoa sem qualquer direito. Para um conjunto de autoridades no país, ele pode ser processado sem justa causa; pode ser condenado sem ter praticado um crime; pode ser encarcerado mesmo não havendo decisão definitiva transitada em julgado, como prevê a Constituição Federal; pode ser impedido de ter qualquer contato com o mundo exterior. Estão deturpando as leis e os procedimentos jurídicos para promover uma verdadeira cruzada contra o ex-Presidente Lula, para persegui-lo enquanto inimigo político. Isso configura um fenômeno denominado “lawfare” que eu e a Valeska Martins (também advogada de defesa de Lula) apresentamos aqui no Brasil em 2016 para designar o que estava ocorrendo com Lula já naquele momento.

    2. Por qual motivo vocês acham que a PF negou duas vezes?
    CZ: Respeito os policiais federais, mas não é possível concordar com esse posicionamento. Primeiro, porque quando o Estado decidiu realizar atos de persecução penal contra Lula foi possível constatar que tinham todo o aparado necessário, como ocorreu na condução coercitiva realizada em março de 2016. Segundo, porque não foi apontada qualquer situação concreta que pudesse efetivamente mostrar que a ida de Lula ao enterro do irmão poderia causar riscos à sua segurança ou à segurança das outras pessoas presentes. Terceiro e mais importante, porque o Estado não pode alegar suas eventuais deficiências para retirar direito dos cidadãos. É sempre importante lembrar, ainda, que apresentamos às autoridades, em última análise, se necessário, a possibilidade de terceiros relacionados ao ex-presidente suportarem os custos relativos ao frete ou do combustível da aeronave necessária para transportá-lo até São Bernardo do Campo. Isso foi recusado. Diante desse cenário, não temos dúvida de que o veto imposto à ida de Lula ao enterro do irmão é uma prática de lawfare.

    3. No primeiro pedido conforme a lei de execução penal não precisaria ter sido encaminhado para a Carolina Lebbos, e nem ela ao MPF, correto?
    CZ: A Lei de Execução Penal diz no seu artigo 120, parágrafo único, que cabe ao diretor do estabelecimento onde a pessoa está presa autorizar a sua saída para ir ao enterro do familiar. Fizemos esse pedido perante a Superintendência da Polícia Federal do Paraná por volta das 15 horas dia 29, assim que tomamos conhecimento do falecimento do irmão do ex-Presidente Lula. Como havia urgência na medida e não foi tomada nenhuma decisão administrativa de imediato, levamos o caso também à Vara de Execuções Penais, na expectativa de que o pedido fosse prontamente acolhido diante da clareza do direito alegado. Mas o que ocorreu foi que a partir daí o pedido ficou “girando em falso”: foi aberta vista do processo ao MPF, que, por seu turno, disse que somente iria se manifestar depois de ouvir a Polícia. Apenas por volta de uma hora da manhã, quando o velório do irmão do ex-Presidente já estava bastante avançado, é que tivemos uma decisão da primeira instância e foi negativa. Durante a madrugada fomos ao plantão do TRF4 e às 5 horas tivemos outra decisão, também negativa. Também fizemos requerimentos ao STJ e ao STF ao longo da madrugada. Do falecimento de Vavá até a decisão do Ministro Dias Toffoli, por volta das 13 horas do dia 30, protocolamos 19 petições nas mais diversas instâncias administrativas e judiciais para que Lula pudesse exercer um direito expressamente previsto em lei. Além de mostrar um trabalho hercúleo, esse número também mostra que algo que deveria ser simples, quando é para Lula, ganha uma complexidade singular.

    4. Existe alguma medida internacional de Direitos Humanos a qual possa ser apelada com relação às decisões e ao lawfare? Alguma denúncia a algum órgão que possa intervir internacionalmente juridicamente?

    CZ: Em 2016, eu, Valeska Martins e o Geoffrey Robertson, uma referência mundial na advocacia de direitos humanos, levamos ao Comitê de Direitos Humanos da ONU um comunicado mostrando àquele órgão internacional que Lula está sendo vítima de grosseiras violações às suas garantias fundamentais. Foi o primeiro comunicado feito àquele órgão internacional por um cidadão brasileiro. Desde então fizemos diversas atualizações naquele comunicado. Fomos instados pelo Comitê a apresentar uma nova manifestação no início de fevereiro e nessa oportunidade levaremos ao conhecimento do Comitê esses últimos fatos, pois eles reforçam todas as violações que são tratadas no comunicado. A partir dessa nova manifestação que iremos apresentar, em tese, o Comitê poderá julgar o mérito do comunicado a qualquer momento. E se o julgamento for favorável a Lula, como acreditamos, poderá ajudar o Brasil a restabelecer os direitos do ex-presidente e até mesmo a fazer mudanças legislativas necessárias para se adequar aos padrões internacionais de direitos humanos.

    Valeska Martins e Cristiano Zanin Martins, na sede da ONU em Genebra, na Suiça. Foto: Filipe Araújo
  • OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

    OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

     

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

     

    O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

    Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

    Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

    Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

    Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

    A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

    Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

    Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

    Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

    Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

     

    Rodrigo Janot

    Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

    Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

    26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

    A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

    Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

    Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

    Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

    Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

    Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

    Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

     

    Rogério Favreto

    Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

    “Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

    Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

    Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

    Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

    Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

    Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

     

    Marco Aurélio Mello

    Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

    1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

    É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

    Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

    Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

    Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

    2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

    Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

    A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

    Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

     

  • A canção “Tempo Perdido” na festa-baile de Dias Toffoli

    A canção “Tempo Perdido” na festa-baile de Dias Toffoli

    Por Paulo César de Carvalho

    De volta aos anos 80: em busca do tempo perdido

    Em 1986, no contexto da grave crise econômica do governo de José Sarney, o jovem José Antonio Dias Toffoli iniciou o curso de Direito na USP. No mesmo ano do “Plano Cruzado”, a banda “Legião Urbana” lançou o hit “Tempo Perdido”.

    No dia 13 de setembro de 2018, cinco meses depois da prisão de Lula, o ministro Dias Toffoli assumiu a Presidência do Supremo Tribunal Federal. Na festa que sucedeu o rito, Sua Excelência cantou os mesmos versos de Renato Russo dos tempos em que ainda era calouro: “somos tão jovens/tão jovens”.

    https://www.youtube.com/watch?v=lQCkTEg1RKA

    Em 1987, no ano da “Constituinte”, em que a banda de Brasília tocou em todos os cantos do Brasil o hino “Que País é Este?”, Toffoli era da base de apoio do Centro Acadêmico XI de Agosto. Em 1988, no histórico “porão” da faculdade, quando o futuro ministro ainda era “tão jovem”, ecoavam nas mesas os versos do rock de protesto, entre debates calorosos e copos de cerveja quente: “ninguém respeita a Constituição/ mas todos acreditam no futuro da nação”.

    Em 1989, nas primeiras eleições diretas depois de vinte e cinco anos do famigerado Golpe de 1964, Toffoli, já diretor do Centro Acadêmico XI de Agosto, fez campanha para “Lula Presidente”. Com a bandeira vermelha na mão, a estrela no peito e o PT na boca, o futuro presidente do STF fez coro ao jingle: “Lula Lá/ Brilha uma estrela/ Lula Lá”.

    Em 12 de março de 2007, vinte anos depois que cantou “Que País é Este” com a “Legião”, ele foi nomeado Advogado-Geral da União por Luiz Inácio Lula da Silva. O seu candidato, derrotado por Fernando Collor em 1989, chegou enfim à Presidência da República nas eleições de 2002, sendo reeleito vinte anos depois que o calouro de Marília (SP) cantou pela primeira vez “Tempo Perdido”: “Não tenho mais o tempo que passou/ Mas tenho muito tempo/ Temos todo o tempo do mundo”.

    O garoto católico do interior chegou à capital acreditando que Renato Russo era mesmo um “profeta”, como se lhe dissesse que, no “Faroeste Caboclo” de cada dia, ele seria um abençoado “José de Santo Cristo” que daria certo na vida. Sem tempo perdido, em pouco tempo (com o perdão do trocadilho), no dia 23 de outubro de 2009, vinte anos após a vitória de Collor, José Antonio Dias Toffoli se tornaria “Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil”, promovido novamente por Luiz Inácio Lula da Silva.

    Como “o tempo não para” (evocando a canção de Cazuza de 1988, quando Toffoli foi eleito diretor do XI de Agosto), hoje o seu “benfeitor” está preso há quase seis meses: o agraciado com a “benção”, contudo, fez coro com a turma de juízes da “Santa Inquisição”, negando o “golpe parlamentar” que, afinal, conduziria à prisão do “padrinho”.

    Aquele estudante de Direito ainda “tão jovem” em 1986, que se dizia “socialista” (sempre reformista, nunca amou a revolução), que organizou o núcleo do PT no Largo de São Francisco, que gritou “Lula Lá” na Praça da Sé em 1989, é hoje este ministro que votou pela “terceirização das atividades-fim”, ajudando a legitimar a perda de direitos da classe trabalhadora imposta pela cruel “reforma trabalhista”.

    Nesse “flashback” oitentista, para evitar os contraditórios “ajustes fiscais” com o presente, Toffoli diria em sua defesa, parafraseando a máxima do antecessor de Lula na Presidência: “esqueçam o que defendi”. Na grande festa do dia 13 de setembro de 2018, a presença dos antigos companheiros do Centro Acadêmico XI de Agosto cumpriu importante papel para que a tragédia do passado não parecesse a farsa do presente (será que todos leram “A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” de Marx?). Enfim, ao lado de antigos diretores e presidentes do “XI”, é como se todos estivessem reunidos para simular o que nunca foram, dissimulando o que já eram quando cantaram em uníssono com Sua Excelência, pela primeira vez, “Tempo Perdido”.

    Nesse “revival” dos anos oitenta, ninguém estava preocupado, por exemplo, com o golpe e a prisão de Lula, ou com os votos de Toffoli contrários aos interesses dos trabalhadores e favoráveis aos privilégios corporativos, ou com a nomeação de um militar como seu assessor. Os colegas do ministro não queriam saber se ele estava sentado ao lado de Temer, o mesmo que deu o golpe não reconhecido por Toffoli.

    Os amigos dos tempos do XI, pseudo-socialistas tão adaptados à ordem quanto o PT, não estavam preocupados com princípios: todos estavam orgulhosos do amigo que chegou ao topo do Everest da carreira. Todos queriam apenas se divertir um pouco e se sentir vitoriosos com o triunfo do amigo, sem nenhum peso na consciência. Depois da festinha em Brasília, enfim, todos voltaram para casa lembrando os versos de Renato Russo, felizes com o reencontro: “Todos os dias antes de dormir/ Lembro e esqueço como foi o dia/ Sempre em frente/ Não temos tempo a perder”.

    *Paulo César de Carvalho (Paulinho) é militante da RESISTÊNCIA-PSOL e foi diretor do XI de Agosto em 1990.
    Foto: Renato Russo, em show com a Legião Urbana. Divulgação, em Gazeta do Povo.


    Esquerda Online

  • Decisão que permite candidatura de Garotinho contradiz impugnação de Lula

    Decisão que permite candidatura de Garotinho contradiz impugnação de Lula

    por Rafael Tatemoto para Brasil de Fato

    O ex-governador Anthony Garotinho (PRP) obteve uma liminar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para continuar na disputa estadual do Rio de Janeiro neste domingo (16). O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) havia impugnado sua candidatura no dia 6 de setembro. O argumento do TSE é que Garotinho ainda pode recorrer da sentença do TRE, portanto tem direito a continuar fazendo campanha eleitoral até serem esgotados os recursos jurídicos.

    Segundo advogados consultados pelo Brasil de Fato, a situação jurídica do candidato a governador do Rio de Janeiro é similar à de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, no entanto, teve todas as tentativas de obtenção de liminares negadas.

    Para estes advogados, todas as candidaturas impugnadas com chance de recursos devem ser consideradas sub judice, ou seja, são casos que ainda podem ter uma nova determinação judicial. Se essa tivesse sido a posição do Judiciário sobre Lula, ele poderia ter obtido uma liminar.

    Fernando Amaral explica que o termo “sub judice” deve incluir candidaturas que pudessem ser debatidas em instância acima do TSE.

    “Esgotaria quando não tivesse mais recursos. Só há trânsito em julgado, ou seja, deixa de estar sob judice, quando esgotadas as fases recursais. E no registro, apesar de entender que para presidencial se inicia no TSE, na última instância eleitoral, há sempre possibilidade de recurso para o Supremo”, afirma.

    Destacando que a decisão sobre Garotinho encontra amparo na legislação, Bruno Caires também critica o entendimento que o Tribunal vem adotando para os julgamentos que se iniciam no próprio TSE.

    “A diferença que existe entre os dois casos é que o TSE  é o órgão legitimado para o pleito de presidente da República. A liminar [para Garotinho] foi concedida em relação a uma decisão do [Tribunal] Regional. A gente nunca teve uma impugnação de candidato a presidente da República, e foi dada essa interpretação [no caso Lula]. Eu entendo de forma diversa, cabendo recursos previstos em lei de competência do STF, seria incoerente dizer que o Eleitoral seria a última instância”, argumenta.

    Garotinho foi condenado em julho pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por improbidade administrativa. O TRE enquadrou o político na chamada Lei da Ficha Limpa, também aplicada pelo TSE no caso de Lula.

    O ministro do TSE, Og Fernandes determinou que a inelegibilidade seja suspensa até que o mérito da questão seja julgada por pelo próprio TSE. “O candidato cujo registro esteja sub judice poderá prosseguir na campanha eleitoral – inclusive com o nome e foto na urna eletrônica – até o julgamento pelo Tribunal Superior Eleitoral em única ou última instância”, afirma parte da decisão.

    Como Garotinho aguarda decisão sobre recurso ao próprio TSE, foi beneficiado pela interpretação do Tribunal.

    Segundo a visão de ambos advogados, com a impugnação no TSE, o Judiciário deveria ter concedido a liminar para que o PT decidisse continuar ou não com a candidatura de Lula, mesmo sob o risco de ter seus votos anulados entre o primeiro e o segundo turno, o que aconteceria caso o STF confirmasse a negação de sua candidatura.

    Notas

    1 Esse artigo foir originalmente publicado em https://www.brasildefato.com.br/2018/09/17/decisao-que-permite-candidatura-de-garotinho-contradiz-impugnacao-de-lula/

    2 Essa matéria recebeu o selo 044-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Quando o inconsciente do juiz se revela na sentença

    Quando o inconsciente do juiz se revela na sentença

    por Agostinho Ramalho Marques Neto *

    A condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, não foi surpresa, nem para os que por ela ansiavam nem para os que a temiam ou a ela se opunham. Foi o desenlace esperado e até mesmo anunciado daquilo que se tramava havia muito tempo. Os atos e declarações dos componentes da assim denominada Operação Lava Jato – desde delegados da Polícia Federal, passando por membros do Ministério Público Federal e chegando ao juiz acima mencionado, assumidamente integrante e sob muitos aspectos até mesmo “chefe” da referida operação, por mais incompatível que isso possa ser com a postura que se espera de um juiz – apontavam sempre no sentido de uma “convicção” de culpa que só enxergava como “provas” aquilo que a reforçasse, o que evidenciava que o processo não passava de uma encenação para que a preconcebida sentença condenatória fosse proferida.

    Não é meu objetivo neste pequeno texto pôr a ênfase da análise sobre o mérito em si da condenação, seja no que se refere à sua materialidade, seja no concernente à (in)observância das formas, limites e garantias processuais.

    Não posso deixar de registrar, entretanto, o meu indignado entendimento de que Lula foi condenado com base em meros indícios e presunções, que foram tomados como provas suficientes no julgamento.

    Isso ficou claro desde o início e atingiu seu ápice como espetáculo naquela patética cena e m que, empregando o recurso de um PowerPoint durante entrevista coletiva realizada ao vivo em rede nacional de televisão em setembro de 2016, procuradores federais, tendo à frente Deltan Dallagnol, apresentaram à população, de modo pretensamente “didático”, a tese acusatória de que o Estado brasileiro estaria tomado por vasta e sofisticada organização criminosa, cujo líder supremo seria o ex-presidente Lula.

    Uma vez estabelecido antecipadamente tal veredito, restava encontrar – e, se nada fosse efetivamente encontrado, restava inventar – as provas que fundamentariam a sentença condenatória.

    O famoso tríplex no Guarujá foi artificiosamente constituído enquanto prova, na falta de coisa melhor para a acusação, com a qual, por sinal, o comportamento do juiz muitas vezes se misturava. Essa confusão do lugar do juiz com o do acusador, essa alternância, na mesma pessoa, do trabalho de produzir provas contra o acusado e julgá-lo com base nessas mesmas provas, levou o juiz a tomar indícios, ilações e suposições como provas suficientes, na medida em que lhe pareciam ordenadas conforme uma narrativa “verossímil” que no entanto foi logo tomada como “verdadeira” e que sedimentou a convicção da culpa do réu, presente desde antes mesmo do início do processo e agora tornada inabalável. A certeza inabalável que então se instaura e determina a sequência dos atos processuais que culminarão na condenação contém traços paranoicos, conforme já examinei em outro lugar (1).

    Outro ponto que não posso deixar de registrar é a inusitada e suspeitíssima “coincidência” de ter sido a sentença condenatória de Lula proferida precisamente no dia seguinte àquele em que o Senado Federal aprovou a abominável “reforma” trabalhista que na prática aboliu os direitos dos trabalhadores. É preciso ser muito ingênuo para acreditar que tal “co-incidência” tenha sido fortuita.

    A condenação de Lula, ícone dos trabalhadores e candidato mais cotado para vencer as eleições presidenciais de 2018, obscurece, desvia para Lula o foco dos holofotes das “reformas” trabalhistas e da carga cerrada de acusações de delitos contra o ilegítimo presidente Michel Temer, e com isso reforça o desmonte da legislação do trabalho, ao mesmo tempo em que visa a afastar da disputa o único candidato com condições de, uma vez no exercício do cargo, empenhar-se com alguma chance de êxito no sentido de reverter o imenso retrocesso imposto no campo das relações de trabalho e dos programas sociais em geral.

    Se perguntarmos a quem tudo isso beneficia, veremos sem dificuldade que o grande favorecido é o capital, sobretudo o rentista e financeiro, dentro das condições impostas pelo modelo neoliberal dominante em nível internacional.

    É ele que mais decisivamente esteve por trás do golpe de 2016 que depôs Dilma Rousseff da presidência da República precisamente para implantar autoritariamente as tais “reformas”, que jamais obteriam o aval do voto popular. É perfeitamente coerente com esse objetivo que, ao mesmo tempo em que o juiz Moro condenava Lula, era negado seguimento a processos por improbidade movidos contra políticos comprometidos com as “reformas”, como a comissão de ética do Senado fez em relação a Aécio Neves e a Câmara dos Deputados em relação a Michel Temer. Estes, por sinal, são perfeitamente descartáveis na ótica das elites dominantes, para as quais o que de fato interessa é a aprovação das reformas que lhes garantam a exploração sem restrições dos trabalhadores e o aumento desmedido do seu enriquecimento, não importando que custo social isso possa acarretar. O que isso tudo evidencia é que, por trás da condenação de Lula, há um objetivo inconfessado que é o verdadeiro objetivo das elites economicamente dominantes: inviabilizar, no nascedouro, a candidatura de Lula à presidência da República em 2018.

    Mas essas e outras considerações de fundo jurídico e político não são o principal objeto do meu interesse neste trabalho. Elas foram e continuam sendo matéria de análises e artigos muito bem fundamentados de autoria de juristas, penalistas, processualistas e constitucionalistas renomados, que as têm examinado exaustivamente sob as mais diversas perspectivas. Vários desses autores têm trabalhos publicados no presente livro.

    O objetivo primordial deste trabalho é selecionar e pôr em evidência algumas passagens da sentença condenatória em que o juiz Sérgio Moro, acreditando que falava de Lula, ou do processo, ou das suas provas por ilação, ou que se queixava dos advogados de defesa, ou da imprensa, ou que rebatia críticas a ele dirigidas (tudo isso compõe o “conteúdo manifesto” da sentença), falava também e sobretudo de si mesmo, de sua posição subjetiva, de sua visão de mundo, do código moral implícito a seus atos e declarações, de sua concepção de direitos e garantias processuais e constitucionais e, acima de tudo, do que para ele significa fazer justiça, e qual o papel do juiz (ou seja, ele próprio, Moro) na perseguição desse alvo. Meu enfoque predominante será, portanto, de fundo psicanalítico, embora não me seja possível deixar de abordar também, aqui e ali, aspectos jurídicos e políticos do caso.

    Ele falava dessas coisas sem saber, talvez, que estava falando muito mais do que supunha. É aí que se situa o “conteúdo latente” de sua fala. Assim como acontece com os sonhos, toda fala, todo discurso (e a sentença judicial é uma forma de discurso) apresenta conteúdos manifestos e latentes.

    Estes últimos muitas vezes correspondem a representações e desejos recalcados e inconscientes, que não cessam de buscar expressão e satisfação. E se presentificam como acidentes da fala, como lapsos, atos falhos, atos sintomáticos, descontinuidades, hesitações, associações superficiais e como que “forçadas”. Esses acidentes, denominados por Lacan de formações do inconsciente, são as formas pelas quais o inconsciente se manifesta, os desejos recalcados afloram, fazendo emergir a verdade do sujeito, oculta tanto para os outros quanto para ele mesmo. É nesse contexto que os psicanalistas afirmam que os atos falhos têm função de verdade, evocando o ensinamento de Lacan segundo o qual verdade, em Psicanálise, é presença de inconsciente na fala. Brincando um pouco com as palavras, posso dizer que é na falha da fala que o inconsciente se revela, que o sujeito é “flagrado” e se trai.

    É aí, também, que os determinantes dos sintomas se manifestam. Nesse sentido, as sentenças dos juízes constituem, não poucas vezes, alusões e referências aos sintomas desses juízes. Se desviarmos um pouco o olhar do conteúdo manifesto da sentença, isto é, da sua dimensão de enunciado, e o pousarmos na dimensão de enunciação, ou seja, o lugar simbólico a partir do qual o enunciado é emitido, muito podemos apreender da posição subjetiva em que o juiz se coloca (mesmo que inconscientemente, e neste caso a coisa tem ainda mais força) ao proferir a sentença. A questão a considerar aqui é a seguinte: que posição de sujeito torna possível esse discurso?

    Trata-se, fundamentalmente, de uma posição de arrogância, própria de um sujeito que, encarnando visceralmente a função de “justiceiro”, identificando-se inteiramente com ela, se sente autorizado a impor a sua convicção – e a condenar com base nessa autorização –, não hesitando, quando lhe parece necessário para a consecução de tal propósito, em espezinhar os princípios e garantias constitucionais e processuais, como, por exemplo, o princípio da presunção de inocência, a observância do devido processo legal, o direito à ampla defesa e ao contraditório, que são verdadeiras “cláusulas pétreas” da cidadania numa sociedade democrática.

    Em síntese, quando a lei lhe parece um obstáculo à aplicação daquilo de cuja justiça ele tem certeza, ele simplesmente “cria” uma lei específica para aquele caso e aplica a sua justiça. Chegou mesmo a criar a figura de uma “propriedade de fato”, inexistente na legislação, mas que ele viu materializada na circunstância, para ele decisiva, de que o apartamento do Guarujá estava “reservado desde o início” para Lula e sua família e que por essa razão havia sido reformado pela construtora OAS, e utilizou essa criação como um dos principais fundamentos “fáticos” da condenação. Sempre em nome do Bem, é claro…

    E o fez respaldado na propaganda da grande mídia e no maciço apoio daí resultante que ele cultiva junto à opinião pública, que o enxerga como um herói nacional, e também amparado na cumplicidade de instâncias superiores do Judiciário, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, que tem validado vários dos seus abusos, dando a impressão, não raras vezes, de fazê-lo por falta de coragem e de firmeza para assumir posições contramajoritárias.

    Esse apoio ao avanço de julgamentos penais de exceção encontrou um de seus mais escandalosos exemplos quando o Tribunal Regional Federal da 4ª Região validou, em 22 de setembro de 2016, com apenas um voto em contrário, medidas abusivas e excepcionais tomadas pelo juiz Sérgio Moro, dentre as quais o ilegal vazamento para a imprensa de conversa telefônica entre a então presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, além do grampeamento dos telefones de escritórios de advocacia e da admissão como provas de elementos obtidos ilegalmente.

    Em texto publicado não muito depois de tão esdrúxula e perigosa decisão do TRF da 4ª Região, afirmei que “para tal decisão, o Tribunal baseou-se na premissa de que a operação Lava Jato não precisa seguir as regras dos processos comuns, e empregou, como fundamentos de tão insólito entendimento, argumentos que não encontram guarida na ordem jurídica vigente, nem tampouco sustentação ética consistente, como os de que vivemos uma ‘situação inédita’ que exige ‘soluções inéditas’, o que tornaria admissíveis ‘métodos especiais de investigação’ e ‘remédios excepcionais’” (2).

    Trata-se, evidentemente, da convalidação da posição perversa de um juiz que confunde o ato de julgar com o de legislar e não se acanha de julgar com base em provas que ele mesmo produz ou ajuda a produzir. E como acontece em toda posição perversa, há uma arbitrária imposição de limites para os outros e ao mesmo tempo uma supressão de todos os limites para os seus próprios atos. Isso transparece no item 961 da sentença, quando o juiz afirma que “prevalece, enfim, o ditado ‘não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você’ (uma adaptação livre de ‘be you never so high the law is above you’)”. Moro parece nem desconfiar de que, nessa passagem, ele deixa escapar, implicitamente, que “você” é sempre o outro, o acusado , o réu, não o juiz que, no caso, não se considera abaixo da lei pela simples razão de ter – se identificado com ela.

    Em vários trechos de sua sentença, o juiz Moro se utiliza de um discurso denegatório que tem valor de ato falho. Freud introduziu o conceito de “denegação” (Verneinung) para designar aquelas situações em que o sujeito tenta afastar uma representação que de repente lhe ocorre, enunciando – a sob forma negativa, uma maneira de “repúdio, por projeção, de uma ideia que acaba de ocorrer” (3), um mecanismo de defesa que consiste em projetar para o exterior do sujeito um conteúdo que lhe é interior. Freud diz que a denegação é uma Aufhebung do recalque, que ao mesmo tempo traz à tona o conteúdo recalcado e mantém o essencial do recalque.

    Um dos exemplos que ele dá, e que se tornou famoso, é o de quando um sujeito diz em análise: “O senhor pergunta quem pode ser a pessoa no sonho. Não é a minha mãe”. Freud indica que a regra técnica a observar em tal caso é a de simplesmente suprimir a negativa e acolher apenas o conteúdo da declaração: “Então, é a mãe dele” (4).

    Como o espaço que me resta para concluir é extremamente exíguo, limito-me a apontar duas passagens da sentença em que Moro, rebatendo associações que a ele mesmo iam ocorrendo, utiliza um discurso visivelmente denegatório que, na tentativa de encobrir, acaba por escancarar pensamentos e sentimentos inconscientes que revelam o “conteúdo latente” que sobredetermina a sentença condenatória.

    Uma dentre inúmeras situações dessa espécie ocorre quando, no item 961 de sua sentença, após ter dedicado no início longas páginas para defender-se de acusações de abusos e falta de imparcialidade e para tentar demonstrar que não é suspeito para julgar Lula, Moro afirma que “por fim, registre-se que a presente condenação não traz a este julgador qualquer satisfação pessoal, pelo contrário”. Ora, o fato inusitado de um juiz sentir a necessidade de falar de seus próprios sentimentos, declarando, na sentença, que a decisão não lhe traz satisfação pessoal, é um eloquente indicativo de que ele primeiro (consciente ou inconscientemente, pouco importa neste contexto) admitiu experimentar, sim, essa satisfação, para em seguida negá-la sem observar ou pouco se importando com o fato de que existe uma afirmação anterior, implícita na negação. O adendo “pelo contrário” é o índice da denegação, “um certificado de origem, como se fosse um ‘made in Germany’” (5), como diz Freud. Basta, no caso, seguir a regra técnica que Freud indica e eliminar a partícula negativa, para que a satisfação denegada se revele como a causa oculta e determinante do desfecho da sentença. Essa denegação é forte candidata a vir a compor uma futura antologia de atos falhos reveladores das verdadeiras motivações de sentenças judiciais…

    Outra revelação de “conteúdo latente” da sentença ocorre quando o juiz, para fundamentar a sentença condenatória, se baseia, não em atos ilícitos comprovadamente praticados pelo acusado, como manda a lei, mas em avaliações de sua conduta e postura durante o desenrolar do processo e em declarações públicas por ele feitas. Com isso, o juiz se aproxima temerariamente de um direito penal de autor, em que o sujeito não é julgado pelo que fez, mas pelo que é, ou pelo que parece ser aos olhos do julgador.

    No item 958 da sentença, por exemplo, Moro afirma que, em sua defesa, Lula, orientado por seus advogados, tem adotado:

    “táticas bastante questionáveis, como de intimidação do ora julgador, com a propositura de queixa-crime improcedente, e de intimidação de outros agentes da lei, Procurador da República e Delegado com a propositura de ações de indenização por crimes contra a honra. […] Tem ainda proferido declarações públicas no mínimo inadequadas sobre o processo, por exemplo sugerindo que se assumir o poder irá prender os Procuradores da República ou Delegados da Polícia Federal. […] Essas condutas são inapropriadas e revelam tentativa de intimidação da justiça, dos agentes da lei e até da imprensa para que não cumpram o seu dever”.

    Moro vê aí “atos de hostilidade” contra os agentes da Justiça. Ainda que verdadeiros os conteúdos de tal afirmação, as declarações de Lula não são, por si sós, delitos prévia e expressamente tipificados no ordenamento penal, não podendo constituir, por isso mesmo, base para uma condenação. Além disso, propor ações em juízo é direito inalienável do cidadão, não podendo gerar consequências penais a não ser nos casos de litigância de má-fé e outros expressamente determinados por lei.

    Dando-se ou não conta disso, Moro se deslocou do lugar de juiz (lugar de imparcialidade, portanto) para o lugar de um contendor ou oponente do réu. Havia todo um fundo de verdade naquelas revistas de circulação nacional que estamparam em suas capas, na mesma semana, Moro e Lula como pugilistas ou gladiadores em plena luta… O juiz chega mesmo a reprovar, na sentença (item 795), o fato de que Lula, quando presidente, não promoveu emenda no sentido de desconsiderar a exigência constitucional de trânsito em julgado da sentença condenatória para o início do cumprimento da pena, bem como de não ter tentado reverter a jurisprudência então dominante no STF sobre a matéria.

    Essas considerações evidenciam que a sentença condenatória e a fixação da pena (alta o suficiente para garantir o início do cumprimento em regime fechado) obedeceram a critérios subjetivos do juiz, o que configura flagrante erro técnico.

    • Psicanalista. Professor universitário nas áreas de Filosofia do Direito e Filosofia Política. Membro fundador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná.

    Referências

    1 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. “O Juiz como Protagonista do Espetáculo: a Paranoia como Metáfora para Pensar essa Posição”. IN: PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; TENENBAUM, Marcio & RAMOS FILHO, Wilson (organizadores). A Resistência ao Golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016, p. 21

    2 http://emporiododireito.com.br/limites-a-atuacao-do-juiz

    3 FREUD, Sigmund. “A Negativa” [1925]. IN: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Tradução de José Octavio de Aguiar Abreu, sob a direção-geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX, p. 295.

    4 Id. Ibid., v. XIX, p. 295

    5 Id. Ibid., v. XIX, p. 297

    Notas

    1 Esse artigo faz parte do livro “Comentários a uma Sentença Anunciada: o Processo Lula”. Para baixar o livro completo: https://drive.google.com/file/d/1T_TFknjaV5gVkgsGRg_bp0vlYQbmRfGO/view

    2 Essa matéria recebeu o selo 043-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
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