Jornalistas Livres

Tag: De Braços Abertos

  • O amor em tempos de crack

    O amor em tempos de crack

    Diz a Ela Que Me Viu Chorar é um daqueles filmes que você se mexe na cadeira do cinema a todo momento. Algo angustiante, algo que incomoda, e incomoda muito. As personagens vão sendo apresentadas. Um universo muito distante de você. Pessoas que usam “crack” que tentam uma saída para suas vidas acolhidos pelo projeto de redução de danos e acesso aos direitos básicos de cidadão, da prefeitura de Fernando Haddad, o programa “De Braços Abertos”. Um universo muito distante de você. A medida que o filme progride, você nunca perde esse referencial. Mas as cenas vão mostrando, uma a uma, a relação de proteção, embate, empatia e amor que também nos atravessa. E nos atravessam de maneira permanente, nos atravessam com aquele nó na garganta, na boca seca, no incômodo de nossa vida confortável em uma sala refrigerada de cinema ou num sofá cercado de pipoca e bebidinhas da sua sala de estar. Uma constatação: somos iguais na corrida pela felicidade.

    Chega de spoiler. Vá sentir essas coisas ao vivo. E essa semana, um grupo de amigos e coletivos que trabalharam durante o tempo em que o programa “De Braços Abertos”estava ativo, Casa Rodante, da casadalapa, Coletivo Transverso, Paulestinos, A Craco Resiste, Coletivo Resistência, trabalhadores do programa nos hoteis e nas ruas, estiveram junto com a diretora e produtores do filme no coração do fluxo de usuários da chamada Cracolândia para projetar o filme na rua. Ali, na Helvétia, em frente a tenda do programa. Um exército de Brancaleone puxando fios e cabos, ligando o laptop, erguendo a tela, criando um universo mágico onde a mágica é sobreviver.

    Hoje vai ter cinema! Essa foi a chamada. Em meio ao movimento para lá e para cá, comum do fluxo, alguns passavam, olhavam e sentavam no asfalto para ver do que se tratava. Eles mesmo limparam a área, nos deram proteção, nos ajudaram a montar tudo. E aí, começa a aventura. O silêncio das salas de cinemas substituidas por gritos, risadas, dedos apontando, nomes sendo ovacionados, lembranças de tempos em que muitos podiam ter um teto, uma casa, uma cama, um banho diário. E nesse ver o outro, perceber que muitos continuam por ali, algumas personagens ali com a gente, chorando em suas cenas mais fortes, rindo de outras mais engraçadas, mas ali, sempre ali, sem uma possibilidade urgente de mudança em seu destino. Mas também perceber que, sim, várias histórias enfrentaram as estatísticas. Pais que retomaram suas relações com filhos e parentes, pessoas que tiveram tentativas reais de procurar novos caminhos, outras que, vencendo o vício, tentavam ajudar outros a conseguir o mesmo. E mais que tudo, compreender que somos todos personagens de uma cidade à procura de alegria, compreensão, um pequeno toque de amor e de felicidade.

    Pelo olhar da diretora, que também é antropóloga, Diz a Ela Que Me Viu Chorar é um filme sobre amor em tempos de crack. O longa, um documentário de observação que se aproxima da ficção, narra a vida dos moradores de um hotel social prestes a ser extinto no centro de São Paulo. Entre escadas circulares, casas decoradas, viagens de elevador e ao som romântico das músicas do rádio, o longa acompanha histórias de amor, dor e perda.

    Nesse filme eu assumo o desafio de fazer cinema com os personagens e não sobre eles. É um cinema que tem a ver com a intimidade, com consentimento, com chegar perto, compartilhar tempo, descobrir afetos e aprender sobre a condição humana. Tem a ver com construir um encontro com pessoas em extrema vulnerabilidade social que não está mobilizado pelo medo, pela moral ou pela discriminação. É uma experiência que se estabelece na contramão do senso comum preconceituoso, no qual usuários de crack são conhecidos como zumbis. O que me mobiliza é cruzar distâncias geográficas, sociais e subjetivas na direção da empatia e do amor”, comenta a diretora Maíra Bühler.

    O longa teve sua estreia mundial no True/False Film Festival e participou dos festivais, Sheffield Doc Fest 2019, 37º Festival Cinematográfico Internacional Del Uruguay, sendo eleito Melhor Filme pela Associação de Críticos de Cinema do Uruguai, e do Cinéma du Réel, na França, no qual ganhou o prêmio The Library Award. Neste ano, o filme participou da seleção do Festival 8º Olhar de Cinema, conquistando o prêmio Olhar de melhor filme da competição internacional, de acordo com a revista francesa Cahiers du Cinéma o Olhar de Cinema é dos melhores festivais de cinema atualmente do Brasil.

    O filme acaba de participar da 43ª Mostra Internacional de Cinema e é o lançamento de novembro da Sessão Vitrine no dia 14 de novembro, quinta-feira, nos cinemas e plataformas de TVOD. Produzido e ambientado em São Paulo, o documentário estreia em diversas cidades e estados.

    confira o trailer: https://www.youtube.com/watch?v=SPwDTg_pYvo

    Texto e fotos da projeção: Sato do Brasil

    Fotos do filme: frames retirados do filme.

  • De braços abertos, Lancetti!

    De braços abertos, Lancetti!

    Outro dia voltei a andar pelas ruas da Luz. Sozinho, hora do almoço. O sol gritava e lá no fundo, aquelas nuvens temerosas de tempestade. Nossa, o cheiro, os barulhos, os gritos, os latidos. Tudo continuava igual. E algo me deixava tranquilo. Aquele lugar, quem diria, me acalmou o medo da chuva. Passei no bar do seu Fernando, que ainda cuidava do nosso vaso-horta. Olhei para aqueles pinduricalhos que enchiam a vista. Tudo era familiar. Parei em frente ao paredão que criamos nos muros da Michelin. As fotos do Zeca, os microrroteiros da Laura, os lambes dos Paulestinos e do Coletivo Transverso, a frase do Julinho. Tudo lá.

    Durante 2 anos, a casadalapa, coletivo que faço parte, participou ativamente do Programa De Braços Abertos, da Prefeitura da Cidade de São Paulo. Atuamos em conjunto com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, num projeto único, um projeto piloto de convivência e vizinhança na região da Cracolândia, bairro da Luz. A Casa Rodante, nossa casinha.

    Eu não participava do dia-a-dia do projeto, mas sempre estava lá. Cinema, teatro de sombras, sessão de fotos, Sarau da Pedra, mutirão, Blocolândia, brincadeiras, grafites, música, pinturas, vasos e hortas. Vivi tudo isso. E o pouco que vivi, mudou minha vida. Mudou a forma de ver o mundo. Mudou o que quero verdadeiramente da vida. Tudo mudou.

    As palavras são redução de danos. Viver do melhor jeito que se pode, com dignidade, trabalho, Cidadania. Não dar as costas para o monstro. Enfrentá-lo, contorná-lo, controlá-lo. Viver junto com o monstro. E vencê-lo em cada batalha diária, em cada hora silenciosa, em cada por do sol. Conheci muitas histórias de enciclopédia. Vitórias, derrotas, memórias, conquistas. Conheci Badarós, a quem considero um parça de verdade. Um artista e ser humano incomum, que relaçou sua identidade e sua história. Entendi o que pode representar um convite familiar para um almoço esquecido de década. Um reencontro com a lembrança.

    Hoje, chorei. Não era meu amigo, não jantei seus perus de natal, não participava de suas festas. Apenas o respeitava. Cada vez mais. Cada dia na Casa Rodante me fazia acreditar que aquele senhor forte, brabo, era um visionário. Não um visionário da ciência ou da tecnologia, um visionário de cidade. Um visionário da convivência humana. Conheci Lancetti em encontros de avaliação do projeto. Perguntei muito, ouvi mais, mas sempre foi pouco. Um certo mau humor típico dos visionários me fez ser econômico nos nossos encontros. Como somos bobocas frente à um universo que se abre em portais temporais, logo na cadeira ao lado. Mas a gente sempre acha que teremos mais uma chance. Por isso continuo chorando.

    Lancetti era um personagem de batalhas heroicas de quadrinhos perdidos em uma pequena loja das periferias de Buenos Aires. Como Lancelot arrancando espadas de pedras ou como quixote a esmurrar moinhos de vento. Esse era o cara, que conhecemos em alguns momentos do nosso projeto Casa Rodante.

    Lancetti criou a pedra fundamental do De Braços Abertos. Pedra sobre pedra, a convivência. E essa palavra nos atravessou todo santo dia que estávamos nas esquinas da Luz. E me atravessa todos os dias desde então, seja acompanhando a linha de frente em alguma ocupação de moradia, seja mirando minha câmera nas atrocidades policiais, seja colando imagens vizinhas nas paredes silenciosas da cidade.

    Choro, porque talvez estejamos vivendo dois crepúsculos de dignidade e humanidade. Lancetti fechou seus olhos definitivamente hoje à tarde. E o programa De Braços Abertos sofre a indiferença e criminalização da nova velha Prefeitura. Choro, porra. Porque eu vislumbrei uma bela cidade, um futuro do presente, uma bela vizinhança, sem preconceitos, diversa e amorosa. Uma cidade de braços abertos.