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  • Doar a vida na luta pela terra: causa justa!

    Doar a vida na luta pela terra: causa justa!

    Dia 24 de outubro de 2020, no interior do Paraná, no Assentamento Ireno Alves dos Santos, no município de Rio Bonito do Iguaçu, Ênio Pasqualin, dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná, após ser sequestrado, foi assassinado a tiros. Mais um mártir da luta pela terra no Brasil. “Por causa de um pouco de terra, por uma fatia de pão, mataram mais um irmão…”.

    Por Gilvander Moreira*


    O latifúndio e o agronegócio matam, mas venceremos. Nosso abraço solidário à família de Ênio e ao MST. O sangue de Ênio continuará correndo em nossas artérias. Honraremos sua/nossa luta justa e necessária. A história demonstra que quanto mais repressão, mais a luta pela socialização da terra cresce. Eis um exemplo a seguir.

    Geralda Magela da Fonseca, carinhosamente chamada Irmã Geraldinha, das Irmãs Dominicanas, foi ameaçada de morte inúmeras vezes durante vários anos por causa da luta pela terra no município de Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, em Minas Gerais. Quando identificadas, as ameaças eram sempre vindas de pessoas ligadas aos latifundiários do município. Em um único dia, ela chegou a receber três telefonemas no seu celular, de números não identificados. Depois as ameaças eram ouvidas por companheiros/as do acampamento ou por amigos/as na cidade de Salto da Divisa. No Acampamento Dom Luciano, do MST[1], Irmã Geraldinha tinha seu barraco de madeira e palha. Ela teve que passar a dormir em barracos diferentes a cada noite no acampamento para não ser pega de surpresa por jagunços. Companheiros/as da comissão de segurança do acampamento Dom Luciano Mendes conseguiram livrar a irmã Geraldinha de três emboscadas ao descobrir que ela estava sendo esperada em tocaia. Avisada, ela mudou o horário de passar no local e passou sob escolta dos companheiros.

    Em outra tentativa, quatro pessoas em automóvel cor preta, dia 29 de outubro de 2007, foram vistas próximas ao acampamento procurando por irmã Geraldinha e no dia seguinte, na cidade de Salto da Divisa, alguém em um automóvel cor preta procurava por ela.[2] Em uma das ameaças, a mensagem era: “Você vai parar de apoiar o MST e essa luta quando acontecer com você o que aconteceu com a irmã Dorothy Stang”.[3] Após visita ao Acampamento Dom Luciano, dia 17 de setembro de 2009, uma comissão de representantes da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República expediu um Parecer demonstrando a gravidade do conflito agrário instalado em Salto da Divisa e também a gravidade das ameaças à Irmã Geraldinha e a outros membros do Acampamento.[4] No Parecer se afirma: “É inconteste o fato de que tais violações têm sido causadas por fazendeiros da região e por policiais civis e militares, sendo que todas elas são decorrentes das atividades em defesa dos direitos humanos realizadas pela Irmã Geraldinha e por membros do Acampamento Dom Luciano. Faz-se necessário, ainda, que sejam feitas articulações com autoridades públicas estaduais e locais no sentido de que se tomem as providências legais para que as causas das ameaças sejam resolvidas pelos órgãos competentes” (MANIFESTO DA CPT/MG, 30/10/2009).[5]

    Irmã Geraldinha, mesmo após visitar sua mãe e saber que a notícia das ameaças de morte já tinham chegado a ela e aos seus 15 irmãos, reafirma sempre: “Estou disposta, sim, a entregar minha vida por essa causa justa dos movimentos populares se necessário for, se tiver que ser, para que o povo conquiste a terra e para que a reforma agrária aconteça no nosso país, pois sem a distribuição das terras devolutas e dos latifúndios improdutivos que não cumprem sua função social não haverá justiça, nem vida e nem paz na sociedade. É claro que não vou entregar de bobeira minha vida. Vamos tomar as precauções necessárias, mas estou disposta, sim, a entregar minha vida para que a luta pela terra possa continuar” (Irmã Geraldinha à TVC/BH no Programa Inconfidências Mineiras).[6]

    Orozimbo da Cunha Peixoto, o co­ronel Zimbu, avô do prefeito Ronaldo Cunha Peixoto, tinha vários jagunços para eliminar quem o incomodava. Uma testemunha que vive na região há várias décadas, que não aceita se revelar por temer ser assassinada, afirma: “Essas fazendas aqui do Baixo Jequitinhonha foram tomadas na marra. Eles man­davam os pistoleiros para matar os posseiros. Se algum deles vacilasse e não matasse, morria tam­bém”.

    Ênio Pasqualin (quinto da esquerda para a direita) era uma das lideranças do assentamento Ireno Alves dos Santos – Arquivo/MST PR

    A entrada do acampamento Dom Luciano Mendes passou a ser controlada por equipe de sentinelas 24 horas por dia, um grupo de mulheres se revezando durante o dia e um grupo de homens durante toda a noite, sempre com alguns foguetes para explodir e chamar todas as famílias em caso de alguma coisa estranha. Uma corrente forte foi colocada na entrada do acampamento para impedir a entrada de automóveis ou motocicletas estranhos, sem autorização. Além da entrada do acampamento, à noite, um grupo de companheiros mantém ronda em todo o acampamento e seu entorno com lanternas. Após cobranças do MST e da CPT[7], o comando da PM em Salto da Divisa foi trocado e uma viatura da PM passou a ir ao acampamento duas ou três vezes por dia. Isso também inibiu os ameaçadores. A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos ameaçados, a Defensoria Pública Estadual e a Defensoria Pública da União, entre outras organizações, contribuíram para que as denúncias e reivindicações das famílias acampadas em Salto da Divisa fossem ouvidas.

    Após ameaças, dia 28 de julho de 2009, quatro pessoas chegaram às proximidades do acampamento em um automóvel e atearam fogo no pasto ao redor do acampamento. O incêndio foi detectado a tempo pelos acampados e não se propagou. Dentro do automóvel, estavam Ilton Ferreira Guimarães, Paulo Roberto Inácio da Silva, seu filho Daniel Salomão Silva e Genilton Menezes Santos, cunhado de José Alziton da Cunha Peixoto, primo do prefeito eleito extemporaneamente em eleição dois dias antes, Ronaldo Athayde da Cunha Peixoto, e presidente da Fundação Tinô da Cunha Peixoto na época, que alegava ser proprietária das terras da Fazenda Manga do Gustavo e da Fazenda Monte Cristo. Policiais demoraram a atender ao chamado dos acampados e, pior, ao chegarem ao local do incidente lavraram Boletim de Ocorrência acusando irmã Geraldinha e os acampados de cárcere privado dos quatro agressores que estavam no automóvel. Irmã Geraldinha teve que viajar até a Cidade de Jacinto – cidade vizinha – para, na delegacia, lavrar um Boletim de Ocorrência relatando os fatos verdadeiros sobre a tentativa de incendiar o acampamento.

    Para inibir as investidas dos latifundiários e jagunços ameaçando irmã Geraldinha e outras lideranças do Acampamento Dom Luciano Mendes organizamos uma significativa Rede de Apoio, inclusive, internacional. O bispo Dom Tomás Balduíno, fundador e presidente honorário da CPT por muitos anos, visitou o acampamento e, ao lado do bispo da Diocese de Almenara, na época, Dom Hugo Maria Van Steekelenburg, e de outras freiras e freis, fez missão na cidade de Salto da Divisa hipotecando irrestrito apoio à causa da luta pela terra. Isso contribuiu para frear a ira assassina contra irmã Geraldinha.

    Com a postura aguerrida de Irmã Geraldinha de não arredar o pé da luta, mesmo sob ameaças de morte, a luta cresceu e hoje, em Salto da Divisa, MG, já foram conquistados dois assentamentos – Assentamento Dom Luciano Mendes e Assentamento Irmã Geraldinha – e a Comunidade Quilombola Braço Forte. Enfim, eis um sinal de que as ameaças e os assassinatos não barram a luta, ao contrário, fazem a luta se multiplicar. Se fazem sexta-feira da paixão, façamos domingos de ressurreição com terra partilhada e socializada, convictos de que o sangue dos/as mártires e o suor da luta fecundam o chão… Porvir de ressurreição!

    27/10/2020.

    (*) Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Live Campanha pelo DESPEJO ZERO: pelo direito à vida. Despejar na pandemia é matar, é cruel. 05/8/20

    2 – “A VALE preparou uma armadilha para matar o povo de Brumadinho, MG.” Justiça! Vídeo 7 – 13/12/2019

    3 – VALE e Estado mataram o rio Paraopeba, peixes e pescadores na miséria. Vídeo 1. 19/4/2019

    https://www.youtube.com/watch?v=05SJrl6DAH8

    4 – Dona Zinha, da Ocupação Vitória/Izidora/BH: “despejo matará todos os idosos das Ocupações.” 19/11/2016

    5 – Dia 25 de julho: Dia da/o trabalhador/a rural, Mulher Negra, Pai Nosso dos Mártires/1,6 ano de crime

    6 – Padre Ezequiel Ramin: Mártir da Opção pelos Pobres (Documentário Verbo Filmes). 24/7/2020: 35 anos

    7 – Mártires vivos na IV Romaria das Águas e da Terra da Bacia do ex-rio Doce. Vídeo 5 – 02/6/2019


    [1] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – www.mst.org.br

    [2] Denúncia feita por irmã Geraldinha em Boletins de Ocorrência e a muitas autoridades, inclusive no Programa Inconfidências Mineiras, da TV Comunitária de Belo Horizonte, em 60 minutos de entrevista, dia 09/11/2009,  disponibilizada no You Tube em seis partes. Na 3ª parte está a denúncia das ameaças, acima, descritas. Cf. o link https://www.youtube.com/watch?v=Ek3e-ECzGCQ

    [3] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha no link https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY em 7’08ss

    [4] Cf. a 4a parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha no link https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY

    [5] Cf. http://www.ecodebate.com.br/2009/10/30/manifesto-da-cpt-mg-conflito-agrario-em-salto-da-divisa-vale-do-jequitinhonha-causa-ameacas-de-morte-a-irma-geraldinha/ 

    [6] Cf. a 4a e a 5ª parte do Programa Inconfidências Mineiras na TVC/BH, dia 09/11/2009, com Irmã Geraldinha nos links  https://www.youtube.com/watch?v=PFrQNL9elLY , e https://www.youtube.com/watch?v=UuLxq8v64M4

    [7] Comissão Pastoral da Terra – www.cptnacional.org.br

  • A fogueira do Grande Inquisidor

    A fogueira do Grande Inquisidor

    Ao escrever O Grande Inquisidor, um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance “Os Irmãos Karamazov”, Fiódor Dostoiévski, em 1879, parece que estava revelando a Inquisição em pleno vapor no Brasil, em 2020, sob o arbítrio de muitos Grandes Inquisidores, disfarçados.

    Por Gilvander Moreira[1]


    Lobos em pele de ovelhas, com sede de sangue, continuam atiçando a fogueira da fome, na qual o estômago de mais de 10 milhões de irmãs e irmãos nossos ronca e faz o corpo tremer como se estivesse sendo eletrocutado por fios elétricos de tortura. Mães e avós muitas vezes têm que reprimir as lágrimas para não chorar na presença de filhos/as e netos/as implorando por um pedaço de pão. Centenas de agrotóxicos, que não são defensivos agrícolas, mas produtos tóxicos, injetam arma química no prato do povo brasileiro que, ao comer, está contraindo câncer, obedecendo cegamente os ditames de um mercado idolatrado. Agronegociantes com exagero de agrotóxico mandam para a fogueira do câncer mais de 700 mil pessoas por ano. Por ano, mais de 250 mil pessoas estão sendo mortas na fogueira da inquisição do câncer, epidemia causada principalmente pelo exagero de agrotóxicos e produtos enlatados. “Leite na caixinha é veneno puro”, me disse um trabalhador que trabalhou 18 anos em um laticínio de uma transnacional. Além disso, o agronegócio e seus executivos como Grandes Inquisidores seguem desertificando os territórios e empurrando os camponeses para as periferias das grandes cidades e jogando-os no meio de uma guerra civil não declarada. Agronegócio, um Grande Inquisidor, exterminador do futuro da humanidade.

    O Grande Inquisidor, em outras vestes e em faces metamorfoseadas no Brasil, também está instalado nas grandes mineradoras que como dragão do Apocalipse, de forma cruel e bárbara, seguem planejando e cometendo crimes/tragédias com requintes de crueldade, arrasando territórios, apunhalando as montanhas, exterminando as fontes de água e sacrificando rios e povos. Só em Minas Gerais, com mais de 300 anos de superexploração minerária, as empresas de mineração controlando o Estado deixaram um rastro de milhares de mortos, soterrados vivos ou morrendo um pouco a cada dia de silicose, depressão ou outras várias doenças contraídas em trabalhos extenuantes. Não podemos esquecer que dia 25 de janeiro de 2019, às 12h28, a mineradora Vale, assassina contumaz e reincidente, “sepultou vivos 272 filhas e filhos nossos”, clamam os parentes que sobrevivem vertendo lágrimas. Foi um crime/tragédia da mineradora Vale em conluio com o Estado, em Brumadinho, MG. Esse crime continua e cresce todos os dias. “Todo dia é dia 25” se tornou lema dos milhares de vítimas do Grande Inquisidor também instalado nos grandes projetos de mineração que tritura a mãe terra, superexplora a dignidade da pessoa humana e apunhala mortalmente a dignidade de todos os seres vivos.

    A Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo, da CPT, desde 1997, demonstra que mais de 30 mil trabalhadores continuam anualmente submetidos à situação análoga à de escravidão. O pelourinho, o chicote e o tronco continuam violentando a dignidade humana em monoculturas da cana, do eucalipto, do café, de grandes projetos de mineração, na construção civil, na produção de roupas e calçados, em telemarketing etc.

    Por integrar uma das dez Comissões do CNDH[1] sei que são ameaçados de morte no nosso país milhares de militantes que lutam por justiça social e direitos humanos fundamentais. Perseguir, ameaçar e tentar tirar a paz e o sono de quem luta por justiça social são tarefas macabras cumpridas por jagunços, milícias armadas com a cumplicidade de um Estado que aplica o direito penal máximo para os empobrecidos e o direito civil/empresarial benevolente para as grandes empresas. Desde 1985, a CPT publica anualmente um grande livro intitulado Conflitos no Campo Brasil, que demonstra que nos últimos 46 anos, mais de 3.000 lideranças camponesas foram assassinadas pelo Grande Inquisidor latifúndio-latifundiário-agronegócio de várias formas: por degola, enforcamento, metralhados, fuzilados, em emboscadas, pelas costas, da garupa de um motoqueiro cúmplice etc. E, pior, há impunidade em demasia para os jagunços e principalmente para os mandantes. E há punição em demasia para os pobres, negros e juventude de periferia.

    Precisamos recordar uma característica fundamental dos Evangelhos da Bíblia, principalmente dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas): na primeira parte dos evangelhos sinóticos – 1ª fase da missão de Jesus Cristo -, a característica básica é a SOLIDARIEDADE, com ternura, compaixão e misericórdia. Entretanto, no meio da missão acontece uma “crise galilaica”: Jesus faz análise de conjuntura e descobre que está sendo ingênuo, pois mesmo fazendo os milagres no varejo, via processo de solidariedade, está aumentando o número de famintos, de paralisados, de cegados, de excluídos. Jesus percebe que precisa dar uma guinada no rumo da missão e passar a denunciar os podres poderes da religião, da política e da economia e quem reproduz estes poderes. Por isso, na segunda parte dos evangelhos sinóticos – 2ª fase da missão pública de Jesus -, a característica básica passa a ser LUTA POR JUSTIÇA. Jesus Cristo foi condenado à morte não apenas porque era solidário, mas principalmente porque lutou por justiça e, por isso, incomodou os podres poderes da religião, da política e da economia.

    A lógica de democracia formal e representativa é outro Grande Inquisidor do povo ao vender a ideia mentirosa de que basta votar em eleições com regras que beneficiam “os de cima” para se chegar à democracia real, econômica e social. Cruel ilusão, pois entra eleição e sai eleição e o tal de fulano ainda é pior …

    O sistema capitalista, máquina de moer vidas, é O Grande Inquisidor Mor, pois sequestra a terra no campo e na cidade em propriedade privada capitalista como base para promover o capital superexplorando a dignidade da pessoa humana, da classe trabalhadora e da classe camponesa. A manutenção da latifundiarização no campo brasileiro e da especulação imobiliária nas cidades são bases materiais objetivas – Um Grande Inquisidor Mor – que reproduz a inquisição, a repressão, a violência e o enforcamento do povo cotidianamente, de muitas formas.

    Na sociedade capitalista O Grande Inquisidor inquire, tortura, faz guerra e mata em nome de Deus. Eis um exemplo: um cozinheiro dos freis carmelitas, em Houston, descendente de latino-americanos, foi soldado dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Em julho de 1997, todo piedoso, com camiseta de Nossa Senhora de Guadalupe e escapulário no pescoço, toda vez que me via, pedia para eu o abençoar. Devoto piedoso, um dia me disse: “Na Guerra do Vietnã, eu era soldado paraquedista. A gente pulava do avião e já caía no meio de uma comunidade e eu, com a metralhadora na mão disparava à vontade. Só eu matei mais de 500 vietnamitas”. Quando o cozinheiro piedoso me disse isso, estarrecido, eu perguntei a ele: “Você não se arrepende de ter matado tanta gente?” Ele, altaneiro, me disse: “De jeito nenhum. Estávamos lá no Vietnã em nome de Deus, éramos os defensores de Deus. Guerreávamos contra os comunistas ateus e filhos do demônio.” O cozinheiro piedoso meteu a mão no bolso e me mostrou uma nota de dólar onde estava a inscrição “we trust in God” (Nós acreditamos em Deus). E acrescentou: “Se não fôssemos nós lá na guerra contra os vietnamitas, o demônio teria tomado conta do mundo, pois para eles “a religião é ópio do povo.” Naquele momento, percebi que os capitalistas se dizem pessoas religiosas, mas na prática são grandes inquisidores cotidianamente, abstratamente dizem que acreditam em Deus, na prática são idólatras, pois matam irmãos como Caim.

    Entretanto, a história demonstra que o Grande Inquisidor não tem a última palavra. Os Grandes Inquisidores são jogados na lata de lixo da história e quem faz e entra para a história são os torturados e matados pelo Grande Inquisidor. Nessa linha, o germe da revolução que superará o capitalismo, essa máquina feroz de moer vidas, está inoculado em Assentamentos para milhares de famílias acampadas na luta pela reforma agrária, está nas Comunidades Indígenas, Quilombolas e muitos outros Povos Tradicionais que enfrentam O Grande Inquisidor cotidianamente. Só em Belo Horizonte, nos últimos 13 anos, 30 mil famílias se libertaram da cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor construindo 30 mil casas em 119 ocupações, enfrentando o Tribunal, jagunços, tropa de choque, resistindo a despejos e construindo “debaixo pra cima e de dentro pra fora” uma cidade que caiba todas e todos. Assim como Jesus ressuscitou ao terceiro dia, todos/as que são submetidos a processos inquisitoriais também ressurgem, combatendo o bom combate e construindo esperança e lutas inspiradoras pelo bem comum. Sigamos na luta como discípulos/as de todos/as que foram vítimas do Grande Inquisidor, seja no poder religioso, político ou econômico

    22/10/2020

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

    [2] Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

    Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Francisco de Assis nos inspira e nos interpela – Por frei Gilvander – 20/10/2020

    2 – Soberania Alimentar com Vandana Shiva. Agronegócio e agrotóxicos matam! Dia da alimentação. 16/10/2020

    3 – Dimensão social do Evangelho de Jesus e o lugar social do CEBI: LUTA POR JUSTIÇA. Por Frei Gilvander

    4 – Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear – 05/10/2020

    5 – Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. – 08/9/2020

    6 – Lagoa da Prata/MG: Águas secadas, monocultura e agrotóxicos/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/3a parte/9/18

    7 – Não jogue agrotóxicos na terra/agricultura familiar/agroindústria. Assentamento Padre Jésus. Vídeo 6

    8 – O que as mineradoras estão causando em Minas Gerais? Por Frei Gilvander, em Live, da ADUENF – 23/7/20


  • Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia

    Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia

    Partindo de Belo Horizonte, MG, dia 27 de setembro de 2015, após 27 horas seguidas de viagem de avião, ônibus e automóvel, cheguei a Santa Terezinha, umas das cidadezinhas da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Por lá, durante cinco dias vi e ouvi muita coisa que merece ser partilhada em nome da responsabilidade que temos de honrar o imenso legado espiritual, ético, profético e revolucionário que Dom Pedro Casaldáliga nos deixou. Vi com os meus olhos, com a minha cabeça e com o meu coração.

    Por frei Gilvander Moreira[1]

    Eu já tinha ouvido dizer que a região de São Félix é conhecida como sertão. Vi que é um sertão diferente do mineiro e do nordestino e esta foi uma oportunidade de relembrar que não há sertão, mas sertões e que “os sertanejos são homens fortes”, conforme reconheceu Euclides da Cunha no livro “Os Sertões”.

    O estado do Mato Grosso era mato grosso, mas não é mais, porque “está sendo fritado em pouca gordura”: o estado mato-grossense está sendo despelado, desmatado impiedosamente. Lá, toda a cobertura vegetal que havia sobre a terra, cobrindo-a como a pele, está sendo arrancada com desmatamentos para dar lugar à pecuária e depois para as monoculturas da soja e do milho. O agronegócio vai sendo imposto e com ele resta um rastro de devastação. Nas estradas de chão batido, muitas carretas transitam levando commodities (grãos para exportação e para acumular capital) produzidas em solo que vai se tornando cada vez mais pobre. Nas veredas e no cerrado, ainda existem, é possível ver a presença de muitas árvores de caju, pequi e buriti. “Onde a gente vê reserva florestal é terra indígena. O que não é terra indígena já foi tudo derrubado e transformado em pastagens e depois em lavoura de monocultura. Não sei para que índio precisa de tanta terra,” comentava uma gaúcha no ônibus da empresa Xavante, empresa com nome indígena, mas de propriedade de brancos enriquecidos.

    Meu sangue ferveu de ira ao ouvir um trabalhador negro, no pequeníssimo aeroporto da pequena cidade de Confresa, dizer: “Porcaria de índio.” Ouvi falar que muitos fazendeiros dizem: “Índio bom é índio morto” e que um grande político – coronel moderno – foi aplaudido em praça pública ao dizer: “Índio não precisa de terra, pois não trabalha”. Os mesmos que apunhalam os povos indígenas, a começar pela linguagem preconceituosa, grilando suas terras, são os mesmos que já gritaram muitas vezes: “Fora, dom Pedro Casaldáliga!” “Fora, Prelazia de São Félix!” Um fazendeiro perguntou a um padre recém-chegado para ser missionário na Prelazia: “O senhor é contra ou a favor do progresso?” E ameaçou: “Se for um dos nossos, será bem-vindo! Se não …!”

    Meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das Irmãzinhas de Jesus e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Vi um grande grupo de indígenas delimitando seu território reconquistado, fazendo cerca na divisa com um megalatifúndio. À beira de uma estrada federal ainda sem asfalto e toda esburacada, vi ruínas de um lugarejo que a Força Nacional e o Exército puderam, durante o governo de Dilma Rousseff, devolver o território aos povos indígenas. “Vieram e disseram para as famílias que quem aceitasse sair espontaneamente das terras indígenas ganharia um lote de terra em outra localidade próxima, mas quem não saísse seria expulso após seis meses. Assim aconteceu,” me informou um agente de pastoral.

    Passei ao lado da Fazenda Rio Preto com uma grande fachada e segurança privada na entrada. “Essa fazenda tem 100 mil hectares. O dono cria 200 mil bois aí”, me informaram. Ao lado dessa fazenda está o território do povo indígena Xavante, com 160 mil hectares para 1400 indígenas. A Força Nacional e o Exército estiveram na área em 2012 para desentrusar fazendeiros que grilavam terras indígenas e derrubaram muitas casas de “brancos” que foram construídas na área indígena. Muitas pessoas dizem que os indígenas têm muita terra, mas não acham que 100 mil hectares para um só “branco” seja injustiça agrária e social.

    O agronegócio avança como um tsunami, mas deixa atrás de si um rastro de destruição: áreas devastadas, nascentes exterminadas, terra, ar e águas envenenadas pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e trabalhadores submetidos a situações análogas à de escravidão, isso para citar apenas alguns dos prejuízos causados pelo agronegócio. Foi na Prelazia de São Félix que iniciou a Campanha Permanente contra o Trabalho Escravo, uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai parar nos cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.” A UTI mais próxima está em Cuiabá, MT, ou em Goiânia, GO, distante de 1000 a 1500 Km. Para se tentar salvar alguém em situação grave só por meio de taxi aéreo, que custa cerca de 15 mil reais.

    Acima das coisas que vi com meus olhos, minha cabeça e meu coração, vi a eloquência do testemunho espiritual profético de dom Pedro Casaldáliga, que segue irradiando espiritualidade profética, agora partilhando vida em plenitude, após os últimos anos em que esteve sentado em uma cadeira, ou deitado em uma cama, na companhia do mal de Parkinson???, de três bons samaritanos – padres agostinianos – e de três anjos/as que o acompanhavam diariamente. Vi a paixão, a simplicidade, a humildade e a profecia presente em toda a equipe de agentes de pastoral da Prelazia de São Félix: leigos/as, freiras, freis, padres e o bispo dom Adriano Ciocca, todos/as missionários/as, de mãos dadas tocando em frente o legado espiritual e profético da Prelazia e abraçando os novos/velhos e grandes desafios da hora presente.  Obrigado a todos/as que me acolheram na fraternidade e por tudo o que me ensinaram em poucos dias de intensa convivência em retiro na Casa de Pastoral de Santa Terezinha, às margens do rio Araguaia, onde tive a oportunidade de tomar um banho e contemplar o irmão boto e toda a sacralidade do ambiente. Não foi por acaso que “Trovas ao Cristo Libertador”, escrito por dom Pedro Casaldáliga (e musicado por Cirineu Kuhn), tornou-se o hino da Prelazia São Félix do Araguaia: naquele lugar sagrado, da fé no Deus da vida, da espiritualidade libertadora, da luta e da esperança ativa germina, brota e floresce ressurreição!

    “Trovas ao Cristo Libertador”
    Dom Pedro Casaldáliga

    Olhar ressuscitado, todo o teu Corpo
    acompanhando a marcha lenta do povo.

    Todo Tu debruçado, como um caminho,
    traçando em tua Carne nosso destino.
    No azul do Araguaia os roxos medos,
    no sol de tua glória nossos direitos.
    Sangue vivo no verde das índias matas,
    faixas gritando viva a Esperança!

    Procissão de oprimidos, rezando lutas,
    e Tu, Círio de Páscoa, flor de aleluias.
    Páscoa nossa imolado, em Ti enxertamos,
    como Tu perseguidos, por Ti triunfamos.
    Libertador vencido, vencendo tudo,
    companheiro dos pobres, donos do mundo.

    Guerrilheiro do Reino, maior guerrilha,
    Tua cruz empunhamos em prol da vida.
    Nossos mortos retornam, com nossos passos,
    em teu Corpo vivente ressuscitados.
    Em Ti, cabeça nossa, Libertador,
    libertos, libertando, erguemo-nos.

     ———————–

    Sigamos de cabeça erguida, firmes na luta! Viva a Esperança![2]

    25/8/2020.

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Poema “Trovas ao Cristo Libertador“, Dom Pedro Casaldáliga, hino da Prelazia de São Félix do Araguaia.

    http://gilvander.org.br/site/poema-trovas-ao-cristo-libertador-de-dom-pedro-casaldaliga-musicado-por-cirineu-kuhn-hino-da-prelazia-sao-felix-do-araguaia/

    2 – PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA – Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga – 08/8/2020

    3 – Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga: místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020

    4 – “Dom Pedro Casaldáliga vive para sempre em nós” (Padre Júlio Lancellotti) – Pai Nosso dos Mártires.

    5 – Dom Pedro Casaldáliga, o Profeta que viveu e lutou entre nós, faz sua Páscoa definitiva – 08/8/2020

    6 – Missão de Dom Pedro Casaldáliga em Documentário da Verbo Filmes – 2011: Espiritualidade libertadora


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra), do CEBI/MG (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos Sociais de luta por terra e moradia; e-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br  – www.twitter.com/gilvanderluis  – Facebook: Gilvander Moreira

    [2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

    Na foto de cima, Dom Adriano Ciocca e Dom Pedro Casaldáliga

  • Injustiça social e idolatria religiosa, NÃO!

    Injustiça social e idolatria religiosa, NÃO!

     

     

    Por Gilvander Moreira[1]

     

    Ao celebrarmos os 45 anos da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – 1975 a 2020 – importante se faz recordarmos os ensinamentos e a atuação dos profetas Amós, Oseias e Isaías. Na Bíblia, no livro de Amós, nos capítulos 1 a 9, de meados do século VIII antes da era cristã, encontramos literatura de protesto e resistência. “O acento principal da mensagem de Amós está na crítica social e no anúncio de um juízo iminente de Deus na história, bem como na tênue, mas clara exigência do restabelecimento da justiça como alicerce das relações sociais” (REIMER, 2000, p. 171). A profecia de Amós constitui-se como uma exigência veemente pelo restabelecimento da justiça social[2].

    Segundo Haroldo Reimer, no artigo “Amós – profeta de juízo e justiça”, a profecia de Amós é: “Uma crítica veemente e contundente aos agentes e mecanismos de exploração e opressão dos camponeses empobrecidos sob o governo expansionista de Jeroboão II e sob as condições de um incremento de relações de empréstimos e dívidas entre pessoas do próprio povo no século VIII a.C.” (REIMER, 2000, 188).

    Em outros termos, o profeta Amós não apenas critica pessoas exploradoras, mas também questiona enfaticamente o sistema monárquico que as gera. Não somente as mazelas pessoais estão na mira de Amós, um camponês que entrou para a história como profeta da luta por justiça social. Ele compreendia as causas profundas da injustiça e tinha consciência de que o problema fundamental da iniquidade reinante na sociedade não é fruto somente de fraquezas pessoais, mas tem como causa matriz estruturas sócio-econômico-político-culturais e religiosas que engrenam uma máquina de moer pessoas. Na mira do profeta Amós também estão relações comerciais que causam às pessoas endividamento, escravizam e aprisionam  retirando-lhes a liberdade e o direito de serem pessoas humanas.

    A profecia de Oseias aconteceu provavelmente entre os anos 755 a 721 antes da era cristã, no reino do Norte, na Palestina/Israel, durante os últimos anos do reinado do rei Jeroboão II  e de Oseias, filho de Ela. No primeiro capítulo do livro de Oseias está uma forte crítica contra a dinastia de Jeú. Os capítulos 2 e 3 de Oseias refletem certa prosperidade de produção no campo e tranquilidade política, marcas do reinado de Jeroboão II. Do capítulo 5 em diante, estão reflexos da crise que se instaura na Palestina/Israel, devido a pressões externas vindas do Império Assírio. Com a chamada guerra siro-efraimita e a subjugação de parte do território pelo rei da Assíria Teglat-Falasar III, por volta do ano 733 antes da era cristã, aumenta significativamente o clima de violência e insegurança interna.

    Os capítulos finais do livro de Oseias testemunham os acontecimentos em torno do ano 724 antes da era cristã, data do cerco à cidade de Samaria e da destruição do reino do Norte com o consequente exílio do povo para a Assíria, potência imperialista da época. O profeta Oseias identificava os detentores do poder religioso como causadores de violência social. Segundo a profecia de Oseias, os sacerdotes são os grandes culpados pela violência reinante na sociedade. O povo percebe que os sacerdotes haviam se transformado em assassinos e se comportavam como malfeitores: “Como bandidos na emboscada, um bando de sacerdotes assassinam pelo caminho de Siquém e cometem horrores” (Oseias 6,9). Com a participação do profeta Oseias, o povo percebe a ilusão que é acreditar no Império Assírio como caminho de salvação: “Não é a Assíria que nos salvará, não montaremos mais cavalos, jamais chamaremos novamente de nosso Deus a um objeto feito por nossas próprias mãos, pois é em ti, só junto de ti, que o órfão encontra compaixão” (Oseias 14,4). “Não montar mais cavalos” significa não acreditar mais em militarismo e nem em repressão como solução para problemas e injustiças sociais.

    Guiado pelo profeta Oseias, o povo se desvencilha de idolatrias que na prática resultavam em opressão e superexploração, inclusive dos mais vulneráveis, entre eles, os órfãos. O povo cai na real e consegue ver que os reis e príncipes são insensatos, mentirosos e se matam por disputas internas (cf. Oseias 7,1-7) e por disputas políticas externas (cf. Oseias 5,1-15; 7,8-16; 8,8-14; 10,6-15). Diante dessa dramática máfia religiosa e política, o povo, passando por um processo sofrido de conversão, conclui, voltando-se para o Deus Javé: “… é em Ti que o órfão encontra misericórdia” (Oseias 14,4). A hipocrisia e o cinismo dos sacerdotes na condução do culto fazem o povo descobrir que o caminho para a libertação não passa pelos sacrifícios, mas pela misericórdia. A conclusão é: Misericórdia, sim; sacrifício, não! (Oseias 6,6).

    Atuando na Palestina por volta do ano 730 antes da era cristã, o profeta Isaías criticou o latifúndio e a grilagem de terras, porque na sua época, tempo de sistema político monárquico, os latifundiários estavam solapando o projeto comunitário das tribos autônomas sem poder centralizado. No livro de Isaías a grilagem de terras é denunciada com veemência: “Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos moradores da terra” (Isaías 5,8). E Isaías denunciou, também, as autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário: “Ai daqueles que fazem decretos iníquos e daqueles que escrevem apressadamente sentenças de opressão, para negar a justiça ao fraco e fraudar o direito dos pobres do meu povo, para fazer das viúvas a sua presa e saquear os órfãos” (Isaías 10,1-2)! Isaías anuncia, ainda, uma esperança consistente: “O fruto da justiça será a paz” (Isaías 32,17). Ou seja, para o profeta Isaías é impossível conquistar paz verdadeira sem a justiça.

    Como resultado desta breve análise, podemos concluir que os profetas Amós, Oseias e Isaías, irmanados, proclamam: injustiça social e idolatria religiosa, NÃO!

     

    Referências:

    REIMER, Haroldo. Amós – profeta de juízo e justiça. In: Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras. RIBLA 35-36, p. 171-190. Petrópolis: Vozes e São Leopoldo: Sinodal 2000.

    Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima, pois são profetas Amós, Oseias e Isaías que viveram ou vivem no nosso meio atualmente.

    1 – Padre Antônio Amorst, 85 anos, missionário em Gov. Valadares e Tumiritinga, MG. Parte I

    https://www.youtube.com/watch?v=tLhCJRJnams

    2 – Padre Antônio Amorst, 85 anos, profeta de Deus no Vale do Rio Doce, MG. Parte II – 11/9/2019.

    https://www.youtube.com/watch?v=DRXO0Ub2KzQ

    3 – Padre Antônio Amorst foi imprescindível na CPT/MG na luta pela terra no Vale do Rio Doce. 11/9/2019

    https://www.youtube.com/watch?v=tn2XPbvkT4Q

    4 – Tributo ao Padre Ernesto: Um Profeta no meio do Povo – 27/7/2019

    https://www.youtube.com/watch?v=ad_a6erPFtk

    5 – Alvimar da CPT por Luciano di Fanti: “profeta, homem de Deus, sábio, palavra de peso. 22/08/16

    https://www.youtube.com/watch?v=1EbbtMoIUbQ

    6 – Alvimar Ribeiro dos Santos, “Alvimar da CPT”: pai/mestre/profeta na luta pela terra em MG. 1a parte.

    https://www.youtube.com/watch?v=XKTgxomg-vI

    7 – Alvimar Ribeiro dos Santos, “Alvimar da CPT”: pai/mestre/profeta na luta pela terra. 2a parte. 07/16

    https://www.youtube.com/watch?v=2UyHNT656e8

    8 – Alvimar Ribeiro dos Santos, “Alvimar da CPT”: pai/mestre/profeta na luta pela terra. 3a parte.

    https://www.youtube.com/watch?v=A3OfWLtL204

    9 – Alvimar Ribeiro dos Santos, “Alvimar da CPT”: pai/mestre/profeta na luta pela terra. 4a parte.

    https://www.youtube.com/watch?v=M2jYDPcWqrA

     

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

    [2] Cf. também SICRE, José Luís. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulus, 1990; REIMER, Haroldo. Leis de mercado e direito dos pobres na Bíblia Hebraica. In: Estudos Bíblicos, n. 69, p. 9-18. Petrópolis, Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2001.