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Tag: COVID19

  • Brasileirão da Morte começou nesse fim de semana

    Brasileirão da Morte começou nesse fim de semana

    Brasileirão. Sei que vou levar porrada por aqui também. Vou ter que ler sobre a “tal cachaça do torcedor”, utilizada fora de contexto. Paulinho Nogueira, o músico, tratava de injustiças sociais, não de epidemia.

    Mas é dever do jornalista, ao menos de acordo com o protocolo ético da profissão, avisar a sociedade, mesmo quando tentam ofendê-lo e ridicularizá-lo.

    Brasileirão da Morte
    Foto: Hush Naidoo / Unsplash

    Brasileirão Série A. Goiás (GO) x São Paulo (SP): 10 infectados

    A partida do Brasileirão entre Goiás e São Paulo, esteve por um fio de ocorrer. O SPFC chegou a entrar em campo. O mandante somente conseguiu suspender o jogo duas horas antes de seu início.

    Eram 10 os infectados pelo novo coronavírus no time esmeraldino.

    Como cerca de 250 pessoas são mobilizadas direta ou indiretamente para um jogo desses, todos poderiam ter sido infectados caso o jogo tivesse ocorrido.

    Se pensarmos nas famílias desses profissionais, 1.000 pessoas teriam corrido o risco de contrair a doença.

    Brasileirão Série C. Treze (PB) x Imperatriz (MA): 12 infectados

    Mas não é o único caso. O time do Imperatriz, do Maranhão, da série C do Brasileirão, viajou até a Paraíba com nada menos que 12 infectados. Foi de busão.

    E só descobriu que carregava esse enorme grupo de portadores do vírus quatro horas antes da partida. Ou seja, podem ter espalhado a epidemia pelo caminho. Não fosse a informação urgente, a partida teria sido realizada.

    Brasileirão da Morte
    Foto: Willian Vasconcelos / Unsplash

    Brasileirão Série C. Brusque (SC) x Ypiranga (RS): 5 infectados

    O Ypiranga, do Rio Grande do Sul, foi a Santa Catarina, em outro jogo pela Série C do Brasileirão, com cinco atletas contaminados. A partida ocorreu sem eles, mas com os outros que tiveram contato direto com os infectados. Um absurdo total.

    Brasileirão Série C. Manaus (AM) x Vila Nova (GO): 1 infectado

    O Vila Nova já tinha viajado a Manaus quando descobriu que também tinha um contaminado no grupo. O jogo contra o Manaus, pela Série C, ocorreu normalmente, colocando em risco centenas de pessoas.

    Campeonato alagoano. CSA (AL) x CRB (AL): 8 infectados

    Brasileirão Série B. CSA (AL) x Guarani (SP): ? infectados

    O CSA e o CRB disputaram o título alagoano na quarta-feira. O resultado, no entanto, somente saiu dois dias depois. Nada menos que oito jogadores do CSA estavam infectados.

    Os jogadores não-positivos, mas que estiveram em contato próximo com eles, enfrentaram o Guarani pela Série B do Brasileirão, no fim de semana.

    Brasileirão da Morte
    Foto: Pedro Menezes / Unsplash

    Roleta russa em campo

    Contra fatos, não há argumentos. O entusiasmo e o endosso a esse futebol em tempos de pandemia revela irresponsabilidade de autoridades e leviandade dos aficcionados.

    Não apenas naturaliza a tragédia, encampando a tese da gripezinha, como efetivamente coloca em risco a saúde dos profissionais e da saúde.

    O futebol deveria ser rito civilizatório e não roleta russa da barbárie.

    Brasileirão da Morte
    Foto: Gustavo Ferreira / Unsplash

    Site da CBF: https://www.cbf.com.br/

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    Texto: Walter Falceta/Democracia Corinthiana

  • Marmitas orgânicas da agricultura familiar beneficiam moradores em situação de rua

    Marmitas orgânicas da agricultura familiar beneficiam moradores em situação de rua

    Uma rede de voluntários e militantes que atuam da produção ao preparo de alimentos orgânicos, saudáveis e da agricultura familiar tem feito a diferença na vida e na saúde de moradores em situação de rua e em condição de vulnerabilidade da cidade de São Paulo, por meio do projeto Lute como quem cuida. Elaborado e colocado em prática de maneira coletiva pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) de São Paulo, o projeto distribui aproximadamente 300 marmitas todos os dias há mais de três meses.

    Por Nara Lacerda, do Brasil de Fato

    A ideia é criar uma rede de solidariedade contínua, que atenda essas populações em um momento delicado, com a crise causada pelo coronavírus. A falta de recursos e trabalho pode agravar ainda mais a insegurança alimentar e nutricional. No Brasil, o acesso a alimentos cultivados sem veneno ainda é limitado. Em parte, pelo preço que as grandes redes varejistas praticam, mas também pela falta de incentivo à agricultura familiar.

    A dirigente do MST no estado de São Paulo Daiane Ramos explica que a campanha teve início no âmbito da Brigada Estadual de Solidariedade Zilda Camargo, formada por militantes de diversos municípios, e cresceu com foco na coletividade. Segundo ela, a intenção é chegar à doação de 30 mil marmitas entre julho e agosto. 

    CLIQUE AQUI PARA CONTRIBUIR COM A CAMPANHA

    “Essa brigada está desde o dia 20 de abril participando desse trabalho intenso de solidariedade para a Rede Rua e o Prédio dos Imigrantes (que abriga pessoas de outros países em situação de vulnerabilidade). No fim ela se estendeu, na parceria com o MSTC. As organizações se unem por uma causa única, de trazer esse alimento saudável e orgânico para essas pessoas mais vulneráveis. Infelizmente, com a covid, vem aumentando esse número.” 

    Mais que a simples doação dos produtos, o projeto tem cuidado especial com a garantia de que essas pessoas vão receber o melhor da produção orgânica do país. Todo o preparo – da higienização ao embalo – segue normas sanitárias criteriosas, que ficaram ainda mais rígidas com a pandemia. O cardápio é definido entre os militantes, mas leva em consideração também as sugestões de quem recebe as marmitas.

    Moradores de rua do centro de São Paulo recebem os alimentos. / Arquivo Brigada Zilda Camargo Ramos

    Os mais de 200 quilos semanais de arroz, por exemplo, vêm de assentamentos do Rio Grande do Sul, que hoje são os maiores produtores do grão na América Latina. A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema (Região Metropolitana de São Paulo), fornece as hortaliças e o pão. Assentamentos e acampamentos de outros municípios enviam em média por semana 90 quilos de feijão, 30 quilos de macarrão, 230 quilos de carne, 120 dúzias de ovos e 150 quilos de legumes.

    O trabalho é totalmente coletivo e dividido. Cada voluntário tem a oportunidade de passar por diferentes etapas do processo, para ampliação da experiência e dos laços criados entre quem está na colheita e atrás do fogão e as pessoas que recebem os alimentos. Oscar do Nascimento Teles, militante do MST e morador do Assentamento Dom Tomás Balduíno, no Pontal do Paranapanema (SP), faz parte dessa rede. Ele relata o cuidado existente em todo o processo. 

    “Os companheiros estão fazendo isso com muito amor e carinho, porque a gente viu a realidade na rua de quem tá recebendo o alimento. Você ver as pessoas na fila, erguendo as mãos para pegar aquela comida. Isso fortalece demais nosso trabalho na cozinha, em fazer isso com amor, carinho e preparar os alimentos com todo um protocolo de higiene e cuidado. Nessa grandeza que é São Paulo, é um pouquinho que a gente está fazendo, mas de grande proporção. A gente sabe da importância”, finaliza.

    Pela “manutenção imediata da vida”, a iniciativa “Lute como quem cuida” convida a sociedade civil para também colaborar. As doações podem ser realizadas por meio do site da campanha na internet

    Saiba mais: Quem é Carmen Silva, a líder dos sem-teto que a (in)Justiça quer prender
     

  • Protesto na Brasilândia cobra plano emergencial contra mortes por Covid-19

    Protesto na Brasilândia cobra plano emergencial contra mortes por Covid-19

    O número de óbitos por Covid-19 na Brasilândia, na zona norte, chega a ser seis vezes maior na comparação com os bairros mais ricos da capital paulista. Dados da própria prefeitura de São Paulo apontam o abandono da região pelo poder público. A Brasilândia registra 305 mortes até 29 de junho. A vizinha Freguesia do Ó soma 193 mortes, chegando a quase 500 vidas perdidas na região.

    Para tentar impedir mais mortes e cobrar um plano emergencial, a Rede Brasilândia Solidária organizou mais um ato de protesto na manhã deste neste Sábado. Moradores do distrito sairam em caminhada do Hospital Penteado até o Hospital Municipal da Brasilândia, que mesmo diante desta pandemia não funciona com a totalidade de leitos para atender a população.

    Protesto na Brasilândia pede Plano emergencial de saúde

    Protesto na Brasilândia pede Plano emergencial de saúde

    Para a Rede Brasilândia Solidária, o Plano São Paulo do governo do estado comete um grave erro em classificar a capital paulista na fase amarela, com relaxamento da quarentena e abertura da economia, enquanto a periferia ainda não saiu do vermelho por falta de ações locais, com atenção direcionada pelo poder público para regiões mais carentes como a Brasilândia.

    Entre as reivindicações do protesto, estão:

    – Abertura Total do Hospital da Brasilândia (100% funcionando).
    – Testagem em massa com rastreamento dos casos de Covid-19.
    –  Isolamento garantido pelo Estado.

     

     

     

     

     

     

    Juçara Terezinha, integrante Rede Brasilândia Solidária, fala sobre as reivindicações:

     

    Medidas de segurança durante a manifestação:
    Integrantes da Rede Brasilândia Solidária distribuíram máscaras e álcool em gel durante o protesto, além de orientar o distanciamento entre as pessoas, seguindo todos os protocolos de segurança contra o contágio do coronavírus.

    Protesto na Brasilândia pede Plano emergencial de saúde

    Fotos: Paulo Pepe/Observatório Metrópoles

     

    Conheça mais sobre a Brasilândia Solidária:

    https://www.facebook.com/brasilandiasolidaria/

  • Queremos ir pra Cuba!

    Queremos ir pra Cuba!

    Frequentemente os antibolsonaristas escutam um “Vai pra Cubaaaa!”, quando se manifestam contra os desmando e atrocidades cometidas pelo governo Bolsonaro.  Se soubessem a quantas anda a proliferação do coronavírus em Cuba, certamente, até eles, iriam querer estar lá. Como quase não se fala da ilha neste momento tão desafiante para os governos e para a população no mundo todo, devemos compreender tal ignorância.

    Por Silmara Conchão* e Eduardo Magalhães Rodrigues**, especial para os Jornalistas Livres

    Matéria do jornal O Globo de 13 de maio de 2020, afirma, logo no título, que os casos de coronavírus diminuem, mas mesmo assim o governo cubano intensifica testagem da população. O texto conta que, naquele momento, o país registrava menos de 20 casos por dia. Um mês antes, em abril, eram 50 novos casos registrados diariamente. Em 20 de maio, o Uol divulgou que haviam apenas 13 novos casos, e  uma semana completa sem nenhuma morte. Desde o início do surto, a ilha fechou suas fronteiras para quem não mora no país e obrigou o uso de máscaras fora de casa. Ou seja, estão hoje muito longe da média de 50 casos registrados no início da pandemia.

    Segundo o presidente cubano, Miguel Diaz-Canel, o desafio agora está nas grandes filas que se formam nas lojas devido à falta de itens de necessidade básica provocada pelos 62 anos de embargo econômico dos Estados Unidos contra Cuba. Buscando solucionar esse problema, o governo está se organizando para abastecer a população e entregar alimentos e outros gêneros essenciais nas próprias residências.

    Medidas tomadas combinaram ações como o fechamento das fronteiras (desde 2 de abril), supressão de todos os transportes públicos nas cidades, vilas e entre as províncias, fechamento de bares, restaurantes e boates, aumento da ação policial nas ruas para evitar as violações das regras, e uma bateria de medidas sanitárias preventivas com investigações maciças, casa por casa, para detectar os doentes – além das políticas de autocontrole e conscientização do povo para que fique em casa e saia apenas para o estritamente necessário.

    A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 1 médico para cada mil habitantes, os Estados Unidos, sem sistema público, têm 2,59. Cuba tem nove. São 1.800 especialistas em terapia intensiva e 1.200 epidemiologistas, além de 85 mil enfermeiros e 58 mil técnicos. Cerca de 150 hospitais e 450 policlínicas fazem parte da rede de saúde pública e gratuita, embora  a maior força de Cuba nesta crise seja o serviço de atenção primária extenso e coeso, bem como, sua capacidade de controle social, o que permite chegar praticamente a todas as residências na busca de possíveis doentes.

    Em 12 de junho, o site Brasil de Fato nos conta que o país registra baixo número de mortes e de novas infecções, mas ainda não definiu data para retomada das atividades. Ou seja, três meses após os primeiros registros do coronavírus em Cuba, a pandemia é controlada com políticas detalhadas e população empenhada em cumprir medidas para frear o avanço do vírus.

    É uma experiência que une atenção primária à saúde séria, solidariedade e cooperação da população e do governo cubano, que não precisou determinar em nenhum momento o lockdown. A atenção primária é forte e comum na ilha. Todos os bairros tem um médico da família, que atende todas as comunidades do país. Estes profissionais agora contam com reforço de dezenas de milhares de colegas e alunos (as) de medicina que percorrem regiões em busca de qualquer sinal do vírus. Todos os dias moradores recebem visitas de equipes da saúde que verificam as condições da família toda. O governo também se empenhou em distribuir remédios naturais para melhorar a imunidade.

    Os transportes públicos continuam suspensos, o que aumenta a adesão à quarentena. Atendendo o deslocamento dos trabalhadores (as) essenciais, o governo destacou ônibus específicos com lotação limitada. As escolas estão fechadas, mães e mulheres grávidas foram liberadas do trabalho, sem prejuízo do salário. O cuidado é tanto que o governo já anunciou a suspensão do Carnaval 2021.

    Cuba e seu sistema socialista, desenvolve, há décadas, uma estrutura capaz de enfrentar pandemias porque atua fortemente na saúde pública e preventiva, no campo da pesquisa, educação, segurança e organização popular. Cuba tem demonstrado que o mais importante é a vida de sua população.

    Enquanto isso, no Brasil,  o governo federal nega a gravidade da pandemia e o poder econômico pressiona os governos locais pelo fim do isolamento social. Negligenciam as desigualdades sociais que se acirram com o desemprego e a ameaça de corte do ínfimo auxílio emergencial. Alegam que o país não pode continuar mantendo a distribuição dos recursos à população para não prejudicar as contas públicas. A contaminação e as mortes se multiplicam diariamente e já passamos dos 60 mil brasileiros mortos pela Covid-19.

    Estamos falando de mortes evitáveis. Somos uma nação rica, mas com uma das maiores concentrações de renda do planeta. Não há crise econômica, ela é fabricada para justificar a continuidade da abjeta desigualdade social brasileira. Estamos sendo enganados, a mente dos pobres e miseráveis é manipulada para que acreditem na falência ou incapacidade financeira do Estado. Quando todos estivermos mortos, não haverá economia possível.

    Frequentemente o “gado” nos manda para Cuba. Pensando aqui, não seria má ideia, até porque estamos afrouxando o isolamento, dado o sério compromisso dos nossos governantes com o capital, mais do que com a vida. Diferentemente, Cuba está fechada e o presidente afirma a importância de ainda manter as medidas sanitárias e de quarentena, evitando retrocessos.

    Apesar do sucesso do papel do Estado no combate à pandemia, autoridades cubanas de saúde disseram que não pretendem flexibilizar a quarentena e que o país provavelmente ficará fechado durante todo o segundo semestre de 2020.

    Quem sobreviver ao vírus no Brasil deve aprender a lição: é dever do Estado ser forte com quem mais precisa e não só com os ricos. É dever do Estado responsabilizar-se pela saúde e educação públicas de qualidade e universal. É dever do Estado investir na ciência, garantir direitos sociais e humanos, o que inclui o acesso à uma renda mínima, básica, decente.  Assim é em Cuba. Vamos para Cuba!

    *Silmara Conchão

    Socióloga, feminista e professora universitária. Mestra em Sociologia pela FFLCH/USP e Doutora em Ciências da Saúde.

    **Eduardo Magalhães Rodrigues

                                                       Sociólogo e pesquisador da Universidade Federal do ABC. Mestre em Relações Internacionais e Doutor em Planejamento e Gestão do Território.

     

    Veja mais: Mais de um trilhão de reais jogados ao vento pelo governo Bolsonaro

  • Para onde caminha a humanidade sob o impacto da pandemia?

    Para onde caminha a humanidade sob o impacto da pandemia?

    Capa: Raquel Cipriani Xavier

    Uma inquietação profunda de mulheres filósofas em relação ao momento pelo qual a humanidade passa deu origem à publicação de Reflexões sobre uma pandemia. Em formato digital, o livro de ensaios filosóficos aborda os impactos das ondas de Covid 19 sobre o pensamento contemporâneo e sobre a própria crença na permanência da humanidade na Terra. Quinze pesquisadores de quatro universidades públicas brasileiras assinam essa coletânea de artigos proposta e organizada por três pensadoras da Universidade Federal de Santa Catarina: Maria de Lourdes Borges, professora do Departamento de Filosofia, a pós-doutoranda Evânia Reich e a doutora Raquel Cipriani Xavier. “O pensamento filosófico foi sacudido não só pela gravidade da pandemia, mas pela forma como o Brasil vem tratando essa tragédia, o que nos obriga a parar para compreender o que há por trás das alterações no valores e sentidos sobre a vida que estão sendo produzidos pelos Estados autoritários”, diz a professora Maria Borges, em entrevista aos Jornalistas Livres.

    Escrita no calor dos acontecimentos, em pleno devir da história, ao modo de Nietzsche, a obra traz, contudo, o rigor intelectual recomendado por Hegel ao voo da ave noturna que simboliza a filosofia. Embora os dilemas sejam dos mais cabeludos, os 15 ensaios preservam a clareza e a beleza estética da boa literatura filosófica. Os autores compartilham com o público reflexões sobre os abalos éticos trazidos pelo coronavírus para a vida em sociedade. Publicado em formato digital pelo Núcleo de Ética e Filosofia Política (Néfipo) da UFSC, que atua há quase dez anos com a divulgação do conhecimento acadêmico filosófico, o livro pode ser acessado e baixado gratuitamente por qualquer pessoa neste link.

    “A história da humanidade já vivenciou outros episódios de epidemias, talvez tão graves quanto a atual, tais como a peste que assolou a Europa nos séculos XIII e XIV, dizimando quase um terço de sua população, ou o desaparecimento de grande parte da população ameríndia entre o século XVI e XVIII através dos vírus trazidos pelos colonizadores europeus. Nossa geração, contudo, jamais havia passado por esta experiência, a não ser assistindo filmes ‘distópicos’ ou de ficção científica. Embora alguns grandes epidemiologistas têm dito que fomos muito ingênuos em não termos previsto a possibilidade de um contágio em massa por um vírus letal, a bem da verdade, ninguém levava a sério esta possibilidade. Tampouco os primeiros casos na China despertaram, nos outros continentes, um medo em relação a uma possível pandemia. Fez-se necessário que seus países fossem massivamente infectados para que a realidade caísse nua e crua diante de seus olhos”.

    (Apresentação da obra: Maria de Lourdes Borges, Evânia Reich e Raquel Cipriani Xavier)

     

    Os ensaios reunidos mostram que o vírus escancara a vulnerabilidade social e revira todos os conceitos estabelecidos pela história da Filosofia, abalando a própria confiança das pessoas em geral na permanência da humanidade no Planeta. Cada filósofo traz à baila uma análise deste tempo de pandemia, revelando, ao mesmo tempo, questões filosóficas próprias muito singulares.  A obra é marcada por um profundo questionamento seguido da busca de respostas em torno de temas como a ética médica diante da necessidade de selecionar os pacientes que serão priorizados no tratamento de Covid por conta da precariedade dos sistemas de saúde. Também merece investigação dos autores a dificuldade de garantia das liberdades individuais diante das imposições de condutas coletivas, assim como a assimilação das mortes dos excluídos pelo estágio neoliberal do capitalismo e mesmo o combate das medidas preventivas pelo Bolsonarismo. Abordam ainda o sentimento inconsciente de traição das promessas do iluminismo de domínio da ciência, gerado com a ausência de vacina e remédios contra o coronavírus, abrindo campo para entrada do negacionismo do conhecimento . O retorno do conceito do mal aplicado à doença em contraposição à maldade política também se desdobra em vigorosas análises, e da mesma forma as incertezas sobre as possibilidades de reorganização da vida em sociedade no trabalho, na escola, no lazer, no transporte.

    Protesto contra o racismo nos EUA: capitalismo absorve as mortes das minoridades políticos para perpetuar-se na história

    Tensionamentos gerados pela pandemia sobre a presença do Estado e do seu papel na manutenção do bem-estar dos cidadãos compõem as discussões salutares no campo da filosofia política.  No ensaio de abertura, intitulado “Fraqueza do Estado e elitização da cidadania na América do Sul: Lições políticas da pandemia”, Alessando Pinzani analisa a reação dos governos nacionais, mostrando que a crise de COVID-19 recolocou no centro da cena política um ator que desde a crise econômica de 2008 e 2009 tinha sido esquecido como protagonista: a figura do Estado. Perseguindo o objetivo de analisar a responsabilidade que os diferentes Estados têm assumido, Pinzani mostra como um Estado que permite o aprofundamento das desigualdades sociais provoca um resultado mais dramático da pandemia.

    Fazendo uma linha de comparação dos países da América do Sul com a maioria das nações da Europa, Pinzani levanta o grande problema da desigualdade social que é exacerbada nos países em que os Estados sempre foram menos presentes na distribuição de renda. Em contrapartida, nos países em que os indivíduos sempre foram deixados à própria sorte, sem qualquer amparo oficial, a situação pouco mudou com a pandemia. E o Brasil torna-se um dos grandes exemplos do descaso do governo atual, que se intensificou com a atual política de ideologização das ações públicas.

    “Até hoje, o governo brasileiro continua a negar a gravidade do problema, ainda que o número de mortos aumente diariamente, o Brasil se torna velozmente um dos países mais infectados do mundo”. 

    Vírus não é democrático: desigualdades sociais agravam consequências do coronavírus para as comunidades socialmente vulneráveis

     

     

     

    VÍRUS E CAPITAL SE ALIAM NO

    COMBATE AO CONFINAMENTO

    Em “COVID-19 e ubupoder-19”, Leon Farhi também deflagra sua reflexão de filosofia política com uma pergunta: “Em que grau a morte entrava o dinamismo do capital?” Ao analisar as ligações entre a crise da pandemia e a crise atual do capitalismo, Farhi investiga, ao fundo, a existência de um projeto de extermínio passivo dos mais fracos que interessa à sobrevivência do sistema de mercado. Mostra como a dinâmica do capital absorve, sem grandes abalos ao sistema, a maior parte das vítimas da letalidade da COVID-19, que já se aproximam neste fim de semana a 500 mil mortos no mundo e 60 mil no Brasil.

    Esses mortos são, em sua maioria, idosos, doentes crônicos, pobres, negros, indígenas, trabalhadores avulsos, que vivem em condições precárias e desfavoráveis ao isolamento. Por outro lado, as medidas tomadas pela maioria dos países favoráveis à suspensão parcial das atividades econômicas, abalam, sim, a existência do capitalismo atual. Esse dilema leva o autor a uma reveladora conclusão: o problema não é o vírus em si, mas as medidas de combate e proteção aos trabalhadores que acabam alcançando a população mais vulnerável. Nesse aspecto, vírus e capital se alinham no combate ao confinamento, o que explica a lógica das carreatas e protestos de bolsonaristas no Brasil contra a permanência da quarentena nos grandes centros. A questão que subjaz dessa reflexão é a de saber por que o isolamento social, que levou à suspensão da rotina econômica, foi aceito pelos Estados e por grande parte da população, mesmo sofrendo consequências imprevisíveis. Na busca de respostas, o autor se aprofunda na crise que aparentemente assola o capitalismo e na crise política brasileira produzida pelo que ele chama de “ubupoder”.

    O ensaio “Vários mundos para uma só pandemia: contra a universalidade do discurso filosófico”, assinado por Érico Andrade, encara de frente o problema das diferenças sociais relacionadas à crise da pandemia e destrói de vez a ilusão inicial de que o vírus seria democrático. Pelo contrário, o coronavírus muito mais acentua do que elimina a desigualdade social, o que se agrava em países como o Brasil. Tanto na forma de contágio quanto nas consequências para as pessoas e para os países, o vírus afeta de maneira desigual. “Não existe o mundo pós-pandemias. Existem mundos”, escreve Andrade, acentuando que esses mundos são afetados em tempos e em espaços distintos. Daí vem uma importante conclusão do autor destacada pelas organizadoras do livro: o tempo, assim como o espaço, é relativo à classe, à raça e ao gênero. Se a circulação do vírus pode ocorrer de forma indiscriminada, a possibilidade de controlar essa circulação e de proteger as pessoas depende do contexto social.

    “Longe de ser uma doença democrática, no sentido de que todas as pessoas estariam igualmente submetidas a ela, a letalidade da COVID-19 incide nas populações mais carentes e mais precarizadas”. (Érico Andrade)

    Fossas coletivas para dar conta dos mortos de Covid em cemitérios de Manaus

    O desrespeito às medidas de proteção por muitos Estados levam Cristina Foroni a analisar também o papel das instituições internacionais no mundo globalizado diante do processo galopante de dispersão do coronavírus pelo mundo. Em “A soberania dos Estados e os limites das instituições internacionais na pandemia do coronavírus”, ela discute, à luz da obra de Habermas, a necessidade de adoção de medidas de proteção à vida que ultrapassam as fronteiras nacionais. No caso brasileiro, a autora defende que a garantia dos direitos humanos autorizaria uma intervenção de instituições internacionais nas decisões dos Estados. A autora discorre a respeito da “forma que poderia assumir uma estrutura político-jurídica internacional capaz de tomar decisões vinculantes e obrigatórias em casos nos quais estão em jogo a vida, a integridade física e os direitos dos indivíduos submetidos ao poder soberano dos Estados”, conforme as apresentadoras. Habermas oferece à filósofa elementos norteadores para refletir sobre conflitos muito importantes causados pela doença, como a restrição da soberania dos Estados em contraposição aos direitos humanos.

    As implicações éticas da pandemia no mundo globalizado retornam no capítulo “Ética global, direitos humanos e a pandemia da COVID-19”, assinado por Milene Tonetto. A autora defende a realização de acordos internacionais para o acesso de todos a medicamentos, vacinas e tratamento médico, de modo a corresponder a esse caráter globalizado da ética. Também salienta a importância da ciência para justificar e fundamentar os argumentos morais e jurídicos em consonância com o aspecto multidisciplinar da mesma ética. Num terceiro ponto, advoga a participação de especialistas em ética nas decisões sobre o controle da pandemia de modo a garantir soluções práticas justas e respaldadas em fundamentos teóricos.

    Finalmente, Milene Tonetto examina as diferentes violações éticas no Brasil sob a pandemia, mostrando que houve nos últimos anos uma substantiva precarização da estrutura da saúde pública, tanto na redução da oferta de hospitais e leitos, quanto na disponibilidade de profissionais. Através de dados quantitativos, enfatiza a situação de vulnerabilidade social da população brasileira, agravada pela crise sanitária. A autora conclui apontando os crimes éticos de natureza ambiental com impacto na saúde humana, como a destruição da biodiversidade e do habitat de espécies da flora e da fauna que podem influenciar no surgimento de novas doenças como a COVID-19.

     

    PENSAMENTO VIVO DA UNIVERSIDADE OFERECE SOLUÇÕES PARA DILEMAS ÉTICOS

     

     

    Mais do que trazer para as pessoas comuns, filósofos, historiadores, cientistas, pesquisadores em geral, discussões vicinais sobre o momento exasperante que vivemos, Reflexões sobre uma pandemia é uma prova cabal de que a universidade vive e respira na pandemia, produz e faz ciência. Todos os artigos evidenciam esse vínculo pulsante do pensamento filosófico com o tempo presente no seu sentido mais prático, que é trazer respostas às pessoas e atores sociais envoltos em crises, sofrimento e dúvidas com os passos futuros da humanidade.

    Os autores indagam o papel da Ética no combate à COVID-19 e assumem as tarefas prioritárias dos filósofos nesse cenário que são, segundo Darlei Dall’Agnol, no capítulo “Reflexões bioéticas sobre a COVID-19”, reforçar o papel da ciência no enfrentamento do novo coronavírus, refletir sobre as novas formas de relacionamento e discutir os inúmeros dilemas éticos que se apresentam. Nesse sentido, seu ensaio mostra particularmente a concretização de um serviço da filosofia à sociedade. Relata a criação de um grupo denominado “Dilemas COVID-19 Bioética”, formado por quatro professores brasileiros que foram pesquisadores do Center for Practical Ethics da Universidade de Oxford, incluindo o autor. Mostra o esforço desse grupo para oferecer respostas a alguns dilemas trazidos pela COVID-19, como os critérios éticos para o uso de recursos escassos num sistema de saúde e uso de medicamentos que não foram suficientemente testados.

    A apresentação do capítulo, as organizadoras destacam algumas conclusões: sobre o primeiro problema, o grupo elaborou uma proposta que aperfeiçoa a diretriz do CFM, priorizando a alocação pela maior probabilidade de recuperação terapêutica. Conforme o autor, esse seria um critério equitativo, ainda que não igualitário, que permitiria salvar um maior número de vidas. Sobre a segunda questão, do tratamento da COVID-19, o texto reforça que no momento não há medicamentos especialmente desenvolvidos e que não recomendaria o uso indiscriminado de remédios off label, sem a devida comprovação de sua eficácia por testes clínicos.

    O autor realiza, assim, uma profunda discussão filosófica sobre o critério que deve ser utilizado para preenchimento preferencial de leitos em hospitais, dentro da propalada ética médica. Por trás desses critérios Dall’Agnol percebe que está embutida uma disputa entre duas visões destacadas pelas prefaciadoras da publicação: a deontologia da profissão, que pauta a ética médica pelo princípio da vida, e a visão consequencialista, que calcula o desdobramento das possibilidades de sobrevivência do paciente salvo, dentro de uma aplicação de certa forma utilitarista dos investimentos públicos no tratamento dos doentes.

    PANDEMIA ESCANCARA FRAGILIDADE DA CIÊNCIA E ABRE PORTAS PARA O OBSCURANTISMO

    A coletânea discute a ameaça à permanência dos ideais do Iluminismo, como fundantes de uma ordem dos valores de igualdade, fraternidade e liberdade, estabelecidos por grandes eventos como a Revolução Francesa. Essa questão está no cerne do artigo “A COVID-19 e o Iluminismo”, no qual o autor Delamar José Volpato Dutra examina o que chama de “iluminismo de quarentena”. Por muito tempo, as ideias do chamado “Século das Luzes” foram profundamente questionadas por traduzirem a pretensão das elites de difundir os frutos do progressos e do conhecimento científico às grandes massas, a fim de libertá-las da escuridão medieval.

    Dentro da estratégia da “dialética do esclarecimento”, duramente criticada pelos teóricos marxistas, os iluministas democratizaram o acesso ao conhecimento às custas da mercantilização da vida, do massacre dos valores e da tradição e da imposição de uma cultura industrial alienadora e voltada ao consumo de massa. Hoje, contudo, em função do negacionismo da história e da ciência, mais do que denunciar o caráter eurocêntrico e colonizador desse projeto, se trata de defender os ideais básicos do humanismo e até o direito à vida.

    Volpato identifica no Brasil atual a existência de grupos anti-intelectualistas e anti-iluministas e propõe que, contra essa ideologia, é necessário fazer uma crítica moral, técnica e científica, como destaca as apresentadoras. Mostra ainda que a própria pandemia coloca nossas ideias iluministas à prova. Hegeliana e kantiana, Maria Borges ajuda a destrinchar no ensaio do autor o que nos levou a esse impasse. Mostra que carecemos de meios para deter cientificamente, através de remédios e vacinas, o avanço do vírus, restando-nos apenas o isolamento das pessoas. Esse fato contribui para abalar a certeza do iluminismo na ciência e na capacidade do homem de dominar a natureza.

    “Frente aos desígnios da natureza, ficamos como menores de idade, sendo por ela dominados”.

    O abalo não é menor no que se refere à garantia da proteção jurídica e legal a todo cidadão, postulada pelos pensadores do século XVIII que lançaram as bases filosóficas do chamado “espírito das leis”, como Montesquieu, Voltaire, Diderot, e fundamentaram os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos. “No aspecto jurídico-científico, os Estados se viram incapazes de garantir o bem-estar das pessoas e a liberdade individual”, ressalva Maria Borges. Aliás, a pandemia coloca em xeque o próprio modelo do Estado Democrático e de Direito, à medida que Estados que não se enquadram nesse modelo foram mais eficazes para combater a doença. Por fim, o víros exporia, segundo a organizadora, as falhas do iluminismo econômico-social, escancarando as péssimas condições de vida da população.

    ENTRE A CRUZ DA CONTAMINAÇÃO E A ESPADA DO CONFINAMENTO

    “Entre a cruz e a espada”, ensaio de Evânia Reich, discute o dilema ético das ações de controle da pandemia servirem de pretexto para estados autoritários aproveitarem o necessário monitoramento biomédico da população para impor limites às liberdades individuais. Apoiada no conceito de biopolítica de Agamben e de psicobiopolítica do filósofo coreano Chul Han, ela discute os mecanismos pelos quais esses governos usam o controle sanitário dos indicadores de saúde, de circulação, de deslocamento ou de consumo, por exemplo, para fortalecer sistemas de vigilância eletrônica que potencializam a dominação política do Estado sobre a vida e a subjetividade dos indivíduos.

    Emblema da morte mais do que nunca impacta nossas certezas na longevidade do homem na Terra

    A filósofa assinala que os Estados mais autoritários da Ásia foram os que melhor conseguiram controlar a pandemia, enquanto países da Europa apresentaram números de contaminações e de mortes bem mais elevados. É aí que mora o grande perigo, aponta Evânia: de os Estados tidos como democráticos incidirem na vida e na psicologia de seus cidadãos de maneira semelhante no período pós-pandemia. Evânia avalia, por exemplo, o risco de Estados controlarem ainda mais a entrada de estrangeiros em seus territórios, mas da mesma forma autoritária regularem a vida de seus cidadãos, controlando-os em seus passos e ações. Em última instância, esse controle forjado na pandemia levaria ao fim da vida na esfera privada.

    A incerteza do futuro e o terror do presente. Por esse mote, Janyne Sattler  elabora um instigante ensaio, intitulado “Suspensão”, no qual raciocina a partir de um encadeamento de perguntas essenciais, no melhor modo filosófico:

    “Imagina como será a nova vida com a presença do vírus. Como serão nossas aulas? Voltaremos a elas? O que podemos esperar de um mundo tomado pela pandemia?”

    Daí ela reflete sobre a política higienista em relação à cor e à classe social dos que morrem primeiro, da ojeriza à velhice, das políticas neoliberais que agora nos mostram o estrago daquilo que não foi feito. Ela reconhece o pânico da verdade:

    “Daqueles que sempre morreram primeiro, e para os quais sempre houve a ‘vala comum’, inominada e sem lembrança, cujo luto nós nunca fizemos no país da interminável, irreparável, escravidão. Que escancara o mal-estar dos vulneráveis aptos pela política pública do sacrifício em nome do mercado e das portas abertas do mercado. Esse é o pânico de verdade, até para aqueles que serão sacrificados.”

    O MAL DA PANDEMIA E O MAL NA POLÍTICA

    Maria Borges delimita o mal da natureza e o mal humano na pandemia

    Três autores abordam o conceito de mal e de alegria maligna em relação aos riscos e à letalidade da pandemia. Declarações de escárnio de algumas autoridades brasileiras diante do pânico gerado pela gravidade da doença evidenciam esse comportamento. Presidente da Sociedade Kant Brasileira e doutora em Hegel, Maria de Lourdes Borges delimita em “Sobre o mal da natureza e o mal humano” o que seria o mal inerente à doença e o mal relativo às posturas e discursos das autoridades de recusa aos cuidados devidos para proteger a população da COVID-19. Numa remissão histórica inicial, ela mostra que a filosofia deixou de empregar o conceito de mal para as catástrofes naturais, passando a usá-lo apenas no sentido de mal moral, quando há um sujeito dessa ação a quem ela pode ser imputada. A autora vai buscar nas categorizações do mal em Kant fundamentos para definir o mal moral que pode ser imputado ao ser humano.

    Em analogia a Kant, que estabelece três níveis para o mal, ela, da mesma forma, divide o mal relacionado à pandemia em três eixos principais. Em primeiro lugar, aponta a crença arrogante do homem no domínio total da natureza, fruto da ilusão iluminista internalizada nos cidadãos contemporâneos sobre a confiança na centralidade e na eternidade da raça humana. “O otimismo iluminista fez com que ignorássemos as possibilidades de sermos assolados por um vírus, ou mesmo que desconsiderássemos a ausência de remédios eficazes para contê-lo”, ela explica, em entrevista aos Jornalistas Livres. Como fruto dessa incredulidade inicial, as medidas necessárias de isolamento foram tomadas com atraso em vários países.

    O segundo nível é o esquecimento do Estado, propagado pelas políticas econômicas liberais que defendem de forma inflexível o encolhimento da estrutura estatal de saúde, mesmo quando isso compromete o direito à vida e o dever de proteção à saúde pública. Essa depauperação das políticas públicas deixou vários países sem condições de atendimento à população atingida pela COVID-19. Por fim, a autora nos traz a figura da banalidade do mal, expressa em atitudes negacionistas, bem como no sadismo e escárnio de declarações sobre as vítimas da pandemia.

    O RISO MACABRO DO BOLSONARISMO

    Filósofos analisam o mal humano na política, que é o prazer de causar sofrimento ao outro, imputado ao Estado, nos casos de assassinatos de jovens negros pela PM

    Numa perspectiva diferente, Vilmar Debona e Cláudia Dias mostram em “Alegria maligna” que o riso macabro, como concepção do mal ou da maldade, marca o cenário da pandemia no Brasil. Resgatando o conceito de Schadenfreunde em Schopenhauer, eles encontram a expressão do riso macabro em relação à pandemia no Bolsonarismo. À procura de razões para essa relação infeliz, eles trazem de Schopenhauer a formulação da motivação egoísta do indivíduo que quer o mal alheio ou mesmo vibra com ele. Esse desejo faz parte dos três princípios que servem como motivação para as ações humanas, segundo o filósofo francês: o egoísmo, a maldade e a compaixão.

    Enquanto a compaixão quer o bem do outro, a maldade deseja o mal; enquanto a motivação egoísta como meio de atingir os fins do agente não mede a dor que pode causar a outrem, a motivação maligna vai mais além: ela leva a sentir prazer com a dor ou mesmo com a eliminação do outro, explicam as organizadoras da obra. “A alegria maligna é o sinal mais inequívoco de um coração mau”. Os autores percebem essa alegria macabra em sentenças célebres do presidente da República, como “eu não sou coveiro”, ou “fazer o quê? sou messias, mas não faço milagres”, ao ser questionado sobre as medidas governamentais para evitar os altos índices de mortalidade, num dia em que o Brasil contabilizava com assombro o número de vítimas alcançar mil mortes por  COVID-19 em 24 horas.

    O QUE A HUMANIDADE APRENDE COM A SEPARAÇÃO E O SOFRIMENTO?

    A questão sobre se é possível aprender alguma lição a partir do sofrimento norteia o ensaio “A pandemia e o individualismo que nunca existiu”, de Bárbara Buril. Apesar dos exemplos históricos mostrarem que o sofrimento nos ensina muito pouco, a autora argumenta que o momento pandêmico tem um poder revelador sobre as diferentes formas de vidas, antes obscurecidas para a maioria das pessoas. Como esclarecem as filósofas que assinam a apresentação: “Éramos propensos a acreditar que nos bastávamos. Na incessante busca individual pela realização de nossos objetivos, fomos cegados a respeito de que o outro nos é vital. A pandemia nos revelou que a vida em sociedade nos é necessária no nível psíquico”.

    “O social é uma necessidade profundamente nossa. Assim, o que esta pandemia nos revela é que aquilo que tentávamos “encaixar” como figurantes ou objetos decorativos, em nossa rotina insana de busca pela realização de nós mesmo, é justamente aquilo que a estrutura, de modo muito profundo, psiquicamente”. (Bárbara Buril). 

    No artigo “Tem Futuro a humanidade?”, Cinara Nahra  alerta para a gravidade do momento e coloca em jogo os indícios mesmos de finitude da espécie humana que a COVID-19 traz para as pessoas, inclusive diante da possibilidade de novas pandemias futuras. Esse quadro cercado de previsões e sensações apocalípticas leva a filósofa a analisar a ideia de risco e de catástrofe existencial diante da ameaça ou já a destruição do potencial de longo prazo da humanidade na Terra. Escolhendo um caminho ético, a autora salienta a rede de solidariedade e altruísmo que se estabeleceu ao redor do mundo como um fator indicativo da capacidade humana para suplantar o egoísmo que ela própria cultivou. Ao mesmo tempo, ela aborda de frente a questão macroeconômica, ao alertar que o modelo de capitalismo atual mostra-se “totalmente incapaz de garantir condições mínimas de sobrevivência e menos ainda de lidar com a situação de desastre e risco”, como destacam as apresentadoras.

    O pensamento filosófico desses estudiosos incide sobre os impactos da pandemia no campo das relações sociais, políticas, médicas, psicológicas, econômicas, mas também refletem sobre o papel da própria filosofia, numa espécie de autoquestionamento. Nesse caminho, Filipe Campello realiza no ensaio “De onde fala a filosofia” uma reflexão sobre o lugar de fala da filosofia a partir da análise de alguns artigos escritos pelo controverso Giorgio Agamben, um dos mais importantes da atualidade. E se alinha ao lado dos que criticam duramente o ultrapolêmico artigo em que o pensador italiano qualifica as medidas de contenção do vírus como excessivas e acusa os Estados de instaurar o pânico coletivo para aperfeiçoar os mecanismos de controle biopolítico da população. Agamben chama a pandemia de “invenção”, num estilo que poderia soar aos desavisados como típico de presidentes de extrema direita, como Bolsonaro e Trump, que apresentaram sérios entraves para as medidas sanitárias de proteção da saúde pública.

    Diversos pensadores se ocuparam em detratar esse artigo publicado em Sopa de Wuhan, primeira coletânea marcante do pensamento filosófico sobre a pandemia, quando a Europa já aplicava lockdown para conter picos de Covid e o Brasil ensaiava os primeiros passos no isolamento social. Campello se concentra em questionar o argumento da invenção: “O que faz com que um filósofo ou filósofa se coloque nessa posição?” Ele atribui esse tipo de postura à persistência de um “resquício metafisico” em boa parte da produção filosófica contemporânea e a um “discurso de pretensões universais”, que o levam a qualificar o discurso filosófico de presunçoso e autoritário. Seu artigo faz um alerta contra o risco de a reflexão filosófica examinar o cenário da pandemia, aplicando conceitos já fixados, sem se dar conta das transformações e desafios da realidade emergente que exigem novos conceitos.

    Mais do que uma crítica específica a Agamben, autor que tantas contribuições relevantes deu ao pensamento contemporâneo, o artigo de Campello deve ser lido como um alerta à filosofia e aos filósofos para que se abram diante do novo e intempestivo cenário para provocar novos insights sobre a vida em sociedade, em vez de empobrecê-lo com pressupostos antigos. É, portanto, um convite ao aprendizado e à perda da arrogância. Com um olhar que penetra nos detalhes do nosso cotidiano, os filósofos conseguem ao mesmo tempo descrever a realidade e refletir sobre as reentrâncias da nova e aterrorizante realidade. E têm, como Janyne Sattler, a coragem humilde de se colocar em condição de vulnerabilidade e de incerteza como qualquer cidadão: “Eu estou à espera, e não sei muito bem do quê, mas talvez de saber quanto tempo vai levar para que o abraço venha a ser permitido novamente.”

     

    Sumário

    Fraqueza do Estado e elitização da cidadania na América do Sul Lições políticas da pandemia  21

    Alessandro Pinzani (UFSC)

    A pandemia e o individualismo que nunca existiu. 30

    Bárbara Buril (UFSC)

    Tem futuro a humanidade?. 35

    Cinara Nahra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)

    A soberania dos Estados e os limites das instituições internacionais na pandemia do coronavírus  45

    Cristina Consani Foroni (Universidade Federal do Paraná)

    Reflexões bioéticas sobre a COVID-19. 53

    Darlei Dall’Agnol (UFSC)

    A COVID-19 e o Iluminismo. 61

    Delamar José Volpato Dutra (UFSC)

    Vários mundos para uma só pandemia:  contra a universalidade do discurso filosófico   71

    Érico Andrade (Universidade Federal de Pernambuco)

    Entre a cruz e a espada. 77

    Evânia Reich (UFSC)

    De onde fala a filosofia?. 82

    Filipe Campello (Universidade Federal de Pernambuco)

    Suspensão. 89

    Janyne Sattler (UFSC)

    O papel político da comunidade científica e dos intelectuais e o caso da pandemia do coronavírus  95

    Joel T. Klein (Universidade Federal do Paraná)

    COVID-19 e ubupoder-19. 105

    Leon Farhi Neto (Universidade Federal do Tocantins)

    Sobre o mal da natureza e o mal humano. 115

    Maria de Lourdes Borges (UFSC)

    Ética global, direitos humanos e a pandemia da COVID-19. 124

    Milene Consenso Tonetto (UFSC)

    Alegria maligna. 135

    Vilmar Debona e Claudia Assunpção Dias (UFSC)

     

     

     

     

     

  • Projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro #4 – Paulo Pereira: Contração

    Projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro #4 – Paulo Pereira: Contração

    Paulo Pereira

    Contração

    O Projeto “Contração” surge por uma necessidade de contato durante o período de quarentena e está sendo realizado na Cidade de São Paulo, Brasil. Idealiza uma visita, na intenção de encurtar distâncias entre sentimentos. O objetivo é pensar os meios de comunicação e as possibilidades de interação neste momento. O uso da tecnologia como ferramenta de aproximação, revelando a saudade.

    “Contração” busca que, ao menos uma das pontas, seja “real”, em corpo físico. Pesquisa formas de contato fazendo uso de um drone. O drone como extensão dos meus olhos.

    Faço um convite às avessas: convido-me para adentrar e para a troca, através de uma proximidade segura – uma das únicas formas possíveis de se fazer uma visita nesse momento – sem toque, sem físico… o olhar.

    Retrato estas pessoas em suas casas, seus espaços possíveis. São a minha comunidade, meus vizinhos e minha rede de apoio. Cada qual vivendo em seus casulos, lugar onde aprendem o significado de reviver, o contexto espacial que lhes é possível, na tentativa de segurarem a vida… A deles e a de todas e todos.

    Poder estar em casa neste momento, sabemos! já começa a ser um privilégio. No Brasil, vivemos um colapso político, além de todo o colapso já causado por uma pandemia. Trabalhar remuneradamente, quase já não faz parte do cotidiano da maioria do brasileiros e brasileiras, seja ele ou ela da classe social que for. Estamos à deriva, soltos à plena “sorte” e caminhando para uma situação de desumanidade geral.

    Lembramos aqui da importância de se estar em casa e gritamos alto, cobremos  por políticas públicas que nos dêem condições de permanecer… Sobretudo Vivas e Vivos.

    Contração

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    Vejam mais trabalhos do artista:

    https://www.instagram.com/paulopereiraox/

    https://www.instagram.com/falangeav/

    www.cargocollective.com/paulopereira

     

    O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.