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  • A difícil escolha entre cozinhar ou tomar banho

    A difícil escolha entre cozinhar ou tomar banho

    O Brasil concentra 53% da água doce da América do Sul e 12% do mundo. Esse recurso, essencial para a vida humana e cada dia mais cobiçado pelas grandes potências, corre sérios riscos de ser privatizado em nosso país. Depois que o Congresso Nacional aprovou e Bolsonaro sancionou, com vetos, há pouco mais de dois meses, o Novo Marco Legal do Saneamento (PL 4.162/2019), o governo federal tem feito gestões para que os governos estaduais apressem esse processo.

    Ana Luisa Naghettini, estudante de Matemática Computacional na UFMG e militante independente em defesa do meio ambiente, e Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Um forte lobby na mídia também está em ação. O objetivo, na linha da privatização imediata proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é que os governos estaduais vendam, rápido e a qualquer preço, as suas empresas. O objetivo é convencer a população de que a privatização das companhias de água e saneamento é “o único caminho para o Brasil enfrentar o grave déficit no setor”. Para tanto, dados alarmantes são apresentados quase diariamente: “48% da população brasileira não tem coleta de esgoto”; “o país convive com 3.257 lixões a céu aberto”; “é necessário investir R$ 753 bilhões até 2033 para enfrentar esses problemas”.
    Antes mesmo de a nova legislação ser aprovada, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), já dava um largo passo nesse sentido, com a Copasa, a estatal mineira de águas e saneamento, informando aos seus acionistas e ao mercado que iria contratar serviços para começar o processo de desestatização.

    A situação se torna mais grave ainda quando se sabe que, caso o Congresso Nacional não derrube os 11 vetos de Bolsonaro a esta legislação, as empresas estatais, responsáveis por 70% desse serviço, não poderão mais assinar contrato com os municípios, sendo obrigadas a se submeterem às licitações, sob a ótica do mercado. Além disso, a obrigação de realizar licitações e as metas de desempenho para contratos tenderão a prejudicar as empresas públicas locais, piorando a qualidade dos serviços prestados.

    Os vetos eram para ter entrado em pauta no Congresso em setembro, com muitos governadores e prefeitos trabalhando pela derrubada deles. Até agora não foram apreciados e não falta quem aposte que, por conta das eleições municipais, dificilmente isso acontecerá em 2020. O que complicará ainda mais a situação das empresas de saneamento, a começar pela Copasa.

    Risco

    Num momento em que o governo Bolsonaro é mundialmente criticado pelo desmonte das políticas ambientais e pela negligência no combate aos incêndios na Amazônia e no Pantanal, além do negacionismo em relação ao vírus do covid-19, não só a nova legislação sobre saneamento virou lei, como o risco agora é que essas empresas sejam privatizadas sem que as pessoas se deem conta da gravidade do que está em jogo.
    Uma das principais causas da rápida proliferação do covid-19 no Brasil (o país ostenta o triste recorde de terceiro no mundo em mortes) reside exatamente na falta de acesso de expressivos contingentes da população à água tratada e ao saneamento.
    Some-se a isso que estudo do Observatório Fluminense Covid-19 (formado por sete instituições de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro, entre elas a UFRJ e a UFF) aponta que a própria estabilização do vírus na América Latina deve se dar em patamares elevados e permanecer atuando na região por mais dois anos.

    Ao defender a privatização imediata de suas empresas de saneamento, o Brasil coloca-se na contramão do que acontece no mundo. Segundo estudo do Instituto Transnacional da Holanda (TNI), entre 2000 e 2017, cerca de 1700 municípios de 58 países, entre eles Berlim (Alemanha), Paris (França) e Budapeste (Hungria) reestatizaram seus serviços. Só na França, 106 cidades fizeram isso. Fora do continente europeu, Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia) são alguns dos casos sul-americanos que reestatizaram serviços públicos básicos, entre eles o de fornecimento de água e ampliação de redes de esgoto.

    Lucro

    As principais razões para as reestatizações foram a colocação do lucro acima dos interesses das comunidades, o não cumprimento dos contratos, das metas de investimentos – principalmente nas áreas periféricas e mais carentes -, e os aumentos abusivos de tarifas.
    O governo Bolsonaro e a mídia corporativa brasileira que o apoia ignoram esse tipo de alerta e destacam apenas que “a livre concorrência no setor permitirá mais investimentos – são esperados R$ 600 bilhões, grande parte internacionais, até 2033” – e que “a universalização dos serviços de saneamento ocorrerá em 30 anos”. Acena-se com promessas, para quebrar resistências e ganhar a opinião pública.

    Não foi por falta de recursos, como alega o governo Bolsonaro, que se optou pela privatização. Um total de R$ 1,2 trilhão acaba de ser repassado para os bancos privados a título de auxiliá-los durante a pandemia. Um terço desse valor por ano seria mais do que suficiente para resolver o problema do saneamento no Brasil.
    Nada foi dito sobre a nova legislação possibilitar que os pobres fiquem cada vez mais distantes do acesso à água tratada e ao saneamento e que o alegado prazo próximo a vencer, para o fim dos lixões, foi prorrogado. Não foi dito, igualmente, que as empresas multinacionais dispõem agora de uma chance de ouro para controlar também as cobiçadas águas brasileiras.

    Esse, aliás, parece ser o ponto essencial, porém obscuro nessa legislação.

    A nova lei trata da questão do saneamento, mas empresas de saneamento são também as que fornecem água. Assim, a privatização das primeiras traria, como consequência, também a privatização das águas, cujo fornecimento ficaria a cargo de quem visa apenas o lucro.

    Dos atuais 5.571 municípios brasileiros, no máximo 500 têm condições de atrair investimentos no setor. Sem dúvida haverá disputa pela privatização de empresas estatais em grandes metrópoles como Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Curitiba e Brasília.

    Mas quais empresas se interessarão por fornecer serviços em municípios pobres do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, no sertão nordestino ou no interior da Amazônia? Esses, certamente, serão abandonados à própria sorte, pois o chamado “investimento cruzado”, que determina que o lucro obtido pelas empresas estatais nas áreas mais ricas seja aplicado nas regiões pobres e carentes, não existirá mais.

    Jereissati e sua Coca-Cola

    Não há também justificativa social para a pressa com a qual essa nova legislação foi aprovada. O relator da matéria, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), rejeitou todas as emendas de mérito propostas para que o texto não voltasse à Câmara dos Deputados para uma nova apreciação. A oposição propôs que a matéria fosse debatida após o fim da pandemia. Deveria ter sido o caminho natural, diante de uma medida de tamanha
    importância, mas foi derrotada.
    De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Sinis) de 2018, mais de 83% da população brasileira tem acesso a serviços de abastecimento de água e 53,2% usam serviços de esgotamento sanitário. O marco legal anterior, estabelecido por lei de 2007, definia diversos princípios fundamentais como universalidade, integralidade, controle social e utilização de tecnologias apropriadas.
    Também estabelecia funções de gestão para os serviços públicos, como planejamento municipal, estadual e nacional e a regulação, que devem ser usados como normas e padrões. Uma das mudanças mais significativas introduzida pelo novo Marco foi a retirada da autonomia dos estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão água para as populações e cuidarão dos resíduos sólidos.
    Em síntese, o que foi aprovado é um enorme retrocesso sob a ótica dos interesses da maioria da população. Razão pela qual a aprovação desse novo marco legal provocou reação imediata apenas nas redes sociais, pois a mídia corporativa o apoia e o endossa, bem como a toda a agenda ultraliberal de Paulo Guedes.

    “Sobreviverá quem puder pagar”, escreveu a destacada jornalista Hildegard Angel, ao frisar que “a água de nossas nascentes, fontes, rios, lagoas não pode ter dono. Querem engarrafar a água (…) colocar uma etiqueta e botar preço”.

    Já o deputado e ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias (PT-MG), preferiu lembrar que “a privatização das águas foi votada no dia em que morreram mais de 1100 brasileiros”, acrescentando que é “assustador observar esse tipo de prioridade, que é do grande capital e do mercado, não dos brasileiros”.

    Mais contundente, a presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, a companhia estatal de águas e saneamento do Estado de São Paulo, socióloga Francisca Adalgisa, garantiu que “é bala na cabeça da população mais pobre”, pois se essas empresas não forem privatizadas, também não receberão mais recursos do governo para os investimentos de que necessitam.
    Nada disso parece ter sensibilizado uma população anestesiada em meio a várias pandemias simultâneas. E o lobby pela privatização cresce e aposta na vitória de candidatos “sensíveis” ao mercado nas eleições desse ano nas principais capitais para facilitar as vendas.

    Ribs


    Atualmente no Brasil os serviços de água e esgoto são prestados, em sua grande maioria, por empresas estatais, não sendo vedada a possibilidade de associações entre entes estatais e o setor privado, através das chamadas parcerias público-privadas (PPPs). Nesse sentido, a Sabesp, a empresa de saneamento de São Paulo, é um mau exemplo, que a mídia corporativa brasileira esconde. Mesmo pública, a empresa tem 50% de seu capital privado. Os acionistas dão as cartas e deixam milhões de pessoas sem coleta e tratamento de esgoto na maior cidade do Brasil e da América Latina.

    Outro mau exemplo do que faz o setor privado nessa área é Manaus. Com 20 anos de gestão privada, a capital amazonense tem apenas 12,5% de cobertura de esgoto, dos quais só 30% são tratados. Mais de 600 mil pessoas – um terço do total da população -, continuam sem acesso à água potável. Não por acaso Manaus liderou a primeira onda de mortes por coronavírus no país e o risco de um retorno do vírus, mais forte ainda, na cidade é real.
    Por isso, o economista Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), consultor de agências da ONU e autor de mais de 40 livros sobre desenvolvimento econômico e social, propõe que diante do Covid-19 e da situação caótica da economia brasileira sob a gestão Bolsonaro é fundamental o resgate do papel do Estado, a adoção da renda básica generalizada, o reforço da saúde pública e o financiamento local, com a transferência, de maneira organizada, de
    recursos a cada município. “É no nível local que se sabe qual bairro é mais ameaçado, onde falta água ou saneamento, quais famílias estão mais fragilizadas”, afirma.
    O que Dowbor defende é o oposto do que define a nova legislação. Na mesma linha, o economista francês Thomas Piketty, autor de “Capital e Ideologia”, seu mais recente trabalho lançado no país, diz que as elites brasileiras cometem um erro ao perpetuar o abismo social, comprometendo o futuro da nação.
    Diferentemente do que pensa Piketty, as elites brasileiras sabem o que querem. Em 2009, no XXIII Fórum da Liberdade, promovido pelo Instituto Millenium, um think tank brasileiro ultraliberal, o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, figura reverenciada pela mídia nacional, proclamava: “jamais os direitos humanos irão suplantar o direito à propriedade”.

    Nos oito anos em que governou o Brasil (1995-2003) isso foi verdade. Seu governo privatizou mais de 100 empresas, entre elas a mineradora Vale do Rio Doce, rebatizada como Vale S.A. O argumento era o de sempre: “ineficiência” e falta de recursos para investir no setor.

    Doze anos depois, a Vale foi responsável pelos dois maiores crimes humanos e ambientais da história brasileira: o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais, com a morte de duas centenas e meia de pessoas e a destruição da bacia do rio Doce, um dos maiores da região Sudeste. As famílias dos mortos, desaparecidos e dos atingidos pela lama e água contaminada ainda lutam para receber indenizações. Enquanto isso, as ações da vale seguem nas alturas.
    Foi também no governo de Fernando Henrique Cardoso que o Brasil passou a ter agências reguladoras para fiscalizar a atuação das empresas recém-privatizadas. O resultado é que essas agências, Anatel, na área da telefonia, Anac, na aviação civil, e Aneel, nas águas e energia, rapidamente foram colonizadas pelo capital privado, por aqueles a quem deveria fiscalizar. E acabam não fiscalizando nada. Resultado: serviços de péssima qualidade, tarifas caras e cidadãos transformados em meros consumidores. E os serviços, antes um direito social, viraram atividade econômica regulada pelo mercado, possibilitando basicamente acúmulo do capital privado.

    Durante a realização do 8º Fórum Mundial da Água, em 2018 em Brasília, empresas como a gigante nacional de refrigerantes e cervejas Ambev, e as multinacionais Nestlé e Coca-Cola participaram do evento como financiadoras, mas também fizeram várias sugestões. Coincidentemente, essas sugestões, pelas mãos do senador Tasso Jereissati, foram transformadas em projeto de lei e agora integram o novo Marco do Saneamento. Para quem não sabe, Jereissati é acionista da Coca-Cola Brasil e um dos maiores interessados em entregar à iniciativa privada os bens comuns nacionais.
    Duramente criticadas pelos brasileiros em suas redes sociais, essas empresas apressaram-se em dizer que não têm nada a ver com a privatização de águas no país. A Coca-Cola Brasil divulgou um longo texto em que considera “boato” qualquer relação com o novo Marco Legal do Saneamento Básico. Já a Nestlé, há anos, vem desmentindo, também por redes sociais, que tenha interesse em privatizar o aquífero Guarani, uma reserva de 1,2 milhões de quilômetros quadrados, compartilhada por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

    Esse assunto, claro, nunca é tratado nas TVs ou emissoras de rádio.

    O então presidente da República, Michel Temer, que chegou ao poder depois do golpe, travestido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff em 2016, também negou que houvesse qualquer entendimento nesse sentido. Mas não deixa de ser coincidência que tenha sido em seu governo que o primeiro projeto de lei alterando a legislação de 2007 sobre saneamento fosse enviado ao Congresso.
    Igualmente não deixa de ser coincidência que esse novo marco tenha sido aprovado a toque de caixa pelo governo Bolsonaro, em plena pandemia, quando a população brasileira está assustada com o número crescente de mortos e sem condições de protestar nas ruas e praças públicas, como sempre fez.
    Pelo visto, o governo Bolsonaro está seguindo à risca a proposta de seu mundialmente criticado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para quem a pandemia deveria ser aproveitada “para passar a boiada”.
    As medidas impopulares não só estão sendo aprovadas, como se preparam para sair do papel sem que a maioria das pessoas se dê conta disso. Quando perceberem, poderão já estar pagando muito mais caro pela água que utilizam. Ou, pior ainda: tendo que escolher entre cozinhar e tomar banho.

    Charge de Bacellar


  • QUESTÃO MILITAR

    QUESTÃO MILITAR

     

     

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Charge de Netto

    Costuma ser imediata a associação de Jair Bolsonaro com a ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Faz todo sentido, pois Bolsonaro ficou quase 30 anos no Congresso nacional usando a tribuna parlamentar para elogiar a Ditadura. Todo 31 de março lá estava o deputado Bolsonaro a soltar rojões em comemoração ao golpe de 1964.

    Porém, se formos olhar com cuidado a trajetória política de Bolsonaro para além da retórica, perceberemos que seus vínculos com as forças armadas precisam ser relativizados. Bolsonaro foi expulso do Exército em condições até hoje nebulosas, não chegou às altas patentes, tinha fama de arruaceiro e indisciplinado. Passou mais tempo no Congresso nacional como deputado de baixo clero do que no Exército como capitão de artilharia.

    Bolsonaro nunca foi uma liderança militar envolvida na política institucional. Era um político profissional que, por acaso, tinha sido militar.

    Essa relação um tanto distanciada entre Bolsonaro e as Forças Armadas fica ainda mais clara se acompanharmos na lupa ampliada a crônica de seu governo.

    É verdade que os generais estão no governo desde o início, mas não eram o núcleo mais influente. Nem perto disso. É que um governo sempre é disputado por dentro, com vários núcleos competindo entre si o poder de influenciar o presidente.

    Durante o primeiro ano de governo, Bolsonaro esteve mais próximo do núcleo ideológico, operacionalizado pelo Carluxo, chefe do gabinete do ódio, e comandado a partir da Virgínia, pelo autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Também Eduardo Bolsonaro tem atuação destacada aqui. Em fevereiro de 2019, Steve Banon anunciou Eduardo como o líder sul-americano do “The Moviment”, movimento internacional de extrema direita.

    Desde a década de 1990 que Olavo de Carvalho dizia que a ditadura militar não tinha sido capaz de dar cabo do marxismo cultural no Brasil. A ditadura teria “prezado demais pela institucionalidade e não teve a coragem necessária para arrancar o mal pela raiz”, nas palavras do próprio Olavo em sua página do twitter.

    O núcleo ideológico nunca confiou no núcleo militar. Isso explica os constantes ataques do gabinete do ódio aos generais. Tudo sempre foi feito publicamente, sem nenhum pudor, e com o consentimento silencioso do próprio presidente.

    Carluxo, Eduardo e Olavo de Carvalho usavam suas contas no twitter para denunciar o que consideravam ser o pouco compromisso dos generais com o presidente. Não raro, falaram em traição, como no caso da tramitação da PLN04/2019, que propunha a liberação de 249 bilhões de reais em crédito suplementar para o governo. Carluxo ficou muito incomodado com o pouco envolvimento dos generais na causa.

    Hamilton Mourão era o principal alvo. Heleno também não passou imune. No primeiro semestre de 2019, os ataques foram ininterruptos, culminando com a demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo, no final de junho.

    Se o deputado Bolsonaro era nostálgico, saudosista da Ditadura, o presidente Bolsonaro é outra coisa. É fundamental destacar as diferenças entre o deputado de baixo clero e o presidente carismático.

    O deputado é filho de março de 1964. O presidente é filho de junho de 2013.

    O presidente e seus conselheiros mais próximos nunca confiaram nas Forças Armadas. O objetivo inicial não era reeditar a ditadura nos moldes de 1964. Os objetivos eram outros.

    Primeiro, investir na constante polarização ideológica a ponto de fidelizar uma base social orgânica leal, disciplina e armada. Depois, organizar um regime de força fundado em milícias, mais fáceis de serem doutrinadas no compromisso com o projeto maior: “Destruir o globalismo cultural”, pra citar outra vez Olavo de Carvalho.

    Não à toa, em junho de 2019, o governo publicou quatro versões do “Decreto das armas”, liberando para comercialização ampla armamentos de uso exclusivo das Forças Armadas, sem consultar as Forças Armadas. Definitivamente, o presidente Bolsonaro não é um saudosista da Ditadura Militar.

    Mas como na política o mundo gira rápido, Bolsonaro foi obrigado a se reaproximar dos generais, levando, em fevereiro de 2020, Braga Netto para a chefia do ministério politicamente mais importante.

    Sem apoio no Congresso depois de ter rompido com o PSL (novembro de 2019), sob constante desconfiança do STF e com a derrota da revolta miliciana do Ceará (fevereiro de 2020), Bolsonaro precisou apelar para os generais. Não fez por ideologia, não fez por projeto. Fez porque estava acuado, isolado.

    Onde quero chegar?

    Quero dizer que as relações entre Bolsonaro e os generais sempre foram tensas e marcadas pela desconfiança recíproca. Até agora, eles nunca estiveram do mesmo lado.

    Até agora.

    Em 2 de maio, Sérgio Moro prestou depoimento na sede da Polícia Federal, lá em Curitiba. Disse que Bolsonaro falou abertamente em reunião ministerial que queria interferir na PF para proteger seus filhos. Todos os ministros estavam presentes. Todos, incluindo os generais Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno.

    Se Moro estiver falando a verdade, os generais presenciaram Bolsonaro cometendo um crime e não falaram nada. A omissão é crime de prevaricação. Na pessoa de Celso de Mello, o STF agiu, convocando os generais pra depor.

    O STF colocou três generais do Exército numa sala de depoimento, sendo interrogados pela Polícia Federal. Esse é daquele tipo de evento que sempre tem desdobramentos, nunca fica por isso mesmo. Na voz de Mourão, os generais reagiram. Mourão foi à imprensa criticar o STF, acusar a corte de “ultrapassar seus limites constitucionais”. Para os generais envolvidos na confusão, resta apenas defender Bolsonaro e se enlamear nas picaretagens envolvendo o clã presidencial. Caso contrário, assumem a prevaricação.

    Pela primeira vez, Bolsonaro e os generais estão do mesmo lado. Temos aqui um fato novo na dinâmica da crise. Um fato de primeiríssima importância, e da maior gravidade.

    “As Forças Armadas não apoiam nenhum tipo de golpe contra a democracia”, reza o mantra repetido pelas notas publicadas pelo Ministério da Defesa sempre que Bolsonaro ameaça os outros poderes da República.

    As Forças Amadas não apoiam golpe até o momento em que começam a apoiar, até o momento em que surge um motivo para apoiar, até o momento em que começa a existir uma questão militar.

     

  • O remédio amargo e necessário do impeachment

    O remédio amargo e necessário do impeachment

    Por Ruy Samuel Espíndola, advogado e professor de Direito Constitucional

     

    Entre os 178 Países que sofrem, atualmente, com a pandemia de covid-19, nenhum deles experimenta uma específica patogenia complementar: a ameaça real à integridade de suas instituições democráticas. O Brasil precisa agir rápido para evitar a eclosão de uma epidemia antidemocracia, tendo em conta o comportamento contaminador do presidente da República, Sr. Jair Bolsonaro.

    A democracia admite opiniões e proselitismos que lhe contrariem, o que a ditadura não permite, de modo algum, seja ela de direita ou de esquerda. Mas a Constituição, em um Estado de Direito, impõe o limite para que opiniões e proselitismo antidemocráticos não se transformem em ações e comportamentos concretos, que objetivem implodir a democracia, no ânimo de estatuir ditadura ou outra forma autocrática.

    Nossa Constituição prevê vários instrumentos para salvaguarda da normalidade democrática, sobressaindo, como última arma de defesa, o impeachment, quando o agressor for o Presidente da República e os demais diques não se mostrarem bastantes para conter os seus ímpetos inconstitucionais. O Congresso, o STF e a Imprensa Livre, compõem os elementos de contenção, todavia, se passam a ser ameaçados de agressão ou efetivamente agredidos, o uso da arma de maior calibre se mostra necessário.

    Na mesa do Presidente da Câmara dos Deputados aguardam despacho 26 petições  que pedem impedimento do presidente da República. Juntas compõem um minucioso relatório a dotar de justa causa um eventual impeachment. Entre as principais causas de pedir figuram: as recentes revelações pelo ex-ministro Sérgio Moro de (i) interferência política na Polícia Federal; (ii) a participação em vários atos pró-intervenção militar; (iii) disseminação de notícias falsas, ataques a jornalistas e a veículos de imprensa; e (iv) desobediência ao isolamento social exigido pela covid-19, ao promover aglomerações e estímulos para que cesse, mesmo diante do crescimento acentuado do número de contaminações e óbitos.

    Os acontecimentos de sábado e domingo (2 e 3 de maio), entrelaçados em causalidade, aprofundam a justa causa para impeachment.

    No sábado, após 8 horas de depoimento, o ex-ministro Moro trouxe novas provas sobre a alegada tentativa de interferência sobre a Polícia Federal. A depender do seu conteúdo e veracidade, poderão robustecer essa causa de pedir.

    Domingo, manifestações explícitas patentearam a real intenção delitiva do Presidente, ao dizer em transmissão pública que: “o povo está ao meu lado, e as Forças Armadas estão ao lado do Povo e do meu Governo”; “cheguei  ao meu limite”; que não tolerará, que não terá “mais paciência” contra atos dos demais poderes que venham a conter sua vontade de poder.

    Ao dizer tudo isso, justamente perante manifestação popular que pedia, expressamente, intervenção militar, fechamento do Congresso e do STF, Bolsonaro transgrediu a linha que separa a atuação governamental da consumação de crime de responsabilidade. E sua conduta durante a manifestação também transgrediu regras legais sanitárias; confrontou exigências médico-científicas e estimulou ações que agravam a crise pandêmica. Além do que, sob o seu olhar, ainda que por omissão, jornalistas foram fisicamente agredidos pelos manifestantes, que apenas refletiram, em atos físicos, repetidas manifestações presidenciais contra veículos de imprensa que lhe expressam opiniões desfavoráveis.

    Assim, os temas da “intervenção militar”, “da Covid-19” e “agressão à liberdade de imprensa”, ganharam robustez, pois ficaram patentes as condutas que os tipificam como crimes de responsabilidade: atos que atentaram contra o livre exercício do Congresso Nacional e do STF (artigos 4º, II c/c  6, item 1, 7º, itens 7 e 8 da Lei 1.079/50); atos que atentam contra o exercício do direito social à informação dada pela imprensa e contra o direito individual de jornalistas de realizarem seus trabalhos (artigo 4º, III c/c 7º, item 9); atentado ao direito social à saúde dos brasileiros (artigo 4º, III c/c 6º, itens 7 e 8, 8º, itens 4, 7 e 8); ato revelador da intenção de não cumprir decisões judiciárias que contrariem sua vontade de poder (4º, VIII c/c 6º, item 5, 12, item 2).

    Novo pedido de impeachment poderia ser apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil, conjuntamente com a Associação Brasileira de Imprensa, em proteção do livre exercício do Congresso Nacional, do STF e da Imprensa, como medida profilática a barrar o surto de antidemocracia derivado do patogênico comportamento presidencial. Que esses agentes sanitários da institucionalidade, apoiados pelas forças democráticas e progressistas que se encontram dentro e fora dos poderes constituídos, impeçam a eclosão de uma epidemia que pode tomar o País e afetar drasticamente a saúde da nossa liberdade. Epidemia que poderá levar a óbito ou aleijar de forma irrecuperável, por “síndrome aguda respiratória”, a nossa ameaçada democracia constitucional.

    Para a pandemia de Covid-19 ainda não há vacina, mas para se evitar à eclosão epidêmica da antidemocracia existe o remédio do impeachment.

     

    Ilha do Desterro, SC, 4 de maio de 2020

  • Como funciona o lobby internacional contra descriminalização do aborto no Brasil

    Como funciona o lobby internacional contra descriminalização do aborto no Brasil

    Por: Luiza Villaméa e Mônica Tarantino (originalmente publicada pelo El País Brasil)

    Uma rede de organizações espalhadas por todo o Brasil está cada vez mais presente –e influente– no Congresso Nacional. Tem como principal bandeira proibir o aborto no país e influenciar os 35 projetos sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado. E novos projetos nessa linha continuam a chegar, junto com parlamentares de primeiro mandato eleitos com os votos dessa rede, como o senador Eduardo Girão (Pode-CE) e as deputadas Chris Tonietto (PSL-RJ) e Flordelis (PSD-RJ). Novatos e antigos são abordados por ativistas da causa até nos cafés do Congresso. “É onde acontecem os encontros, por onde passam os tomadores de decisão”, assume Hermes Rodrigues Nery, coordenador do Movimento Legislação e Vida, uma grande liderança contra o aborto no Brasil e presença constante no Congresso.

    Professora da UnB e militante contra a descriminalização Lenise Garcia defende a proibição do aborto em qualquer circunstância

    A atuação mais visível desses grupos de pressão é a Marcha Nacional pela Vida, que acontece em Brasília em junho e se multiplica no decorrer do ano em versões regionais. Na retaguarda, estão juristas, acadêmicos, religiosos, médicos, empresários, assessores parlamentares, editores, toda uma gama de profissionais que fornece argumentos e participa de debates e audiências públicas. Dentro do próprio Congresso, têm representação de peso. A Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família da atual legislatura reúne mais de 200 congressistas. Evangélicos, católicos, espíritas se unem sob a mesma bandeira.

    Hermes Rodrigues Nery investe no corpo a corpo com parlamentares nos cafés do Congresso (Foto: Marcelo Laganaro)

    Há quem entre na política para fortalecer o grupo, que costuma se identificar como pró-vida. É o caso do senador Eduardo Girão, empresário que disputou sua primeira eleição no ano passado. Um dos fundadores do Movida, organização que tem como principal meta banir o aborto, Girão não demorou a mostrar a que veio. Onze dias depois de tomar posse, ele desarquivou uma Proposta de Emenda à Constituição do senador não-reeleito Magno Malta que inclui o termo “desde a concepção” no artigo relativo ao direito à vida. É a chamada PEC da Vida. Se for aprovada, nem grávidas em risco de morte, vítimas de estupro ou com fetos anencéfalos poderão adotar o procedimento, como garante a lei hoje. Relatora da proposta na Comissão de Constituição e Justiça, a senadora Selma Arruda (PSL-MT) apresentou parecer favorável na quarta-feira 24 de abril, abrindo exceção para quando não houver outra forma de salvar a vida da gestante ou se a gravidez decorrer de estupro. A comissão, no entanto, pode aprovar a proposta mais restritiva.

    “Precisa de três quintos dos votos dos senadores para aprovar no plenário, mas a chegada de Girão ao Senado favorece. A PEC muda a Constituição, é muito mais abrangente do que o Estatuto do Nascituro”, ressalta o ex-deputado Luiz Bassuma, referindo-se ao projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados desde 2007. Espírita como Girão, Bassuma é um dos autores do projeto, que garante ao feto os mesmos direitos dos nascidos vivos e prevê assistência financeira às vítimas de estupro que não abortarem. “O pessoal pró-aborto distorceu isso, como se estivéssemos criando uma bolsa estupro. É para que nenhuma mulher aborte por falta de dinheiro. Se o estuprador não tiver condições, o Estado assume”, diz Bassuma.

    Mesmo sem mandato, Bassuma acompanha de perto a tramitação do Estatuto do Nascituro, deslocando-se com frequência de Salvador, onde mora, para Brasília. O projeto avança por esforço coletivo. Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Família e da Vida, o deputado Diego Garcia (Pode-PR) começou o ano legislativo com um pedido para promover uma audiência pública sobre o Estatuto do Nascituro. Ano passado, no auge da campanha eleitoral, Garcia já tinha alavancado o projeto com um parecer favorável à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher: “Ainda que seja pequena a expectativa de duração de vida extrauterina, a proteção do nascituro deve ser efetivada”.

    Outra figura de peso nessa rede virou ministra do Governo Bolsonaro e agora defende “o direito à vida desde a concepção” até no Conselho de Direito Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça. É a pastora e advogada Damares Alves. “Sou contra o aborto em qualquer circunstância. Todos sabem, todos conhecem”, repete Damares desde 1999, quando começou a atuar em Brasília como assessora parlamentar. Desde então, ela trabalhou no gabinete de quatro parlamentares – todos evangélicos e defensores da mesma causa. Além de ministra, Damares é secretária nacional de Relações Institucionais do Brasil Sem Aborto –Movimento Nacional da Cidadania pela Vida.

    Questionada pela reportagem, a Fiocruz foi categórica em desmentir a informação: “Levantamento feito pela área financeira da instituição não identificou qualquer projeto em relação ao aborto vinculado às verbas mencionadas. A verba foi para a área de saúde da mulher e da criança.”

    O Brasil Sem Aborto foi criado em 2007 pelo então assessor parlamentar Jaime Lopes, que procurava uma mulher para comandar a organização. No ano seguinte, a farmacêutica Lenise Garcia, professora de microbiologia da Universidade de Brasília, participou de uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre o uso de células-tronco embrionárias para pesquisa. Lenise era contra, o Supremo decidiu a favor. Por afinidade de ideias, o Brasil Sem Aborto ganhou uma presidente. Há 11 anos na função, ela tornou-se a mais atuante acadêmica em audiências e palestras contra o aborto, nas quais exibe uma réplica de plástico de um feto de 12 semanas, similar aos modelos em silicone usados pelos movimentos americanos antiaborto.

    A professora de microbiologia da UnB, Lenise Garcia, costuma expor uma réplica de feto de plástico como forma de persuasão (Foto: Luiza Villaméa)

    “Mostro essas réplicas porque muita gente fala que um embrião é só um punhadinho de células. Um punhado de células eu também sou”, diz Lenise em sua casa, em Brasília, que funciona como uma espécie de sede do movimento. Ela defende a proibição do aborto em qualquer circunstância. Pelo Código Penal Brasileiro, aborto é crime, com pena de um a três anos de prisão para a mulher, exceto nas duas situações previstas por lei (risco de vida e estupro) ou determinada pelo Supremo (anencefalia do feto).

    À frente do Brasil Sem Aborto, Lenise promove encontros com organizações de todo o país. Ainda assim, ela garante não saber o número de entidades que integram o movimento e divaga sobre o financiamento da organização: “Como o tema é controverso, às vezes as empresas dão dinheiro, mas não querem aparecer. Outros ajudam, como empresas de transporte que abrem espaço nos ônibus para nossos cartazes”. Lenise também não alimenta conversas sobre suportes internacionais às organizações pró-vida, embora esses vínculos estejam presentes desde a concepção desses movimentos.

    Em contrapartida, ela faz questão de divulgar dados sobre grupos que atuam pela descriminalização do aborto. “ONGs estrangeiras investem pesadamente para a aprovação do aborto na América Latina. Saiu um artigo recentemente. Investiram 18 milhões de dólares”, declarou no Supremo. Perguntada pela reportagem sobre a fonte de informação, Lenise citou o site Estudos Nacionais. “Está lá. A pesquisa é o doutor Marlon, um médico de Santa Catarina, que publicou um livro sobre o aborto. Sou autora de um dos capítulos”, conta. O doutor Marlon é, na verdade, o administrador de empresas Marlon Derosa, um dos donos da Editora Estudos Nacionais, sediada em Florianópolis (SC). Católico praticante, Derosa milita contra o aborto em qualquer circunstância e decidiu investir no mercado editorial em 2015: “Tinha dificuldade em encontrar livros sobre o aborto que não tivessem orientação pró-legalização”. Ele chegou à cifra de 18 milhões de dólares citada por Lenise pesquisando sites de entidades estrangeiras e nacionais. Uma delas é a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com 4,2 milhões de dólares.

    Questionada pela reportagem, a Fiocruz foi categórica em desmentir a informação: “Levantamento feito pela área financeira da instituição não identificou qualquer projeto em relação ao aborto vinculado às verbas mencionadas. A verba foi para a área de saúde da mulher e da criança.” Depois de divulgados no Supremo, os milhões contabilizados por Derosa passaram a circular como dado confiável nas redes sociais e sites simpatizantes. Processo similar ocorre quando se discute os números do aborto no Brasil, sempre menores na contabilidade dos movimentos pró-vida.

    Derosa é organizador do livro Precisamos Falar sobre Aborto, lançado no final do ano passado no Salão Nobre da Câmara dos Deputados. A escolha do local tem a ver com a meta de sensibilizar os parlamentares para os argumentos contrários ao aborto. São 638 páginas e 13 coautores, estrangeiros e nacionais. Derosa edita ainda uma revista trimestral e mantém um site com frequentes referências ao tema aborto. Um dos mais recentes artigos do site é sobre um homem que conseguiu na Justiça impedir o aborto planejado pela ex-namorada em Mercedes, no Uruguai. Lá, o aborto é permitido até a 12ª semana de gestação.

    No Congresso e fora dele, a rede de pressão inclui juristas. Entre eles está a advogada Angela Vidal Gandra Martins, doutora em Filosofia do Direito e professora da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Sua aproximação com o movimento se deu a partir de uma temporada nos Estados Unidos, onde trabalhou com a Alliance Defending Freedom, organização cristã sem fins lucrativos que atua no direito à liberdade religiosa e aos direitos fundamentais. Em palestras e audiências, ela recorre a argumentos de sua área: “O termo que a Constituição usa é inviolabilidade da vida humana. Inviolável é um termo absoluto”.

    A origem dos movimentos antiaborto do Brasil também está vinculada a grupos americanos, em particular à Human Life International, a maior organização antiaborto do mundo.

    O artigo 5º da Constituição prevê a “inviolabilidade do direito à vida”, mas não determina quando ela começa. A questão é objeto de debates nos meios religiosos e científicos. “Há um movimento conservador internacional que defende o início da vida desde a concepção; outros grupos quando o embrião se implanta no útero; há aqueles que consideram como marco os primeiros sinais de atividades cerebrais e outros, os primeiros batimentos cardíacos fetais”, afirma bioeticista Antônio Carlos Rodrigues da Cunha, coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília. “Na verdade, há uma percepção entre os pesquisadores de que o conceito de início da vida é filosófico e não embriológico.”

    A organização Católicas pelo Direito de Decidir, que é a favor da descriminalização e da legalização do aborto, também não tem uma resposta sobre o início da vida. Coordenadora executiva da organização, a psicóloga Rosângela Talib esclarece que as Católicas priorizam a autonomia das mulheres sobre a sua vida e o seu corpo: “O aborto para a Igreja não é um dogma, como a virgindade de Maria. Faz parte dos seus ensinamentos. Diante de situações difíceis, o princípio maior é a consciência do fiel”.

    No embate, os contrários à descriminalização não têm dúvidas: a vida começa na fecundação. Para difundir esse e outros valores no âmbito jurídico, investem também na formação de novos quadros. Em Porto Alegre (RS), a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) acaba de contemplar 50 bolsistas para um curso de 40 horas em julho. Destina-se a estudantes ou recém-formados em Direito e terá entre os professores o americano Jeffery Ventrella, da Alliance Defending Freedom, sediada no Arizona. Na organização, Ventrella dirige um programa de nove semanas criado em 2000, que já treinou mais de 2.100 estudantes de Direito de 21 países, alguns deles selecionados no Brasil pela Anajure.

    A origem dos movimentos antiaborto do Brasil também está vinculada a grupos americanos, em particular à Human Life International, a maior organização antiaborto do mundo. A entidade participou da criação do Movimento em Defesa da Vida, lançado no Rio de Janeiro pelo monsenhor Ney Affonso de Sá Earp. Em julho de 1989, o próprio fundador da Human Life, padre Paul Marx, veio ao Brasil para a primeira ação do Defesa da Vida. Veio também a ativista Joan Andrew, uma espécie de estrela do movimento nos Estados Unidos, onde o aborto é legalizado.

    Junto com 20 manifestantes, o monsenhor promoveu uma Operação Resgate –como chamam o bloqueio da entrada de clínicas de aborto–, diante da Clínica Santiago, em Botafogo. Entre os manifestantes estava o criador do GBM, grupo que atuava de forma isolada em Santa Catarina e continua ativo. Depois do episódio no Rio, o monsenhor e seus parceiros americanos trataram de espalhar o movimento pelo Brasil.

    A visita do grupo à cidade de Anápolis (GO) culminou na criação de um dos núcleos mais fortes do movimento. Na ocasião, foi lançado o Pró-Vida de Anápolis, hoje sob a liderança do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, o padre Lodi. Em Brasília, ele chama a atenção por circular, sempre de batina preta, em todos os espaços nos quais se debate os direitos reprodutivos da mulher. Muitas vezes acompanhado por fiéis com terço na mão. Não pestaneja ao tratar do tema: “O aborto é o homicídio preferido do demônio”. Recusa-se, no entanto, a dar entrevista: “Só falo com a mídia pró-vida.”

    Hoje, o mais articulado parceiro da Human Life International no Brasil é Hermes Rodrigues Nery, conhecido como professor Hermes, aquele que investe no corpo a corpo com parlamentares nos cafés do Congresso. Depois de presidir por três anos a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, ele agora está à frente do Movimento Legislação e Vida. Embora more na cidade paulista de São Bento do Sapucaí, onde trabalha na prefeitura, ele se desloca para onde for necessário. Sem entrar em detalhes nem revelar nomes, Nery afirma que, para circular pelo Brasil e pelo mundo, conta com a ajuda financeira de amigos.

    “Estive recentemente nos Estados Unidos, com lideranças conservadoras. Mike Pence, o vice-presidente, é muito pró-vida. E o Governo Trump tem cortado verbas para ONGs abortistas”. Nery também conhece de perto a Pontifícia Academia do Vaticano e a Polônia, país de arraigada tradição católica. Lá, a interrupção voluntária da gravidez era autorizada entre 1956 e 1993, mas hoje o país tem as leis mais restritivas sobre o aborto de toda a Europa.

    No interior da Igreja Nossa Senhora do Rosário, em São Bento do Sapucaí, ele lembra que depois de perder a batalha no Supremo sobre o uso de células-tronco embrionárias em 2005, as lideranças pró-vida mudaram de estratégia: “Em vez de atuar só contra o aborto, entramos com ações propositivas, como a PEC da Vida. Em fevereiro de 2015, procuramos o senador Magno Malta. Levamos informações, ajudamos na redação do projeto. Na época, o Luiz Bassuma, autor do Estatuto do Nascituro, e Damares Alves estavam assessorando o senador. A ideia de explicitar na Constituição que a vida começa na fecundação tinha surgido durante uma conversa com o jurista Ives Gandra Martins”.

    A mais recente frente de combate dos pró-vida envolve neutralizar o “ativismo do Supremo”. Isso porque lá correm duas ações relativas ao aborto. Uma, para descriminalizá-lo até a 12ª semana de gestação, proposta pelo PSOL. Outra, para permitir a interrupção da gravidez nos casos de gestantes infectadas pelo vírus zika, protocolada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos. Para impedir que o Tribunal decida sobre essas questões, um grupo de senadores tenta acelerar a aprovação da PEC da Vida. Na Câmara, já tramita projeto de lei que permite enquadrar ministros do Supremo em crime de responsabilidade por “usurpação de competência” do Poder Legislativo. É o lobby contra o aborto em ação.

     

    GRUPO DE SC CHEGOU A INVADIR CLÍNICAS PARA IMPEDIR INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ

    LUIZA VILLAMÉA

    Cada vez que o aborto entra em discussão no Congresso, mensagens eletrônicas são disparadas da pequena cidade de Rancho Queimado, em Santa Catarina. São endereçadas à rede de 500 mil apoiadores do Movimento GBM em todo o país, para que acionem deputados e senadores. A iniciativa visa barrar a legalização do aborto no Brasil, como afirma a presidente do GBM, Kateri Werlich: “Alguns parlamentares ouvem esse clamor. Outros fazem de conta que não é com eles”.

    Werlich conta que a mãe biológica de Kateri desistiu de interromper a gravidez e entregou a criança para que ele a criasse (Foto: Luara Wandelli Loth)

    “Começamos invadindo abortórios. Fazíamos denúncias. Ajudamos a colocar bastante gente na cadeia, mas a polícia encobria muita clínica clandestina”

    Fundado em 1973 pelo pai de Kateri, Sabino Werlich, o GBM é o mais antigo grupo de pressão contra o aborto do país. “Começamos invadindo abortórios. Fazíamos denúncias. Ajudamos a colocar bastante gente na cadeia, mas a polícia encobria muita clínica clandestina”, conta Sabino, 81 anos. As ações eram feitas em conjunto com a mulher, Vali, hoje afastada das atividades do movimento.

    O casal não teve filhos, mas adotou dez crianças, entre elas Kateri. Há 30 anos, a mãe biológica de Kateri pensava em abortar, quando um padre da cidade onde ela morava, Itajaí, falou sobre os Werlich. “Ela veio para Rancho Queimado e, a partir do quarto, quinto mês de gravidez, ficou morando com meus pais. Após o parto, me entregou para eles”, diz Kateri, a única da família que ainda mora com o pai.

    O padre de Itajaí, por sua vez, conhecia o GBM por causa do jornal Em Defesa da Vida, que o movimento publica há 36 anos e distribui para paróquias e apoiadores. Com quatro páginas, trimestral, trouxe na primeira página da mais recente edição um artigo do padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, de Anápolis, contra a ação que tramita no Supremo Tribunal Federal para liberar o aborto até a 12ª semana de gestação.

    “A última tiragem foi de 15 mil exemplares, mas já chegamos a tirar 200 mil. Falta apoio financeiro”, diz Kateri. Nem sempre foi assim. Apesar de sofrer lapsos da memória, Sabino se recorda bem da ajuda que recebeu em dólares do padre Paul Marx, fundador do Human Life International, e da ativista Joan Andrews Bell. Ambos americanos, eles vieram ao Brasil em julho de 1989, para difundir o movimento Brasil afora. No Rio de Janeiro, fizeram um protesto diante de uma clínica clandestina de aborto.

    Sabino participou do protesto no Rio e voltou para Rancho Queimado com recursos para fazer melhorias na sede, que até hoje se estende por uma área de 2,5 mil metros quadrados. Ele não se lembra mais da quantia recebida, só da orientação de que era para “trocar aos poucos, gastar o do dia e guardar o resto”. Kateri, que sucedeu ao pai no comando do movimento, garante que atualmente não recebe nenhuma ajuda do gênero.

    Instalada em uma rua que Sabino conseguiu batizar como Nossa Senhora Protetora dos Nascituros, a sede tem construções modestas, mas amplas. Além de capela, escritório e das casas de Sabino e Kateri, abriga uma rádio que jamais foi legalizada e hoje está desativada por problemas técnicos.

    O nome GBM é homenagem à médica italiana Gianna Beretta Molla, que escolheu manter uma gravidez de risco que culminou em sua morte, em 1962. Em maio de 2004, ela foi proclamada santa pelo papa João Paulo II, mas Kateri lembra que essa possibilidade não estava no horizonte dos Werlich quando escolheram o nome do movimento: “Eles simplesmente se encantaram com a história dela. O marido dela, Pietro Molla, mantinha contato com o movimento, por cartas”.

     

    A fundadora do Centro de Reestruturação para a Vida, Rose Santiago (Foto: Marcelo Laganaro)

     

    ORGANIZAÇÃO ATRAI MULHERES COM DE ANÚNCIOS DE FALSO SUPORTE À GRAVIDEZ INDESEJADA

    MÔNICA TARANTINO

    À primeira vista, nada indica que o Cervi – Centro de Reestruturação para a Vida –, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, é uma organização contrária ao aborto. No site que oferece suporte às mulheres para lidar com a gravidez indesejada e o abuso sexual, esse posicionamento não fica claro. Assim como não está explícito para aquelas que chegam encaminhadas por unidades básicas de saúde, hospitais ou delegacias com os quais o Cervi trabalha em parceria. Além de aconselhamento, a associação providencia testes de gravidez, encaminha para o pré-natal e para cursos profissionalizantes. Criado em 1999, o Cervi informa que já atendeu mais de 18 mil mulheres. “Eu diria que temos uns cinco mil filhos”, diz sua principal fundadora, a tradutora Rose Santiago. Os cabelos roxos, as tatuagens e a postura despojada de Rose evidenciam sua busca por maior empatia com as mulheres que procuram o serviço. Mineira de Poços de Caldas, ela representa a ala mais moderna de um movimento que evita o convencimento por meio de argumentos religiosos e exibição de imagens chocantes de fetos na hora de levar as mulheres a mudarem de ideia. “No dia a dia, vi que nossa missão não é religiosa. É alcançar a mulher no bio-psico-social-espiritual. Cuidamos das duas vidas, da mãe e do feto”, explica. Ainda assim, o Cervi faz parte da Rede Solidária da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo.

    O modelo do Cervi é inspirado nas organizações americanas Pregnancy Resource Center (PRC) e Life International (LI), que inicialmente financiaram sua atividade. Rose conheceu os fundadores da LI, Fran Malfer e Kurt Dillinger, quando atuou como tradutora no processo de adoção de duas crianças brasileiras. Ficaram amigos e ela foi convidada a representá-los no Brasil. “No começo recebemos ajuda para pagar salários, aluguel e comprar mobília. Hoje nós não representamos mais essas associações e temos uma rede própria de parceiros e mantenedores.” Apesar disso, Rose frequenta os congressos dessas entidades, é convidada para fazer palestras e busca, como a matriz, expandir o seu campo de ação. “Nós estamos abrindo o Cervi em Sergipe e Brasília. Existe um em Porto Alegre que nós treinamos que se chama Servi, com S.”

    Associações com o mesmo propósito do Cervi atuam em todo o país. Alguns tentam atrair as mulheres oferecendo falso suporte ao aborto, como o gravidezindesejada.com, da Associação Mulher. Essa entidade faz parte da Red Latinoamericana de Centros de Ayuda para la Mujer, os CAMs, em atividade nos Estados Unidos, na Espanha e por toda a América Latina. No Brasil, o site da rede informa que há CAMs em São Paulo (nas cidades de Piracicaba, Jacareí e na capital), Rio de Janeiro, Porto Alegre (RS) e Florianópolis e Três Barras (SC). Outras instituições com atuação similar são a Associação Guadalupe em São José dos Campos (SP) e Missão Fiat, em Campinas (SP), Pró-Vida de Anápolis (GO) e Comunidade Santos Inocentes, em Brasília (DF).

    (Esta reportagem foi produzida com o apoio do edital Jornalismo Investigativo em Direitos Humanos, Aborto e Saúde Pública, uma parceria do Instituto Patrícia Galvão, Abraji e GHS)

  • O elo mais fraco da corrente

    O elo mais fraco da corrente

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Carvall 

     

    O ano político começou com uma vitória contundente do governo, que demonstrou sua força ao interferir diretamente nas eleições das duas casas do Congresso Nacional. O curioso é que a vitória veio depois de um mês muito difícil para Jair Bolsonaro, o mais difícil desde que ele assumiu algum protagonismo na vida pública.

    Jair Bolsonaro saiu de janeiro menor do que entrou. Não dá pra dizer que ele perdeu sua base social ou que sua popularidade tenha tombado. Não há dados suficientes pra saber. Mas ele teve problemas, se deparou com o mundo real, com a cadeira presidencial. Não conseguiu responder à altura. Não conseguiu deixar de ser candidato e se tornar presidente.

    Envolvimento direto do filho mais velho com o crime organizado e com esquema de lavagem de dinheiro. Alvo de denúncias diárias na Rede Globo. Flechas atiradas por setores do Ministério Público. O vice-presidente conspirando à luz do dia, dizendo para todos, sem nenhum pudor, “sou melhor que ele, sou mais equilibrado e mais preparado”. O vexame internacional em Davos. O PSL rachado, com os parlamentares se estapeando entre si. Olavo de Carvalho na internet xingando os aliados.

    Definitivamente, janeiro não foi o paraíso astral de Jair Bolsonaro.

    Mesmo com todos esses problemas, o governo venceu sua primeira grande batalha institucional, elegendo seus nomes prediletos para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado. Rodrigo Maria e Davi Alcolumbre, ambos afinados com a agenda reformista do governo, ambos comprometidos com um velho projeto de desmonte do Estado brasileiro.

    Ao que parece, a fragilidade de Bolsonaro não contaminou o governo. O presidente é fraco, mas o governo é forte. É que vivemos uma situação atípica na qual o governo não se confunde com o presidente. O governo está acima do presidente.

    Há pouco tempo, em artigo contundente publicado na imprensa, o filósofo Marco Nobre disse que Bolsonaro foi o “candidato do colapso”. Ainda não li definição melhor.

    Desde 2013, a sociedade brasileira respira o colapso. O resultado daquilo que aprendemos a chamar de “jornadas de junho” foi a narrativa da ineficiência da democracia na promoção de bem-estar social. Essa narrativa foi reforçada e alimentada à esquerda e à direita.

    A posição de governo não permitiu que a esquerda se apossasse da narrativa do colapso. Ser vidraça é sempre mais difícil do que ser pedra.

    Bolsonaro, que desde a década de 1990 defendia a ditadura militar, herdou sozinho a narrativa do colapso. Ele se tornou o único símbolo de uma utopia autoritária que, idealizando o passado, prometeu segurança e conforto.

    Bolsonaro não precisou fazer quase nada para ser eleito. Não participou de debate, não discutiu plano de governo. Simplesmente montou no jumento que passava selado.

    Mas essa é apenas a superfície da história.

    Nas profundezas, aconteceu a articulação entre um velho projeto de desmonte do Estado brasileiro e a popularidade de Jair Bolsonaro. Essa articulação não estava dada desde o início. Poucos acreditaram na vitória de Bolsonaro. Basta lembrar que ele não conseguiu um vice na classe política. Tentou muito. Ninguém quis apostar.

    O que estou querendo dizer é que as eleições das duas casas legislativas não sinalizam a força de Jair Bolsonaro. Mostram mesmo é o poder do velho projeto, hoje representado pelo DEM, que tem no seu DNA a vocação para o desmonte do Estado brasileiro.

    O DEM, e não Jair Bolsonaro, foi o grande vencedor nas eleições para a presidência da Câmara dos Deputados e do Senado.

    Começando lá atrás, ainda na Primeira República, com o PRP, passando pela UDN e pelo PFL, a genealogia do DEM aponta para um projeto que tem vida longa na história do Brasil: desmontar o Estado e colocar o desenvolvimento nacional sob a tutela do capital privado. Antes, o capital privado morava na Casa Grande e era representado pelos oligarcas. Hoje, o capital privado mora nas grandes corporações e é representado pela especulação financeira.

    Não tem nenhuma novidade aqui. Essa política é velha.

    Quando, em 1º de fevereiro, os eleitos se reuniram para eleger seus presidentes, Bolsonaro convalescia no hospital, tendo pesadelos com seu vice, que exercia com muita animação a presidência interina.

    Enquanto isso, Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil e deputado pelo DEM, se articulava com Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, seus colegas de legenda. Bolsonaro não teve nenhuma direção aqui, não exerceu nenhuma liderança.

    Agora, na presidência das duas casas legislativas e no controle do Ministério responsável pela articulação política do governo, o DEM está mais forte que nunca.

    A força do DEM independe da saúde física e política de Jair Bolsonaro.

    É impossível saber se Bolsonaro completará o mandado. Se ficar quietinho, fazendo o papel de animador de plateia, ficará onde está. Se insistir na paranoia macartista e na política externa kamikaze, será substituído. Nesse cenário, Bolsonaro cai e o governo continua de pé, talvez até mais forte.

    Bolsonaro é o elo mais fraco da corrente.

     

  • A covardia da polícia e a inocência dos estudantes

    A covardia da polícia e a inocência dos estudantes

    Como toda manifestação estudantil, a de ontem não foi diferente. Tudo começou como esperado, muitas palavras de ordem, muita alegria característica da juventude e uma grande inocência em barrar a PEC da Desigualdade no Senado com pouco mais de 20 mil pessoas. Todos gritando pela mesma causa: Fora Temer e contra a PEC 55. Na manifestação, não havia os famosos coxinhas com seus charutos, prosecco, filé mignon, nem empregadas empurrando o carrinho de bebê ou fazendo selfies com a polícia. São jovens politizados que nos últimos anos tiveram acesso a educação de melhor qualidade e hoje sabem dos seus direitos e o que querem. Não vieram a Brasília, depois de passar vários dias dentro de um ônibus, dormir em barraca, para brincar de fazer manifestação. Eles são o futuro do Brasil. Entendem o que o governo golpista está promovendo em nosso país. São valentes e mostraram que a luta só está começando.

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    Ontem foi um dia de protesto na Esplanada. Começou no MEC pela manhã e à tarde o grande ato que acabou com a violência desmedida da polícia. Cada grupo de estudantes que chegava ao Museu da República, local da concentração, era recebido com alegria. Reuniam-se em rodas e preparavam-se entoando jograis e ensaiando intervenções. Um grito de guerra contra o governo Temer estava em cada um deles. Eram grupos de diversas regiões, diferentes sotaques eram ouvidos.

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    Até a saída da caminhada, havia uma divergência sobre como seria a marcha até o Congresso Nacional — talvez essa falta de unidade tenha contribuído para que os verdadeiros vândalos se infiltrassem e, por fim, para a dispersão do ato diante da truculência policial. Uma manifestação sem ninguém coordenando abre uma porta para os baderneiros da hora.

    Para entender o que aconteceu, o bom jornalismo precisa fazer as perguntas que não querem calar. Aí vão elas:

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    12 PERGUNTAS QUE NÃO QUEREM CALAR

    1. Quem são esses baderneiros que chegaram a jogar coquetel molotov na polícia a menos de 30 metros e não foram reprimidos?

     

     

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    2. Algum estudante conhece pelo menos um que participou do quebra-quebra?

     

     

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    3. Por que a polícia não fez a revista de sempre, como acontece em todas as manifestações dos movimentos sociais?

     

    4. Por que a polícia não proibiu carros estacionados na Esplanada, como sempre faz quando vai haver uma grande manifestação?

     

     

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    5. Por que a polícia não prendeu os agitadores que começaram a baderna virando um carro de uma emissora?

     

     

    6. Por que só tinha um carro de imprensa onde todos os dias ficam parados vários de todas emissoras?

     

     

    7. Por que a polícia não saiu batendo nos vândalos como sempre faz e só resolveu jogar bomba de gás lacrimogêneo, gás de pimenta e de efeito moral nos estudantes?

     

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    8. Por que a polícia não saiu dando cacetadas em todos, como gosta de fazer mesmo quando não tem motivo?

    9. Por que a polícia avançava jogando bombas, ameaçava com a cavalaria e recuava, quando os estudantes corriam?

     

    10. Por que os policiais deixavam os baderneiros construírem barricadas com placas de sinalização, lixo e o que encontravam e não reprimiam?

     

     

    11. Por que deixaram colocar fogo em um carro Audi de mais de R$ 200 mil e não fizeram nada, já que estavam a menos de 40 metros?

     

    12. Quanto o governo golpista gastou ontem com todas as bombas que foram lançadas?

     

     

     

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    Quando estávamos nos preparativos da Copa do Mundo no Brasil em 2013, o Exército fez uma demonstração de como agiriam em caso de manifestação violenta contra o evento. Tudo foi armado em uma área de setor policial sul em Brasília. Quando chegamos para cobrir a “manifestação”, fiquei de cara como os atores que seriam os personagens contra a Copa, pareciam com os baderneiros de ontem. Como eles agiam, como se vestiam, como se comportavam, provocando a Polícia. Na apresentação do Exército, todos sabiam que não seriam reprimidos e fizeram a cena muito bem.

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    Ontem, quando fotografava os arruaceiros infiltrados, lembrei dos soldados da “manifestação-teatro” de antes da Copa. A “cena” foi a mesma, eles provocavam a PM, que jogava bomba, ameaçava com a cavalaria e recuava. Depois, começava tudo de novo, barricadas, bombas, reação dos baderneiros e corre-corre. O “gran finale” foi a polícia dispersando todos, principalmente quando anoiteceu, depois de ter vários motivos provocados pelos ”manifestantes”.

    Ontem, não foi diferente.

    Antes de começar a caminhada, um mascarado foi preso com acusação de porte de arma branca. A polícia mostrou seu troféu, um canivete, segundo eles, do manifestante. Será que era manifestante mesmo ou um infiltrado?

    O roteiro seguiu como o de sempre –caminhada e chegada no gramado do Congresso. Quando os últimos participantes chegavam no gramado em frente ao Congresso, a baderna começou, alguns viraram o carro da TV Record, a poucos metros da polícia. A polícia não reprimiu os baderneiros como sempre faz. Em vez disso, começou a jogar bombas para todos os lados, com o propósito claro de provocar tumulto e correria. Parecia uma ação coordenada. Veja no filme que no começo da caminhada todos estão com o rosto descoberto e só os baderneiros têm as faces cobertas.

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    Veio na memória o bardenaço de 84, no governo José Sarney, quando rolou um quebra-quebra muito parecido com o de ontem. Era a época da redemocratização e os militares ainda não queriam largar por completo o poder. A imprensa não era golpista e fazia jornalismo. No dia seguinte ao badernaço, toda a mídia começou uma guerra contra os baderneiros e foram atrás na tentativa de identificar todos eles pelas fotos. Só um pobre funcionário dos Correios, que foi fotografado jogando uma pedra em uma loja no setor comercial sul em Brasília foi identificado. Todos os outros, ninguém conhecia. Depois, ficamos sabendo que eram militares (P2) de outros Estados. Ontem, a ordem era avançar, como o comandante da operação dizia para os deputados que tentaram parar a ação truculenta e não conseguiram. Só resta uma certeza, sem a permissão do governador ou do Palácio do Planalto, a polícia não teria feito o que fez.

    Vamos voltar para rua –é a única saída.