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    OS MAUS MILITARES E OS PÉSSIMOS CIVIS

     

    ARTIGO

    Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

     

    Sob olhares complacentes de muitos civis, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) vai assumindo, cada dia mais, a sua face militarizada. Como se não bastassem o presidente e seu vice serem militares, são militares também os integrantes da “cozinha” do Palácio do Planalto – Augusto Heleno, Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. Além disso, 2.500 outros ocupantes de cargos no atual governo são militares ou seus parentes.

    Com o pedido de demissão do ministro da Saúde, Nelson Teich, até esse cargo, em plena pandemia de coronavírus, passa a ser exercido, interinamente, por um general, Eduardo Pazuello. Sua missão, ao que parece, será autorizar o uso da controvertida substância cloroquina no tratamento de pacientes com o covid-19, na contramão do que recomendam as autoridades da área de saúde de quase todos os países e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS).

    Oficialmente, o Brasil é uma democracia, com as “instituições funcionando”, como fazem questão de dizer civis e militares que apoiam o governo. Em que pese isso não ser a expressão da verdade, pois as instituições não funcionam para todos (o ex-presidente Lula que o diga) a pergunta que deve ser feita é: mantida a situação atual, por quanto tempo mais as instituições ainda funcionarão?

    Apesar de todos os problemas que tem criado para o Brasil e para os brasileiros, Bolsonaro continua contando com o apoio do que se pode definir como “maus militares” e “péssimos civis”, pessoas que não levam em conta os interesses da maioria da população e nem mesmo os chamados interesses nacionais. Vale dizer: os interesses efetivamente brasileiros num mundo em rápida e profunda transformação.
    “Mau militar” era como Ernesto Geisel, penúltimo general a ocupar a presidência da República
    após o golpe de 1964, definia o capitão reformado Bolsonaro. Já “péssimos civis” ou
    “vivandeiras de quartel” foram termos cunhados pela imprensa na década de 1950, para se
    referir aos políticos que viviam pedindo a intervenção militar contra governos legitimamente
    eleitos como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Em meados de 1960, a mesma
    denominação foi utilizada para os civis que “clamavam” para que os militares impedissem “a
    comunização do Brasil”, diante das Reformas de Base propostas pelo presidente João Goulart.

    Devidamente repaginadas “as vivandeiras” reapareceram em 2016 e se mantém em plena
    atividade nos dias atuais.

    TINTURA ESCURA

    O governo Geisel (1974-1978) deu início à descompressão política ou, como preferia dizer o seu ministro da Justiça, Petrônio Portela, à “abertura lenta, gradual e segura”. Geisel percebeu que não havia como manter a “panela de pressão” tampada, devido à recessão, à crise econômica internacional, provocada pelo segundo choque do petróleo, e ao desgaste dos próprios militares no poder, incluindo aí fartas acusações de corrupção.

    O início da abertura valeu a Geisel (1907-1996) o adjetivo de “comunista” por parte de seu ministro do Exército, general Sílvio Frota. Frota, aliás, fez uma lista à la marcathismo, onde denunciava a “presença de 100 comunistas no governo”. Geisel, por sua vez, agiu rápido e em uma verdadeira ação de guerra, demitiu Frota, antes que ele pudesse esboçar qualquer reação. Detalhe: o chefe de gabinete do general Frota era um jovem militar de nome Augusto Heleno.
    Geisel pode ser entendido como um dos últimos militares a se preocupar com o
    desenvolvimento autônomo do Brasil, ao elaborar e colocar em prática o II Plano Nacional de Desenvolvimento. Ele instituiu o Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), de modo a diversificar a nossa matriz energética. Deu início à construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em parceria com o Paraguai. Assinou acordo com a Bolívia para que ela ofertasse gás ao Brasil e ainda firmou um acordo nuclear com a então Alemanha Ocidental. Era o Brasil assumindo o seu tamanho e a sua importância no mundo e deixando de lado a subserviência aos Estados Unidos.
    Em entrevista concedida aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso de Castro, em 1993,
    publicada em livro pela Fundação Getúlio Vargas, Geisel afirmou que os “militares devem ficar
    fora da política partidária, mas não da política em geral.” Segundo ele, todo político que
    começa a se “exacerbar em suas ambições logo imagina uma revolução a cargo das Forças
    Armadas”. Não por acaso, Geisel é um nome nada querido entre os militares que estão hoje
    no poder.
    Não é por acaso também que os documentos liberados pelo governo dos Estados Unidos
    sobre o período da ditadura no Brasil (1964-1985) apontam apenas ele como tendo sido
    conivente com torturas e repressão política. Convenientemente, esses documentos ignoram o
    mais repressor desse ciclo de generais-presidentes, Emílio Garrastazu Médici.

    Em recente artigo publicado no “Estado de S. Paulo”, diário conservador paulistano, o vice-
    presidente Hamilton Mourão tentou colocar-se como um estadista e sutilmente distanciar-se
    de Bolsonaro. Para alguns, seu artigo, de cunho nitidamente autoritário, pode ser entendido
    como um esboço de programa de governo, para a eventualidade de impeachment de
    Bolsonaro. Mas Mourão não conseguiu nem uma coisa e nem outra. Ele apenas confirmou a
    avaliação de que não há diferença entre os dois, exceto o tom mais escuro da tintura que usa
    nos cabelos.

    RONDON E GÓIS MONTEIRO

    Como oficial de patente inferior, o capitão reformado Bolsonaro não fez o curso de Estado
    Maior das Forças Armadas, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, chegando no máximo a ser
    um professor de educação física. Talvez isso o tenha levado a votações menos alinhadas com
    os interesses privativistas e estadunidenses nos 27 anos em que esteve na Câmara dos
    Deputados, como integrante do “baixo clero”. Situação que se alterou completamente ao
    chegar ao poder e rodear-se de grupos, seja na política, na economia (que ele diz não entender
    nada) e também em se tratando das relações exteriores, que passaram a se pautar pela
    cartilha do Tio Sam.
    Os militares sempre estiveram presentes na história do Brasil, desde os primórdios da própria
    República (proclamada por eles), passando por movimentos como o Tenentismo, a Coluna
    Prestes, a Revolução de 1930, o golpe de 1964 e a luta armada contra a ditadura militar entre
    1968 e 1974. Diferentemente de agora, amplos setores militares tiveram, ao longo da história,
    grande preocupação com o desenvolvimento econômico e social brasileiro e estiveram à
    frente de importantes projetos e lutas nesse sentido.
    Desses militares, talvez o nome mais conhecido seja o do marechal Cândido Mariano Rondon
    (1865-1958), que se notabilizou como o primeiro presidente do Conselho Nacional de Proteção
    aos Índios e um dos criadores do Parque Nacional do Xingu, ao lado dos irmãos Villas-Boas e
    de Darcy Ribeiro. Em 1956, em sua homenagem, o território de Guaporé passou a denominar-
    se Rondônia. Se estivesse vivo, Rondon estaria indignado com o tratamento que o governo
    Bolsonaro vem dispensando aos índios e com o desmatamento e destruição da floresta
    Amazônica.
    Ainda na primeira metade do século passado, nomes como os do coronel Mário Travassos
    (1891-1973) e o do general Pedro de Góis Monteiro (1880-1956) se destacaram como
    formuladores de importantes medidas para os interesses brasileiros. É de Travassos o livro

    “Projeção Continental do Brasil”, um dos primeiros estudos sobre geopolítica feitos no país.
    Sua maior contribuição, no entanto, foi ter introduzido o conhecimento científico na formação
    de oficiais do Exército brasileiro, capacitando-os a entender os problemas e desafios do país e
    do mundo. Esse tipo de ensino foi suprimido das academias militares depois do golpe de 1964.
    Já o general Góis Monteiro merece ser lembrado pela enorme contribuição que deu para a
    condução da diplomacia e da política externa brasileira, especialmente no que diz respeito às
    críticas ao imperialismo das grandes potências e à necessidade de o Brasil se organizar para
    não ficar a mercê desses interesses. Góis Monteiro antecipou, em décadas, problemas
    atualíssimos, como os graves riscos do governo brasileiro ser subalterno aos Estados Unidos,
    como é o caso de Bolsonaro.
    Durante o período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o golpe de 1964,
    não havia um pensamento monolítico tanto em termos de formação quanto na visão de
    mundo dos oficiais das Forças Armadas brasileiras, o que possibilitava o debate, muito distante
    da ordem unida que passou a vigorar nas décadas seguintes.

    O PETRÓLEO E O SUBMARINO

    Antes de 1964, ainda estavam presentes as lições desses e de outros grandes militares. Lições
    nas quais certamente se inspirou o marechal Júlio Horta Barbosa (1881-1965), presidente do
    Conselho Nacional do Petróleo, ao assinalar, por exemplo, que “pesquisa, lavra e refinação do
    petróleo constituem as partes de um todo, cuja posse assegura poder econômico e poder
    político”. Horta Barbosa notabilizou-se como um dos principais defensores do monopólio
    estatal do petróleo e um dos expoentes da campanha “O Petróleo é nosso”, uma das maiores
    já realizadas no país. Na época, o Brasil discutia a necessidade de se instituir esse monopólio e
    a criação de uma empresa para o setor, que viria ser a Petrobras.
    Outros generais, como José Pessoa (1885-1959), que comandou a Escola Militar do Realengo,
    tinha posição semelhante no que diz respeito ao desastre que seria para o Brasil entregar aos
    trustes estrangeiros a exploração e o aproveitamento das nossas riquezas minerais. Em
    meados do século passado já era sabido que o Brasil possuía enormes reservas de urânio e
    nióbio, o que gerava a cobiça internacional.
    Por isso, o almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976) buscou implementar um
    programa nuclear para o Brasil, no que encontrou fortíssima oposição dos Estados Unidos. A
    título de exemplo, os Estados Unidos propuseram à Organização das Nações Unidas (ONU) o
    Plano Baruch, que previa a internacionalização de minérios radioativos que ficariam sob a

    guarda de um organismo da própria ONU sobre o qual os EUA tinham total ascendência. Como
    representante do Brasil na ONU, Álvaro Alberto conseguiu derrotar a proposta.
    Os esforços de Álvaro Alberto foram retomados recentemente por outro almirante, Othon
    Luiz Pinheiro, que presidiu a estatal Eletronuclear até 2015. Criada como subsidiária da
    Eletrobras, ela tinha, entre suas funções, construir o primeiro submarino nacional movido a
    propulsão nuclear, fundamental para patrulhar a extensa costa brasileira, a “Amazônia azul”,
    como a Marinha define o território marítimo brasileiro, cuja área corresponde à superfície da
    floresta Amazônica. Othon Luiz pagou caro pela “audácia”, ao ser preso e condenado, por
    suposta corrupção, em uma operação desdobramento da Lava Jato.
    O “crime” de Othon Pinheiro, em última instância, teria sido não fazer concorrência e nem ter
    dado a devida publicidade a compras de material para o projeto do submarino nuclear
    brasileiro, que se tornava mais necessário ainda depois da descoberta do pré-sal. No caso,
    cabe a pergunta que a mídia corporativa brasileira não fez: qual país no mundo divulga edital
    de concorrência para a realização de projetos estratégicos ligados à segurança nacional?

    OS CIVIS SEMPRE CONSPIRARAM

    A tradição de políticos, empresários e intelectuais conservadores e liberais baterem às portas dos quartéis é longa no Brasil. Ela se faz presente em governos de cunho popular, sempre tachados de “esquerdistas”. Foi assim que Getúlio Vargas, logo após instituir o monopólio estatal do petróleo e criar a Petrobras, enfrentou uma campanha difamatória de tal porte (o “Mar de lama”) que acabou pondo fim à vida com um tiro no peito. Foi assim também que, em duas oportunidades, antes de tomar posse e próximo ao fim de seu mandato, Juscelino Kubitschek teve que enfrentar o golpismo de militares insuflados por civis da UDN.
    A primeira dessas tentativas aconteceu com a Revolta de Jacareacanga, que estava diretamente ligada às eleições de 1955 ganhas por ele e João Goulart. A dupla, que fazia parte da chapa PSD-PTB, havia vencido os políticos da UDN, à qual se ligava parte dos oficiais da Aeronáutica. Esses oficiais não aceitavam o resultado das eleições e foram contidos pelo então ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott (1894-1984). A Revolta de Jacareacanga durou 19 dias e teve lugar no sul do Pará.
    Já a Revolta de Aragarças, que eclodiu no início de dezembro de 1959, começou a ser articulada dois anos antes. O objetivo era bombardear os Palácios de Laranjeiras e do Catete, no Rio de Janeiro. Alguns de seus integrantes tinham participado de Jacareacanga e o objetivo, como sempre, era afastar do poder “políticos corruptos e comprometidos com o comunismo internacional”.

    Ela contou com a participação de militares da Aeronáutica e do Exército, mas durou apenas 36 horas. Seus líderes, depois de rumarem de avião para a cidade de Aragarças, em Goiás, fugiram para países vizinhos, só retornando ao Brasil no governo de Jânio Quadros.
    Mais uma vez, coube ao general Lott derrotar os golpistas.
    As principais características de Lott eram o legalismo e a profunda convicção democrática.
    Características que incomodavam os militares que participaram do golpe de 1964. Seu enterro,
    em 1984, um ano antes da saída do general João Figueiredo do poder, não teve condecorações
    marciais ou honras de mérito militar, mas contou com a presença de Leonel Brizola, então
    governador do Rio de Janeiro, que decretou luto oficial pela perda de tão importante
    personagem da história brasileira.
    Como comprova René Dreifuss no monumental livro “1964, a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe”, as “vivandeiras” de quartel nunca deixaram de conspirar com os militares para derrubar governos dos quais discordavam e não conseguiam vencer pelo voto. A UDN, no período compreendido entre 1946 e 1964, não ganhou uma única eleição presidencial. Recentemente, o caso que mais se assemelha é o do PSDB que, igualmente cansado de perder eleições, deu início, através de seu candidato derrotado em 2014, Aécio Neves, ao golpismo que acabou por derrubar Dilma Rousseff.
    Dreifuss relata, com riqueza de detalhes, como se deu a articulação entre civis no pré-1964. Além de baterem às portas dos quartéis, civis como os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, e de Minas Gerais, Magalhães Pinto, esse último também um poderoso banqueiro, mobilizaram dezenas de grandes empresários, ruralistas, donos da mídia e intelectuais com o objetivo de derrubarem Goulart. A articulação contava com o apoio dos Estados Unidos.
    O então maior magnata da mídia brasileira, Assis Chateaubriand, dono dos Diários e Emissoras Associados, abriu todas as baterias de seus jornais, emissoras de rádio, de televisão e da maior revista da época, o Cruzeiro, contra Goulart. Roberto Marinho ainda não possuía televisão, mas garantiu todo o espaço de seu jornal e da rádio Globo para que Carlos Lacerda e quem mais quisesse atacar Goulart.
    Recursos desses empresários e também de Washington financiaram entidades como o
    Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos
    (IPES). A atuação do IBAD influenciou as eleições para o Congresso Nacional, onde inúmeros
    parlamentares conservadores tiveram suas campanhas bancadas por ele.

    Já o IPES produziu parte do material de propaganda contra Goulart veiculado como notícia em
    jornais, rádios e até no cinema, em um popular informativo semanal que antecedia a exibição
    dos filmes. Nos dias atuais, quem mais se assemelha ao IPES é o Instituto Millenium, um think
    tank sediado no Rio de Janeiro, que se propõe a promover “valores e princípios de uma
    sociedade livre, baseados no direito de propriedade e no livre mercado”.

    DE BRAÇOS DADOS

    Nos 21 anos em que durou o regime militar no Brasil, maus soldados e péssimos civis
    estiveram de braços dados. O economista Roberto Campos, por exemplo, foi o primeiro
    ministro do Planejamento no governo Castelo Branco. Seu alinhamento aos interesses dos
    Estados Unidos era tamanho que seu apelido se tornou “Bob Fields”. No governo Bolsonaro,
    seu neto, que tem o mesmo nome, preside o Banco Central.
    Já o híbrido de militar e político, Juracy Magalhães, foi nomeado também no governo de
    Castelo Branco como embaixador brasileiro nos Estados Unidos. É dele a tristemente célebre
    frase “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Frase que antes do chanceler
    terra-planista de Bolsonaro, Ernesto Araújo, fazia corar de vergonha os nossos diplomatas.

    A relação dos péssimos políticos – fisiológicos e integrantes das bancadas do Boi, da Bíblia e da
    Bala – é enorme. Há quatro anos, eles estiveram na linha de frente na ferrenha oposição e na
    derrubada da presidente Dilma Rousseff, num golpe travestido de impeachment.

    Desses, os nomes de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer,
    vice-presidente de Dilma, e do juiz e até poucas semanas atrás, ministro da Justiça de
    Bolsonaro, Sérgio Moro, talvez sejam os mais emblemáticos. Cunha só deu início ao processo
    de impeachment contra Dilma, porque ela não aceitou pedir que o PT “aliviasse a barra para
    ele” em um processo na Comissão de Justiça do Legislativo. Acusado em vários processos de
    corrupção, Cunha foi afastado da presidência da Câmara e perdeu o mandato. Condenado a
    mais de 15 anos, recentemente teve a prisão preventiva substituída pela domiciliar, por estar no grupo de
    risco da pandemia do covid-19.
    Michel Temer integrou a articulação do golpe contra Dilma. Também ele tentou chantagear a presidente sob o argumento de que se ela aceitasse colocar em prática o plano “Estrada para o futuro”, o oposto de tudo o que defendia o PT para vencer a crise que então se esboçava, não haveria problema. Antes, Temer certificou-se de que teria o apoio dos militares, valendo-se do      descontentamento que sabia existir entre os de farda e a presidente que instituiu a Comissão Nacional da Verdade, para apurar graves violações de direitos humanos acontecidas no Brasil entre 1946 e 1988.
    A Comissão da Verdade, como ficou conhecida, durou pouco mais de três anos, tempo suficiente para deixar parte dos militares de cabelo em pé. Ao contrário de outros países da América do Sul, que também enfrentaram ditaduras brutais, como Argentina e Chile, aqui o pacto que viabilizou a transição democrática anistiou a todos, torturados e torturadores, impossibilitando que muitos militares fossem julgados por crimes que cometeram nos “anos de chumbo”.

    Foi a partir da Comissão da Verdade, no entanto, que o Brasil ficou sabendo que entre os próprios militares houve muita resistência às atrocidades cometidas. Em duas décadas de ditadura, o regime perseguiu, prendeu ou torturou 6.591 militares. Essa informação sem dúvida incomodou e, mais uma vez, maus soldados e péssimos civis
    estavam juntos na deposição de uma presidente legitimamente eleita.

    Não foi por acaso que o então deputado Jair Bolsonaro, ao votar pela abertura do processo de
    impeachment contra Dilma, o fez prestando homenagem ao torturador coronel Brilhante
    Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos mais atuantes órgãos na repressão política
    durante a ditadura. Mesmo já reformado, Ustra continuou politicamente ativo nos clubes
    militares, na defesa da ditadura e nas críticas anticomunistas.

    MORO, O PIOR

    De todos os péssimos civis, o que recentemente mais danos políticos e econômicos trouxe ao país foi Moro. Como juiz de primeira instância responsável pela Operação Lava Jato, ele cometeu barbaridades jurídicas para incriminar, sem provas, o ex-presidente Lula (casos do Triplex e do sítio em Atibaia) e tirá-lo da eleição de 2018. Some-se a isso que, em nome do “combate à corrupção”, destruiu a indústria brasileira, jogou milhões de trabalhadores no desemprego e o país na dependência tecnológica de outras nações.

    A Lava Jato também possibilitou o acesso de representantes estadunidenses à gestão de empresas como a Petrobras e a Odebrecht que, além de ilegal, desdobrou-se em multas milionárias e conhecimento, pelos concorrentes, de seus planos estratégicos. Para quem assistiu ao filme Snowden (2016) do premiado diretor estadunidense Oliver Stone, as escutas que órgãos de inteligência dos Estados Unidos fizeram em várias partes do mundo, inclusive aqui, espionando a própria Dilma e os contratos que estavam sendo elaborados para a exploração do pré-sal brasileiro, fazem parte dessa lógica.

    O resultado do combate à corrupção apresentado pela Lava Jato é pífio. O que não impediu a mídia corporativa brasileira, TV Globo à frente, de tentar transformar Moro em “herói no combate à corrupção.” Moro saiu do governo Bolsonaro, depois de compactuar por 16 meses com todas as ilegalidades e absurdos que o presidente e filhos praticaram. Mas sair do governo não significa deixar a política, como alerta o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, para quem “Moro é o candidato dos Estados Unidos à presidência do Brasil”.

    Maus soldados e péssimos políticos, antes unidos na eleição de Bolsonaro, começam a se
    dividir. Em que pese a inércia do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) que continua se recusando a colocar em pauta a penca de pedidos de impeachment contra Bolsonaro, parte dos integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) está se movendo.
    Bolsonaro, cada vez mais enrascado, em queda acelerada junto à opinião pública e à frente
    de um governo que o mundo considera um perigo, corre atrás dos políticos do Centrão e do apoio da caserna na tentativa de barrar um possível processo de impeachment. Cargos
    começam a ser distribuído a rodo para esses senhores.
    O Plano de Desenvolvimento que o general Braga Neto, para alguns o “presidente operacional do Brasil”, anunciou para a retomada do crescimento, quando a pandemia amainar, está fadado ao fracasso. O capital internacional sumiu e o pouco que sobrou do empresariado brasileiro não se arriscará num cenário de enorme incerteza. Se o Estado não assumir a retomada da economia, o Brasil não terá futuro. Só que isso, para desespero dos péssimos políticos e dos maus militares, é muito parecido com a agenda que o PT colocou em prática nos anos que governou e com o projeto de “Plano para o Brasil” que Lula acaba de lançar.
    Os péssimos políticos só admitem mudanças para que tudo continue como está. Tanto que criticam Bolsonaro, mas cobrem de elogios a agenda ultraliberal colocada em prática pelo seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Os maus militares também estão com Bolsonaro, mas não falta até entre eles quem já admita que “o presidente está causando confusão em demasia”. Enquanto isso, os cidadãos indignados, em quarentena por causa do covid-19, não saem das janelas e gritam cada vez mais alto e forte, de todos os cantos do Brasil: “Fora Bolsonaro”.
    Como sabia Geisel, tentar tampar a panela, numa situação dessas, não surtirá efeito.