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  • Movida Aluguel de Carros: 11 horas de pesadelo

    Movida Aluguel de Carros: 11 horas de pesadelo

    Por Eleonora de Lucena

    O que era para ser um mergulho refrescante na cachoeira do Buracão, na Chapada Diamantina, virou uma enxurrada de descaso, incompetência, desprezo, escárnio e desinformação. Foi o que a MOVIDA ALUGUEL DE CARROS proporcionou para a nossa família durante quase 11 horas no interior da Bahia nesta quinta, 21 de novembro de 2019. Uma demonstração inequívoca de que a empresa –como, aliás, é regra do capitalismo de hoje—está se lixando para o consumidor, o público, o cidadão: o que importa é resultado, distribuição de dividendo, lucros crescentes.

    O principal executivo da MOVIDA ALUGUEL DE CARROS, em entrevista recente à “Época Negócios”, quando se gabava de supostas inovações tecnológicas da companhia, declarou: “Preciso me manter com os melhores indicadores para ser o parceiro escolhido por essas companhias [Google, Apple]. Assim, posso entregar resultados e garantir a minha sobrevivência”. Resultados, se vale a nossa experiência de consumidor, que são obtidos em cima da desconsideração e do desrespeito em relação aos que utilizam, de forma inadvertida, os seus serviços. Robôs, atendentes mal treinados, chefes que parecem incapazes de fazer a leitura elementar de um mapa, terceirizados amedrontados e desqualificados produzem um resultado de desespero para quem precisa do mais básico atendimento ao consumidor.

    A gente sabe que o consumidor sofre nas ligações de zero oitocentos, para os sacs da vida e outros alegados serviços. Temos experiência de sobra com telefônicas, companhias aéreas, imobiliárias, concessionárias. Mas nunca fui tão mal atendida na vida. A MOVIDA ALUGUEL DE CARROS bateu todos os recordes. Justamente num momento de vulnerabilidade, longe de casa, com as pessoas largadas com malas, mochilas e computadores no meio da rua.

    Eleonora de Lucena, de blusa laranja, fala ao telefone com a Movida; o veículo na frente dela é a Duster em pane
    Eleonora de Lucena, de blusa laranja, fala ao telefone com a Movida; o veículo na frente dela é a Duster em pane – Foto: arquivo pessoal

    Tudo começou por volta das 9h45, quando girei a chave do carro (uma Duster) e apareceu um sinal vermelho de pane, exigindo que o carro não fosse movimentado por extrema questão de segurança. Estávamos em Ibicoara, a 476 quilômetros de Salvador, onde tínhamos retirado o veículo. Dali em diante foi uma sucessão de liga-cai-gravação-transfere-não é nesse ramal-liga-cai-gravação-transfere-musiquinha-promoções-não é aqui-transfere-cai.

    Até que conseguimos falar com uma pessoa –que disse que tínhamos que ir para Salvador. Depois disseram que tínhamos que ir para Feira de Santana (381 quilômetros dali). Todos que falavam pela companhia estavam preocupados com o veículo e o envio do guincho para proteger o patrimônio da empresa. E os clientes abandonados no meio da rua? Tinha que ligar para outro setor, não era com eles, vou transferir… e caia. Comecei a perceber que a alegada inovação tecnológica tinha lado –resguardar a empresa e só.

    Finalmente consegui falar com um suposto “supervisor”. Expliquei que a família de quadro pessoas estava em viagem a Ibicoara, que nosso hotel ficava em Lençóis (225 km dali), que precisava de um carro reserva, que não tinha o menor sentido voltar a Salvador ou Feira de Santana. Iria perder mais um dia de férias –além do que estava sendo arruinado naquele momento. Quando achei que o “supervisor” estava entendendo o caso, ele me pediu o “número” da rua Ibicoara. Ele simplesmente não estava entendendo ou não queria entender. Com certeza nem tinha olhado no mapa onde eu estava. Pedi, encarecidamente, que ele olhasse no mapa (pedido que faria diversas vezes durante o dia). Passei o endereço onde estava em Ibicoara. Ele me garantiu que o guincho chegaria em 28 minutos e que o táxi para me levar onde fosse chegaria em 32 minutos. Eram quase 11 da manhã e suspirei de alívio.

    Eu quis saber os dados do táxi (placa, nome do motorista) e a coisa empacou. Ele começou a dizer que tinha (só agora!) percebido que havia uma base da Movida mais perto, em Vitória da Conquista (221 km dali) e que o táxi nos levaria para lá. Tentei argumentar que a viagem de Ibicoara a Vitória da Conquista e, depois, a Lençóis (onde estávamos hospedados) sereia de 630 quilômetros: 10 horas e 14 minutos pelo Google Maps. Que aquilo era insano. Que o melhor a fazer era nos enviar um carro desde Vitória da Conquista ou nos levar até o hotel em Lençóis. Achei, novamente, que ele tinha entendido o problema. De Poliana me apelidaram.

    Enquanto isso, se passavam os 28 minutos e os 32 minutos e nada de solução. A ligação caiu. Continuamos insistindo no contato. Liga, musiquinha, em breve iremos lhe atender, só mais um instante. Uma atendente diz que nenhuma ocorrência para envio de táxi foi aberta até agora. E a voz do “supervisor” não vale nada? Uma meia hora depois, alguém liga dizendo que o reboque iria demorar ainda uma hora. E o táxi? A mesma coisa. Passa o tempo e nada. Seguimos tentando o atendimento a emergências da MOVIDA ALUGUEL DE CARROS: tecla opção-musiquinha-propaganda-não é aqui-vou transferir para o setor-cai. Até que alguém entra em contato pelo Messenger. Às 13h02 afirmam que o guincho vai demorar ainda duas horas. E os 28 minutos do supervisor? Onde tinham ido parar? Fomos almoçar num restaurante ali perto. A gerente da casa se solidariza conosco. A hora do almoço da cidade acaba. Sai todo mundo, clientes, cozinheiras. Ela nos diz para ficarmos tranquilos e nos oferece café –um dos poucos sinais de gentileza do dia. Valeu.

    Enquanto aguardamos, leio na Panrotas: “A Movida acumulou R$ 2,7 bilhões de receita bruta em 2018. Estabelecendo novos recordes, o Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) foi de R$ 481 milhões e o lucro líquido de R$ 160 milhões, altas de 48% e 143%, respectivamente. Com um caixa de R$ 812 milhões, associado ao reforço da estrutura de capital e aumento da frota, as perspectivas de continuidade na captura de ganhos de escala e na expansão das margens são maiores, de acordo com a Movida”.

    Certamente os resultados da Movida não dependem de uma família em férias no interior da Bahia. Ao contrário. O foco deve ser o cliente corporativo, o que fica nas capitais, o que dá mais rentabilidade. É para ele que as estruturas devem estar montadas e ajustadas. Dane-se a família e o interior. O nosso caso deve ser o de um “colateral damage”, uma ocorrência fora da curva, que nada afeta o todo da companhia. E sigo lendo as últimas “reportagens” sobre a Movida. O papo marketeiro a gente conhece bem: é enganoso, é mentiroso, é falacioso –como está na moda nos dias atuais, não é mesmo? O Facebook começa a me enviar propagandas de aluguel de carros, da MOVIDA ALUGUEL DE CARROS e de concorrentes. É o que recebo. Informação, ajuda? Nada.

    As duas horas se passam. Estamos agora ansiosos sentados no meio fio. No calorão. Pelo SMS me informam que o guincho vai atrasar: deve chegar às 15h22. E o táxi para as pessoas?? Silêncio. Silêncio. Sem resposta. Por favor, uma resposta, insisto. Branco, nada, silêncio. Enquanto isso, continuamos com as tentativas de contato com o serviço de emergência. Nada. Musiquinha-não desligue-cai. A preocupação deles é com o carro. Nós, as pessoas, estamos abandonados.

    O reboque chega pelas 15h30, e nada do táxi. Começa a bater um desespero. Disparo mensagens para o sac, o site da empresa, o “fale com o presidente”, o whatsapp da empresa, para a JSL, firma que, segundo consta, controla a Movida. Nada. Pelo Whatsapp da Movida recebo mensagens propondo locação de veículo. “Em qual cidade deseja retirar o seu carro?”. Conto ao robô o que está acontecendo, mas ele desconversa. “Você terá um consultor especializado para lhe ajudar na sua solicitação”. Cita um novo número de 0800. Ligo e escuto: aqui não é o setor, vou transferir, cai. O tempo vai passando; logo mais vai escurecer.

    Recebo retorno da JSL: não é com a gente; ligue para o sac da Movida e para o 0800 –como se eu conseguisse falar lá! A Livelo, que entrou nesse acerto de locação, também diz que não é com ela. Não é com ninguém. Rale-se o consumidor.

    Recebo uma ligação da Movida! É do serviço de satisfação do cliente fazendo pesquisa para saber se eu estou satisfeita com o serviço. Não, não estou satisfeita, estou parada na rua sem solução ainda. Ele desliga com um rápido boa tarde.

    Pisca o SMS: mensagem da Movida: “Movida: você recomendaria a Movida Assistência 24hs para amigos ou familiares? De uma nota de 0 a 10 e comente! Resposta gratuita por SMS. Ajude-nos a melhorar”.

    É o escárnio!

    O sujeito do guincho já está há mais de uma hora sentando conosco no meio fio. Não pode fazer nada. Eu também não posso liberar o carro e ficar na sarjeta. Jovens já saem da escola e perambulam por ali. O pedreiro que fazia um pedaço da calçada onde estamos está quase terminando o serviço, e nada. Peneira o cimento, coloca água, alisa o novo calçamento. E nós ali. Cachoeira só a do balde para o montinho de cimento. Pensamos em chamar a polícia, em contratar um táxi, ver um ônibus, achar um hotel. A noite se aproxima e nós estamos nessa situação deste às 9h45 por causa da Movida.

    São quase cinco da tarde quando conseguimos falar com alguém do serviço de atendimento 24 horas. O táxi chega em 20 minutos, diz o atendente. Qual táxi? Quem é o motorista? Não sei, vou ver. Os 20 minutos vão se passando. O táxi finalmente chega. Os 32 minutos garantidos pelo “supervisor” da manhã tinham virado seis horas.

    Mas o motorista tem ordem de nos levar para Vitória da Conquista, o que significa uma viagem de 630 quilômetros (10 horas e 14 minutos pelo Google Maps, de Ibicoara a Vitória da Conquista e depois para Lençóis, até o nosso hotel). Perderam a razão? Tivemos essa discussão várias vezes ao longo do dia, mas ninguém parece interessado em entender o problema real. Em resumo, se formos até o hotel, perdemos a ida “a loja mais próxima, no aeroporto de Vitória da Conquista” e perdemos o carro com todas as diárias pagas antecipadamente. São 10 horas de viagem –por problema criado pela MOVIDA ALUGUEL DE CARROS— ou nada de carro.

    É a lógica inovadora da empresa.

    Lembro da fala do CEO da Movida à “Época Negócios”: “A gente não faz inovação por marketing. Faz porque precisa. Faltava governança para tornar os processos mais eficientes e produtivos. Somos uma empresa de TI que aluga veículos”.

    Fico pensando na política de recall das montadoras. A lógica é um pouco essa: fazemos de qualquer jeito o produto e depois o consumidor é que se vire para levar o carro sem freio até uma concessionária. O consumidor que corra o risco de ter um acidente. O resultado da empresa está garantido. A Boeing parece ter tido o mesmo pensamento ao liberar o MAX 737: colocou o bicho para voar sabendo que tinha defeito para ter os seus resultados para os seus acionistas. No caminho morreram centenas de pessoas. É a lógica capitalista que vigora

    Nós somos só uma minúscula família parada na estrada por incompetência e descaso da MOVIDA ALUGUEL DE CARROS. Estamos cansados da MOVIDA ALUGUEL DE CARROS. A MOVIDA ALUGUEL DE CARROS paga o hotel para a família? Como fazer essa viagem de mais de 10 horas, indo e voltando? Ninguém sabe, depois tem que ver, o procedimento, o contrato das letrinhas pequenas. E o meu ressarcimento? E tudo que estamos perdendo com a MOVIDA ALUGUEL DE CARROS? Negocia, liga, cai, liga. Sim, o táxi pode levar a família até Lençóis (três horas e cinco minutos de viagem). Ufa!

    Só que o motorista ainda não tem ordens para nos levar para Lençóis! Diz que deve nos levar para Vitória da Conquista. Liga-liga-liga. Sem sinal. Musiquinha, aguarde um instante que já vamos lhe atender. A atendente combina com o motorista: leve os passageiros para Lençóis. Está tudo certo? Sim, diz o motorista. Notamos relutância. Já no carro, entramos num posto para ajustar um cinto de segurança que não estava disponível. Ele negocia com a sua “base” o pagamento de combustível –o tanque não segura a viagem até Lençóis e ele está sem cartão, diz. O moço do posto fala ao celular do motorista e acerta a transferência para o pagamento do combustível. Tanque cheio, vamos?

    Não. O motorista diz que não pode partir. Precisa de outra autorização, acerto de quilometragem. Mas não estava tudo certo minutos atrás? Estamos parados no posto, com o motorista irredutível e o sol se pondo no horizonte. “Vocês já esperaram bastante, vão ter que esperar mais”. Ligo de novo para a Movida. Sem sinal, musiquinha, aguarde. O desespero aumenta. Já estamos na saída da cidade, mas sem solução. Finalmente, às 17h30, partimos.

    O motorista não conhece a estrada, cheia de cotovelos, buracos, pontes por onde só passa um carro por vez. Sai em disparada, faz curvas fechadas, topa com força em algumas crateras da BR sem manutenção. Atropela algo que parece ser um pequeno animal. Seria um tatuzinho? Choramos de raiva, de medo, de frustação. No dia anterior, tínhamos percorrido o mesmo trajeto cantando Michael Jackson, Cindy Lauper, Rolling Stones. Um dia gostoso de férias como há muito não tínhamos. Pela manhã do dia 20, tínhamos subido e descido os 295 degraus da Cachoeira do Mosquito. Horas atrás, líamos em conjunto sobre geologia para aprender a beleza da Chapada. Agora, tudo parece estar sob risco.

    Quase 11 horas depois da pane, estamos na rua do nosso destino em Lençóis. O motorista para. Hesita em subir a ladeira íngreme. Naquela altura, escalaríamos o Serrano para sair daquele carro. Chegamos. Estamos sem carro, apesar de todas as diárias terem sido pagas antecipadamente. O carro foi para o guincho com o tanque cheio. Temos ainda alguns dias aqui na Chapada. A MOVIDA ALUGUEL DE CARROS diz que não vai nos enviar um novo carro e que não paga nossa viagem até um novo carro. São as regras deles ou nada. Nos deram um táxi até Lençóis e, com isso, eu tenho que me virar, se quiser, para pegar um novo carro em uma loja deles. É a inovação, a tecnologia, o resultado. Pela tela do celular, entra uma mensagem com um anúncio da MOVIDA ALUGUEL DE CARROS. Na vida, Movida nunca mais.

  • A Chapada Diamantina pede socorro!

    A Chapada Diamantina pede socorro!

    Como 350 anos de exploração econômica e social na Chapada Diamantina culminaram em uns dos maiores incêndios florestais da sua história

    Por Rodrigo Santanna*, de Lençóis (BA), especial para os Jornalistas Livres; Com fotos de Açony Santos

    “Fogo sempre pegou só que antes chovia, né?”

    Foi justamente essa frase, dita por um ex garimpeiro da cidade de Lençóis, que deu início a esse documento. O hoje pedreiro Milton surpreendeu-me enquanto conversávamos pelo sentimento de cansaço estampado em seu rosto, quando me contava dos idos tempos, quando tudo ali era água e as queimadas, quando ocorriam, eram sem demora controladas pelas certas chuvas de estação.

    Entre outras barbaridades, confirmou-me também um fato já conhecido, que apenas algumas famílias eram e ainda continuam sendo donas de enormes porções de terras griladas na região. Terras essas que eram totalmente queimadas para a criação de gado e para permitir a expansão da agroindústria. O fogo é um problema antigo na Chapada Diamantina, seu uso como agente limpador dos terrenos é cultural e ainda hoje sua prática causa enormes danos a fauna e flora da região.

    Um incêndio de enormes proporções já consumiu cerca de 15 mil hectares do parque nacional (o equivalente a 15 mil campos de futebol), é difícil apontar causas, mas é fácil achar falhas grotescas no que diz respeito à prevenção do fogo e manutenção de uma equipe coesa e preparada para os eventuais incêndios que irão certamente ocorrer.

    O poder público, como veremos adiante, não está nem nunca esteve ao lado da população. Desde a chegada do branco português à região, a exploração social e a total falta de respeito para com a natureza vem sendo a constante em uma equação que poderá ter como resultado o desaparecimento de alguns dos biomas mais ricos do país.

    A região da Chapada Diamantina nem sempre foi uma imponente cadeia de serras. Há cerca de um bilhão e setecentos milhões de anos iniciou-se a formação da bacia sedimentar do Espinhaço, a partir de uma série de extensas depressões que foram preenchidas com materiais expelidos de vulcões, areias sopradas pelo vento e cascalhos caídos de suas bordas. Ocorreu depois um fenômeno chamado “soerguimento”, que tornaria visíveis os diversos minerais que posteriormente seriam encontrados nessas terras.

    Os primeiros moradores da região de que se tem notícia foram os índios Maracás. Seus domínios estendiam-se desde o rio Paraguassu até as margens do rio de Contas. Por volta do ano de 1659, bandeirantes portugueses, organizados pela família Garcia de Ávilla, chegaram à região e em menos de 15 anos haviam praticamente acabado com todo o povo Maracá.

    A exploração da área pela família durou quase dois séculos, tendo sempre como principal objetivo a busca por pedras preciosas, principalmente ouro e prata. A propriedade era tão grande que cortava a Bahia ao meio numa parábola que se iniciava em Salvador e finalizava no Maranhão.

    A região fértil foi o berço para o desenvolvimento do que hoje chamamos de Chapada Diamantina. A agricultura e a pecuária eram então as principais atividades de exploração na colônia, até que em 1710, pela primeira vez, encontrou-se ouro próximo ao rio de Contas. Durante esse mesmo ano, a chegada de bandeirantes e exploradores marcou o início da era do garimpo na região.

    Chegam também para trabalhar nas jazidas recém-descobertas os escravos negros. Estima-se que durante toda a escravidão no Brasil mais de 3 milhões de negros africanos foram trazidos à força para trabalhar nas lavouras e garimpos da então colônia. Um dos principais destinos do contingente era a Chapada Diamantina.

    Num Brasil já acostumado ao uso do trabalho escravo, teve início a exploração do ouro de aluvião e, mais tarde, do diamante. Descoberto no início do século 19, a gema em breve tornaria a região a maior produtora de diamantes do mundo por quase 30 anos.

    “Oficialmente o garimpo começou em 1844, no lugar conhecido hoje como cidade de Mucugê, onde aconteceu o verdadeiro rush do diamante na Chapada. A partir de lá a região da Chapada Diamantina começou a ser delimitada, de acordo com as migrações dos garimpeiros em busca da gema cobiçada. Até meados dos anos 70, após diversos momentos de crises e apogeus, imperou somente o garimpo rudimentar, conhecido como garimpo de serra ou artesanal, em que o cascalho diamantífero, derivado da erosão dos conglomerados da formação Tombador, era procurado entre sedimentos eluvionares e coluvionares existentes nos flancos dos relevos. Com a exaustão das jazidas das serras, o minerador lançou mão de equipamentos pesados para explotar os sedimentos aluvionares das bacias hidrográficas. Foram as chegadas das dragas que caracterizaram um maior volume de produção e, conseqüentemente, maior intensidade nos impactos sobre o meio natural.” (por Paulo Magno da Matta- “O garimpo na Chapada Diamantina e seus impactos ambientais: Uma visão histórica e suas perspectivas futuras”)

    O ciclo do diamante, em seu auge, foi farto e rico, mas rápido. Durou apenas um quarto de século, o suficiente para redefinir a organização do espaço na Chapada Diamantina, forjar fortunas e poder, criando uma “aristocracia dos coronéis”.

    O impacto do garimpo foi tão grande e de uma extensão tão abrangente que ainda hoje é possível, ao caminhar pelo parque, encontrar ruínas de antigas casas, canais, máquinas, esteiras, ferramentas e até mesmo verdadeiras cidades de pedra. Estima-se que a população da cidade de Lençóis, no apogeu da mineração, tenha sido de mais de 30 mil pessoas. Para se ter uma ideia, hoje essa mesma cidade é a que mais recebe turistas e mesmo assim possui de acordo com o IBGE cerca de 12 mil habitantes, apenas.

    Como vimos até aqui, a história da Chapada é marcada pela exploração, violência e total desrespeito ao meio ambiente. O vale do Pati, hoje um dos lugares mais visitados do parque, já foi um dos maiores produtores de café do estado e, a exemplo de tantos outros lugares, teve sua mata nativa quase que totalmente derrubada ou queimada para o plantio e a pecuária.

    Encontramos nesse breve levantamento histórico os alicerces sobre os quais o comportamento sócio-cultural da região foi edificado. Sobre esses mesmos alicerces, após o declínio do garimpo, tem início a era do turismo.

    Após um começo tímido e desorganizado, foi com a criação do parque nacional, em 1985, que o fluxo de turistas começou a aumentar e claro, o dinheiro começou a voltar a região então assolada pelo total abandono, devido ao término da era do diamante. O turismo é hoje a principal fonte de divisas para a região — sua população está quase que totalmente ligada à atividade. Centenas de pousadas e campings recebem os turistas diariamente, o fluxo de brasileiros e estrangeiros é enorme, as agências ligadas ao turismo de aventura levam a cada dia um incontável número de pessoas aos mais diversos pontos turísticos da Chapada.

    Nenhuma das atividades acima citadas é regulamentada.

    Nenhuma delas conta com apoio governamental no que diz respeito à preservação do meio ambiente ou ao acesso a programas de aprendizagem e reciclagem de seus funcionários sobre as necessidades, deveres e consequências das ações tomadas numa área de preservação ambiental tão vasta e importante como essa.

    Outro ponto importante: O turismo é a única opção de trabalho para a população local. O investimento em outras áreas de atuação não existe. Os cursos ministrados no Senac da cidade de Lençóis, por exemplo, destinam-se a fornecer a mão-de-obra para a rede turística. A escravidão pode ser apenas um ponto de vista, nesse ainda inaceitável Brasil-colônia.

     Os investimentos em prevenção e cuidados com o meio ambiente também são escassos. A cidade que recebe o maior fluxo de turistas, Lençóis, nem sequer tem um aterro sanitário estruturado. A cerca de 5 km da entrada da cidade, existe um espaço onde o lixo é jogado e rotineiramente incinerado. O lixo carregado pelo vento fica espalhado pela estrada e o mesmo pode acontecer com as fagulhas que, em tempos de estiagem como agora, podem gerar incêndios. Nem mesmo durante o atual incêndio, as queimadas foram paralisadas, ainda há fogo e fumaça saindo do lixão.

    Tão grave quanto o descaso acima descrito é o total abandono pelas prefeituras das brigadas de incêndio que atuam nas cidades da região. A seguir o trecho de uma carta enviada pela população à prefeita da cidade de Lençóis, Moema Rebouças (PSD-BA), e ao secretário do meio ambiente da Bahia, Eugênio Spengler, no dia 18/11:

    “A população de Lençóis, moradores(a) e visitantes, vêm por meio desta, manifestar seu repúdio e indignação com o descaso com que as autoridades locais e regionais lidam com os incêndios florestais que anualmente atingem a região, ignorando a tomada de medidas preventivas e omitindo apoio e incentivo ao trabalho da BRAL .

    É inaceitável que em uma área de preservação ambiental e de altíssimo fluxo turístico como o Parque Nacional da Chapada Diamantina, não seja dotada de políticas de prevenção de incêndios florestais e que tampouco seja realizado, junto à comunidade local e turistas, campanhas de educação ambiental e conscientização.É inaceitável também que a brigada de incêndios local funcione exclusivamente de doações e mobilizações voluntárias e populares, sem nenhum investimento público no que diz respeito a manutenções, equipamentos ou treinamentos adequados para os brigadistas e voluntários. São os cidadãos e cidadãs de Lençóis, muitos pais e mães de família, quem arriscam suas vidas no combate a chamas de vários metros de altura, sem equipamentos de proteção adequados e sem nenhum treinamento específico para essa, no mínimo, insalubre função.Além disso, a população reclama a solução do problema com o manejo e descarte dos resíduos produzidos na cidade, manejo este que atualmente ignora completamente a Lei Federal 12.305/10 da Política Nacional de Resíduos Sólidos, além de oferecer um altíssimo risco de incêndio.”

    O incêndio que atinge atualmente a Chapada Diamantina é o reflexo da exploração humana e ambiental da região. Infelizmente, a verdade não é que a ajuda não veio DESTA vez; é que ela NUNCA existiu. As autoridades locais, regionais e federais jamais estiveram interessadas no bem-estar da população ou na preservação do parque nacional.

    Índios, escravos, trabalhadores ou voluntários são apenas diferentes denominações para aquelas pessoas que ainda fazem parte da mesma camada explorada dos tempos do Brasil colônia, aquela parte da população que não tem dinheiro, que não existe.

    A comoção popular mostrou-se muito forte durante os últimos dias. As associações locais e a comunidade trabalham há dias em uma comovente união que nos faz acreditar que a solução está em cada um de nós, naquilo que todos nós podemos juntos reivindicar e mudar.

    Governo é coisa do passado. É resquício que tem que queimar.


    *Rodrigo Santanna é morador de Lençóis, na Chapada Diamantina, e faz parte da equipe de voluntários que está combatendo os focos de incêndio. É também publicitário. Escreveu o texto acima motivado pela indignação face ao cenário caótico e de total irresponsabilidade do poder público frente à tragédia.

  • Mais um incêndio consome a Chapada Diamantina

    Mais um incêndio consome a Chapada Diamantina

    Brigadistas voluntários e comunidades se unem para barrar as chamas que engolem a região. Leia relato de um jornalista morador do Vale do Capão e brigadista na batalha para conter a fúria do fogo.

    Parque Nacional da Chapada Diamantina (BA) arde em chamas há pelo menos 20 dias. Os principais focos são nos municípios de Ibicoara, na região do “Mucugêzinho”, entre os municípios de Lençóis e Palmeiras, onde também atingiu o famoso Morro do Pai Inácio, e o Vale do Capão, no município de Palmeiras.

    Um problema recorrente que os órgãos responsáveis insistem em tentar remediar (quando já é muito tarde) do que prevenir. Há décadas a Chapada Diamantina sofre com as queimadas e a ausência de um planejamento estratégico de prevenção ao fogo, somado a um número muito baixo de efetivo de brigadistas contratados, resulta no visível fracasso que se vê hoje: a BR 242 interditada devido à fumaça, municípios encobertos pela neblina, comunidades em risco.

    Muitas casas ficam próximas das montanhas em chamas, milhares de hectares de florestas estão queimadas, inúmeros animais de diversas espécies ja estão mortos…

    Mas dessa situação extrema surge algo bom: moradores que se unem aos heróis das brigadas voluntárias, como a do Vale do Capão, por exemplo. A comunidade ajuda como pode a Associação de Condutores de Visitantes do Vale do Capão (ACV-VC), que é composta por voluntários que se envolvem em diversas questões ambientais, uma delas é o combate ao fogo. Essa brigada não tem nenhum tipo de remuneração e trabalha em condições precárias. O que sobra é a raça e a força de vontade de guerrear contra as chamas que teimam em varrer nossa riqueza natural.

    Foto: Iago Aquino
    Foto: Marcelo Issa

     

    Foto: Iago Aquino

     

    Foto: Iago Aquino

    Por dias e noites acompanho esses brigadistas no combate ao fogo no Morro Branco, no Vale do Capão, tanto como jornalista, no intuito de registrar a realidade bem de perto, como morador local, tentando colaborar com a manutenção desse paraíso. São locais de acesso complexo, onde brigadistas e moradores enfrentam, muitas vezes, risco de morte. Os locais íngremes, com fendas enormes onde não se pode dar um passo em falso. Isso tudo com 20L de água (20Kg) nas costas e equipamento defasado para combater chamas com cinco, seis metros de altura.

     

    Queimada na região fotografada em 2008 por Rafael Lage.

    Só nos últimos três ou quatro dias que algumas aeronaves começaram a ajudar na logística de jogar água nos focos de incêndio e transportar alguns brigadistas às regiões mais complexas — apesar da ajuda chegar tarde e ser pequena, perto da necessidade. Quando ações para apagar ou controlar totalmente o fogo não têm êxito, ao menos impedem que as chamas sigam destruindo outros locais, nascentes de rios e provoque ainda mais mortes de animais silvestres. Lembrando que a alimentação, as roupas especiais para combater altas temperaturas, abafadores, bombas de água, materiais como lanternas, pilhas, etc, tudo vem de doações de empresas parceiras ou da própria comunidade, afinal, por serem voluntários e não contratados pelo governo, são praticamente esquecidos à própria vontade e sorte.

     

    Foto: Iago Aquino