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  • CULTURA: É preciso cancelar os editais anunciados pelo ex-secretário que citou Goebbels

    CULTURA: É preciso cancelar os editais anunciados pelo ex-secretário que citou Goebbels

    Cultura: Alexandre Santini, gestor cultural, escritor e diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, e Carol Proner, jurista e professora, discutem o legado de Roberto Alvim
    Cultura: Alexandre Santini, gestor cultural, escritor e diretor de teatro, e Carol Proner, jurista e professora, discutem o legado de Roberto Alvim

     

    Por Bruno Trezena, especial para os Jornalistas Livres

     

    A reação ao anúncio do Prêmio Nacional das Artes, feito pelo ex-secretário Especial de Cultura do Governo Bolsonaro Roberto Alvim movimentou toda a sociedade brasileira. Com gestos e tons teatrais e que evocavam o pesadelo nazista, o vídeo sobre editais de fomento à Cultura fez com que Roberto Alvim encerrasse sua rápida passagem pela pasta de forma medíocre e vergonhosa. 

     

    Contudo, os editais ainda estão no radar do Governo para serem implementados. E os perigos destes editais, que apontam para uma lógica em que o Estado ditará o que é Cultura no país, são o objeto da entrevista com Alexandre Santini, gestor cultural, escritor e diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, além de ex-diretor de cidadania e diversidade cultural do ministério da Cultura na gestão de Juca Ferreira (Governo Dilma), e Carol Proner, jurista, professora, escritora e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Confira:

     

     

    Bruno Trezena: Como foi a repercussão do vídeo de Alvim no setor cultural?

    Alexandre Santini: O vídeo é estarrecedor. O [agora ex] Secretário Especial de Cultura Roberto Alvim criou uma performance macabra, com tom, estética e conteúdo de inspiração nazista, que chocou não só o setor cultural mas a sociedade brasileira como um todo, que felizmente reagiu à altura da gravidade do episódio, em uma onda de repúdio generalizada que levou à demissão sumária de Alvim em poucas horas.

    Mas o aparente desfecho não elimina a gravidade do vídeo, que ficará como um registro, um testemunho histórico do que é o pensamento e a visão de mundo que inspira o bolsonarismo e sua ação no campo da cultura. Alvim é, ou foi, diretor de Teatro, e certamente pensou na dramaturgia e encenação daquele pronunciamento, ladeado por uma cruz templária e pela bandeira nacional, a trilha sonora de Wagner, a fala lenta e compassiva, a paráfrase e por fim a citação textual do discurso de Joseph Goebbels. Em sua última performance institucional, Roberto Alvim cometeu um suicídio semiótico, ateando fogo em si mesmo como seus ídolos e mártires católicos, e sai da vida (pública) pela porta dos fundos da história.

    Bruno Trezena: E os editais? O que deve acontecer com eles?

    Alexandre Santini: É preciso que sejam cancelados. O próprio anúncio de um edital voltado a uma “arte conservadora” já fere o princípio da impessoalidade administrativa, já configura uma ilegalidade. Não cabe ao governo interferir no sentido do pensamento e da criação. Em nenhum momento dos últimos 30 anos de experiência democrática no Brasil isso aconteceu. É preciso que, além da demissão, os atos de ofício do ex-secretário especial de Cultura sejam cancelados, entre eles editais e nomeações. E Alvim deveria ainda responder perante a Justiça por apologia ao nazismo.

    Bruno Trezena: Como foi sua experiência no MINC e a diferença deste Governo?

    Alexandre Santini: Há um abismo entre as duas experiências e momentos históricos. O abismo em que o Brasil cai quando elege Bolsonaro. Cai a visão antropológica de Cultura, as três dimensões —simbólica, econômica e cidadã— das políticas culturais que influenciaram as políticas públicas no Brasil e no mundo a partir das bases estabelecidas pelos ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, durante os governos Lula. Foram quase 2 décadas de grande desenvolvimento cultural no Brasil, seja na área da cidadania e da diversidade cultural, seja em áreas de forte impacto econômico como o cinema e o audiovisual. A extinção do Ministério da Cultura no governo Bolsonaro já fala por si. Em apenas um ano, a Secretaria Especial de Cultura já esteve no Ministério da Cidadania, agora está no Turismo e especula-se que pode ir para o Ministério da Família. Iremos para o terceiro Secretário Especial de Cultura em um ano. Além da falta de gestão e competência técnica dos novos dirigentes nomeados, predominam pensamentos obscurantistas e grotescos, como vimos recentemente em manifestações dos presidentes da Funarte, da Fundação Palmares (também exonerado) e da Casa de Rui Barbosa. O governo Bolsonaro é um desastre para o setor cultural brasileiro.

    Bruno Trezena: Como combater esses ataques na Cultura por parte do Governo?

    Alexandre Santini: A sociedade tem reagido fortemente a estes episódios, levando o governo a recuos e derrotas pontuais como esta. A sociedade civil organizada, as instituições, artistas, movimentos e coletivos se posicionam e têm capacidade de polarizar a opinião pública. Enquanto isso o povo segue sendo vilipendiado em seus direitos sociais, vide o caso na fila do INSS. Não são coisas isoladas, é tudo parte de um mesmo projeto.

    As políticas culturais têm resistido, especialmente em âmbito local, em cidades e estados comprometidos com os avanços do setor cultural brasileiro nas últimas décadas. Experiências como a de Niterói, que hoje investe fortemente na cultura através de editais e fomenta a participação popular e descentralização dos equipamentos culturais; experiências importantes em cidades e estados do nordeste; a prefeitura de São Paulo está fazendo uma programação com espetáculos que sofreram boicotes ou cancelamentos em espaços e programas do governo federal. Há reação e vigilância por parte do setor cultural. Mas a demissão do Secretário Especial de Cultura não encerra o problema, ao contrário.

    Quem coloca uma pessoa como Roberto Alvim neste cargo tinha noção de quem ele era e do que pensava. Seu posicionamento era conhecido antes de chegar à pasta. Ele estava lá por pensar essas coisas e não o contrário. E só saiu porque a repugnância ao seu pronunciamento foi praticamente unânime. Um presidente que homenageia um torturador como Carlos Alberto Brilhante Ustra não deve achar nada de mais nas diatribes do garoto Roberto Alvim. Só que dessa vez ele exagerou na dose, até para alguém como Bolsonaro. A sua loucura tem um método, e não reconhece limites. Quem lhe impõe limites (ainda) é a democracia e seu sistema de freios e contrapesos, as instituições, a sociedade civil organizada. Estamos de pé!

    Bruno Trezena: Os editais anunciados por Alvim apresentam inconstitucionalidades?

    Carol Proner: Não conhecemos a redação dos editais e, portanto, não dá pra saber com exatidão ainda. Fica a grande questão se o edital viola o princípio da impessoalidade ou se é um espelho do discurso feito pelo ex-secretário Roberto Alvim. De qualquer forma, é complicado imaginar que aquele que é responsável pelo edital possa fazer um anúncio com as finalidades do edital com aquele conteúdo propagado pelo vídeo. É praxe que todo Governo possa fomentar a arte e Cultura de seu país, desde que seja observado o princípio da impessoalidade. Sem sectarismo.

    Bruno Trezena: Como a sociedade e as organizações podem reagir juridicamente?

    Carol Proner: O MPF já foi acionado por advogados, a ABJD já se pronunciou, repudiando as palavras do ex-secretário, a OAB, a Confederação Israelita também repudiou, visto que o discurso plagiava palavras do ministro nazista alemão Joseph Goebbels. Houve reação de muitas entidades jurídicas. Ministros do Supremo também se manifestaram, como o presidente Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

    Todos têm que ver o edital para ver se reproduz o discurso absurdo do ex-secretário. E todos e todas que se sentiram ofendidos pelo discurso devem recorrer à Justiça também. Apologia ao ódio, contra direitos humanos, contra a humanidade (no caso, o Holocausto) devem ser combatidos. Não se pode aceitar passivamente isso tudo.

     

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  • A entrevista coletiva de Moro e o Direito Penal do Inimigo

    A entrevista coletiva de Moro e o Direito Penal do Inimigo

    Se a entrevista coletiva de Sérgio Moro, para falar de seu novo cargo de Ministro da Justiça e da Segurança Pública, tivesse acontecido no programa da Hebe Camargo, a apresentadora se voltaria para a câmera e, em close-up, diria: “Ele não é uma gracinha?”

    E estaria correta. Sérgio Moro é uma pessoa facilmente “gostável”. É, mesmo, muito fácil gostar dele. Sua luta contra as falcatruas dos poderosos que sempre puderam tudo no nosso país magnetiza multidões. Quem não suspeitava das negociatas das empreiteiras que se formaram ainda durante a ditadura militar? Quem não percebe, há muitos e muitos anos, o acelerado enriquecimento de políticos brasileiros?

    Sua exposição sempre recheada de elogios às tvs, rádios, jornais e revistas tradicionais são essenciais na construção de sua imagem de bom moço. Diferentemente, ainda, dos empolados juristas, Moro tem um discurso simples, muito bem trabalhado para atingir seu eleitorado, digo, seu público apoiador. Estilo sereno e oposto ao do presidente eleito.

    Entrando, todavia, um pouco abaixo do verniz do discurso e relembrando as ações que tomou ao longo da operação Lava Jato, torna-se imperativo colocar em cheque seu bom mocismo e seu real interesse no bem da pátria.

    Geraldo Prado, Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-desembargador e ex-promotor, teve a tarefa de apresentar um livro que reuniu “a obra de cento e vinte e um autores, retratada em cento e um artigos que submetem todos os aspectos da longa sentença ao criterioso exame que a ciência penal, o direito constitucional e outras áreas do saber consideram fundamentais para afirmar o Estado de Direito no Brasil. Ele salienta que o livro Comentários a uma sentença anunciada: o Processo Lula é uma espécie de Carta Compromisso com a Cidadania, a Democracia e o Estado de Direito”.

    Dentre os cento e um artigos críticos à conduta de Moro, destaca-se aquele de Charlotth Back, Direito Penal do Inimigo (Político), possivelmente um dos melhores exemplos para demonstrar que, ao aprofundar apenas alguns degraus, a unanimidade do apoio ao juiz Sérgio Moro se esvai.

    Ela, já em seu primeiro parágrafo, afirma que o enriquecimento ilícito do ex-presidente não foi comprovado no processo. Desse modo, sua condenação foi a aplicação do Direito Penal do Inimigo: o “inimigo” não tem os direitos dos “cidadãos” expressos nas leis e na constituição:

    A sentença do juiz Sérgio Moro, que condenou o ex-Presidente Lula a nove anos e seis meses de reclusão por um suposto (e não comprovado) enriquecimento ilícito, fruto de uma alegada prática de corrupção, é um exemplo claro da aplicação da doutrina do Direito Penal do Inimigo, com a finalidade de “combater a corrupção no Brasil”. Essa doutrina foi criada na década de 1980 pelo jurista alemão Günther Jakobs, mas ganhou força no governo de George W Bush, após o ataque às Torres Gêmeas de 2001, e, principalmente, nas invasões norte-americanas ao Afeganistão e ao Iraque.

    Sob o argumento de segurança nacional, de legítima defesa ou de combate ao terrorismo – o proclamado mal do século XXI – certas pessoas, por serem consideradas inimigas da sociedade ou do Estado, não deteriam todas as garantias e proteções penais e processuais penais que são asseguradas aos demais indivíduos. Em nome da defesa da sociedade, as garantias penais mínimas consagradas pelas constituições e pelos instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos, como a presunção de inocência, a vedação da condenação sem provas, o princípio da legalidade, a neutralidade do julgador, a proibição da tortura, bem como o impedimento de obtenção de provas por meios ilícitos, não se aplicam aos proclamados “inimigos da sociedade”.

    Os golpes jurídico-parlamentares, que se espalham pela América Latina, são o resultado da transformação de atores políticos de esquerda em inimigos da sociedade, passíveis, portanto, de serem julgados por um “Direito diferenciado” comumente aplicado entre os mais pobres:

    No contexto brasileiro, o Direito Penal do Inimigo tem sido usado na autoproclamada missão do Judiciário de “combate à corrupção”. Lula e demais políticos da esquerda estão sendo tratados como verdadeiros inimigos e não como cidadãos acusados em um processo-crime; ou seja, os réus aqui não são sujeitos de direito, ou mesmo alvos de proteção jurídica. São, na verdade, objetos de coação, desprovidos de direitos e da proteção jurídica mínima a que todos os seres humanos têm direito, mesmo aqueles investigados por crimes. Cabe lembrar que a utilização do Direito Penal do Inimigo no Brasil não é uma inovação do juiz Moro, uma vez que, nas operações policiais nas comunidades mais pobres e nas periferias, a regra é tratar tanto os criminosos como a população em geral de maneira equiparada a inimigos sociais.

    Back aponta que desde o início do inquérito já havia indícios de que o processo era contra a pessoa do ex-presidente e não para apurar eventuais atos por ele praticados. Ela relaciona os atos de Moro que fundamentam sua opinião:

    A franca utilização do Direito Penal do Inimigo na sentença do juiz Moro fica evidenciada em diversos momentos. Em primeiro lugar, falta a razoabilidade na instauração do inquérito contra Lula. O que parece aqui é que Lula está sendo investigado por conta de sua identidade política e por seu passado. Busca-se punir a possível periculosidade do agente, e não sua culpabilidade em si. Na parte final da sentença, na qual Moro considera o cargo de Lula como agravante e, portanto, justificativa para a ampliação da sua pena, o juiz, mais uma vez, recorre à pessoa do agente, e não às circunstâncias da conduta, para aplicar o Direito Penal. Deve-se lembrar que esta não é uma agravante possível ou mesmo considerável no Direito Penal brasileiro.

    Em segundo lugar, o julgamento de Sérgio Moro se mostra totalmente parcial e pendente à condenação do réu, independentemente de qualquer prova concreta, por razões mais políticas do que jurídicas. Esse aspecto é corroborado pela conduta do próprio juiz, que vai reiteradamente à mídia fazer declarações contrárias ao réu, comparece a eventos de partidos políticos de direita e está frequente e publicamente acompanhado por adversários políticos interessados na destruição da figura política do ex-Presidente. Ademais, o juiz passa parte significativa da sentença criticando a estratégia da defesa de Lula, que alega suspeição e parcialidade do Juízo. O ex-Presidente tem todo o direito de se defender e de denunciar o que considera ser um processo injusto, parcial e infundado. A defesa de Lula não pode ser criticada, nem impedida de tecer esse tipo de crítica e muito menos ser reprovada por invocar sua tese de defesa simplesmente porque o juiz considera que isso ataca sua autoridade moral ou seu prestígio como julgador.

    Em terceiro lugar, apesar de a Operação Lava Jato contar com algum apelo social por conta da dita missão de “combate à corrupção”, os métodos jurídicos que têm sido usados, principalmente quando se fala da investigação penal, são extremamente questionáveis face à nossa Constituição e às garantias mínimas do devido processo legal do Direito Internacional. Obtenção de delação premiada por meio de acosso, consideração na sentença de delação premiada desqualificada pelo Ministério Público Federal (responsável pela acusação), grampos em escritório de advocacia, divulgação de áudios obtidos de forma ilícita, como no caso da conversa entre Lula e a então presidenta Dilma, e a exibição pública dos acusados, configuram uma série de condutas claramente ilegais. Todos esses recursos servem para sustentar a “convicção” do juiz para condenar o ex-presidente Lula.

    Não há no processo contra Lula qualquer prova que o associe ao recebimento de recursos ilícitos, não há documento, não há gravação, não há comprovação da posse do apartamento, não há conta no exterior, prossegue Back:

    Nota-se aqui uma clara mudança das regras do jogo processual, típica do Direito Penal do Inimigo. Um dos pilares do Direito Penal, e consequentemente, uma das garantias dos cidadãos contra a perversidade estatal, é o princípio de que a acusação tem o dever de provar o que foi alegado na inicial. Não há a possibilidade de responsabilizar alguém penalmente sem que haja uma relação direta e relevante entre o agente e o bem jurídico afetado, ou seja, sem a existência de um lastro probatório robusto e suficiente para imputar algum crime ao agente. Há que se comprovar que houve de fato uma conduta ilícita, e que esta conduta pode ser imputada ao acusado; caso contrário, existirá uma flexibilização indevida das garantias constitucionais em nome do combate à corrupção, como se este fosse o mal maior da sociedade brasileira.

    A exaustiva repetição pelos meios de comunicação do discurso democrático e “em defesa da sociedade” promove sua assimilação por larga parcela da população, mesmo que as ações sejam claramente autoritárias, atropelem leis e não garantam os direitos do acusado:

    De acordo com este discurso de senso comum, baseado na ideologia da “defesa social”, é plenamente possível mitigar direitos e garantias fundamentais “em prol da sociedade”. A colaboração evidente com a mídia, com a finalidade de criar uma mobilização popular contra Lula, e as diversas entrevistas dos procuradores da Lava Jato nos dão a certeza de que este processo passa muito distante de um processo penal jurídico; é um processo penal político e, nesse sentido, faz questão de não seguir o devido garantismo penal.

    Retirar o ex-presidente Lula da disputa política por qualquer meio, essa foi a real intenção do processo, conclui Charlotth Back:

    A sentença do juiz Moro é inequívoca em demonstrar o seu principal objetivo: usar todos os meios existentes, lícitos ou ilícitos, para condenar o ex-Presidente -considerado por ele e por parte do Judiciário como um inimigo que precisa ser combatido e massacrado -, ainda que para isso seja necessário macular o Direito, flexibilizar as garantias processuais, desnaturalizar os princípios constitucionais, ou seja, aplicar de forma explícita, o Direito Penal do Inimigo.

    O livro e o artigo foram escritos em 2017, quando ainda se desconhecia que o ex-presidente Lula viria a ter sua candidatura impugnada no pleito do ano seguinte. Da mesma forma, não se imaginava que Sérgio Moro estaria sendo guindado, pelo presidente eleito, ao cargo de Ministro da Justiça e da Segurança Pública do Brasil. Não obstante, já havia 121 autores ligados ao Direito e dispostos a exporem ao público suas críticas à conduta do juiz.

    Nota:

    1 Para baixar o livro, Comentários a uma sentença anunciada: o Processo Lula, organizado por Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobom e João Ricardo Dornelles, publicado pela Canal 6 Editora: https://www.ocafezinho.com/2018/01/09/baixe-aqui-livro-de-juristas-sobre-sentenca-de-lula-e-liberado-gratuitamente-na-internet/

    2 Essa matéria recebeu o selo 047-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Com Supremo, com tudo. Só esqueceram da ONU

    Com Supremo, com tudo. Só esqueceram da ONU

    Por Carol Proner
    Advogada, doutora em direito, Professora de Direito Internacional da UFRJ, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.

     

    Affirmanti incumbit probatio (Brocardo jurídico em desuso no Brasil)

    O silêncio do grupo Globo decide mais que qualquer juiz no Brasil. A tática agora é não pautar assuntos constrangedores ou aqueles que não podem ser sustentados sem o apelo à mentira. E é por isso que não há muitas linhas sobre o recente caso da ONU, assim como também passaram em branco os “golpes blancos en América latina” alertados pelo Papa Francisco na visita dos brasileiros ao Vaticano. Mas, in dubio, pode ser que as câmeras dos cinegrafistas da emissora tenham contraído uma espécie de vírus, no dia do registro da candidatura de Lula, e se esmeraram em imagens laterais, deixando fora de foco aproximadamente 30 mil pessoas.Vamos falar francamente: não precisamos de professores de direito internacional para explicar que a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU vincula, obriga e gera responsabilidade. Para os que têm alergia ao direito internacional, fiquemos com a prata da casa, temos leis de sobra para assegurar os direitos políticos do candidato, leis constitucionais amplamente respaldadas pela legislação-base, sem contar a antecedência, a jurisprudência e a velha e boa “prudência” de não deixar escoar direitos irreparáveis.

    Para começo de conversa, a decisão da ONU espelha a legislação pátria: o mandamento decorre dos direitos e garantias constitucionais e da tradição democrática e responsável do direito eleitoral que, mesmo nas brechas da lei que pune quem não tem “ficha limpa”, é cuidadoso com o direito-síntese mais importante do nosso sistema político: o direito de votar e ser votado.

    A decisão da ONU complementa o que já temos, mas também é um alerta para que, caso alguma autoridade tenha esquecido de aplicar a lei no curso de um processo não justo, que momentaneamente acalme-se e acautele esses direitos que, não por acidente, são chamados de fundamentais. Em suma, teve um dia ruim? Ficou com vontade de ligar para o carcereiro da Polícia Federal de Curitiba e exigir descumprimento de uma ordem judicial? Lembre-se que a ONU está de olho em você e, com base numa vontade que o Estado brasileiro exarou em 2009, aderindo, via Decreto Legislativo, ao mecanismo de fiscalização universal de direitos civis e políticos, a decisão é mandatória: um imenso “cumpra-se” que abarca a responsabilidade de todo o Estado brasileiro e não somente de um juiz que cometeu crime, mas ainda não foi afastado.

    Não prefiro a ironia como forma de escrita, ainda mais quando estamos vivendo no limite do aceitável, quando há gente fazendo greve de fome para que outros não padeçam em consequência de uma crise total que vive o nosso país. Mas por vezes, diante do arbítrio com altas doses de cinismo, recorremos ao sarcasmo para encarar os principais responsáveis pelo agravamento da crise democrática e soberana, pois estão todos nus.

    Sob os olhos do mundo, o Brasil se transformou, entre todas as tentativas em curso na América Latina, no case mais escandaloso de perseguição midiático-judicial a um líder político. Escandaloso porque erraram a mão, exageraram e provocaram uma forte reação popular e internacional. O processo de combate à corrupção, preparado para mascarar a trama via “legitimação pelo procedimento”, foi desmascarado logo na origem do chamado Caso Lula, tanto pela defesa do ex-Presidente quanto por argutos juristas que identificaram e denunciaram a prática de lawfare e os atos de exceção no sistema de justiça.

    Hoje é transparente o vínculo entre o golpe jurídico-midiático-parlamentar contra Dilma e o ativismo jurídico-midiático contra Lula, processos paralelos e complementares que engolfaram a democracia não apenas pelo comprometimento das eleições de 2018, mas também por revelar limites dramáticos do modelo: agora, amarrando bem – com supremo, com tudo – é possível apear presidentes ou encarcerar candidatos para evitar o acontecimento da democracia.

    Só se esqueceram dos expertos da ONU.

    Nos encontros que temos tido com juristas e cientistas políticos de outros países, essa é a dura mensagem que o caso brasileiro está transmitindo: um alerta para todos os países que vivem a ilusão do acordo possível entre os valores liberais do (neo)constitucionalismo e os direitos dos povos historicamente desgraçados. Na hora certa, quando o mandamento do (neo)contratualismo se resume a “não pactuar com a democracia” – racionalidade pós-democrática – os elitismos, incluindo o elitismo judicial, se levantam e falam grosso com los de abajo. É aí que teremos que enquadrar qualquer projeto de reforma do judiciário que se preze, mas isso é assunto de futuro.

    Por enquanto, devemos celebrar. Essa decisão cautelar da ONU é muito boa para a resistência democrática, já que temos consciência de que se trata de acúmulo para fortalecer um momento mais adiante. Como já não acreditamos na justiça, será mesmo por diversão que acompanharemos a decisão do ministro Barroso arbitrando a proibição dos direitos inalienáveis de Lula, apesar da decisão-espelho da ONU. Ele vai tratar a entidade como o Cabo Daciolo trata a URSAL, provavelmente fazendo coro com o Bolsonaro, que a considera covil de comunistas.

    Tentando imaginar a embaraçosa situação dos perpetradores do golpe e daqueles que agora têm nas mãos o destino de tudo isso – não só do Lula-Livre, mas de suas próprias biografias – talvez, se pudessem voltar no tempo, teriam feito tudo com mais capricho: quem sabe um juiz menos acusador, um Ministério Público menos power point, desembargadores menos apressados, ministros da Suprema Corte menos vaidosos e uma mídia menos canastrona. Poderiam ter chegado lá pisando no povo, naturalmente, mas com elegância.

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 020-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • Uma justiça de mercado

    Uma justiça de mercado

     

    Um modo claro para compreender o golpe que depôs Dilma e a condenação de Lula é inserir nosso país na reação conservadora que se iniciou lá nos anos 1970 e que consolidou as ideias de que o mercado deve ser deixado livre, sem regulações que o impeçam de ser “eficiente”, aos olhos de suas elites, e que o Estado, ao contrário, é sempre ineficiente e não deve se meter nos “negócios”. Essa ideologia, chamada de neoliberal, foi a reação contra o aumento da participação dos trabalhadores na renda e na vida geral das sociedades com maior desenvolvimento econômico, que aconteceu após a Segunda Guerra. O sistema judiciário, juízes e cortes, não ficou de fora dessa guinada conservadora.

     

     

    Voltemos alguns anos na história.

     

     

    As origens [do ataque ao sistema econômico] são variadas e difusas. Elas incluem, o que não chega a surpreender, Comunistas, Novos Esquerdistas e outros revolucionários que destruiriam o sistema por completo, tanto o político quanto o econômico. Esses extremistas da esquerda são muito mais numerosos, mais bem financiados e, crescentemente, mais bem-aceitos e encorajados por outros elementos da sociedade, do que em qualquer outra época de nossa história. (Ver em inglês na nota 4)

     

     

    Lewis Powell, que era advogado e tornou-se juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, escreveu esse parágrafo acima em 1971, como parte de um documento que ficou conhecido como “Memorando Powell”, reconhecido como um dos primeiros documentos a descrever as estratégias para reverter o crescimento do poder econômico e político dos trabalhadores no período que se seguiu à Segunda Guerra.

     

     

    O manifesto era endereçado a líderes da Câmara de Comércio dos Estados Unidos e visava unir esforços e recursos dos empresários para combater a “ameaça” da esquerda. Sua proposição não deixava de dar extrema importância ao convencimento de parlamentares, da mídia, das forças armadas, de acadêmicos e de juízes para atuarem em favor do livre mercado e da retirada de regras que “inibiam” a ação das empresas.

     

     

    Powell salientava que o Judiciário poderia ser o instrumento mais importante para mudança social, política e econômica. Ele aconselhava congregar advogados de alta competência para atuar como conselheiros “amigos” da Suprema Corte.

     

     

    Outro advogado e professor na Universidade de Chicago, Richard A. Posner, também exerceu forte influência sobre o conservadorismo das cortes com seu livro, de 1973, “Análise Econômica da Lei”, em que aplicava a ideologia do livre mercado às cortes. A atenção dada ao sistema de justiça, por Powell, Posner e outros, culminou com a formação de cortes com forte inclinação conservadora, cortes que aplicam a ideologia neoliberal às suas decisões, configurando uma justiça de mercado.

     

     

    Voltemos, agora, ao Brasil do século XXI.

     

     

    Carol Proner, doutora em direito e professora na UFRJ, escreveu o artigo “O lawfare neoliberal e o sacrifício de Lula”, que nos inspirou e guiou para essas linhas. Ela argumenta que o atropelo do judiciário empurrou as esquerdas brasileiras para a união e que a prisão de Lula, seu sacrifício, contribuirá para desmascarar a politização da justiça. Ela aponta a tramoia entre o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal, apoiados pela mídia e ressalta o constrangimento causado pelos votos, antecipadamente combinados, dos desembargadores do TRF4.

     

     

    Ela se impacienta com os funcionários públicos (juízes, delegados e procuradores) que, em absoluto desrespeito às normas legais, retiram o direito da sociedade de escolher ou rejeitar Lula:

     

     

    É exasperante constatar que funcionários públicos investidos na função de administrar a justiça possam, ignorando normas e princípios legais consolidados, produzir um resultado que afeta diretamente o direito de uma sociedade escolher o seu soberano representante. Afeta até mesmo o direito de não escolher este candidato, comprometendo a sanidade do processo eleitoral.

     

     

    Não é preciso conhecer mais do que um mínimo da teoria do direito, afirma ela, para saber que esses três desembargadores decidiram fora do direito. Dando, assim, o exemplo para que outros juízes e outras cortes atropelem a técnica jurídica produzindo “vítimas e algozes em outras jurisdições”.

     

     

    Carol Proner nos faz recordar que mesmo nas guerras respeitam-se certos princípios que a Lava-jato desprezou ao não garantir devido processo legal, ao aceitar o processo do triplex que não cabia a Moro julgar por não haver provas da ligação com a Petrobras, ao aplicar uma pena muito maior do que é comum em casos semelhantes, ao condenar na ausência de provas, ao desrespeitar o estado de inocência, ao usar uso de provas ilícitas, ao violar os direitos do réu, ao exibir clara condução parcial do juiz, ao desrespeitar o princípio da paridade de armas, “regra medieval que remonta a ordem da cavalaria como sustentáculo de legitimidade de um julgamento justo até mesmo no direito da guerra”.

     

     

    Lawfare

     

     

    A origem da palavra lawfare (que se pronuncia “lofér”, com “o” aberto) é a junção das palavras law, que é lei, e warfare, que significa arma de guerra. Lawfare passou, assim, a referenciar o uso da lei como uma arma de guerra.

     

     

    Susan Tiefenbrun, professora de direito na Universidade de Nova York, explica que lawfare: “é uma arma projetada para destruir o inimigo através do uso, mau uso e abuso do sistema legal e dos meios de comunicação, para levantar o clamor público contra aquele inimigo.”

     

     

    A defesa de Lula enumera 11 táticas lawfare utilizadas pela Operação Lava Jato:

     

    Manipulação do sistema legal, com aparência de legalidade, para fins políticos;

     

    Utilização de processos judiciais sem qualquer mérito;

     

    Abuso do direito para danificar e deslegitimar um adversário;

     

    Promoção de ações judiciais para descredibilizar o oponente;

     

    Tentativa de influenciar opinião pública: utilização da lei para obter publicidade negativa;

     

    Judicialização da política: a lei como instrumento para conectar meios e fins políticos;

     

    Promoção de desilusão popular;

     

    Crítica àqueles que usam o direito internacional e os processos judiciais para fazer reivindicações contra o Estado;

     

    Utilização do direito como forma de constranger e punir o adversário;

     

    Bloqueio e retaliação das tentativas dos atores políticos de fazer uso de procedimentos disponíveis e normas legais para defender seus direitos;

     

    Acusação das ações dos inimigos como imorais e ilegais, com o fim de frustrar objetivos contrários.

     

    A racionalidade neoliberal a corromper todas as esferas da existência humana

     

     

    “Tomando distância, é evidente que o processo tem muito mais a ver com a des-democratização das sociedades mundiais e as ofensivas para desarmar soberanias.” Carol Proner faz, assim, a junção da ideologia neoliberal e os eventos recentes no caso Lula:

     

     

    Para compreender o que move a roda de golpes que atinge o Brasil, já tendo passado pela fase do golpe parlamentar e agora na etapa jurídica, é preciso emprestar as ferramentas de análise da sociologia e da ciência política, de autores como Laval e Dardot que descrevem “a nova razão do mundo”, a racionalidade neoliberal a corromper todas as esferas da existência humana, indo do individual ao estatal, passando por novas formas de gestão do capitalismo financeiro que borram a separação entre público e privado, entre direito público e direito privado, entre funcionário público e empresário-lobista, entre Estado e mercado.

     

     

    Para entendermos o retrocesso de direitos, precisamos reconhecer que o direito está submetido à racionalidade privada. Um quadro em que o direito penal é aplicado de modo diferenciado para “amigos” e “inimigos” da sociedade, em que o direito do trabalho sofre a “modernização flexibilizadora” e em que o direito constitucional é regido pelos ideais neoliberais de liberdade do mercado e desregulamentação das atividades empresariais privadas. Como já pregava a Escola de Chicago na segunda metade do século passado:

     

     

    A Escola de Chicago já pregava, em meados do século XX, a necessidade de formar juízes e convencê-los, por meio de cursos e seminários, das teses da desregulação do setor privado em favor de um laissez-faire absoluto. Controlar as cortes e os tribunais arbitrais passou a ser meta para a lex mercatoria em busca de um poder ilimitado que, juntamente com o controle da mídia e das forças armadas, garantiriam o triunfo do capitalismo contemporâneo. Registre-se, um capitalismo extremamente agressivo, que prescinde de qualquer acordo democrático e cuja faceta política é o neoconservadorismo nacionalista.

     

     

    Carol Proner termina seu artigo afirmando que Lula seguirá liderando processos democráticos e auxiliando a pensar instrumentos que revoguem as reformas que, a pretexto de austeridade fiscal e maior eficiência, retiram direitos dos mais carentes, restringem investimentos públicos, privatizam empresas públicas que são motores do desenvolvimento. Reformas que têm sido provadas ineficientes e danosas ao emprego e ao crescimento independente e soberano do país:

     

    Vendo-se a partir dessa moldura ampliada, há razões de sobra para a iminente prisão de Lula ou ao menos a sua inabilitação jurídica para concorrer ao pleito de 2018, o que não ocorrerá sem grande oposição das forças democráticas que já demonstram farta disposição para o confronto. De toda a sorte, após a grotesca perseguição jurídica, Lula sai maior, mais altivo, e seguirá liderando processos democráticos dentro e fora do país, auxiliando a pensar instrumentos revogatórios das reformas austericidas e propondo projetos restauradores dos direitos usurpados.

     

     

    A justiça de mercado, que tem feito suas vítimas, há anos, entre os pobres, alçou um voo mais audacioso que põe à mostra suas vergonhas à população que ainda a achava legítima.

     

     

    Notas

     

    1 Para ler o artigo de Carol Proner no Sul21:

     

    https://www.sul21.com.br/jornal/o-lawfare-neoliberal-e-o-sacrificio-de-lula-por-carol-proner/

     

     

    2 Para ler o Memorando Powell em inglês:

     

    http://scalar.usc.edu/works/growing-apart-a-political-history-of-american-inequality/the-powell-memorandum

     

     

    3 Para ler o Memorando Powell em português:

     

    http://scalar.usc.edu/works/growing-apart-a-political-history-of-american-inequality/the-powell-memorandum

     

    4 “The sources are varied and diffused. They include, not unexpectedly, the Communists, New Leftists and other revolutionaries who would destroy the entire system, both political and economic. These extremists of the left are far more numerous, better financed, and increasingly are more welcomed and encouraged by other elements of society, than ever before in our history.”