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  • O exercício da ira

    O exercício da ira

     

    Charles Darwin, o naturalista britânico do século 19, que certo dia deu sua graça no solo brasileiro querendo entender a evolução das espécies, em sua publicação A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, de 1872, associa a ira à expectativa de sofrer alguma agressão intencional ou ofensa de outra pessoa, ressaltando que esse sentimento pode se transformar em ódio ou outras formas, a depender da natureza da relação entre os envolvidos. 

     

    Como pensar a intervenção em Paraisópolis, senão como um exercício da ira? A ira e seu protocolo, encurralar jovens em vielas, a face mais perversa da violência do Estado, a penúria de direitos, que se anuncia no sertão da intolerância. Raiva não permite fuga, aniquila, sufoca.

     

    Um dos becos do massacre
    Um dos becos apontados por moradores, como sendo o local do massacre de Paraisópolis.

    Um quase nada enxerga, o Estado, seu povo. O ovo da serpente rompeu sua casca, tem fome, tem pressa.

     

    Querem varrer a terra, remover os indesejáveis, fazem ouvidos moucos ao conselho de Zé Bebelo, que em Grande Sertão Veredas, disse o Guimarães Rosa, que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é.

     

    Serão o lixo da história.

     

     

     

     

  • Índios Guarani ocupam sede da Funai, em Itanhaém

    Índios Guarani ocupam sede da Funai, em Itanhaém

     

     

    por Igor Santos e Cidinha Santos

     

     

     

    No dia 25 de novembro, após saberem da exoneração do coordenador da Funai para a que em seu lugar assumisse um militar, as comunidades atendidas pela Funai, em Itanhaém, SP, ocuparam o prédio visando abrir um diálogo e fazer valer a lei que diz que toda atitude tomada em relação às comunidades indígenas precisa passar por consulta a estes povos.

     

    Cerca de 120 indígenas de várias aldeias ocupam a sede da Funai, em Itanhaém, desde o dia 27 de novembro, contra a atual política do governo federal e reivindicam a revogação da exoneração de Cristiano Hunter, coordenador regional do litoral sudeste da FUNAI, unidade responsável pela Baixada Santista, que foi exonerado do cargo. Em seu lugar foi nomeado um militar.

    Reivindicam ainda a participação na gestão do órgão, de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que o Brasil é signatário.

    Na segunda-feira, 02, após audiência pública no Ministério Público, os indígenas afirmam que vão resistir e não saem da sede da Funai.

    Para as lideranças indígenas trata-se de mais uma arbitrariedade visando o desmonte da política indigenista. Cristiano Hutter é um profissional comprometido com a causa indígena, que trabalhou para o fortalecimento cultural e socioeconômico das comunidades com respeito às características de cada etnia e viabilização de projetos pertinentes, como o turismo de base comunitária e agroecologia. O seu esforço para a construção de redes profissionais de apoio aos indígenas foi determinante para que as aldeias da Baixada Santista tivessem maior visibilidade, respeito da população e fortalecimento cultural.

    A posição dos indígenas é de resistir até serem atendidos. Eles estão preocupados, pois a imprensa não divulgou sobre a reintegração de posse e temem pela segurança de homens, mulheres e crianças que ocupam o imóvel, no caso de ação ofensiva por parte da polícia.

    O atual governo se nega ao dialogo e empurra de forma violenta e arbitrária sua politica contra os povos indígenas e a natureza.

    *Imagens por Igor Santos e Richard Werá Mirim    

  • Ianomâmis rechaçam proposta que prevê garimpo em terra indígena

    Ianomâmis rechaçam proposta que prevê garimpo em terra indígena

     

     

     

     

     

     

    Cerca de 120 índios formam com seus corpos a expressão ‘Fora Garimpo’, na Terra Indígena Ianomâmi, no último sábado (23)-por Victor Moriyama/Divulgação/ISA

    Reunidos na Terra Indígena Ianomâmi, em Roraima, no último fim de semana, dezenas de lideranças ianomâmis e iecuanas rechaçaram a proposta em estudo no governo de Jair Bolsonaro que prevê permitir a mineração em terras indígenas. O projeto deverá ser encaminhado em breve ao Congresso Nacional.

    Cerca de 120 indígenas formaram com seus corpos a expressão “Fora Garimpo” no sábado (23). Em carta aberta lida ontem no Congresso Nacional por iniciativa da coordenadora da frente parlamentar indígena, a deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), os indígenas afirmaram: “Nós não queremos garimpo em nossa terra. Nós queremos que o governo cumpra seu dever de proteger a nossa terra. Queremos que o governo tire os garimpeiros que estão na nossa terra e impeça a entrada de mais garimpeiros. Nós conhecemos nossos direitos e sabemos que o garimpo na Terra Indígena Yanomami é ilegal”.

    Bolsonaro disse várias vezes que pretende abrir mineração em terras indígenas e chegou a levar um ianomâmi ao Palácio do Planalto para dizer que tinha aval dos indígenas.

    Na carta, as lideranças negam a representatividade desse indígena. “A gente decide de forma coletiva, escutando vários pensamentos de homens, mulheres, xamãs, jovens, lideranças tradicionais, todos reunidos. Isso é decidir em nome do povo e não de maneira autoritária. E isso deve ser respeitado pelo governo brasileiro. O governo não decide por nós. Somos guerreiros Yanomami e Ye’kwana e dizemos todos juntos: Fora Garimpo!”

    No comunicado, assinado por sete associações, os indígenas também denunciam as consequências do garimpo.

    “Os garimpeiros estão envenenando as pessoas e contaminando nossos rios, nossos peixes, nossos alimentos e espantando nossa caça. Sabemos que o mercúrio usado no garimpo está contaminando nosso povo. No rio Uraricoera, mais de 90% das pessoas que foram analisadas apresentaram alto índice de contaminação. Recentemente soubemos que mais da metade dos Yanomami de Maturacá também estão contaminados. O governo tem o dever de acabar com isso e trabalhar para cuidar da saúde dos povos Yanomami e Ye’kwana e proteger a terra-floresta.”

    As lideranças ianomâmis disseram que os garimpeiros “trazem todo tipo de bebidas, drogas e doenças”, que têm “muitas armas” e são “violentos também entre eles”.

    “Eles matam uns aos outros e enterram os corpos na beira dos rios ou jogam nos rios. Quando os garimpeiros mexem na terra e destroem a natureza, eles estão ofendendo os seres que vivem na floresta. Esses lugares foram destruídos e ninguém mais pode usar lá. A natureza está se zangando, e todos nós vamos sofrer, indígenas e não indígenas. Os garimpeiros são invasores que roubam o ouro, que tem que ficar embaixo da terra.”

    Os indígenas escreveram que as suas verdadeiras riquezas “são os conhecimentos tradicionais, a nossa saúde, nossos rios limpos e nossas crianças crescendo felizes. Os garimpeiros estão destruindo a nossa riqueza. O nosso trabalho não é o garimpo, o nosso trabalho é a roça, é o artesanato, temos nossas formas próprias de gerar renda a partir de nossos conhecimentos sobre a floresta. Nossos conhecimentos têm mais valor que o ouro”.

    O texto final do projeto de lei sobre o assunto ainda não é conhecido e está sendo elaborado pelo Ministério de Minas e Energia. À Folha ,o ministério disse que a proposta é ouvir os índios sobre projetos de mineração em suas terras, mas eles não terão o poder de vetar o empreendimento.

    https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/ianomamis-rechacam-proposta-que-preve-garimpo-em-terra-indigena.shtml

  • Informações do fim do mundo #1

    Informações do fim do mundo #1

     

    Más noticias ocupam a mente dos homens, todos temem as imagens que envolvem os olhos, denunciam que o planeta está doente. Terra, tão linda, estamos ferrados. Meus netos, num dia árido, verão as fotografias que fiz na vida, talvez culpem a mim e minha geração por termos destruído o mundo, não verão o quanto protestávamos a favor do planeta, nossos gritos.

    Enfim é tarde, ir-se-ão os anéis e os dedos.

     

    Um novo estudo da Organização Mundial de Meteorologia, OMM, indica aumento dos Gases de Efeito Estufa, a elevação do  nível dos mares, a acidificação dos oceanos e o clima mais extremo.

    O pior dos mundos anuncia-se e, aqui no Brasil, seguimos em nossa obsessão de desenvolver o país usando os recursos naturais. O mercúrio vai invadindo nossas águas, cegando nossos olhos, nos trazendo a demência.

    A RAISG ( Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada) disponibiliza uma série de vídeo-reportagens sobre os impactos do mercúrio utilizado na exploração do ouro na Amazônia. A Rede é um consórcio de organizações da sociedade civil dos países amazônicos, voltado para a sustentabilidade socioambiental da Amazônia e apoiado pela cooperação internacional.

    https://www.amazoniasocioambiental.org/pt-br/radar/mercurio-o-veneno-do-ouro/

    É a penúria que aguarda as futuras gerações.

    A Organização Mundial de Meteorologia diz que não existem sinais de mudança na tendência que impulsiona mudanças climáticas de longo prazo, elevação do nível do mar, acidificação dos oceanos e clima mais extremo:

    Agronegócio

    Falando a ONU News de São José dos Campos, a coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil, Luciana Vanni Gatti, explicou que segundo um estudo recente  71% das emissão do país vêm do agronegócio. Ela acrescentou que por causa da pressão econômica, o cenário brasileiro é muito crítico. 

    “Existe esta pressão econômica, o governo quer fechar a balança comercial, as contas públicas, então incentivamos a exportação, mas por trás disso vem o desmatamento, então é preciso se repensar sobre a alimentação, sobre a criação de gado, da gente pensar em não derrubar florestas, criar o gado num manejo diferente que você mantenha a floresta em pé, a gente tem que sair daquelas velhas práticas da agropecuária e descobrir maneiras que não emitam tanto de continuarmos produzindo alimentos.”

    Amazônia

    Gatti disse que se as emissões continuarem aumentando, as mudanças climáticas terão um impacto muito maior que desejamos para que a vida continue como ela existe hoje no planeta. Entre os efeitos que já são observados, ela destacou as mudanças no regime de chuvas, a perda de áreas de praia com o avanço do mar e a ocorrência de eventos extremos. 

    Como exemplo dessa situação, Gatti também citou uma pesquisa na Amazônia, onde está sendo observado que a floresta está apresentado um comportamento diferente em termos de precipitações e temperatura. A Amazônia também estaria absorvendo menos gases de efeito estufa do que na década passada. 

    “A gente tem que acordar, tem que realmente reduzir a emissão, e isso desde o ser humano, desde o individuo, na hora que ele resolve, ao invés de ligar o ar condicionado, ligar o ventilador, ao invés de abastecer o carro com a gasolina porque ela fica um pouquinho mais barata abastecer com o etanol, a gente tem que mudar o nosso padrão de vida e realmente emitir menos, até nas grandes políticas públicas.”

     

    Ciência

    O dióxido de carbono é o principal gás de efeito estufa de longa duração na atmosfera. O nível de concentração apontado em 2017 pelo estudo apresenta um aumento de 146% em relação à era pré-industrial, antes de 1750.

    O secretário-geral da OMM, Petteri Taalas, disse que a ciência é clara e que “sem cortes rápidos dos níveis de CO2 e outros gases de efeito estufa, a mudança climática terá impactos destrutivos e irreversíveis cada ver maiores na vida no Planeta.” Ele alertou que “a janela para a chance de agir está quase fechada.”

    Taalas também explicou que “na última vez que o Planeta experimentou uma concentração comparável de CO2 foi entre 3 e 5 milhões de anos atrás, quando as temperaturas eram entre 2°C e 3°C mais quentes e o nível do mar era entre 20 e 30 metros mais alto do que agora.”

    O Boletim da OMM indica que as concentrações de metano e óxido nitroso também subiram. Ao mesmo tempo, ressurgiu uma substância potente de gases de efeito estufa e destruidora da camada de ozônio. A chamada CFC-11 é regulada por um acordo internacional para proteger a camada de ozônio.

    Evidências

    Provas científicas também apresentadas recentemente pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, Ipcc, apontam que seria necessário que as emissões de CO2 chegassem a zero até 2050 para manter o aumento de temperatura no Planeta abaixo de 1,5°C.
     
    De acordo com as Nações Unidas, juntos, estes dados fornecem a base científica para a tomada de decisões nas negociações sobre mudanças climáticas, que ocorrerão entre 2 e 14 de dezembro na Polônia.

    O objetivo principal do encontro é adotar diretrizes de implementação do Acordo de Paris, que busca manter o aumento da temperatura global o mais próximo possível de 1,5°C.

    O Boletim de Gases de Efeito Estufa é feito com base em dados do Programa Global de Observação da Atmosfera da OMM. O programa acompanha a mudança dos níveis dessas substâncias como resultado da industrialização, do uso de energia de fontes de combustíveis fósseis, de práticas agrícolas intensificadas, do aumento no uso da terra e do desmatamento.

    https://news.un.org/pt/story/2018/11/1648571

     

    Plástico, o alimento trágico dos peixes

     

     

     

  • Violência contra as mulheres indígenas

    Violência contra as mulheres indígenas

     

    Recebi mensagem aflita, acompanhando imagem de senhora com hematomas, denunciando agressões entre mulheres indígenas, violência essa potencializada pelo avanço de religiões e cultos evangélicos entre as aldeias de Mato Grosso do Sul. Notícias de violência contra todas as mulheres aflora nos cantos do país, em todos os lugares. Entre as indígenas me aflige imensamente, mulheres tão atentas.

    Quanto maior a miséria, maior a truculência, vejo bem hoje entre os povos que perderam sua terra indígena, território tradicional. Coisa da Idade Média, suas inquisições. Um voltar atrás que parece não ter fim, meu país que renega seu futuro.

    A Assembléia das Mulheres Guarani e Kaiowá, Kuñangue Aty Guassu, na região de fortes conflitos entre povos indígenas e fazendeiros potentes entre o agronegócio, veio a público, nas redes sociais, denunciar a violência contra as mulheres de seus povos.

    Diz o manifesto:

    Venho aqui em publico DENUNCIAR homens “lideres” INDÍGENAS DO MEU POVO torturando Mulheres INDÍGENAS GUARANI e KAIOWA, isso acontece na aldeia Taquaperi, mas cotidianamente se repete em outras áreas indígenas aqui no Cone Sul de MS. 

     

    A intolerância religiosa passou dos limites, homens vestidos de “CRENTES” e outros também líderes ligados a capitania, dominados pela doutrina pentecostal e discurso de décadas da igreja, que avançam fortemente nas Reservas Indígenas, usam facas e chicotes para condenar o chamado “feitiço”.

     

    Virou uma batalha espiritual, escravos da doutrina da igreja que os veste fisicamente e espiritualmente demonizando o nosso modo tradicional de ser Guarani e kaiowá, se negam a entender a nossa crença, o processo histórico do nosso povo, nossos conhecimentos ambientais, cronológicos.Quantas mulheres Nhandesys e Nhanderus foram criminalizados até os dias atuais, tidas como bruxas, feiticeiras, macumbeiras, mas a tal igreja é o certo para eles rumo ao “CÉU” e salvação da vida. 

     

    Nunca nós os condenamos por ser da pentecostal, mas eles sim condenam nossos anciãos rezadores, uma guerra religiosa que atravessa nossos corpos e está nos violentando fortemente. Historicamente são mulheres, viúvas do nosso povo TORTURADAS por homens líderes ligados à capitania e a igreja pentecostal! Precisamos ouvir os dois lados, porém sem torturar, ameaçar, assassinar o outro. São mulheres, idosas, indígenas, pouco se comunicam em português, só ficam no território indígena e estão sofrendo crime de ódio, intolerância religiosa, sendo condenadas por homens indígenas ligados a igreja praticando a violência, tortura física e psicológica contra elas sem o direito de ambas se defender.

    Como representantes da KUNANGUE ATY GUASU – Grande Assembléia das Mulheres Guarani e Kaiowá, condenamos todas as violências praticadas contra as Mulheres indígenas em nosso documento final da assembléia realizada em Setembro de 2019.

     

     

    Encontrei bom artigo na Revista Carta Capital, que esclarece bem a questão:

     

     

     

    *Por Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca

    A KUÑANGUE ATY GUASU É ORGANIZADA TODOS OS ANOS PELAS PRÓPRIAS MULHERES GUARANI E KAIOWÁ (FOTO: EVERSON TAVARES/AGÊNCIA PÚBLICA)

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    “Eu vou parar a plenária”, diz a voz ao microfone. “Do que adianta nós, mulheres, falarmos da violência sendo que os homens estão circulando?” O recado é dado pela jovem Aradunhá Kaiowá aos homens que foram aos poucos se dispersando. Ela conduz o segundo dia de discussões da sétima Kuñangue Aty Guasu, a grande assembleia das mulheres Guarani e Kaiowá, realizada a cada ano em uma terra indígena habitada por esses povos no Mato Grosso do Sul. Em 2019, o encontro ocorreu em setembro na aldeia Yvy Katu Potrerito, município de Japorã, na fronteira com o Paraguai. O protagonismo é totalmente feminino, mas os homens são convidados a estar ali e ouvir os relatos sobre problemas que os envolvem diretamente.

    “É importante falar sobre violência e também é importante ouvir”, acrescenta a nhandesy Helena Gonçalves, vinda da aldeia Limão Verde, no oeste do estado – nhandesy é como os Guarani e Kaiowá se referem às rezadoras e curandeiras tradicionais. A senhora de cabelos ajeitados num cocar florido fala rapidamente em guarani, língua compartilhada com algumas variações pelos dois povos. A Kuñangue Aty Guasu é um ambiente seguro para que essas mulheres tenham suas vozes e histórias respeitadas. “A maioria delas afirma que esse é o único espaço no qual conseguem falar para discutir o que atinge elas, os filhos, a família”, conta à reportagem Aradunhá, uma das organizadoras da assembleia.

    O encontro dedicou um de seus três dias de discussões à violência contra a mulher nas aldeias. Não só os homens indígenas, mas também as autoridades karai – como são chamados os não indígenas – ouviram por horas as falas de rezadoras, lideranças e estudantes, mulheres das mais variadas idades. Uma delas, Otília Hilário, de 86 anos, nhandesy da Terra Indígena (TI) de Amambai, disse algo que seria repetido por muitas outras vozes até o fim da reunião: “Nossos maridos batem na gente, nos chamam de ‘saco de pancadas’. Não gostamos, mas muitas não falam sobre isso”.

    Vida em confinamento

    Segundo o Ministério da Saúde, Amambai, onde vive dona Otília, registrou 79 casos de violência doméstica contra mulheres indígenas em 2017, último ano sobre o qual há estatísticas consolidadas – é o número mais alto do Brasil. Dourados, a segunda maior cidade sul-mato-grossense, tem dados ainda mais alarmantes: além de figurar como o segundo município brasileiro com os maiores registros de todos os tipos de violência contra as mulheres indígenas, lidera o ranking do abuso sexual contra elas no país, com 31 casos em 2017. Eles são cerca de metade de todas as ocorrências registradas no estado naquele ano.

    Os indicadores de Dourados levam o Mato Grosso do Sul a ser o estado com maior número absoluto de violência sexual contra mulheres indígenas, com quase o dobro dos registros de qualquer um dos estados da Amazônia brasileira. Desde 2012, é a cidade onde mais mulheres indígenas são vítimas de violência sexual no Brasil. Quem vive e estuda essa realidade considera que o cenário pode ser ainda pior devido à subnotificação.

    OS NÚMEROS CONTRA A MULHER INDÍGENA

    Por alguns dias, estivemos na Reserva Indígena de Dourados, a TI mais populosa do Mato Grosso do Sul, cravada entre lavouras de monocultura que ajudam o estado a ocupar o posto de quinto maior produtor de grãos do país. Seu território se estende parte por Dourados e parte pelo município vizinho, Itaporã. Andando pelas ruas de terra das duas aldeias que a compõem, Bororó e Jaguapiru, nota-se que o Estado falha em fornecer condições de atenção básica às pessoas que vivem ali.

    Com aproximadamente 15 mil moradores, de acordo com os dados mais recentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o território supera mais de 40 municípios do estado em termos de população, mas, entre suas escolas, apenas uma é de ensino médio, há somente quatro postos de saúde, uma linha de ônibus circular (que transita em poucos horários – de manhã, no meio do dia e ao fim da tarde – e por uma pequena parcela do território) e, na assistência social, conta apenas com um Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que, responsável por atender a todos os habitantes, funciona com dificuldades – os funcionários relatam que faltam materiais básicos, como folhas de papel sulfite, e não há gasolina suficiente para fazer visitas de acompanhamento.

    Três povos diferentes, Guarani, Kaiowá e Terena (estes, em menor número e com aspectos culturais distintos dos dois primeiros), se misturam em 3,5 mil hectares. O número em si não diz muita coisa, porém com uma simples comparação é possível ter uma ideia da superlotação: enquanto, na reserva, cerca de 432 pessoas ocupam 1 quilômetro quadrado, considerando toda a área do município de Dourados, essa média é de 51,4 pessoas num pedaço de terra da mesma extensão – densidade demográfica nove vezes menor. As casas são bastante próximas umas das outras, e se vê poucas hortas e plantações familiares. “Confinamento” é uma palavra que a reportagem ouviu de muitos dos moradores para descrever a vida no local.

    A falta de espaço físico é determinante para a atual dinâmica da vida na reserva porque, tradicionalmente, os Guarani e Kaiowá se dividiam em grandes casas coletivas, distantes em quilômetros umas das outras, onde vivam famílias extensas, constituídas por pequenos grupos familiares. Ainda hoje a organização das aldeias se dá pelas famílias, cujos núcleos vivem próximos, mas se dividem em casas separadas, menores e muito mais próximas do que antigamente. Famílias extensas que não necessariamente possuem afinidades entre si são obrigadas a conviver em uma área de tamanho limitado. “A reserva é um espaço de recolhimento de uma população que estava muito mais dispersa. Tanto é que há, na reserva, três etnias distintas. Cada uma tinha seu território”, destaca o antropólogo Levi Marques Pereira, professor da Faculdade Intercultural Indígena (Faind), vinculada à Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

    Nesse contexto, os índices de violência contra a mulher não foram os únicos a explodir. Basta entrar na casa de alguém e conversar por alguns minutos para aparecerem os relatos sobre casos de assaltos ou mesmo de assassinatos. Levantamento do Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul (MPF-MS) com números do Ministério da Saúde reflete essa percepção: entre 2012 e 2014, a taxa de homicídios entre os indígenas da região de Dourados foi de 101 vítimas a cada 100 mil habitantes – quase o dobro da taxa de homicídios de indígenas no Mato Grosso do Sul, que é de 55,9. Para ter uma ideia, os homicídios entre a população geral no estado são cerca de um quarto da taxa na reserva, 26,1 a cada 100 mil. A média brasileira é de 29,2. A Agência Pública tentou obter dados mais atualizados, mas a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) do Mato Grosso do Sul não respondeu às nossas solicitações.

    “É o branco que traz”

    Se, por um lado, existe a sensação de que a criminalidade tem feito parte da vida na reserva, ela vem acompanhada pela noção de que a violência não integra os modos de vida tradicionais dos Guarani e Kaiowá. A nhandesy Alda Silva, de 70 anos, nos recebeu numa tarde de sábado, do lado de fora de sua casa, na aldeia Jaguapiru. Usando os cabelos lisos parcialmente presos e trajando um vestido colorido, estava sentada diante do terreno antes ocupado pela casa de reza que por anos manteve com seu marido, o nhanderu – ou rezador – Getúlio Juca, e que em julho foi consumida por um incêndio cujas circunstâncias ainda são investigadas.

    As nhandesy e os nhanderu são referências em suas comunidades pelo papel espiritual que desempenham – no guarani, esses termos significam “nossa mãe” e “nosso pai”. Com dona Alda, não é diferente. Ela conta que mulheres da aldeia a procuram para relatar episódios de violência dos quais são vítimas. “Chega estupro, violência [doméstica], chega também marido que mata a mulher”, afirma. “Elas vêm pedir socorro, sou eu que atendo aqui. Levanto à noite, a qualquer hora atendo. Não tenho celular, quem tem são minha filha e meu marido. Aí já vou avisar eles para ligar, peço para eles me emprestarem o celular e ligo para a polícia ou para a Sesai virem ver o que está acontecendo.”

    Quando ouve a pergunta sobre as raízes dessas violências, dona Alda diz que “é o branco que traz pra dentro da aldeia”. “Nós não tínhamos isso aí, não, a gente vivia bem. Podia sair à noite e ir na Missão [Evangélica Caiuá, que tem sede dentro da reserva], ir até a Bororó tomar chicha”, narra, referindo-se à bebida alcoólica produzida pela fermentação do milho e outros cereais, tradicionalmente consumida por diversos povos nativos das terras baixas da América do Sul, incluindo os Guarani e Kaiowá. Ao longo do tempo, a chicha perdeu espaço para o álcool destilado, que chegou pelas interações com a cidade. Por sinal, muitos dos casos que nos foram relatados sobre mulheres espancadas ou alvo de ataques psicológicos nas aldeias envolvem o uso excessivo da bebida e outras drogas pelos homens agressores.

    Para o assistente social Kenedy Morais, indígena Guarani que mora na reserva e trabalha no único Cras da região, na aldeia Bororó, a utilização abusiva dessas substâncias é reflexo da precariedade de condições básicas de vida, como o trabalho, e da falta de perspectivas que isso causa. Ele diz que os indígenas contam com poucas possibilidades de geração de renda dentro do próprio território, como projetos de agricultura familiar, e os homens se veem obrigados a buscar serviços na cidade. Acabam trabalhando, por exemplo, como garis – são a maioria dos funcionários de uma das empresas responsáveis pela limpeza urbana de Dourados, segundo reportagem publicada pela revista piauí em julho.

    “Estamos às margens mesmo, e há uma população alijada de direitos. Toda essa situação incide em altos índices de alcoolismo”, avalia.

    O uso de drogas e álcool virou um problema tão relevante na Reserva Indígena de Dourados que, em 2017, o MPF e as defensorias públicas do Mato Grosso do Sul e da União ajuizaram uma ação civil pública pedindo que os governos federal, estadual e municipal sejam obrigados a implementar políticas públicas de enfrentamento ao consumo dessas substâncias. Os autores da ação alegaram que as diferentes esferas do poder público têm sido omissas “quanto aos deveres constitucionais e legais de tutela à vida e à saúde da população indígena de Dourados”. O MPF-MS informou que houve um acordo extrajudicial, prestes a ser homologado, no qual a União, o estado e o município se comprometeram a desenvolver políticas públicas para promover a saúde mental dos moradores da reserva.

    O périplo até as autoridades

    Emilena Arce, de 22 anos, e Roziane Ramires, de 24, são duas das mulheres para quem álcool é sinônimo de violência. Sentadas em frente à cozinha do Cras, onde tomam tereré – a tradicional bebida de erva-mate e água gelada – num início de tarde em que o sol brilha forte, contam à reportagem os momentos de violência que sofreram pelas mãos dos ex-maridos, indígenas como elas, que se tornavam bem mais agressivos depois de beber.

    Roziane mostra um dos braços, marcado por uma extensa e grossa cicatriz, resultado de uma cirurgia que precisou fazer no ano passado para reparar um dos ossos. A fratura foi causada pelo ex-companheiro, que bateu nela com um pedaço de pau. “Ele queria bater na minha cabeça, mas eu ergui o braço”, relembra. O casal viveu junto por oito anos na reserva, onde morava com os dois filhos – um menino de 9 anos e uma menina de 5. Roze – como é chamada pelas pessoas próximas – acha que o problema do ex-companheiro era a bebida, componente presente na maioria das ocasiões em que apanhou durante o casamento. Apesar disso, demorou a denunciar: “Eu tinha medo”. Durante a conversa, ela não permitiu ser fotografada.

    Emilena havia ido ao Cras naquele dia para participar de um curso profissionalizante de pizzaiolo. Intercalava frases a olhares para a mãe, Rosemara, 39, que também se separou do ex-marido, pai de Emilena e outras duas meninas, após sucessivos episódios de agressão. Anos mais tarde, a filha mais velha se viu na mesma situação: de tanto apanhar do então marido, tomou a decisão de terminar uma relação de quatro anos, mesmo tendo que cuidar de uma bebê recém-nascida.

    Ele ficou violento, diz a jovem, depois de começar a trabalhar na coleta de lixo da cidade. “Uma vez, quando chegou em casa, jogou minha menina contra a parede e me bateu”, relata. “Quando eu corri para a casa da minha mãe, ele pegou minhas roupas e cortou tudo, quebrou todas as minhas coisas e foi embora. Antes ele fosse e não voltasse, mas ia e vinha mais tarde de novo, com a mesma agressão.” Por causa das ameaças, tinha medo de denunciar, mas acabou indo à delegacia. “Se eu não largasse ele, ia morrer.”

    Inúmeras são as dificuldades no caminho das mulheres Guarani e Kaiowá vítimas de violência em direção à denúncia. “São poucas as mulheres que falam ‘hoje chega’. Por medo de ameaças, de tirar seus filhos de casa, de não ter onde morar. A coisa mais difícil que tem é a violência contra a mulher aqui dentro da aldeia”, ressalta a agente de saúde Maria de Fátima Cavalheiro, de 41 anos. Ela mesma, indígena Guarani e moradora da aldeia Bororó, já precisou romper com o ciclo, após anos sendo alvo de agressões do ex-marido. Como seu trabalho envolve visitar as pessoas, hoje tenta orientar mulheres que estão na mesma situação. Em muitas famílias, ela relata, os homens ocupam o papel de provedor financeiro, o que distancia ainda mais as vítimas do fim da violência.

    Quando as mulheres decidem procurar as autoridades, novos obstáculos aparecem. Um deles é a dificuldade de chegar à única Delegacia de Atendimento à Mulher (DAM) da cidade, localizada a mais de 8 quilômetros da reserva. Os ônibus circulam em poucos horários e por rotas limitadas, então as pessoas dependem basicamente de seus próprios veículos, motos, carroças e bicicletas para chegar até lá. Senão, a alternativa é ir a pé por um trajeto que leva no mínimo uma hora e quarenta minutos para ser percorrido e inclui estradas de terra e rodovias. “Para a mulher sair daqui e ir à delegacia, muitas vezes ela não tem o transporte”, aponta a assistente social indígena Tatiane Martins, funcionária do Cras. Para ela, quando uma vítima consegue chegar à delegacia, “é porque fez um esforço danado, teve uma força de vontade enorme para ir lá, fazer uma denúncia”.

    Se um caso de agressão física ou abuso sexual acontece em alguma das aldeias, as vítimas e seus familiares também têm dificuldades para pedir ajuda, já que o sinal de celular e internet móvel é inconstante, como a Pública observou. Ligar para a polícia pode ser uma atitude pouco efetiva: a Polícia Militar demora para atender aos chamados e só o faz depois que os capitães, lideranças presentes nas duas aldeias, autorizam sua entrada. Questionada sobre essa situação, a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul não respondeu até a publicação da reportagem.

    Segundo Paula Ribeiro, delegada titular da DAM de Dourados, essa é a realidade da sua equipe, que normalmente vai à reserva para realizar oitivas, intimações ou mesmo prisões. “A gente só entra com autorização. Se a gente chegar lá com intimações para fazer e falar ‘não entra’, nós não entramos. Fazemos o relatório dizendo ‘hoje não foi autorizada a entrada’”, afirma. “Em qualquer bairro da cidade, a gente agiria diferente, não tem essa de ‘a polícia não entra’”, admite a delegada. “Nas aldeias, a gente tem que respeitar a questão cultural. Eles são os donos da terra. Estamos tentando encontrar um meio-termo.”

    Mas a ideia de que acatar a autoridade do capitão equivale a respeitar a cultura dos Guarani e Kaiowá não é consenso. Criada pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a figura do capitão tinha como função auxiliar os chefes de posto do órgão a fazer valer suas ordens nas reservas indígenas instituídas no início do século 20. O cargo é tradicionalmente ocupado por indígenas, que antes eram designados pelo SPI e hoje, na Reserva Indígena de Dourados, são eleitos.

    Segundo pesquisadores, esse personagem sempre representou um foco de tensão, pois a lógica pela qual foi instituído – a de concentração de poder – e sua atuação desrespeitam o sistema de organização dos Guarani e Kaiowá. “O capitão nunca será unanimidade porque representa um grupo, e ninguém conseguirá representar todos, porque eles são organizados em famílias extensas”, destaca a antropóloga Lauriene Seraguza, que faz pesquisa junto às mulheres Guarani nas áreas de retomadas territoriais em Mato Grosso do Sul, na fronteira entre Brasil e Paraguai. “O Estado precisa levar em consideração que cada parentela tem sua liderança, seu rezador, seu modo de se relacionar.” Por isso, explica, não faz sentido o Estado nomear apenas duas lideranças como porta-vozes da comunidade e utilizá-las como mediadores de sua relação com a reserva.

    Se a vítima de violência superar todas essas dificuldades e conseguir chegar à delegacia para denunciar, deve se deparar com mais um problema. Nas aldeias, o guarani é o idioma mais falado. As pessoas sabem o português, mas não o consideram sua primeira língua, o que faz com que muitas mulheres não sejam plenamente compreendidas em suas denúncias. A necessidade de uma intérprete é apontada por muitas delas, mas a demanda até agora não foi atendida pelos órgãos de segurança pública.

    A delegada Paula Ribeiro garante que isso está nos planos, já que ela mesma acredita que a falta de uma intérprete acaba desencorajando a denúncia. “Tem muita mulher que ainda enfrenta a barreira da língua”, diz. “E, quando isso acontece, ela vai procurar uma pessoa na aldeia que não necessariamente está engajada na luta, que não vai repassar a notícia para ninguém.”

    Sem escuta

    A denúncia não é o capítulo final da busca por acolhimento. O que acontece depois que os casos de violência doméstica são levados ao poder público também não atende às suas necessidades, afirmam as Guarani e Kaiowá. “Não existe uma maneira que proteja as mulheres indígenas de acordo com as suas especificidades”, aponta Aradunhá Kaiowá, numa brecha de programação da Kuñangue Aty Guasu. Enquanto o resto das pessoas, espalhadas pela aldeia, se servia do almoço coletivo preparado pelas cozinheiras indígenas, ela se dividia entre a refeição, a entrevista e a produção, em seu notebook, do relatório final do encontro, que reuniria os pontos altos das discussões e as demandas mais urgentes às autoridades.

    Aradunhá cresceu na Reserva Indígena de Dourados e hoje vive na cidade, onde se graduou em ciências sociais pela universidade federal. Para organizar a grande assembleia, teve ao seu lado outras lideranças, todas mulheres. Uma delas é Flávia Nunes, estudante universitária que, com 22 anos, é uma das poucas integrantes femininas do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) do Mato Grosso do Sul. Era a última noite de reunião quando ela falou com a Pública, depois que o ritmo dos afazeres já havia se acalmado. “A Lei Maria da Penha ajudou a punir os homens que cometem essa violência grave, mas nós estamos lutando para que tenha uma lei adequada que garanta o direito das mulheres indígenas”, ponderou.

    No dia anterior, uma roda de mulheres havia debatido as limitações da Maria da Penha e da rede de proteção às vítimas. No centro do círculo desenhado pelas cadeiras, uma tira de papel pardo era preenchida com as falas consideradas mais importantes. Uma das frases escritas com tinta guache era, na verdade, um questionamento: “Lei Maria para quem?”. De um dos pontos da roda, uma jovem de 20 e poucos anos destacou a necessidade de as mulheres Guarani e Kaiowá serem acolhidas por suas pares nas delegacias – “Às vezes, elas [as vítimas] não falam para os brancos por medo, e, se tiver uma mulher indígena lá atendendo, ela vai chegar contando na língua o que aconteceu realmente.” Noutro canto, uma moça mais ou menos da mesma idade completou dizendo que “só nós, indígenas, entendemos a dor do próprio índio, que é uma dor infinita”. Outras mulheres assentiram com a cabeça.

    Em algum momento da conversa, surgiu a discussão de que as medidas protetivas não têm muita validade nas aldeias. Dias antes, em Dourados, a delegada Paula Ribeiro havia reconhecido essa falha: “O cumprimento de medidas dentro da aldeia não adianta falar que existe, porque não existe”. Entre os fatores que dificultam sua efetividade, está o fato de as famílias serem a base da organização espacial das aldeias. Para que se cumpra a medida protetiva, a vítima ou o agressor precisaria se afastar do espaço onde vivem todos os seus familiares e, por consequência, onde está estabelecida a maioria das suas relações afetivas. “Eles não têm para onde ir. As perspectivas para eles são bem limitadas”, avalia a delegada.

    Como a lei propõe a criação de casas-abrigo para acolhimento das mulheres em situação de violência, elas acabam duplamente vitimizadas: além de lidar com a agressão sofrida, normalmente são elas que precisam sair de casa. No caso das mulheres indígenas, a situação é mais grave, justamente porque isso significa a separação da maioria dos parentes, que têm uma importância central em suas vidas. “Às vezes, pensamos muito na proteção da mulher, mas acho que está faltando um pouco o olhar da dignidade. Como essa mulher se sentiria mais dignamente atendida? Mandando ela para uma casa-abrigo lá em Campo Grande? É difícil, temos que nos colocar no lugar dessas pessoas”, avalia a titular da DAM.

    As discussões da Kuñangue Aty Guasu revelam que as Guarani e Kaoiwá sabem pontuar com precisão o que não funciona para elas. O problema, dizem, é que o Estado dificilmente as leva em conta na formulação de políticas públicas. “Hoje, as políticas são pensadas de cima para baixo, nunca são construídas. Grande parte das políticas implantadas não serve por conta disso: não tem continuidade e não dialoga com as interessadas, as mulheres que estão sofrendo violência”, argumenta Indianara Ramires Machado, presidente da Ação dos Jovens Indígenas (AJI), organização que trabalha para empoderar a juventude da Reserva Indígena de Dourados por meio da educação.

    No fim das contas, eventos como a assembleia, organizados pelas próprias mulheres indígenas, são alguns dos poucos ambientes na contramão da ausência de escuta. O documento final do encontro é uma tentativa de que as demandas dessas mulheres cheguem a autoridades de variadas esferas. Os encaminhamentos incluem a reformulação na Lei Maria da Penha para que contemple as “especificidades das mulheres indígenas”; a criação de delegacias na Reserva Indígena de Dourados e em Amambai, onde haja mulheres trabalhando, incluindo intérpretes Guarani e Kaiowá; e a construção de novas alternativas de atendimento para mulheres e crianças em situação de violência, com o apelo para que haja Cras e Centro de Referência em Assistência Social (Creas) em todas as comunidades.

    No único Cras da Reserva Indígena de Dourados, a equipe tem a intenção de promover grupos com homens envolvidos em casos de violência, mas faltam recursos, pessoal, tempo. “É difícil porque não conseguimos atender nem a nossa própria demanda. A gente tem ideias, tem vontade, mas [nossa atuação] é limitada”, afirma psicóloga Bárbara Marques, indígena e moradora de uma das aldeias, a Jaguapiru. Apesar da situação de falta de recursos, Bárbara não perde as esperanças. “Eu acredito no trabalho da prevenção: orientação para os homens, qualificação, atividades de lazer, para que eles tenham perspectiva de vida, tanto os homens como as mulheres.”

    De onde vem a violência

    Andando pela Reserva Indígena de Dourados ou circulando pela aldeia Yvy Katu Potrerito, as conversas com os Guarani e Kaoiwá nos revelaram um pano de fundo para a violência que acomete suas comunidades, sobretudo a que vitima as mulheres: a perda da terra. Essa história, que foi sendo construída em capítulos, remonta ao século retrasado.

    ROSE E EMILENA ARCE, MÃE E FILHA, SOFRERAM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA (FOTO: EVERSON TAVARES/AGÊNCIA PÚBLICA)

    Parte do território dos Guarani e Kaiowá foi ocupado na década de 1880, quando o comerciante gaúcho Thomaz Larangeira recebeu do Império brasileiro, em troca de sua participação na Guerra do Paraguai, arrendamentos na parte sul da área hoje ocupada pelo Mato Grosso do Sul, território repleto de ervais nativos. Criou a Companhia Matte Larangeira e, com o tempo, adquiriu o monopólio da exploração regional da erva-mate, ainda que fosse muito utilizada também pelos povos nativos que ali viviam.

    “A mão de obra de fora que trabalhava na Matte Larangeira era constituída basicamente de homens paraguaios, sem suas famílias. Eles buscavam ter acesso às mulheres indígenas e, chegando nas casas-grandes, as desrespeitavam”, diz o professor Levi Marques Pereira. “Isso levou os indígenas, para serem respeitados, a duas coisas: adotarem o modelo de residência individualizado, considerado civilizado [pelos paraguaios]; e os homens Kaiowá e Guarani passaram, muitos deles, a desenvolver uma atitude de ‘dono da casa’, para manter uma barreira contra os paraguaios – usar o mesmo jeito de se apresentar. Além disso, muitos paraguaios acabaram casando com mulheres indígenas. Há uma migração da masculinidade paraguaia para dentro das comunidades.”

    De acordo com o antropólogo, o convívio em casa coletiva, comum antes da Matte Larangeira, produzia um mecanismo de controle social da violência contra a mulher, já que os familiares formavam “um núcleo de proteção”. “Numa briga de casal, esses parentes iam se envolver”, declara. “A residência separada do casal favorece a violência.”

    As perdas de terra fizeram com que o SPI – que depois seria substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – criasse, na primeira metade do século 20, reservas no sul do Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul (a separação entre os dois estados se deu em 1977), para que os indígenas fossem abrigados em áreas delimitadas pelo governo, liberando assim a região para o avanço da atividade agropecuária e colonização. A de Dourados foi instituída em 1917. “O deslocamento [dos indígenas] para a reserva foi compulsório, muitas vezes sob o uso da violência, perpetrada por agentes do Estado ou por particulares que requereram e titularam terras na região”, explicam Pereira e Graciela Chamorro, também professora da UFGD, em artigo.

    Segundo os pesquisadores, a ideia do Estado, ao criar a reserva, era fazer com que os Guarani e Kaiowá fossem, aos poucos, perdendo sua condição de indígenas e se incorporassem à sociedade nacional. “A expulsão do território, a violação dos direitos e o confinamento dentro das reservas – causado também pelo preconceito da cidade no entorno – foram fazendo com que as pessoas tivessem que viver outros modos de vida que não os que elas conheciam”, aponta a antropóloga Lauriene Seraguza.

    O processo de perda territorial e confinamento na reserva culminou, de acordo com Pereira e Lauriene, num movimento de reconquista dessas áreas, o que gerou um intrincado conflito fundiário na região: de um lado, os indígenas, criando as retomadas – acampamentos que visam à recuperação dos tekoha (“lugar onde se é”, em Guarani); do outro, fazendeiros que alegam ser donos das terras e reagem às ocupações.

    Para Lauriene, só a partir dessa recuperação histórica é possível entender os casos de violência contra mulheres indígenas em Dourados. “A violência presente na Reserva Indígena de Dourados é uma consequência da ação do Estado contra os índios, e não dá para o Estado culpabilizá-los por ela. É fruto de um processo histórico de violências contra as suas vidas”, analisa. “Quem são os índios nas imprensas locais? São tachados de violadores, vagabundos, preguiçosos, mentirosos; os que batem, estupram e matam. Isso não é verdade, é uma tentativa de culturalização da violência.”

    A luta das Guarani e Kaiowá na região mais perigosa para mulheres indígenas no Brasil

     

  • Idiossincrasia

    Idiossincrasia

     

    Darcy Ribeiro

     

    Como se entre os olhos que cegam, ninguém visse a fogueira que se instala em praça pública, contra os indígenas.

     

    O incêndio da taba, na Terra Indígena dos Pataxó, no sul da Bahia, berço da nação, é fato grave. Após mais de 500 anos, assistimos a chama acesa ainda, a queimar a resistência de gente da origem.

     

    Após a posse do atual presidente da república, muitos foram os ataques a postos avançados da Funai, do IBAMA ou ICMBio; até fogo em florestas, com povos indígenas desconhecidos, virgens de nós, atearam  fogo.

    O sorriso de Rapicho

     

     

    Preferem cinzas à razão, preferem a devastação, o escárnio. Por que sorriem homens tão brutos? 

     

    Como deter a ignorância de gente tão simples que serve aos donos das terras, do poder econômico? Gente que mata onça, que serra árvore milenar nas matas, que corta índio ao meio e os perfuram na bala?

     

    É índio, é negro, é ser periférico que negam, que vedam e enterram em cova rasa, arrancam o couro. São os habitantes dos ecossistemas todos que condenam à morte, tanta riqueza viva que jogam no ralo.

     

    O feriado da república nos deixa nu em 2019, nossas vergonhas à mostra.