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  • O show de Trump: renovação ou cancelamento?

    O show de Trump: renovação ou cancelamento?

    Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

    Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

    A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

    Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

    Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

    A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

    São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

    Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

    Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

    Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

    Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

    Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

    O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

    O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

    Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

    Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

    Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

    Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

    A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

    Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

    O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

    Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

    Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

    (*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


    [1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

    [2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

    [3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

    [4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

    [5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

    [6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

    [7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

    [8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

  • Democracia ou morte!

    Democracia ou morte!

    Por João Bacellar

    Um grande slogan vale por uma bomba atômica. Uma grande epígrafe move montanhas. Um grande epíteto faz o papel de uma coroa imperial. Um pensador pode deixar legado à humanidade 10 mil tomos de 20 mil páginas da mais genial elucubração; passados 100 anos, tirando talvez meia dúzia de apóstolos, a humanidade apenas lembrará de suas frases de efeito, jargões e bordões. A história se repete como farsa, e, no entanto, ela se move.

    A beleza de um bom slogan está em seu caráter democrático. Longos discursos, esforços retóricos de fôlego e textos densos podem dissecar uma determinada questão ao átomo da molécula da célula da medula. Podem levar o público à compreensão profunda do assunto tratado, mas… Que público será esse? Será o pequeno público especializado em tal questão específica ou o ainda menor público de polímatas aptos a digerir qualquer osso teórico. Independente de clareza ou da beleza do estilo empregado é inerente à complexidade ser pouco compreendida. Já um bom slogan é entendido – e, melhor, gravado na mente – do mais erudito dos escolásticos ao mais inepto dos energúmenos. Um bom slogan “cola”. É democrático.

    O slogan eficiente, do ponto de vista da comunicação, também tem a vantagem de não ter como obrigação exprimir uma premissa correta ou verdadeira. Se, por exemplo, um  artigo científico tem por mérito demonstrar a verdade ou relevância de uma teoria qualquer, o slogan só precisa colar a mensagem que deseja passar ao público, mesmo sendo uma fraude histórica ou um engodo total como o famoso “Independência ou morte” ouvido pelas margens plácidas do Ypiranga.

    Alguém tem ilusões que o tíbio Pedro de Alcântara F.A.J.C.X.dP.M.R.J.J.G.P.C. Serafim, Vulgo D.Pedro I,  possuía quaisquer reais pretensões independentistas, na acepção concreta do termo, quando os espertos cronistas palacianos cunharam o “independência ou morte”? Passamos de um império fajuto a uma colônia britânica (senão oficial seguramente de facto) na esteira do famoso grito. Pedro, fugido do Brasil numa fragata inglesa, e morto aos 35 anos pouco mais de uma década após proclamar o histórico slogan, graças à retumbante frase, entrou para a história no senso comum como um herói. Um bom slogan “transforma” um fraco num gigante, um canalha num justo e uma raposa velha do baixo clero da câmara dos deputados num messias.

    Não é coincidência que a bandeira do Brasil seja uma das únicas do Mundo que contém um slogan.

                                                                               

    charge: Bacellar

    Nós aqui do esmagado e triturado dito “campo progressista” (epíteto que não engaja, nem une e nem sequer anima. Mas é o que temos pra hoje) costumávamos entender bem o poder de síntese e comunicação do slogan. Para criar um slogan poderoso os autores precisam, acima de tudo, captar com perfeição o período histórico que vivem e conhecer em profundidade o  público alvo. “A esperança vai vencer o medo”, da vitoriosa campanha de Lula em 2002 era perfeito naquele momento, após uma década de dilapidação neoliberal e arrocho, o brasileiro precisava de esperança, mas após décadas de macartismo incessante tinha medo de barbas longas e bandeiras vermelhas. Então dissemos afirmativamente: A esperança VAI vencer o medo. Apelamos para o sentimento mais positivo em detrimento ao negativo, a situação era tão desalentadora que o medo refluía, e, não por acaso, deu certo.

    É evidente que não basta um slogan para levar uma eleição presidencial, não se pode negar todo o processo histórico e material de cada período. Por exemplo, o “pai” da “esperança vai vencer o medo” o famoso “sem medo de ser feliz” não levou em 89, mas era melhor do que o epíteto “caçador de marajás” e se  foi derrotado o fracasso se deveu a uma articulação barra pesada, milionária e desonesta do velho patrimonialismo nacional, dos eternos donos do Brasil. Um slogan sozinho não vence eleição e não cria o caldo social necessário para fomentar uma guinada ideológica na população. Mas slogans e chaves discursivas simples e compreensíveis são sim uma parte fundamental e básica na guerra narrativa política. Em tempos de guerra híbrida então deveriam ser o foco número um de qualquer comunicação.

    Outro exemplo de slogan poderoso do nosso campo foi o “Diretas já”. Simples, conciso, imperativo. Queremos votar. Queremos democracia. Queremos imediatamente. Para um Brasil silenciado por 24 anos de ditadura era o slogan perfeito: Universalizante, vertical, horizontal, transversal. Ou você queria passar a votar ou queria a continuação daquilo que não dava certo. Num momento de fraqueza e desgaste do regime foi mortal.

    Agora percebam a importância de compreender ou captar o “mood” do público e a essência do momento histórico. Por que não bastou requentar o “Diretas Já” contra o golpismo em 2016 para galvanizar o Brasil? Simples, tivemos diretas em 2014 e teríamos eleições diretas municipais em 2016 mesmo… Ao senso comum, que é simples, porém não obtuso, soava como pedir algo que já existia. A população ansiava por estabilidade após os conturbados anos que seguiram 2013, e o golpe de 2016 pela via institucional do impeachment, oferecia, ao menos discursivamente, estabilidade. Aquilo que funcionou num período específico não tende a funcionar num período diverso.

                                                                               

    Agora vamos olhar para o atual discurso do campo progressista. Da oposição ao ultra-neoliberalismo capitaneado pela extrema-direita. Uma total polifonia. Textos (como esse!) longos e complexos demais para 98% do Brasil. Discordâncias. Linhas políticas contrárias, autocentradas e que gastam 50% de sua energia no combate ao… Próprio campo progressista! Alguém pode crer que para o cidadão médio não sejamos nós os culpados pelo caos social? Nossa atitude caótica e errática apenas corrobora essa visão.

    Será que o arguto e atento Antonio Gramsci passou os últimos anos de sua vida pensando e escrevendo preso num cubículo minúsculo e úmido para fornecer armas teóricas poderosas para a direita e ser, aparentemente, esquecido por nós da esquerda – a quem tais reflexões originariamente se destinavam? Por que, vamos admitir, o general Heleno parece compreender muito bem o pensamento gramsciano, já alguns setores da esquerda… O campo progressista perde tempo estapeando-se por likes e wiews nas plataformas do FAANG como se fosse operado pelos mais perfeitos, rematados e caricatos cãezinhos de Pavlov. “Muito bem, desenvolvimentista, bateu no trotskista, tome um like! Bom garoto”… “Feio, stalinista! Criticou o identitário! Vai perder 30 followers!”

    Se por um lado é óbvio que para a esquerda atual é impossível criar um programa político-econômico aplicável ao Brasil, que abarque ou agrade todas as linhas e correntes do campo progressista, mais óbvio ainda é que podemos fácil e coerentemente nos unir no objetivo em comum de afastar a extrema direita do leme do país e garantir a continuidade das liberdades democráticas. Alguns dirão que no Brasil nunca houve liberdades democráticas plenas (uma obviedade), a esses cabe  perguntar: entre a não plenitude e o extermínio total… Há o que pensar?

                                                       

    charge:Bacellar

    Enquanto debatemos e gastamos os dedos com textos como esse, destinados a, com sorte, alguns milhares de ativistas a extrema direita marreta seus slogans poderosos na cabeça de milhões de brasileiros minuto a minuto.

    E como são esses milhões? O Brasil é um país continental com mais de 200 milhões de habitantes. Um porto-alegrense, por exemplo, está mais próximo, geográfica e culturalmente, de Montevidéu do que de Monte Sião, assim como um sul mato-grossense de Ponta Porã entra e sai do Paraguai a pé, mas precisa pegar 300km de estrada para chegar na capital do estado, Campo Grande. O Brasil é gigante e diverso. Slogans e chaves discursivas para pegar do Oiapoque ao Chuí precisam ser baseados em análises profundas do povo brasileiro. Não me venham com o que Lenin derramava nos ouvidos do povo soviético em mil novecentos e lá vão 100 anos… Lenin está morto e embalsamado, precisamos tocar o povo brasileiro de 2020.

    Essa  tarefa, de mapeamento demográfico complexo, é tarefa para nossas melhores cabeças. Eu que não tenho pedigree nem titulação, sou apenas um João qualquer (Mas talvez esteja na hora de nossos sábios e eruditos darem 10 minutos de ouvido a um João qualquer), só posso tentar traçar um esboço grosseiro. Vamos lá.

    Possuímos uma série de capitais ou grandes cidades cosmopolitas em que as populações tendem a ter mais semelhanças culturais e de costumes entre si do que em áreas rurais e de cidades de pequeno e médio porte regionalmente mais próximas a elas. Já considerando os diferentes recortes socioeconômicos é possível perceber mais paralelos no modo de vida e cultura de, por exemplo, paulistanos, brasilienses e recifenses do que entre paulistanos e brodosquianos ou votuporanguenses. Pode-se dizer que uma parte do discurso das esquerdas precisa ser voltado para essas populações urbanas dos grandes centros, que embora distantes geograficamente compõe um recorte lógico do ponto de vista da comunicação.

    Nesse recorte disputamos com a direita relativamente bem. Se não ganhamos também não perdemos, uma metrópole momentaneamente mais favorável compensa uma momentaneamente desfavorável. Grosso modo é um campo em disputa. Nossa narrativa, centrada no identitarismo, na valorização da democracia e do estado de direito, na defesa dos regimes socialistas históricos e contemporâneos, no enaltecimento das sociais democracias avançadas  e na defesa da revolução socialista/comunista (se algumas chaves são contraditórias é porque estou juntando o campo progressista de esquerda em sua totalidade, abarcando os diferentes seguimentos) é permeável a setores relevantes dessas populações.

    Mas vamos avaliar agora regionalmente para além das metrópoles, onde há certa homogeneização, causada pela cultura de massas internacional, e pelo modo de vida urbano replicado  em todo o mundo. Separando (repito; de forma bastante grosseira) o país por macro regiões com maior integração histórica e cultural a ponto de poderem-se perceber determinadas especificidades regionais suficientemente coesas entre si para recortarmos (e explorar discursivamente) essas populações umas das outras: A franja litorânea do norte nordeste, a grande bacia do amazonas, o sertão do nordeste e norte de Minas, a grande área de cultura caipira, pantaneira e sertaneja do centro-oeste, sudeste e norte do Paraná, a franja litorânea caiçara do sudeste até partes do sul e, finalmente, o  interior da região sul de influencia europeia e castelhana.

    Temos nesse enorme conjunto, num único país, diferenças socioculturais maiores do que entre populações étnicas semelhantes que ocupam países diferentes, como os bascos da França e Espanha, por exemplo…

    Por essa diversidade as chaves discursivas e slogans de nossa narrativa precisam ser pensados de forma não apenas a angariar simpatias de determinadas populações como também de não causar repulsa a outras.

    Das regiões citadas anteriormente, com exceção das regiões que graças a um desenvolvimento muito acelerado e excepcional no ciclo do governo de coalizão petista de 03-16 em relação ao seu desenvolvimento histórico (sendo, portanto difícil analisar por fatores socioculturais, tendo o ganho econômico sido “avassalador”, o posicionamento político) do litoral e sertão nordestino e mineiro e parte da bacia do amazonas, todas as outras regiões e – muito notadamente – a enorme, poderosa economicamente e demograficamente pesada região de cultura caipira-sertaneja-pantaneira do centro-oeste/sudeste são Irredutivelmente refratárias aos discursos e narrativas da esquerda.

    Os geniais estrategistas da extrema-direita que possuem em Jair Bolsonaro seu fantoche no Brasil analisaram com maestria a realidade e os – usando o termo da moda – afetos de tais populações.

    Bolsonaro carrega forçosamente no sotaque, toca berrante, usa chapelão de caubói, bota e cinto, anda a cavalo e pilota trator para dialogar com essa grande população de cultura caipira a qual a esquerda simplesmente parece que não consegue enxergar a existência. Ganha apoio de massas e de elites regionais. Damares parece uma professora aposentada de Pindamonhangaba porém, gostemos ou não do visual dela, numa parte enorme do Brasil (e não cabe aqui o surrado termo “Brasil profundo”, não estamos falando de lugares esquecidos ou sem relevância política) desperta simpatia. Érika Malunguinho, sua antítese, horror. Sabemos que essa é uma impressão avessa e torcida da realidade em relação a essas duas mulheres políticas, mas é a impressão que existe em grande parte do Brasil.

    A esquerda investe discursivamente no MST e na agricultura familiar (sim, maravilhosos, sim importantíssimos), mas aos olhos da grande massa dessas referidas regiões o MST representa (de novo) a baderna e a agricultura familiar o atraso. Se não conseguirmos ampliar ou ajustar nosso discurso para seduzir essa gigantesca fatia do Brasil… Será impossível deter a extrema-direita nos próximos anos (quiçá décadas), Bolsonaro nada sozinho e de braçada no Brasil caipira… E o que a lógica militarista da extrema-direita faz agora? Depois de dominar os territórios deles partem para o ataque do território inimigo. Tome Bolsonaro de piloto de Jegue, chapéu de couro e comendo acarajé. A estratégia é primária, mas boostada por milhões e milhões de reais, funciona.

    Charge: Bacellar

    Essas táticas discursivas e semióticas são a grande aposta da extrema direita para seguir operando os desejos do grande capital transnacional no Brasil. O risco é enorme. Paulo Guedes é a quintessência do cientista econômico maluco. Sabemos que o Chile, onde Guedes foi funcionário do ditador Pinochet, foi um grande laboratório para o neoliberalismo dos anos 90. Guedes agora faz experiências no Brasil… O que acontece num país sem direitos sociais, totalmente desregulamentado, escancarado ao capital estrangeiro especulativo e com suas forças políticas de oposição caladas na ponta da baioneta? Veremos. Se o laboratório explodir Guedes toma um avião pra NY e viverá por lá, muito bem obrigado, com todas as mordomias de um funcionário que prestou lucrativos serviços. Mas e o Brasil como fica?

    O campo progressista não pode se dar ao luxo de não possuir um discurso unitário e claro para a população. Não podemos continuar caindo nas cascas de banana da extrema-direita. Vestindo as caricatas carapuças que nos atiram. A alt-right internacional, que direta ou indiretamente desenha todas as estratégias da extrema-direita brasileira tem análise de big data, pensadores de extrema inteligência e pouquíssimo ou nenhum limite ético e capital ilimitado a sua disposição. É um adversário de respeito. Não podemos seguir no autoengano de que estamos enfrentando um idiota que deu sorte e sua prole de patetas.

    Vejam a perfeição do slogan de bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Curto, direto e que dialoga com brasileiros de todas as regiões, nas metrópoles, centros urbanos ou áreas rurais. Dialóga  com todos os estratos sociais e que toca em 2 chaves de entendimento básicas e sagradas para a esmagadora maioria da população brasileira: A crença em Deus e o nacionalismo. Gaucho, sertanejo, caipira, caiçara, ribeirinho, suburbano: pense em qualquer recorte, esse slogan dialoga.

    Melhor que isso em termos de percepção de target e momentum só mesmo o slogan de Donald Trump em 2016: “Make America great again”. 4 palavras. 4 conceitos chave ideiais para a posição de Trump e para o eleitorado pós crise do subprime. “make”, um chamado direto à ação num país de voto facultativo em que levar o eleitor à urna é um dos pontos mais importantes da campanha, um convite ao eleitor para que faça parte de algo. “America”; um chamado ao nacionalismo. “Great”; a promessa de futuro, a recompensa da ação. “Again”; o chamado ao passado idílico (típico do fascismo), a alfinetada à administração vigente, a esperança de retorno de tempos melhores para a America arrasada pela crise econômica. Uma perfeição.

    Trump e Bolsonaro uma vez no poder seguem o mesmo modus operandi de fugir do debate minimamente profundo e repetir chaves discursivas simples e populares incessantemente, mesmo quando se tratam de mentiras ou bobagens óbvias. Em condições normais de pressão e temperatura já teriam sido enquadradas em sua farsa por seus contrapesos políticos, notadamente grande imprensa e instituições jurídicas. Porem em tempos de redes sociais (abertas e fechadas) tirando o monopólio informativo do cartel da grande imprensa  (Redes estas operadas com interesses obscuros com objetivos nebulosos). E tempos onde o sistema jurídico, seja por compra direta, seja por doutrinação ideológica, seja por chantagem (ah, os dossiês, valem um texto a parte), seja por intimidação mafiosa, parece impedido de desempenhar o seu papel.

    O ultra-neoliberalismo econômico casado ao totalitarismo político segue galopando. A extrema-direita e os financistas não estão de brincadeira. E nós, “campo progressista”, estamos? Delenda Washington. Campos progressistas do Mundo: Uni-vos!

    Democracia ou morte!

  • O duplo ataque recebido pela Venezuela nesta sexta-feira

    O duplo ataque recebido pela Venezuela nesta sexta-feira

    O Itamaraty acaba de publicar, na noite desta sexta-feira (4), um comunicado que declara todo o corpo diplomático venezuelano no Brasil como “personae non gratae”. Esta declaração é um instrumento jurídico extremo das relações internacionais para indicar que um representante oficial estrangeiro não é mais bem-vindo como tal em seu território.

    Este tipo de ação, em um governo que respeita as relações exteriores, ocorre quando justificada por algum fato que indique o rompimento das relações diplomáticas entre os países, o que não é o caso entre Brasil e Venezuela, senão os indícios do governo de Jair Bolsonaro em servir aos interesses dos Estados Unidos.

    O comunicado emitido pelo Ministério das Relações Exteriores, dirigido por Ernesto Araújo, declara que o corpo diplomático venezuelano não precisa sair do Brasil, mas não serão reconhecidos como autoridades representantes de Caracas. Perdem, então, o status diplomático, além das imunidades e privilégios correspondentes a estes cargos, por exemplo suas próprias moradias.

    O Ministro do Poder Popular para Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza, declarou que esta é a resposta primitiva do governo do Brasil à carta enviada no dia 7 de agosto, cujo conteúdo demonstrava o interesse do governo venezuelano em relação ao brasileiro, em dialogar e enfrentar a crise sanitária pandêmica juntos, deixando de lado as diferenças. ”Definitivamente, o Itamaraty está sequestrado pela anti-diplomacia fascista, subordinada a Washington”, declarou Arreaza em seu Twitter.

    Esta é a segunda vez durante a pandemia da Covid-19 que o Ministério das Relações Exteriores do governo de Bolsonaro faz uso desta medida de diplomacia extrema, sem nenhum fato que justifique tal atitude. No fim de abril deste ano, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, interveio em outra manobra executada por Ernesto Araujo e vetou a tentativa de expulsão, que determinava 48h como prazo máximo para a saída de todo o corpo diplomático venezuelano do Brasil.

    Alegando que os funcionários não representavam nenhum perigo ao Brasil, a decisão assegurava que os representantes venezuelanos ficassem no país enquanto durasse o estado de calamidade pública e emergência sanitária reconhecido pelo Congresso Nacional em função da pandemia.

    Quatro meses depois, o estado de calamidade pública no Brasil cresceu exponencialmente, o Brasil já registra mais de 100 mil mortes pela Covid-19. Além de negar a cooperação proposta pelo governo de Maduro, que tem dado exemplo no combate à crise sanitária do coronavírus, o Ministério das Relações Exteriores insiste em colocar o corpo diplomático em risco mais uma vez.

    Já não bastasse a agressão sofrida pelo consul da Venezuela em Boa Vista, Faustino Torella, que morreu no dia 5 de agosto, após contrair a covid-19 em território brasileiro e ter seu tratamento negado nas unidades de saúde do estado de Roraima, segundo denunciam as autoridades venezuelanas. O governo de Bolsonaro continua a sinalizar o desprezo pela soberania do país vizinho, contribuindo para aumentar a tensão entre latino-americanos, que sempre mantiveram boas relações e respeito mútuo.

    AÇÕES COORDENADAS

    Também nesta sexta-feira (4), o governo da República Bolivariana da Venezuela denunciou, diante da comunidade internacional, novas agressões intervencionistas de Washington. Em violação ao Direito Internacional, o governo de Donald Trump pretende impor ilegalmente medidas coercitivas unilaterais contra as instituições democráticas venezuelanas, procurando interferir na realização das eleições parlamentares previstas na Constituição para dezembro de 2020.

    O governo dos Estados Unidos acusa a presidenta do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, Indira Alfonzo, bem como três outras autoridades venezuelanas de realizar “interferências” para impedir que as eleições legislativas sejam transparentes.

    Em comunicado oficial, o governo da Venezuela afirma que “com estas medidas ilegais, a administração de Trump pretende impedir o inevitável. Nenhuma pressão externa poderá evitar que o povo venezuelano exerça seu direito ao voto e decida seu destino de maneira soberana”.

    Trump e sua trupe está sinalizando que não reconhecerá os resultados das eleições parlamentares marcadas para dezembro. O CNE Venezuelano tem tentando articular com a União Europeia (EU) e a Organização das Nações Unidas (ONU) para acompanhar como observadores internacionais e garantir a legitimidade das eleições.

    Em função das duras agressões imperialistas impostas pelo bloqueio econômico desde a administração de Barack Obama, em 2015, potencializadas por Donald Trump, as eleições de dezembro se revelam como uma das mais importantes eleições parlamentares da Venezuela. O papel da assembleia é fundamental para aprovar acordos internacionais por meio dos quais o governo pode receber fundos e créditos internacionais e reverter toda a crise econômica criada por Washington no país latino-americano

    Desde as últimas eleições para o congresso venezuelano, em 2015, quando o governo perdeu maioria para a oposição, o partido de Nicolás Maduro, Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), aumentou consideravelmente seu número de militantes. Em 2015, o PSUV era composto por 5 milhões de pessoas, hoje, registra-se 7,8 milhões de militantes, em um país com 30 milhões de habitantes, o que faz do PSUV um dos maiores partidos do mundo.

    Esta crescente organização popular no partido que guarda o legado de Hugo Chavez pode ser um indicador dos resultados das eleições de dezembro, o que contraria os interesses imperialistas dos Estados Unidos sobre o país com a segunda maior reserva de petróleo do mundo.

  • Como é o atendimento aos migrantes venezuelanos durante a pandemia?

    Como é o atendimento aos migrantes venezuelanos durante a pandemia?

    O aeroporto de Boa Vista recebe voos em apenas dois horários, durante a madrugada ou ao meio-dia. Enquanto em São Paulo o voo partia em uma alvorada fria, chegava-se ao estado nortista com a marca de 37º. Havia um grande contraste de temperatura no mês de março. A viagem por avião e a rápida mudança de clima, no entanto, não eram a realidade da maioria das pessoas que entravam no estado de Roraima naquele momento. A maioria doa imigrantes venezuelanos realizava o caminho a pé ou em automóveis. A cidade fronteiriça do lado brasileiro, Pacaraima, era o reduto de alguns deles. Outros caminhavam, pediam carona, pegavam ônibus ou táxis até a capital Boa Vista, que fica a 214 km e, aproximadamente, 4h30 de distância de carro.
    Por Martha Raquel e Michele de Mello, do Brasil de Fato | Boa Vista (RR) e Caracas (Venezuela) 

    O aeroporto internacional de Boa Vista é um dos únicos do país que mantém um posto fixo da Defesa Civil com agentes sanitários. / Michele de Mello

    A reportagem do Brasil de Fato acompanhou por 18 dias a situação de Roraima, entre o momento da chegada à capital do estado até o fechamento da fronteira terrestre com o país vizinho, motivado pela pandemia da covid-19, em março.

    Segundo os últimos dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), existem cerca de 45 mil venezuelanos no Brasil que solicitaram o pedido de refúgio. Destes, mais de 33 mil residem em Roraima, seguido do Amazonas, com cerca de 8,4 mil pessoas.

    A crise econômica aprofundada pelo bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos desde 2015 à Venezuela, assim como a crise do mercado petroleiro, foram os principais fatores que levaram à precarização da vida da população do país vizinho. O boom dos pedidos de refúgio aconteceu em 2018, quando o Conare avaliou que havia uma situação “grave e generalizada de violação de direitos humanos” na Venezuela, facilitando a entrada e documentação dos imigrantes.

    Caminhar por Boa Vista ao longo do mês de março era como estar em uma cidade venezuelana. Pelas ruas do Centro da cidade, o idioma predominante era o espanhol e as calçadas eram preenchidas com centenas de barracas, mesas, toalhas no chão ou pequenas estruturas para venda de produtos. Abridores de latas, canetas, pirulitos, bombons, pentes de cabelo, sabonetes, desodorantes, panos de prato, espigas de milho, frutas, água. Era possível comprar tudo direto das mãos dos imigrantes venezuelanos.

    Boa Vista é uma capital com clima de interior, que tem um quarto de seu território demarcado como área indígena. A cidade também é a segunda com maior número de venezuelanos no país, ficando atrás apenas de Pacaraima, que faz divisa com Santa Elena de Uairén, na Venezuela.

    Em ambas as cidades, havia venezuelanos que moravam em casas alugadas ou compradas, outros viviam em abrigos e uma boa parte dormia nas ruas, por exemplo, as do entorno da rodoviária de Boa Vista, por onde também chegavam diariamente centenas de imigrantes.

    Uma das ocupações independentes que servem de abrigo aos venezuelanos é a Ka Ubanoko, “lugar de morada” na língua indígena Warao. Esta é uma é uma das 11 casas independentes e autogestionadas de Boa Vista. Com regras rígidas de organização, a ocupação sobrevive há quase um ano e meio em um terreno público que já foi a tentativa de construção de um clube de trabalhadores, obra que nunca foi terminada.

     

    Uma das construções da ocupação Ka Ubanoko, que abriga indígenas venezuelanos em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato

    No mês de março, o local abrigava cerca de 850 pessoas, que dividiam cinco áreas, entre espaços reaproveitados da construção do parque, casinhas de madeira, barracas e redes. Eram povos crioulos e indígenas de quatro etnias diferentes: Warao, Enepà, Karina e Pemon. A maioria falava espanhol, mas outros se comunicavam apenas na língua originária. Não havia estrutura de banheiros e cozinha para todas as famílias. Uma mesma torneira era usada para tomar água, banho de balde, cozinhar, além de lavar roupas e utensílios.

    Muitos dos indígenas que ali estavam foram parar na ocupação por falta de vaga nos abrigos da Operação Acolhida do Exército brasileiro, mas hoje valorizam a autonomia que conquistaram no espaço. Lá, eles continuam mantendo seus costumes e sua cultura, por meio de suas línguas originárias, músicas e cultos.

    Também atuante em solo roraimense, a Agência de Refugiados das Nações Unidas (Acnur) gerencia outros 13 abrigos temporários e um espaço emergencial, onde viviam, em março, cerca de 6 mil pessoas, entre refugiados e migrantes. Esses espaços são administrados pela Acnur junto à Força-Tarefa do Exército brasileiro. A reportagem do Brasil de Fato esteve em dois dos abrigos da Operação Acolhida.

    Composto por casinhas compartilhadas por duas famílias cada, mais espaço de banheiros, mesas para refeições, bicicletário, horta comunitária e estrutura para aulas de português para imigrantes, o abrigo São Vicente 2 é um dos mantidos pela Operação.

    Josiah Okal K’Okal, da ordem dos Missionários da Consolata, é oriundo do Quênia e já trabalhou por 22 anos na Venezuela, sendo nove deles acompanhando o povo Warao. Atualmente, cursa mestrado em Antropologia na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), em Quito, Equador. Os estudos acadêmicos o motivaram a passar dois meses no Abrigo Pintolândia, organizado pelo Exército brasileiro em Boa Vista, para pesquisar o processo migratório dessa etnia. Além disso, fez visitas ao Abrigo Janokoida, em Pacaraima.

    “Nos dois abrigos que estive, os moradores são todos indígenas, Warao e Enepá. A primeira coisa que me impressionou foi o número de atores na administração do abrigo. Posso classificar em grupos aqueles que administram o abrigo: os que estão fisicamente presentes todo o tempo – a Fraternidade Internacional e o Exército –, e os que tomam decisões e quase nunca estão presentes no espaço do abrigo – outros órgãos estatais, governo regional, governo municipal, ACNUR, OIM [Organização Internacional para as Migrações]”, afirma.

    K’Okal também lista outras agências que, segundo ele, estão em alguns momentos, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Médicos Sem Fronteiras, entre outros.

    Segundo o missionário, há críticas dos migrantes quanto à ausência física de acompanhamento, o que acarreta em problemas cotidianos. “A comida servida vem de fora do abrigo, já embalada em marmitas. Geralmente, o menu consiste em carne com salada crua e arroz, acompanhado de uma bebida industrial, suco. A comida é a mesma para todos, até para crianças recém-nascidas. A carne é frequentemente frita e sempre muito seca. Às vezes, eles comem frango ou peixe, mas é bem raro isso acontecer”, relata o pesquisador.

    O Exército é o responsável pela contratação de quem fornece a alimentação dos abrigos, mas a administração diária é incumbência da Fraternidade Internacional. A rotina diária, além da distribuição dos alimentos, envolve horários rígidos para despertar, café da manhã, almoço e jantar, bem como horários para entrada e saída do local. Todas as pessoas devem portar um documento com foto e o cartão com o código de barras do abrigo ao qual pertencem. Não é permitida a entrada de terceiros nem de moradores que estejam alcoolizados.

    “Em geral, no abrigo, há uma atmosfera de alegria, mas também de angústia. Os indígenas são sempre pessoas muito gratas e não exigem muito. Pintolândia tem mais características de comunidade do que de um campo de refugiados. Observei que a equipe da Fraternidade tenta fazê-los sentir que o abrigo é o lar deles. Há muita flexibilidade, muita proximidade, muita irmandade. Mas, seu contexto lhes tira a alegria às vezes”, conta K’Okal.

    Abrigo oficial do Exército São Vicente 2, no bairro São Vicente, em Boa Vista (RR) / Martha Raquel/Brasil de Fato

    O plano da reportagem do Brasil de Fato era conhecer todos os 13 abrigos e o centro de acolhida emergencial da Operação Acolhida, mas não houve tempo. O Estado brasileiro tinha cinco casos suspeitos de coronavírus já em 13 de março, mesmo dia em que o governo brasileiro anunciou que avaliaria o fechamento da fronteira terrestre com a Venezuela.

    Segundo o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, a medida teria como estratégia conter o avanço do coronavírus no Brasil. No entanto, do lado venezuelano, no estado de Bolívar, nenhum caso havia sido registrado sequer como suspeito até então.

    A solicitação para o fechamento da fronteira do Brasil com a Venezuela e com a Guiana havia sido feito dois dias antes, em 11 de março, pelo governador de Roraima, Antonio Denarium. Na ocasião, o ministro da Saúde à época, Luiz Henrique Mandetta, disse que a fronteira com a Venezuela era “a única que realmente dava preocupação ao governo brasileiro”.

    Ao jornal O Estado de S.Paulo, Denarium disse que o grau de preocupação com a fronteira era “muito grande”. “Em Roraima estão entrando de 500 a 700 venezuelanos todos os dias. Se tiver um foco de novo coronavírus na Venezuela, e com essa migração desordenada, pode se tornar uma epidemia”, afirmou o governador no dia 12 de março. O fechamento da fronteira foi decretado na manhã do dia 18 de março.

    Àquela altura, o temor já estava generalizado pelo Brasil. Na capital de Roraima já não era mais possível encontrar máscaras, luvas ou álcool em gel nas farmácias. Em Pacaraima, apenas um lugar vendia máscaras. A unidade que, antes da pandemia, custava R$ 0,35, agora custava R$ 2. Um cartaz de oferta divulgava a caixa com cem máscaras por R$ 180,00.

    Proporcionalmente, Roraima possui a maior população indígena do Brasil, quase 50 mil pessoas, que também habitam a região próxima à fronteira / Michele de Mello

    No paço fronteiriço, por volta das 8:30 da manhã, venezuelanos foram impedidos de entrar no Brasil. Já os venezuelanos que estivessem em solo brasileiro poderiam voltar ao seu país de origem. Carregadores do país vizinho que viviam em Roraima e trabalhavam levando produtos de um lado a outro da fronteira não puderam retornar às suas casas.

    Um desses trabalhadores impedidos de retornar ao Brasil contou à reportagem que não sabia o que fazer. Pai de duas filhas, ele havia acabado de cruzar a fronteira para fazer uma entrega e estava impedido de retornar para a sua família. Junto a ele haviam pelo menos mais 30 carregadores na mesma situação.

    Ao Brasil de Fato, pedindo para não ser identificado, ele declarou que fazia mais de quatro horas que ele e outros carregadores estavam sob um sol de 34º, sem comida ou água. “Trabalhamos do lado brasileiro e, assim, sustentamos a família. A situação vai ficar pior do que está. A maioria de nós trabalha para nossas famílias, se não nos deixam passar, não trabalhamos nem comemos”, disse.

    Do lado brasileiro, havia barreiras da Força Nacional, da Polícia Federal e do Exército. Já do lado venezuelano, havia uma Brigada Itinerante de Prevenção à Contaminação pelo coronavírus, que contava com representantes da Milícia Nacional, do Exército, da Guarda Nacional, da Polícia do Estado Gran Sabana, além de médicos venezuelanos e estudantes de medicina brasileiros que fazem a graduação na Venezuela.

    A fronteira estava fechada apenas do lado brasileiro aos venezuelanos. Brasileiros tinham livre circulação. Um único agente da Polícia Federal checava a nacionalidade e liberava a passagem.

    Com o passar dos meses, o decreto inicial que estabelecia 15 dias de fechamento da fronteira terrestre foi alterado algumas vezes. A situação dos imigrantes venezuelanos, tanto os que vivem nas ocupações independentes quanto os que estão nos abrigos oficiais da Operação Acolhida, também mudou durante a pandemia.

    Os moradores da Ka Ubanoko estão recebendo visitas diárias de profissionais do Médicos Sem Fronteiras. Porém, ainda falta infraestrutura, com reclamações de dificuldades para exames, testagem e atendimentos especializados.

    Segundo a Acnur, houve a instalação de oito pias com água para os imigrantes que vivem em assentamentos espontâneos realizarem a higienização constante, além disso, o órgão afirma que distribuiu 7,3 mil kits de higiene e limpeza, colchões, redes, fraldas e roupas de ajuda emergencial.

    A ONU também investiu na construção de um hospital de campanha em Boa Vista, com capacidade para 1,2 mil leitos. A Área de Proteção e Cuidados (APC) deverá atender até 2,2 mil pessoas.

    Após ter o funcionamento adiado cinco vezes, o Hospital de Campanha de Roraima foi inaugurado no dia 19 de junho, três meses após o fechamento inicial da fronteira. O atraso foi devido ao não cumprimento, por parte do governo estadual, da compra de equipamentos e contratação de funcionários.O funcionamento será custeado através da união dos governos municipal e estadual.

    Para atender aos refugiados que perderam seus empregos durante a pandemia, a Agência assegura que ampliou seu programa de assistência financeira. Para a Irmã Telma Lage, advogada e coordenadora do Centro de Migração e Direitos Humanos da Diocese de Roraima, o esforço feito ainda é insuficiente diante da situação precária em que vivem os imigrantes venezuelanos no estado brasileiro.

    “A gente tem um número grande de invisíveis, pessoas que estão fora do radar, principalmente das agências da ONU e da Força-Tarefa. São as pessoas que estão pagando aluguel ou em situação de rua. Essa tem sido nossa maior preocupação durante a pandemia da covid-19, porque estes são os vulneráveis dentro dos vulneráveis, já que a maioria está na periferia da cidade”, conta.

    O último centro da Operação Acolhida em Pacaraima (RR) tem capacidade para atender cerca de duas mil pessoas, no entanto abriga apenas 50 venezuelanos. / Michele de Mello

    Atualmente, Roraima tem aproximadamente 22 mil casos confirmados com o novo coronavírus. Boa Vista tem a grande maioria das confirmações, mais de 16,4 mil. Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela, é a segunda do estado, com mais de 900 casos confirmados. O estado registrou 396 mortes. Os dados são da Secretaria de Estado da Saúde de Roraima, desta sexta-feira (10).A reportagem buscou contato com o governo estadual para um panorama da situação do estado, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.

    Como último estado do Brasil a confirmar casos de infecção pela covid-19, Roraima recebeu o vírus não pela fronteira com a Venezuela, espaço de grande preocupação de mandatários brasileiros, mas por duas pessoas contaminadas oriundas de São Paulo, no dia 21 de março. Naquela data, segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil contava com 1.128 casos confirmados de coronavírus e 18 mortes (três no Rio de Janeiro e 15 em São Paulo). Na Venezuela, de acordo com dados oficiais, o país registrava 70 casos em todo o território nacional; a primeira morte só veio a acontecer no dia 26 de março.

    Fronteira entre Brasil e Venezuela, no dia 18 de março de 2020 / Martha Raquel/Brasil de Fato

    Do lado de lá da fronteira: Venezuela 

    As bandeiras entre os dois países são o último símbolo que marca o limite invisível da fronteira entre Brasil e Venezuela. No lado tupiniquim, um agente da Polícia Federal, com seu telefone celular, fotografa os caminhões e cidadãos que tentam cruzar o passo fronteiriço. Este é o último rastro do Estado brasileiro. A sede do órgão está fechada para atendimentos presenciais por conta da pandemia. Tampouco existe qualquer equipe de saúde realizando controle sanitário.

    Dois passos adiante, numa tenda instalada a céu aberto, soldados da Força Armada Nacional Bolivariana (Fanb) solicitam documentos e fazem a primeira entrevista ao viajante. Em seguida, militares transportam malas e passageiros na caçamba de camionetes para evitar o contato até o próximo posto de controle.

    Chegando à primeira estrutura dos Pontos de Atenção Social Integral (Pasi), todos são desinfectados com uma solução de água e hipoclorito de cloro. Em seguida, equipes de médicos, muitos deles cubanos, novamente entrevistam os recém-chegados e realizam os testes rápidos, do tipo PCR (sigla em inglês para “reação em cadeia de polímeros”).

    Os militares que fiscalizam a fronteira e condutores de caminhões que transportam mercadorias entre o território brasileiro e venezuelano também são submetidos diariamente a exames.

    Aqueles que testam positivo são imediatamente afastados. Entre as sete pessoas presentes naquela tarde do dia 29 de maio, quatro estavam infectadas, o que corrobora com o dado oficial de que cerca de 78% dos casos registrados na Venezuela são importados e, muitos deles, chegam pelas fronteiras terrestres com a Colômbia e o Brasil, ou pelos voos humanitários que aterrissam em Caracas.

    No estado de Bolívar, divisa com Roraima, 992 venezuelanos permaneciam nas instalações do Pasi de Santa Elena de Uairén, até o dia 10 de junho, parte sendo tratada nos hospitais de campanha e outra cumprindo a quarentena obrigatória de 14 dias nos alojamentos do Estado, em pousadas e hotéis alugados. Depois de passar por novos testes, os venezuelanos são levados às suas regiões de origem em ônibus fretados pelo governo nacional.

     

    A Venezuela foi o primeiro país do continente americano a decretar quarentena em nível nacional e o fechamento de fronteiras. Desde março até junho, 59 mil cidadãos retornaram ao país pelos corredores humanitários terrestres e aéreos organizados pelo Estado. Desse total, 3.626 regressaram do território brasileiro, e, entre eles, 441 estavam contaminados.

    Em Caracas, capital do país, foram recebidos ao menos 36 voos com cerca de 1,8 mil venezuelanos. Para atender os cidadãos em regresso e a população local, foi criada uma equipe de resposta imediata sentinela, que faz quatro processos: desinfecção; mapa dos contágios positivos, conversas de reeducação, onde foram registrados casos positivos; além de um cerco epidemiológico para evitar o contágio de vizinhos.

    Existem quatro protocolos para o atendimento da população venezuelana. Um deles é a atenção de casa em casa para poder verificar se existem pessoas com sintomas. Tal medida é apoiada pelos questionários da Plataforma Pátria, que atende mais de 8 milhões de habitantes, com isso o Estado busca realizar um procedimento massivo para descartar a possibilidade de transmissão.

    Em seguida, são realizados testes rápidos nos pacientes suspeitos, aqueles que dão positivo são atendidos em algum dos 46 hospitais de referência instalados no país.

    “Na Venezuela ninguém vai morrer por negligência ou por falta de atenção médica”, assegura Jessica Lalana, coordenadora da força-tarefa do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), em Caracas.

    O país mantém uma média de 45.258 testes de diagnósticos para cada 1 milhão de habitantes, chegando a um total de 1.257.732 milhão de exames realizados. Já no Brasil a proporção é de 22.800 para cada milhão.

    O Brasil é o segundo país em número de mortos e infectados com a covid-19 em todo o mundo, concentra mais de 50% dos casos registrados na América Latina. Alegando a situação de crise sanitária e o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), os imigrantes têm relatado dificuldades para ser atendidos nos hospitais.

    Em novembro do ano passado, a Câmara de Vereadores de Boa Vista aprovou o projeto de lei 452/2019, que limitava em 50% o atendimento de estrangeiros na rede pública da capital. A proposta de autoria do vereador Júlio Medeiros (PTN) culpava “o aumento desenfreado de migrantes no estado de Roraima, o que veio a impactar em diversos setores na vida da população local, tais como saúde, educação e segurança”. A lei entrou em vigor em janeiro deste ano.

    Por ferir o princípio de acesso universal ao SUS previsto na legislação e violar o direito de igualdade garantido ao migrante, a medida foi considerada inconstitucional pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que derrubou a lei em fevereiro de 2020.

    “Quando os compatriotas passam para o lado venezuelano e recebem atendimento médico eles manifestam que do lado brasileiro, nos municípios próximos, Pacaraima, Boa Vista, não lhes prestam atendimento para descartar se estão com covid-19”, confirma Maria Abad, militante da Frente Francisco Miranda, no estado de Bolívar. A frente é um dos movimentos populares que apoia nas comissões multidisciplinares do corredor sanitário da fronteira.

    Brigada Itinerante de Prevenção à Contaminação pelo Coronavírus do Estado venezuelano na fronteira com o Brasil / Martha Raquel/Brasil de Fato

    A realidade novamente confirma os dados. Um dos jovens que testou positivo ao chegar no território venezuelano, no dia 29 de maio, relatou à reportagem do Brasil de Fato que decidiu retornar pela falta de emprego e porque não foi atendido pelo SUS, em Boa Vista. Viajou 210 km com o pé fraturado.

    “Muitos desses companheiros vieram com a esperança de que na Venezuela possam ser atendidos com todos esses protocolos. Tanto atenção médica, como hospitalização e hospedagem de maneira totalmente gratuita”, assegura Jessica Lalana, coordenadora de grandes missões do PSUV em Caracas.

    Em maio, María Teresa Belandria, que responde como embaixadora venezuelana no Brasil nomeada pelo autodeclarado presidente Juan Guaidó, também deputado venezuelano, afirmou que existiam “mais de 280 mil venezuelanos” em território brasileiro, e pediu ajuda financeira às vésperas da Conferência Nacional de Doadores, realizada em 26 de maio.

    Mesmo sendo reconhecida pelo presidente Jair Bolsonaro, Belandria não tem autoridade para emitir documentos, vistos e, segundo relatos de venezuelanos no Brasil, os enviados de Guaidó tampouco oferecem algum tipo de suporte econômico para quem chega, apesar dos anúncios constantes de “ajuda humanitária” recebida do exterior.

    Já no território venezuelano, apesar do bloqueio, o país se apoia na cooperação internacional para combater a pandemia. Até o momento, receberam seis aviões com mais de 200 toneladas de produtos da China, além de receber insumos da Rússia, do Irã e uma brigada médica com 130 especialistas cubanos.

    “A nossa pátria e o nosso governo revolucionário estão dispostos a seguir recebendo esses compatriotas com amor, com uma atenção de primeira e todos os elementos necessários para garantir o direito à vida. Porque a Revolução Bolivariana se propôs desde o dia zero da pandemia a garantia da vida ao ser humano, ao nosso povo. Acredito que essa é uma das posturas mais heróicas que se apresentaram nesse período, porque isso não acontece no Brasil, Colômbia, Chile ou Equador”, assegura Jessica Lalana, membro do PSUV.

    O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, assegura que a Venezuela é um dos únicos países que está sofrendo “migração reversa” durante a pandemia da covid-19, considerando os números do programa social Vuelta a la Patria (De Volta à Pátria).

    Para entender o retorno

    Apesar de os dados, desde 2018, terem parado de subir, a oposição regional ao governo de Nicolás Maduro aponta uma crise migratória e acusa o país de ser uma ameaça para a América Latina.

    Uma reunião no dia 2 de fevereiro de 2018, convocada pelo Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos, foi o primeiro espaço a levantar o tema do refúgio para os venezuelanos. Em seguida, foram disparadas medidas adotadas pelos governos do chamado Grupo de Lima para facilitar a imigração venezuelana. Apenas nove dias depois da reunião em Washington, o então presidente Michel Temer viajou até a fronteira afirmando que “não faltariam recursos para os venezuelanos que fogem”.

    Nesse mesmo ano, foi lançada a Força Tarefa Logística do Exército, incentivada pela administração Trump. Em visita ao Brasil, em junho de 2018, o vice-presidente estadunidense, Mike Pence, visitou os abrigos da Operação Acolhida em Manaus (AM), quando afirmou que doaria US$ 1 milhão para apoiar o governo do então presidente brasileiro Michel Temer.

    Em abril daquele mesmo ano, a Casa Branca já havia anunciado o envio de US$ 16 milhões ao Brasil e à Colômbia para apoiar a imigração venezuelana.

    Em abril de 2018, depois de um evento intitulado “Crise migratória da Venezuela”, do grupo Dialogue – composto por figuras como o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, além de ONGs e think tanks regionais –, foi anunciado que haviam sido arrecadados US$ 46 milhões para atender a situação da migração venezuelana. Os Estados Unidos haviam contribuído com US$ 2,5 milhões.

    Em uma reportagem investigativa, o canal multiestatal Telesur confirmou que venezuelanos eram incentivados a pedir refúgio ou asilo político pelos agentes da Acnur quando chegavam no território brasileiro. Nos primeiros meses de 2018, a Agência “estimava” que a migração venezuelana chegaria a 1,7 milhão de pessoas. Com as facilidades aprovadas em 2018 pelo governo Temer, os pedidos aumentaram cerca de 40%.

    Na metade de 2019, a Acnur já assegurava que 4 milhões de venezuelanos haviam deixado o país. O representante da Acnur para a região dos Estados Unidos e Caribe, Matthew Reynolds, afirmou que “a qualificação de crise era necessária para receber mais fundos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional”.

    Para a politóloga Martha Ortega, o discurso de crise migratória foi uma forma que os governos conservadores na América Latina encontraram para receber financiamento de organismos internacionais. “A resposta à pergunta ‘por que voltam?’ é muito simples e contundente: um refugiado ou um perseguido político não retorna, um imigrante econômico, sim”, defende Ortega, que realizou longa pesquisa sobre o tema.

    Também para Jessica Lalana, o discurso de crise migratória faz parte de uma guerra híbrida contra a Venezuela e também parte do bloqueio midiático internacional contra o seu país.

    “Na Venezuela, os direitos humanos são garantidos. Apesar do bloqueio ideológico, financeiro, naval, de toda a tergiversação de informações divulgadas no mundo sobre a Venezuela, este é um país que garante os direitos humanos, garante a recepção de homens e mulheres que se foram com esperança, talvez com alguma situação econômica, mas que hoje regressam. E nós vamos recebê-los como povo e como revolução, de braços abertos”, finaliza a coordenadora do grupo que recepciona os imigrantes na capital do país.

    Edição: Vivian Fernandes

    VEJA TAMBÉM: EUA apertam bloqueio econômico contra Venezuela, mas o país segue como exemplo no combate ao coronavírus

  • Queremos ir pra Cuba!

    Queremos ir pra Cuba!

    Frequentemente os antibolsonaristas escutam um “Vai pra Cubaaaa!”, quando se manifestam contra os desmando e atrocidades cometidas pelo governo Bolsonaro.  Se soubessem a quantas anda a proliferação do coronavírus em Cuba, certamente, até eles, iriam querer estar lá. Como quase não se fala da ilha neste momento tão desafiante para os governos e para a população no mundo todo, devemos compreender tal ignorância.

    Por Silmara Conchão* e Eduardo Magalhães Rodrigues**, especial para os Jornalistas Livres

    Matéria do jornal O Globo de 13 de maio de 2020, afirma, logo no título, que os casos de coronavírus diminuem, mas mesmo assim o governo cubano intensifica testagem da população. O texto conta que, naquele momento, o país registrava menos de 20 casos por dia. Um mês antes, em abril, eram 50 novos casos registrados diariamente. Em 20 de maio, o Uol divulgou que haviam apenas 13 novos casos, e  uma semana completa sem nenhuma morte. Desde o início do surto, a ilha fechou suas fronteiras para quem não mora no país e obrigou o uso de máscaras fora de casa. Ou seja, estão hoje muito longe da média de 50 casos registrados no início da pandemia.

    Segundo o presidente cubano, Miguel Diaz-Canel, o desafio agora está nas grandes filas que se formam nas lojas devido à falta de itens de necessidade básica provocada pelos 62 anos de embargo econômico dos Estados Unidos contra Cuba. Buscando solucionar esse problema, o governo está se organizando para abastecer a população e entregar alimentos e outros gêneros essenciais nas próprias residências.

    Medidas tomadas combinaram ações como o fechamento das fronteiras (desde 2 de abril), supressão de todos os transportes públicos nas cidades, vilas e entre as províncias, fechamento de bares, restaurantes e boates, aumento da ação policial nas ruas para evitar as violações das regras, e uma bateria de medidas sanitárias preventivas com investigações maciças, casa por casa, para detectar os doentes – além das políticas de autocontrole e conscientização do povo para que fique em casa e saia apenas para o estritamente necessário.

    A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 1 médico para cada mil habitantes, os Estados Unidos, sem sistema público, têm 2,59. Cuba tem nove. São 1.800 especialistas em terapia intensiva e 1.200 epidemiologistas, além de 85 mil enfermeiros e 58 mil técnicos. Cerca de 150 hospitais e 450 policlínicas fazem parte da rede de saúde pública e gratuita, embora  a maior força de Cuba nesta crise seja o serviço de atenção primária extenso e coeso, bem como, sua capacidade de controle social, o que permite chegar praticamente a todas as residências na busca de possíveis doentes.

    Em 12 de junho, o site Brasil de Fato nos conta que o país registra baixo número de mortes e de novas infecções, mas ainda não definiu data para retomada das atividades. Ou seja, três meses após os primeiros registros do coronavírus em Cuba, a pandemia é controlada com políticas detalhadas e população empenhada em cumprir medidas para frear o avanço do vírus.

    É uma experiência que une atenção primária à saúde séria, solidariedade e cooperação da população e do governo cubano, que não precisou determinar em nenhum momento o lockdown. A atenção primária é forte e comum na ilha. Todos os bairros tem um médico da família, que atende todas as comunidades do país. Estes profissionais agora contam com reforço de dezenas de milhares de colegas e alunos (as) de medicina que percorrem regiões em busca de qualquer sinal do vírus. Todos os dias moradores recebem visitas de equipes da saúde que verificam as condições da família toda. O governo também se empenhou em distribuir remédios naturais para melhorar a imunidade.

    Os transportes públicos continuam suspensos, o que aumenta a adesão à quarentena. Atendendo o deslocamento dos trabalhadores (as) essenciais, o governo destacou ônibus específicos com lotação limitada. As escolas estão fechadas, mães e mulheres grávidas foram liberadas do trabalho, sem prejuízo do salário. O cuidado é tanto que o governo já anunciou a suspensão do Carnaval 2021.

    Cuba e seu sistema socialista, desenvolve, há décadas, uma estrutura capaz de enfrentar pandemias porque atua fortemente na saúde pública e preventiva, no campo da pesquisa, educação, segurança e organização popular. Cuba tem demonstrado que o mais importante é a vida de sua população.

    Enquanto isso, no Brasil,  o governo federal nega a gravidade da pandemia e o poder econômico pressiona os governos locais pelo fim do isolamento social. Negligenciam as desigualdades sociais que se acirram com o desemprego e a ameaça de corte do ínfimo auxílio emergencial. Alegam que o país não pode continuar mantendo a distribuição dos recursos à população para não prejudicar as contas públicas. A contaminação e as mortes se multiplicam diariamente e já passamos dos 60 mil brasileiros mortos pela Covid-19.

    Estamos falando de mortes evitáveis. Somos uma nação rica, mas com uma das maiores concentrações de renda do planeta. Não há crise econômica, ela é fabricada para justificar a continuidade da abjeta desigualdade social brasileira. Estamos sendo enganados, a mente dos pobres e miseráveis é manipulada para que acreditem na falência ou incapacidade financeira do Estado. Quando todos estivermos mortos, não haverá economia possível.

    Frequentemente o “gado” nos manda para Cuba. Pensando aqui, não seria má ideia, até porque estamos afrouxando o isolamento, dado o sério compromisso dos nossos governantes com o capital, mais do que com a vida. Diferentemente, Cuba está fechada e o presidente afirma a importância de ainda manter as medidas sanitárias e de quarentena, evitando retrocessos.

    Apesar do sucesso do papel do Estado no combate à pandemia, autoridades cubanas de saúde disseram que não pretendem flexibilizar a quarentena e que o país provavelmente ficará fechado durante todo o segundo semestre de 2020.

    Quem sobreviver ao vírus no Brasil deve aprender a lição: é dever do Estado ser forte com quem mais precisa e não só com os ricos. É dever do Estado responsabilizar-se pela saúde e educação públicas de qualidade e universal. É dever do Estado investir na ciência, garantir direitos sociais e humanos, o que inclui o acesso à uma renda mínima, básica, decente.  Assim é em Cuba. Vamos para Cuba!

    *Silmara Conchão

    Socióloga, feminista e professora universitária. Mestra em Sociologia pela FFLCH/USP e Doutora em Ciências da Saúde.

    **Eduardo Magalhães Rodrigues

                                                       Sociólogo e pesquisador da Universidade Federal do ABC. Mestre em Relações Internacionais e Doutor em Planejamento e Gestão do Território.

     

    Veja mais: Mais de um trilhão de reais jogados ao vento pelo governo Bolsonaro

  • A quem interessa ser profeta do caos?

    A quem interessa ser profeta do caos?

    Por Jacqueline Muniz, Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues
    Imagens de autoria dos Jornalistas Livres, capturadas em protestos, no último final de semana, em São Paulo e na França
    A advertência de não realização de manifestações políticas, fundada no medo e na promoção do pânico social, é um atentado à democracia, uma forma de extorsão de poderes, de dirigismo monopolista das pautas plurais e das reivindicações divergentes de sujeitos que são diversos em cor, classe, renda, gênero, orientação sexual, instrução, etc. A advertência sob a forma de ameaça produz paralisia decisória de lideranças, imobilismo social e lugares resignados de fala, que seguem aprisionados nas redes sociais, na política emoticon do “estamos juntos” até o próximo bloqueio, diante da comunhão de princípios com diferença de opiniões: “você deve ir ao shopping, mas não a passeata”.
    A fabricação de conjecturas apocalípticas e suposições catastróficas com roupagem analítica é um recurso de persuasão de via única, impositiva, que aponta para um sentido hierárquico e, até mesmo autoritário, de quem se acha portador de uma verdade ‘revelada’ sobre os atos políticos e de uma razão superior sobre os fatos da política. A fala profética é uma fala moralista, ilusionista, que, por meio do uso da fé e do afeto, inocula nas pessoas uma culpa antecipada por suas escolhas para desqualificar seus arbítrios e fazê-las rebanho dependente de um guia despachante do juízo final. Este projeto de poder necessita fazer crer que o pessimismo visionário e proselitista é mais real que a própria realidade vivida e que deve fazer parte do cálculo das ovelhas boas e más, dos aliados e opositores de ocasião. A fala profética serve aos senhores da paz, da guerra e do mercado, sem distinção. É um jogo ardiloso do ganha ou ganha em qualquer circunstância ou resultado obtido.
    A quem interessa ser o profeta do caos? Ao próprio profeta que, inventor do jogo do quanto pior melhor, sacrifica seus seguidores feito gado, gasta a tinta das representações com seu próprio manifesto e promove a tensão entre espadas para se manter como o grande  conselheiro conciliador.  
    Os profetas do caos são como uma fênix que ressurgem da crise que criam. Eles se apresentam como proprietários das representações políticas, à direita ou à esquerda, em cima e embaixo. Eles se oferecem como mediadores dos conflitos que provocaram, como tradutores intérpretes na Torre de Babel que criaram entre nós.  A ameaça (do caos, da morte e do cerceamento da liberdade) não serve como advertência. Os profetas do caos produzem o medo, moeda de troca fundamental para a construção de milícias, para vender os seus remédios (previsíveis, amargos e inócuos). Para eles, não importa se os doentes morrem ou vivem, o que importa é que, doentes ou não, consumam suas previsões do passado.
    É notório que as polícias no Brasil têm tradição em policiar eficazmente o entretenimento lucrativo dos blocos de carnaval, shows e aglomerações em campeonatos de futebol. Nesses casos, sua atuação se dá na manutenção do status quo dos públicos, constituída a partir das atividades de contenção e dispersão das multidões. Já para o controle de pessoas que ocupam o espaço público sob a forma de protestos de todos os matizes políticos, apesar de ser um fenômeno relativamente recente e não haver protocolos policiais escritos e validados, sabemos que esses eventos se tornam encenações, nas quais janelas são abertas para oportunistas de todas as ordens, para acertos de contas da polícia dos bens com a polícia do bem, incluindo os ‘caroneiros’ de manifestação que comparecem por motivos completamente alheios às pautas dos protestos.
    Nesses espetáculos públicos que encenam os jogos da política aprendemos coisas muito básicas, sejamos nós manifestantes ou espectadores: sempre haverá a presença de agentes infiltrados (que ajudam na contenção) e de provocadores, para providenciar a dispersão. A infiltração de agentes de inteligência por dentro dos movimentos sociais remonta uma antiga estratégia estadunidense da década de 1960. Ou seja, muito antes do surgimento dos Black Bloc. Nos últimos 60 anos, acumulou-se um aprendizado sobre o uso do espaço
    público relativo ao círculo do protesto (aglomeração, deslocamento,  ato de encerramento e dispersão) que permite que os movimentos saibam lidar com esses elementos internos. 
    Neste mesmo período aprendemos, também, que o que torna legítimo um protesto não é a quantidade de indivíduos reunidos em um território específico por um período de tempo determinado, mas os modos de ocupação do espaço público e a construção coletiva de uma agenda política que os mobilize e tenha impacto na sociedade. A produção de dossiês intimidatórios, com a participação de agentes públicos, também não é novidade. Os constrangimentos da exposição de dados acabam por jogar na lama do “tribunal digital” os adversários, fortalecendo a promoção de linchamentos virtuais, de direita ou de esquerda.
    O governo Bolsonaro não é o único que tem disseminado o medo para sabotar os mecanismos de cooperação e mobilização sociais, substituindo práticas de coesão por coerções e cruzadas moralistas vindas de cima, de baixo e ao redor. Discursos do medo contra ou a favor de Bolsonaro são péssimos conselheiros porque dão a #Elenão um tamanho e uma agilidade política irreal, retirando-o do isolamento político em que se encontra para nos fazer acreditar que, quando chegarmos às ruas, imediatamente um cabo e um soldado fecharão o Congresso, o STF e tirarão as emissoras e os portais de internet do ar. O medo transforma Bolsonaro num bicho papão, num monstro mítico incontrolável que atira hordas de zumbis (com cabelos tingidos de acaju) contra todos nós.
    O medo disseminado faz com que as pessoas vejam gigantes onde há sombras e abram mão de seus direitos e garantias em favor de um ‘libertário do agora’ que prometa proteção. Mas o profeta-liberador de hoje será o seu tirano de amanhã!
    O rigor científico não permite que nós, pesquisadores, determinemos como os movimentos sociais devem se comportar, nem que sejam pautados por oráculos que anunciam profecias que se autorrealizam. A contemporaneidade produziu os ativismos acadêmicos, mas eles não devem substituir jamais a liberdade dos sujeitos de decidir suas agendas, nem servir de chofer dos movimentos sociais em direção à “Terra sem Males”, um mundo idílico sem conflitos e, por sua vez, sem a política. A ciência pode contribuir com diagnósticos da realidade e oferecer alternativas que considerem, inclusive, que a negação dos conflitos monopoliza o debate e as representações, obscurecendo as negociações dos interesses em disputa. Quando a decisão científica está acima da pactuação social ela deixa de ser ciência e passa a ser doutrina, retira da sociedade a responsabilidade pelas escolhas que faz, para o bem e para o mal.
    Ao  olharmos a história vemos que os discursos de “lei e ordem” são utilizados sempre a serviço dos interesses do Estado e seus grupos de poder. Viver sob o jugo da espada não é novidade para as pessoas para quem o isolamento social é uma prisão histórica dos direitos de cidadania, e não um privilégio de classes. A juventude, principalmente a negra, conhece de perto a violência policial, e sabe que nem em casa está protegida.
    Sobre as autoras do texto: 
    JACQUELINE MUNIZ,antropóloga, professora da UFF.
    ANA PAULA MIRANDA, antropóloga, professora da UFF
    ROSIANE RODRIGUES, antropóloga, pesquisadora do INEAC/UFF.