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  • ALMA INQUIETA: ZÉLIA DUNCAN CONTRA O DRAGÃO DA MALDADE

    ALMA INQUIETA: ZÉLIA DUNCAN CONTRA O DRAGÃO DA MALDADE

    Zelia Duncan
    Zelia Duncan põe a cara para enfrentar o ódio e a intolerância

    A cantora, compositora e atriz Zélia Duncan expressou a alma e o grito da classe artística contra as bizarrices do Governo Bolsonaro na área da Cultura nesta última semana. Desde que publicou um vídeo em seu instagram recitando um poema em que fazia alusão ao mundo sem artistas (veja abaixo), a artista não parou mais de fazer das redes sociais palco para sua inquietude com os erros no setor pelo Governo. Com a chegada de Regina Duarte e os editais polêmicos de Alvim ainda no ar, fizemos um papo rápido com Zélia sobre os últimos dias. Pelo visto, Zélia não sairá do front. Ainda bem.

     

    Bruno Trezena: O seu conteúdo nas redes sociais com críticas ao Governo, principalmente na área da Cultura, tem viralizado. Na sua opinião, a que se deve essa repercussão?

    Zélia Duncan: Eu sinto que vinha alcançando mais gente, porque resolvi botar a cara na tela, da forma mais espontânea possível, do jeito que sou em casa. Mas aconteceu algo mais no dia em que resolvi dizer um poema meu ao final de uma sessão. Houve uma comoção que me surpreendeu, porque as pessoas embarcaram na minha proposta de imaginar os dias sem arte. Daquele dia pra cá, minha vida nas redes mudou e na rua também. Todo dia tem gente vindo falar comigo por conta das postagens e especificamente daquela.

    Bruno Trezena: A saída de Alvim da área da Cultura é o ponto final ou a sociedade precisa continuar atenta? A política de direcionamento ideológico proposta por ele, pelo visto, continua.

    Zelia Duncan: Alvim personificou o pensamento do Governo em relação à Cultura. Uma cultura fria, branca, mal humorada, ameaçadora. Ele apenas errou na dosagem para uso externo e pegou muito mal. Mas sabemos que o presidente já tinha visto e aprovado. A luta está começando e vamos ver o que Regina Duarte vai propor… Se vai propor, se vai durar, se vai ser conivente com o desmanche, ou vai ser grata à profissão que tem sido a sua vida.

    Bruno Trezena: Acha que o posicionamento crítico deve ser uma prioridade da classe artística?

    Zelia Duncan: Eu tento não apontar o dedo para os colegas. Tendo a achar que cada um dá o que tem e o que pode. Mas confesso que, num momento como esse, é no mínimo melancólico, que a classe não se expresse em peso, de forma unida. Eu tenho cada vez mais botado a cara na rua. Acho que é a única maneira de me sentir viva, quando luto de alguma maneira. E estou achando o jeito pra fazer isso numa posição de aprendizado e ação.

    Bruno Trezena: Acredita em dias melhores para nós?

    Zelia Duncan: Não sou otimista, mas também não sou derrotista não. Acho que dias melhores demorarão! Mas vão nos achar fortes e no front.

     

     

     

  • A esquerda precisa de um outsider?

    A esquerda precisa de um outsider?

     

    ARTIGO

    RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    O ano político de 2019 acabou sob os impactos da pesquisa Datafolha divulgada em meados de dezembro. Os números foram um verdadeiro banho de água fria naqueles que esperavam que as caneladas institucionais e a crise econômica enfraqueceriam o governo junto à opinião pública.

    Muito pelo contrário: Bolsonaro consolidou sua base de apoio incondicional, que está em algo próximo a 30%, contando ainda com a confiança de mais da metade da população.

    Hoje, Bolsonaro é mais carismático e popular que Lula, especialmente junto a uma baixa classe média do sudeste/sul do país cuja densidade demográfica é decisiva numa eleição.

    A libertação de Lula ainda não surtiu o efeito desestabilizador que muitos esperavam, e torciam.

    E não, não vou brigar com os números, pois isso significaria negar a realidade. A situação é a pior possível depois das eleições de 2018: 12 milhões de desempregados, 38,6 milhões de brasileiros trabalhando na informalidade, sem nenhuma seguridade social. Letalidade policial atingindo números assustadoramente inéditos. O quilo da carne de segunda na casa dos 30 reais. O litro da gasolina perto dos 5 reais.

    Ainda assim, Bolsonaro conta com o apoio de uma parcela considerável da sociedade civil. Precisou muito menos para que as ruas se levantassem contra Dilma entre 2013 e 2016. E nem adianta botar a culpa na imprensa, pois a mídia hegemônica, tal como fez com Dilma, também bombardeia Bolsonaro diariamente.

    Por que isso acontece?

    Uma primeira hipótese diz respeito ao tempo de governo. Bolsonaro acaba de terminar o primeiro ano de mandato. Isso, somado à narrativa que diz que o PT destruiu o Brasil, pode explicar a paciência da opinião pública com o presidente. Mas o que a pesquisa mostra é algo mais do que apenas boa vontade e paciência. É adesão e confiança.

    Acredito que a explicação seja outra.

    Bolsonaro encarnou uma certa narrativa de interpretação do Brasil que tem vida longa no imaginário nacional e foi turbinada pelas manifestações populares que aprendemos a chamar de “jornadas de junho de 2013”. Segundo essa narrativa, a política institucional é naturalmente corrupta e corruptora.

    O político profissional, eleito pelo voto popular, é potencialmente corrupto. A corrupção seria o câncer nacional, a mazela responsável por todos os nossos problemas.

    “Não gostamos de políticos. Gostamos de Ramones”, disse em tom lacrador uma das líderes do movimento social que em 2013 puxou as jornadas.

    Quando o mundo parecia desabar, Jair Bolsonaro, com algum senso de oportunidade, encenou o “diferente de tudo que está aí”, o que não deixa de ser verdade em alguma medida. Durante quase 30 anos, Bolsonaro foi o diferentão no Congresso Nacional.

    Como Bolsonaro sempre foi um outsider da IV República, deputado de baixo clero, com pouca projeção, seu nome passou batido pelo tsunami moralizador deflagrado em 2013. É que Bolsonaro era tão irrelevante, tão desprestigiado entre seus pares, que sequer conseguiu se envolver em grandes esquemas de corrupção. Teve que se contentar com as rachadinhas. Corrupção rasteira, vulgar, daquele tipo que nenhum delegado, procurador ou juiz quer investigar e combater. Não dá mídia, não dá Ibope.

    Em síntese: em meio ao apocalipse, Bolsonaro se transformou na aposta no novo, na esperança, em potência indutora de utopias. Pesquisas de opinião mostram que a população brasileira até se incomoda com o jeitão meio aloprado do presidente, mas está disposta a esperar, como se fosse o preço a ser pago por um futuro melhor.

    Até quando isso vai durar? Alguns acreditam que a crise econômica desidratará Bolsonaro. Pra isso seria necessário um verdadeiro colapso econômico, com crise de abastecimento e mais da metade da população ativa em total desocupação. É difícil imaginar uma economia tão complexa como a brasileira colapsando nesse nível. Além de tudo, os aplicativos vêm atenuando o desmonte do mercado de trabalho formal, e ainda sob os aplausos de alguns trabalhadores, que se sentem mais “livres” nas novas relações de trabalho.

    A insatisfação com a opressão patronal que por mais de cem anos foi o centro da identidade ideológica da esquerda foi apropriada pelo capital na chave do empreendedorismo. O capitalismo tem impressionante capacidade de transformação.

    A insatisfação coletiva com a reforma da previdência também não é pra já. No Chile demorou 30 anos.

    Mas ainda que o colapso econômico venha e que a paciência da população com Bolsonaro acabe, nada garante que essa energia política fluirá à esquerda.

    A esquerda perdeu a capacidade de induzir utopias e está marcada com a cicatriz da “velha política”, da corrupção.

    Caso Bolsonaro desidrate, o mais previsível é que outra liderança de direita se beneficie, outro personagem capaz de encenar a “nova política”, de se mostrar como um outsider da política institucional. Sérgio Moro é candidato óbvio. Inclusive, a tal pesquisa do Datafolha mostra que Moro é ainda mais popular que o próprio Bolsonaro.

    Luciano Huck também é candidato forte.

    A sensação que dá é de que a esquerda precisa de um outsider pra chamar de seu, alguém completamente desvinculado da política institucional. Nomes não faltariam: Wagner Moura, Lázaro Ramos, Dráuzio Varella. Na cena baiana surgiu recentemente Guilherme Belitani, presidente do Esporte Clube Bahia. Personagem bastante interessante, muito interessante mesmo.

    Há momentos na história em que pra mudar a realidade é necessário, antes, aceitá-la.

     

  • Fenaj reitera defesa do exercício profissional do jornalismo após declaração de Bolsonaro

    Fenaj reitera defesa do exercício profissional do jornalismo após declaração de Bolsonaro

     

     

    A presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), Maria José Braga, reafirmou na manhã desta quarta-feira, 22 de janeiro, que o mapeamento e divulgação das agressões a jornalistas por parte do presidente da República, Jair Bolsonaro, é uma ação da entidade em defesa da categoria dos jornalistas e do exercício da atividade profissional, que estão sendo sistematicamente atacados pelo governo, na pessoa do presidente.

    A declaração foi reafirmada em diversas entrevistas concedidas à imprensa após o presidente Bolsonaro declarar que não falará com jornalistas até que um “processo seja retirado”, sem especificar. O Palácio do Planalto confirmou em e-mail a jornalistas que o presidente Bolsonaro se refere ao Relatório da Violência Contra Jornalistas 2019, divulgado no último dia 16, que contextualiza 58% dos ataques como promovidos por Bolsonaro, na categoria “descredibilização da imprensa”, resultado de Monitoramento elaborado paralelamente pela FENAJ.

    Maria José Braga declarou que a Federação não possui, ainda, nenhum processo judicial contra o presidente e que a entidade avalia possíveis ações jurídicas, políticas e sindicais para que o jornalista tenha respeitado o direito ao exercício profissional. Sobre Bolsonaro se recusar a conceder entrevistas, a presidenta da FENAJ lembrou que é dever de todo funcionário público agir com transparência e, portanto, é dever do presidente informar à sociedade sobre os atos de governo.

     

  • Quando a demissão não apaga o (mal)dito

    Quando a demissão não apaga o (mal)dito

    Doutor em Análise de Discurso pela Unicamp traz um panorama sobre a demissão de Roberto Alvim após discurso nazista

    Por Fabiano Ormaneze*

     

    Desde a campanha que o elegeu, o discurso bolsonarista está cheio de signos que remetem ao nazismo e a outros regimes totalitários. A valorização exacerbada do nacionalismo e de certos padrões de comportamento e pensamento, que seriam superiores a todos os outros, além do uso do nome de Deus para se reafirmar, são provas contundentes disso. Não são “coincidências retóricas”, como se tentou defender. São regularidades que, desde a década de 1930, acompanham os discursos nazistas e ultranacionalistas, aqui e acolá. Bolsonaro, ao comunicar a demissão de Alvim, afirmou que se tratava de um pronunciamento “infeliz”. Mas o que é infeliz nessa situação? Infeliz teria sido o que foi dito ou a forma como foi dito e que circulou, dando nome e sobrenome à origem daquele dizer? Infeliz foi ter usado um texto claramente ligado a um nome próprio e, portanto, a uma biografia? E se a fala tivesse o mesmo conteúdo, mas circulasse sem menção clara ao nazismo? Seria nazista tanto quanto, mas não teria sido nomeada. Seria nazista, mas disfarçada no discurso de alguém que se pretende colocar como preocupado com a nação e o futuro.

    Outras tantas falas ligadas ao governo têm as mesmas características, do ponto de vista ideológico, mas não circulam associadas a um nome e, assim, ficam no plano das ideias, mais facilmente disfarçadas e camufladas quanto a suas filiações. Quando o biográfico passa a estar associado a uma fala, ou seja, quando a história de vida de alguém sanguinário como Goebbels fica explícita no dizer, a situação torna-se “infeliz”. Goebbels também disse que a última profissão que alguém “com um pingo de decência” deveria seguir era o jornalismo. Essa parece ecoar nos ataques que o presidente faz, regularmente, a jornalistas e à imprensa. Ele (Goebbels ou Bolsonaro?, a ambiguidade é proposital…) também impediu a publicação de materiais e controlou o cinema, além de inventar inimigos, como o “comunismo” e deturpar informações. A ideologia nazista corre fluente, fazendo apoiadores. Como diz o filósofo Michel Pêcheux (1938-1983), nenhum dizer começa no sujeito que o enuncia. “Algo” fala antes e, assim, continuará produzindo sentidos.

    A demissão não apaga nem enfraquece o maldito, tampouco o mal-dito. Na verdade, a observação dos comentários de seguidores do presidente nas redes sociais mostra exatamente o contrário. Alguns defendem até que Alvim merecia ser perdoado, que é injusto o que lhe acontecera. Outros argumentam que o presidente fez o correto: ao menor deslize, cortou quem atrapalha seus planos. Há ainda aqueles que exigem que a “assessoria” seja punida, afinal, é culpa dela, esse corpo sem forma, que parece desencarnado, sem nomes próprios que o caracterizem. A culpa é sempre do “sistema”, da “assessoria”, até do “Google”, desastrado oráculo que não indica a origem das falas, nem o que podem causar… Se a fala de Alvim foi infeliz, pelo dito ou pelo que deixou explícito, a demissão é tida como feliz, porque volta a silenciar o que é melhor que não seja visto, nem dito, tampouco escancarado, embora circule naturalmente, como o sangue que corre nas veias sem ser visível.

    retrato nazista: Fotograma do filme "O Triunfo da Vontade", de Leni Riefenstahl, 1935
    Fotograma do filme “O Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl, 1935

    As falas que não recebem uma atribuição direta ao nome de Goebbels ou a Hitler, que não são paráfrases, passam despercebidas pela maioria. Tornam-se elogiosas e repetidas, em um país que ainda precisa reconhecer que democracia não é sinônimo de nacionalismo, patriotismo ou conservadorismo. Dessa forma, o que é dito fica parecendo original, nascido na salvação que o discurso bolsonarista representa para seus seguidores.

    A dificuldade de conceber os dizeres como não originários naquele que enuncia está no fato de que, no percurso da história, os sentidos são apropriados como naturais e, por isso, constituem-se como processos ideológicos. Mas o sujeito só consegue dizer aquilo que pode formular do lugar em que está, das relações que o constituem. Alvim afirmou, em nota, que até mesmo os mais sanguinários podem ter uma ou outra frase corretas. O que ele parece não saber é que aquilo que o sujeito diz tem uma origem muito mais longínqua do que a alcançada pela consciência e que cada fala só faz sentido a partir da rede que estabelece com tantas outras, ditas ou esquecidas, retomadas ou silenciadas.

    A demissão de Alvim não apaga o (mal)dito, porque ele continua ressoando em tantas outras falas. Nesse exato momento em que escrevo este texto num café, na mesa ao lado, ouço alguém dizer: “É um absurdo achar que uma pessoa, como Goebbels, que morreu há quase 80 anos, possa estar influenciando hoje. Só mesmo a esquerda para pensar isso”. A demissão de Alvim não apaga o (mal)dito, porque ele está tão cristalizado que se perde a origem. Ela não apaga o discurso sanguinário, porque ideologia não se demite. A ideologia só pode ser, como lembra mais uma vez Pêcheux, o lugar e o meio para a dominação.

    *Jornalista. Doutor em Análise de Discurso pela Unicamp. Professor e pesquisador do Centro Universitário UniMetrocamp, Campinas-SP.

    VEJA TAMBÉM: Secretário da cultura de Bolsonaro copia Goebbels em discurso nazista

  • CULTURA: É preciso cancelar os editais anunciados pelo ex-secretário que citou Goebbels

    CULTURA: É preciso cancelar os editais anunciados pelo ex-secretário que citou Goebbels

    Cultura: Alexandre Santini, gestor cultural, escritor e diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, e Carol Proner, jurista e professora, discutem o legado de Roberto Alvim
    Cultura: Alexandre Santini, gestor cultural, escritor e diretor de teatro, e Carol Proner, jurista e professora, discutem o legado de Roberto Alvim

     

    Por Bruno Trezena, especial para os Jornalistas Livres

     

    A reação ao anúncio do Prêmio Nacional das Artes, feito pelo ex-secretário Especial de Cultura do Governo Bolsonaro Roberto Alvim movimentou toda a sociedade brasileira. Com gestos e tons teatrais e que evocavam o pesadelo nazista, o vídeo sobre editais de fomento à Cultura fez com que Roberto Alvim encerrasse sua rápida passagem pela pasta de forma medíocre e vergonhosa. 

     

    Contudo, os editais ainda estão no radar do Governo para serem implementados. E os perigos destes editais, que apontam para uma lógica em que o Estado ditará o que é Cultura no país, são o objeto da entrevista com Alexandre Santini, gestor cultural, escritor e diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, além de ex-diretor de cidadania e diversidade cultural do ministério da Cultura na gestão de Juca Ferreira (Governo Dilma), e Carol Proner, jurista, professora, escritora e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Confira:

     

     

    Bruno Trezena: Como foi a repercussão do vídeo de Alvim no setor cultural?

    Alexandre Santini: O vídeo é estarrecedor. O [agora ex] Secretário Especial de Cultura Roberto Alvim criou uma performance macabra, com tom, estética e conteúdo de inspiração nazista, que chocou não só o setor cultural mas a sociedade brasileira como um todo, que felizmente reagiu à altura da gravidade do episódio, em uma onda de repúdio generalizada que levou à demissão sumária de Alvim em poucas horas.

    Mas o aparente desfecho não elimina a gravidade do vídeo, que ficará como um registro, um testemunho histórico do que é o pensamento e a visão de mundo que inspira o bolsonarismo e sua ação no campo da cultura. Alvim é, ou foi, diretor de Teatro, e certamente pensou na dramaturgia e encenação daquele pronunciamento, ladeado por uma cruz templária e pela bandeira nacional, a trilha sonora de Wagner, a fala lenta e compassiva, a paráfrase e por fim a citação textual do discurso de Joseph Goebbels. Em sua última performance institucional, Roberto Alvim cometeu um suicídio semiótico, ateando fogo em si mesmo como seus ídolos e mártires católicos, e sai da vida (pública) pela porta dos fundos da história.

    Bruno Trezena: E os editais? O que deve acontecer com eles?

    Alexandre Santini: É preciso que sejam cancelados. O próprio anúncio de um edital voltado a uma “arte conservadora” já fere o princípio da impessoalidade administrativa, já configura uma ilegalidade. Não cabe ao governo interferir no sentido do pensamento e da criação. Em nenhum momento dos últimos 30 anos de experiência democrática no Brasil isso aconteceu. É preciso que, além da demissão, os atos de ofício do ex-secretário especial de Cultura sejam cancelados, entre eles editais e nomeações. E Alvim deveria ainda responder perante a Justiça por apologia ao nazismo.

    Bruno Trezena: Como foi sua experiência no MINC e a diferença deste Governo?

    Alexandre Santini: Há um abismo entre as duas experiências e momentos históricos. O abismo em que o Brasil cai quando elege Bolsonaro. Cai a visão antropológica de Cultura, as três dimensões —simbólica, econômica e cidadã— das políticas culturais que influenciaram as políticas públicas no Brasil e no mundo a partir das bases estabelecidas pelos ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, durante os governos Lula. Foram quase 2 décadas de grande desenvolvimento cultural no Brasil, seja na área da cidadania e da diversidade cultural, seja em áreas de forte impacto econômico como o cinema e o audiovisual. A extinção do Ministério da Cultura no governo Bolsonaro já fala por si. Em apenas um ano, a Secretaria Especial de Cultura já esteve no Ministério da Cidadania, agora está no Turismo e especula-se que pode ir para o Ministério da Família. Iremos para o terceiro Secretário Especial de Cultura em um ano. Além da falta de gestão e competência técnica dos novos dirigentes nomeados, predominam pensamentos obscurantistas e grotescos, como vimos recentemente em manifestações dos presidentes da Funarte, da Fundação Palmares (também exonerado) e da Casa de Rui Barbosa. O governo Bolsonaro é um desastre para o setor cultural brasileiro.

    Bruno Trezena: Como combater esses ataques na Cultura por parte do Governo?

    Alexandre Santini: A sociedade tem reagido fortemente a estes episódios, levando o governo a recuos e derrotas pontuais como esta. A sociedade civil organizada, as instituições, artistas, movimentos e coletivos se posicionam e têm capacidade de polarizar a opinião pública. Enquanto isso o povo segue sendo vilipendiado em seus direitos sociais, vide o caso na fila do INSS. Não são coisas isoladas, é tudo parte de um mesmo projeto.

    As políticas culturais têm resistido, especialmente em âmbito local, em cidades e estados comprometidos com os avanços do setor cultural brasileiro nas últimas décadas. Experiências como a de Niterói, que hoje investe fortemente na cultura através de editais e fomenta a participação popular e descentralização dos equipamentos culturais; experiências importantes em cidades e estados do nordeste; a prefeitura de São Paulo está fazendo uma programação com espetáculos que sofreram boicotes ou cancelamentos em espaços e programas do governo federal. Há reação e vigilância por parte do setor cultural. Mas a demissão do Secretário Especial de Cultura não encerra o problema, ao contrário.

    Quem coloca uma pessoa como Roberto Alvim neste cargo tinha noção de quem ele era e do que pensava. Seu posicionamento era conhecido antes de chegar à pasta. Ele estava lá por pensar essas coisas e não o contrário. E só saiu porque a repugnância ao seu pronunciamento foi praticamente unânime. Um presidente que homenageia um torturador como Carlos Alberto Brilhante Ustra não deve achar nada de mais nas diatribes do garoto Roberto Alvim. Só que dessa vez ele exagerou na dose, até para alguém como Bolsonaro. A sua loucura tem um método, e não reconhece limites. Quem lhe impõe limites (ainda) é a democracia e seu sistema de freios e contrapesos, as instituições, a sociedade civil organizada. Estamos de pé!

    Bruno Trezena: Os editais anunciados por Alvim apresentam inconstitucionalidades?

    Carol Proner: Não conhecemos a redação dos editais e, portanto, não dá pra saber com exatidão ainda. Fica a grande questão se o edital viola o princípio da impessoalidade ou se é um espelho do discurso feito pelo ex-secretário Roberto Alvim. De qualquer forma, é complicado imaginar que aquele que é responsável pelo edital possa fazer um anúncio com as finalidades do edital com aquele conteúdo propagado pelo vídeo. É praxe que todo Governo possa fomentar a arte e Cultura de seu país, desde que seja observado o princípio da impessoalidade. Sem sectarismo.

    Bruno Trezena: Como a sociedade e as organizações podem reagir juridicamente?

    Carol Proner: O MPF já foi acionado por advogados, a ABJD já se pronunciou, repudiando as palavras do ex-secretário, a OAB, a Confederação Israelita também repudiou, visto que o discurso plagiava palavras do ministro nazista alemão Joseph Goebbels. Houve reação de muitas entidades jurídicas. Ministros do Supremo também se manifestaram, como o presidente Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

    Todos têm que ver o edital para ver se reproduz o discurso absurdo do ex-secretário. E todos e todas que se sentiram ofendidos pelo discurso devem recorrer à Justiça também. Apologia ao ódio, contra direitos humanos, contra a humanidade (no caso, o Holocausto) devem ser combatidos. Não se pode aceitar passivamente isso tudo.

     

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    Alvim e Goebbels: Foi traçado um limite para o absurdo

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    Brazilian Secretary of Culture Quotes Goebbels in Official Statement

     

  • Alvim e Goebbels: Foi traçado um limite para o absurdo

    Alvim e Goebbels: Foi traçado um limite para o absurdo

    A rápida demissão de Roberto Alvim do cargo de Secretário Especial de Cultura não isenta o governo Bolsonaro de ser acusado de associação com idéias totalitárias. Muito provavelmente o Prêmio Nacional das Artes seguirá com suas diretrizes e deverá fomentar produções artísticas com os valores anacrônicos já amplamente defendidos por qualquer outro membro do plantel bolsonarista.

    Apesar disto, a reação imediata da sociedade brasileira em todos os âmbitos – imprensa, política institucional, redes sociais, sociedade civil – nos traz algo a comemorar: foi traçado um limite para o absurdo.

    Há pouco mais de um ano temos suportado os atos e declarações mais absurdas do presidente, do alto escalão do governo e de sua corte, de seu arremedo de família real. A implosão das instituições democráticas, das políticas públicas de serviços básicos, de direitos civis, é acompanhada por mais um doloroso componente: a corrosão da nossa sanidade.

    Cada vez que denunciamos uma dessas emissões, por ser racista, machista, LGBTQ-fóbica, por reproduzir discurso de ódio, por escancarar o desprezo aos necessitados, por revelar uma propensão genocida, cada vez que isso aconteceu e fomos tachados de loucos, petralhas, esquerdopatas, e tudo seguiu acontecendo normalmente, e nós fomos desacreditados, e fomos obrigados a engolir seco e quadrado a pizza em que tudo acabou, que a capacidade de se chocar estava se perdendo, cada vez que isso aconteceu nós sofremos um amargo golpe no nosso ânimo, na nossa esperança e a nossa concepção do que é real, do que é possível.

    A operação do autoritarismo é sempre a mesma: o ato precede a sua normatização. Primeiro se pratica o impensável e em seguida ele torna-se pensável, praticável, possível. É o inverso do que acontece no Estado de Direito, em que a gestão se submete ao pacto, à Constituição. No Brasil do último ano não foi assim. Os limites do concreto foram forçados e expandidos. Como um rolo compressor, o governo Bolsonaro foi passando por cima de tudo.

    Todo ultraje foi normalizado. Até ontem.

    O vídeo protagonizado por um Roberto Alvim engomado, foto oficial do Presidente Bolsonaro acima, uma cruz ao lado esquerdo e a bandeira do Brasil do lado direito, com seu discurso bizarro de uma nova arte e, finalmente, a citação explícita e inegável ao infame Ministro da Propaganda Nazista Joseph Goebbels, foram demais.

    Dizer que a arte brasileira será o que este governo quer, uma arte pautada em valores eurocêntricos e cristãos, “ou então não será nada”, como disse Alvim e como disse Goebbels, foi demais.

    Aí o Brasil disse, finalmente, que basta. Que isso não pode. Este governo não pode decidir que arte as pessoas vão fazer. Este governo não pode fazer tudo que quer.

    Pode ser pouco, mas já é motivo para um grande suspiro de alívio. Temos agora uma trincheira clara, fixa, onde podemos fincar o pé e daí avançar na direção de recuperar a cidadania no Brasil.