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  • Crime em Mariana: 5 anos se reproduzindo

    Crime em Mariana: 5 anos se reproduzindo

    Dia 5 de novembro de 2020, cinco anos do crime/tragédia das mineradoras Samarco/Vale/BHP Billiton e do Estado. Dói, mas é preciso recordar e denunciar.

    Por Gilvander Moreira*

    Pela impunidade reinante e pela continuidade da engrenagem criminosa, o Governo de Minas Gerais, as mineradoras e as autoridades não aprenderam nada com os crimes/tragédias da Vale e do Estado, em Mariana e em Brumadinho. Pior, jamais aprenderão, pois cegados pelo ídolo do mercado idolatrado estarão sempre ajoelhados se empanturrando das benesses do sistema de morte, enquanto se enlameiam de sangue por ações ou omissões cúmplices que fomentam a reprodução da mineração devastadora. Covardemente, teremos outros crimes/tragédias sendo preparados enquanto continuar a atual composição estrutural da Comissão de Atividades Minerárias (CMI) do Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM) com 12 conselheiros/as, sendo 10 conselheiros/as do Governo de Minas, da União e representantes das grandes empresas de mineração (de entidades a elas ligadas) e apenas 2 conselheiros representando a sociedade civil: CEFET-MG[1] e FONASC[2]. Com essa composição tremendamente injusta e desigual, o resultado das votações é sempre 10 votos a favor dos licenciamentos de novos projetos da mineração contra 1 ou 2.

    Durante as longas reuniões de apreciação e votação de novos projetos de mineração os 10 conselheiros representantes do Estado e de entidades que representam as mineradoras quase não falam, ficam olhando no celular e ao final, SEMPRE votam a favor dos projetos de mineração devastadores. Isso é injustiça que clama aos céus! É uma casa de horrores!

    A missão da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD), por lei, é “garantir a sustentabilidade”, mas decidem sempre pró-mineração e contra a sustentabilidade. Em uma reunião que autorizou a retomada de mineração na Serra da Piedade, em Caeté, ao lado de Belo Horizonte, uma representante da Secretaria de Governo (SEGOV) chegou ao absurdo de dizer que “princípio da precaução não tem poder de barrar mineração”. Indignado, eu disse que já vi várias decisões judiciais impedirem/suspenderem mineração alegando o princípio constitucional da precaução. A ex-superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em Minas Gerais, a museóloga Célia Corsino, disse em Audiência Pública na ALMG, que “jamais daria anuência do IPHAN-MG ao projeto de mineração na Serra da Piedade”. Logo depois, Célia Corsino foi exonerada da Superintendência do IPHAN, em MG, pelo Governo Federal de Jair Bolsonaro. Júlio Grillo, ex-superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), em Minas Gerais, foi exonerado pelo desgoverno federal um dia após ele votar contra a retomada da mineração na Serra da Piedade.

    Os crimes/tragédias não são apenas da mineradora Vale, mas também do Estado, porque os licenciamentos ambientais concedidos pelo Governo de Minas Gerais que, em conluio com o capital, se ajoelha diante do poderio econômico das grandes mineradoras e dribla todos os argumentos técnicos e jurídicos suficientes para não conceder licenciamento ambiental a empreendimentos extremamente devastadores socioambientalmente. O Estado concede licenças ambientais para projetos devastadores e, pior, não fiscaliza. Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Mina Capão Xavier, da Vale, em Nova Lima, MG, uma funcionária da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), do Governo de Minas Gerais, disse: “A FEAM não fiscaliza. Nós apenas lemos os relatórios produzidos por funcionários das mineradoras”. Por isso, o crime não é só da Vale, mas também do Estado que está acumpliciado ao capital desde que se iniciou há 300 anos mineração no estado de Minas Gerais.

    A impunidade do crime/tragédia acontecido a partir do distrito de Bento Rodrigues alimentou a construção de outros crimes/tragédias como o da Vale, a partir de Brumadinho. Com o passar do tempo, rastros de morte vão sendo percebidos e se avolumando. As águas da bacia do Rio Paraopeba garantiam 50% do abastecimento público de Belo Horizonte e região metropolitana. A COPASA[3] investiu 130 milhões de reais para captar água do Rio Paraopeba em uma grande obra inaugurada em dezembro de 2015, prometendo que a obra garantiria o abastecimento de BH e região metropolitana pelos próximos 25 anos. Tudo isso foi perdido. E agora, onde arrumar água para garantir o abastecimento de cinco milhões de pessoas de Belo Horizonte e região metropolitana? A nova captação de água que a Vale está fazendo no Rio Paraopeba, acima de Córrego do Feijão, na comunidade de Ponte das Almorreimas, em Brumadinho, além de estar sacrificando impiedosamente várias comunidades e aumentando a devastação ambiental, não garantirá o abastecimento de BH e RMBH por muitos anos.

     Onde há muito minério há também muita água. O Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais, é também um Quadrilátero Aquífero. Os lugares onde as mineradoras se instalam eram paraísos naturais, mas após a chegada das mineradoras iniciou-se um processo absurdo que sacrifica no altar do deus do mercado a dignidade humana e a dignidade da mãe terra, da irmã água, da flora e da fauna. Bento Rodrigues, por exemplo, era um ‘paraíso na terra’, mas após a mineração da mina de Fundão, estava sendo abastecida por caminhões pipas, antes de ser devastada pelo crime tragédia da VALE/SAMARCO/BHP que aconteceu na tarde do dia 05 de novembro de 2015 e continua impune e matando de muitas formas. Em um instante, 19 vidas de seres humanos foram ceifadas. Pior, dezenas de pessoas, em 5 anos, já morreram vítimas das consequências dramáticas daquele crime hediondo e ecocida.

    Tripudiando sobre as vítimas, o Governo de Minas já autorizou o retorno da mineração da mineradora VALE/SAMARCO/BHP em Mariana, aprovou a construção da barragem de Maravilhas 3 da Vale, o alteamento da Barragem da mineradora Anglo American, em Conceição do Mato Dentro, à revelia da Lei “Mar de Lama”, de iniciativa popular,  aprovada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais – Lei Estadual nº 23.291/2019.

    No Brasil, há mais de 24 mil barragens: de água para irrigação, de rejeitos de mineração com lama tóxica ou de água para geração de energia em hidrelétricas. As barragens de hidrelétricas são feitas de concreto com ferro e aço, mas as barragens de rejeitos minerários são apenas uma montanha de lama com calços quebradiços. Mais de 700 grandes barragens são de rejeitos minerários, sendo que 70% destas estão em Minas Gerais, mais de 460. Desde a década de 1970, volta e meia, alguma barragem de rejeitos minerários tem se rompido. Em Minas Gerais, houve vários rompimentos de minerodutos, o Minas-Rio, por exemplo, que consome diariamente água que dá para abastecer uma cidade de 230 mil pessoas e transporta o equivalente a 1.600 carretas de minério por dia. As nossas montanhas estão sendo arrancadas e vendidas pela metade do preço de banana e, pior, todas as nascentes, rios e os lençóis freáticos estão sendo sacrificados. As condições objetivas de vida estão em exaustão e colapso nos territórios sob a sanha das mineradoras.

    Recentemente houve mais uma operação do Ministério Público de MG com o apoio das Polícias Militar e Civil visando combater a atuação de uma associação criminosa estruturada para facilitar a concessão de licenças ambientais no âmbito da Superintendência Regional de Meio Ambiente (Supram) Zona da Mata mineira, vinculada à SEMAD. As investigações até então realizadas apontam para o pagamento de propinas a funcionários públicos e a falsificação de documentos e relatórios em processos administrativos de licenciamento ambiental.

    Ilustração de Janete

    Na Bíblia, o profeta Miqueias mostra que a riqueza de quem se enriqueceu se baseia na miséria de muitos e tem como alicerce a carne e o sangue do povo. Denuncia Miqueias: “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou: agora é a ruína deles” (Miqueias 7,3-4). Os opressores dos tempos bíblicos, atualmente são os diretores, executivos, acionistas da mineradora VALE e todos os seus vassalos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

    Na Bíblia, no livro do Êxodo se diz que o Deus da vida, para forçar a libertação do povo escravizado, enviou dez pragas sobre os faraós – com coração endurecido – do imperialismo do Egito que superexplorava o povo. A 1ª praga/prodígio é narrada em Êxodo 7,14-24: “transformou o Rio Nilo em sangue. Todos os peixes morreram. O rio ficou poluído e morto. Os egípcios não podiam beber mais da água do rio” (Êxodo 7,20-21). Depois da 1ª praga, as seguintes eram gradativamente piores, até o povo superescravizado conquistar a libertação, com a travessia do mar vermelho. Quantas barragens ainda precisarão romper e mais quantos crimes acontecer para que as autoridades ouçam os clamores do povo, da mãe terra, da irmã água e de todos os seres vivos?

    03/11/2020

    (*) Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

    Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Palavra Ética na TVC/BH: Crimes da Vale e Samarco. Produção de farinha/Acampamento Nova Esperança 2

    2 – Denúncia comovente/Marino/crime/SAMARCO/VALE/BHP/ESTADO/Audiência Pública da ALMG. Parte I/Vídeo 2

    3 – Massacre da Samarco/Vale/BHP: luta profética-2a Romaria das Águas/Terra-bacia do rio Doce. 3a parte

    4 – MAB na 19a Romaria das águas e da terra de MG: desastre da Samarco/Vale/BHP, pecado grave. 24/07/16

    5 – Tribunal Popular julga crime das mineradoras Samarco/Vale/BHP: crime de Mariana. BH, 01/04/2016

    6 – Vale e Estado de MG são cúmplices: Crime continua em Ponte das Almorreimas, Brumadinho, MG/06/3/2020

    7 – Vale mente e comete crimes também em Catas Altas, MG. Por território Livre de Mineração! Vídeo 1

    8 – “Meu irmão está debaixo da lama tóxica do crime da Rio Verde, hoje Vale, há 19 anos”. Bruma/Vídeo 5

    9 – “Vale comete crime e nós é que pagamos?” Ponte das Almorreimas, Brumadinho, MG. Vídeo 2 – 26/12/2019

    10 – Cresce o crime da VALE e do Estado; cresce a luta. Atingidos no TJMG, em BH. Vídeo 3 – 21/11/2019

    Obs. 2: no YOUTUBE – no canal: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos – existem centenas de videorreportagens denunciando os crimes tragédias das mineradoras Vale, Samarco, BHP, Angloamerican, SAM etc. 


    [1] Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

    [2]  Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas.

    [3] Companhia de Saneamento de Minas Gerais.

  • O Grande Inquisidor em várias vestes e as muitas faces do silêncio

    O Grande Inquisidor em várias vestes e as muitas faces do silêncio

    A peça teatral “O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, com apresentação de Celso Frateschi, é um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski: “Os Irmãos Karamazov”.

    Por Gilvander Moreira[1]


    O filósofo Platão nos alerta que estamos em uma caverna, onde se vê sombra e se pensa que é a realidade, mas é difícil ver a luz do sol, que, como a verdade, pode doer, mas liberta. O Grande Inquisidor não esteve presente apenas nos anos de chumbo da mais cruel Inquisição, mas esteve sempre presenta ao longo da história e atualmente, muitas vezes mascarados. Muitos Grandes Inquisidores usam a fogueira da caverna alegando que é a luz do sol, a verdade. José Saramago, em Ensaio sobre a Cegueira, analisa a sociedade atual que mais fura os olhos das pessoas do que faz ver. No Evangelho de Marcos, na Bíblia, os maiores “cegos” e ignorantes são os apóstolos e os discípulos de Jesus. Para o evangelista Marcos, as pessoas violentadas nos seus direitos compreendem melhor o ensinamento e o projeto testemunhado por Jesus de Nazaré.

    Em uma sociedade capitalista estruturalmente desigual, só fazer solidariedade não emancipa e nem liberta, mas reproduz a superexploração. Solidariedade S.A de grandes empresas é propaganda e verniz e não é compromisso com a superação das causas das injustiças e violências. Dá-se algo momentaneamente no varejo e furta-se no atacado constantemente. Para a gente se libertar dos inquisidores não basta libertações individuais, é preciso conquistarmos condições materiais objetivas que viabilizem a liberdade. Por exemplo, em uma pequena cidade do sertão da Paraíba, em julho de 1988, enquanto fazia missão e visitava o povo de casa em casa, ao ficar sabendo que Mônica estava casada há apenas seis meses, brinquei: “Se pudesse voltar atrás, você casaria de novo?” Ela engasgou e não me respondeu. O marido se atreveu e me respondeu: “Casaria, sim”. Vi na hora que tinha feito uma pergunta incômoda e em momento inoportuno. No outro dia, Mônica foi à casa paroquial e, chorando, me disse: “Frei, vim para lhe dizer que eu não casaria de novo”. Comovido com as lágrimas dela, perguntei: “Por quê?” Mônica me disse: “Ele me bate todos os dias, bate minha cabeça contra a parede, mas não posso me separar dele, porque se eu me separar, terei que voltar a passar fome na zona rural aqui do sertão paraibano, serei tratada como adúltera e ainda serei excluída da participação na comunidade religiosa. Logo, muito ruim com ele, mas pior sem ele”. Essa violência inominável acontecia, porque havia condições materiais objetivas que viabilizavam esse machismo e esse patriarcalismo execrável, pois os jovens migravam quase todos para Recife ou São Paulo em busca de emprego. Ficavam apenas alguns jovens na cidade, que podiam se dar ao luxo de namorar com quantas e quais moças quisessem e tripudiar em cima delas. Havia condições objetivas que viabilizavam a reprodução do machismo e do patriarcalismo.

    O poder opressor do Grande Inquisidor não está só nos chefes de instituições religiosas, mas está incrustado nos podres poderes da política, da economia, no mundo jurídico e em outras instituições da sociedade capitalista. Não apenas o cardeal/instituições religiosas foi e continua sendo Grande Inquisidor, mas também os patrões, os políticos profissionais – coisa nojenta e execrável -, os juízes que garantem juridicamente a reprodução das relações sociais de superexploração, entre outros. Muitos encarnam o cardeal Grande Inquisidor de Dostoiévski. Como Ulisses amarrado ao mastro do navio, no Canto 12 da Odisseia de Homero, os executivos e chefes das grandes (trans)nacionais cumprem o papel de Grande Inquisidor o tempo todo, muitas vezes com a fachada de bondade, de filantropia e de solidariedade. O Grande Inquisidor é apresentado como um herói, um messias, um salvador da pátria, como alguém com missão boa e necessária, mas é cruel inquisidor.

    A ideia de pecado, dependendo de como é compreendida, pode ser arma de dominação das consciências e de fortalecimento de um poder religioso inquisidor. Eloquente e interpelante é o silêncio revolucionário de Jesus sob a inquisição de O Grande Inquisidor. O silêncio de Jesus grita, brada, irrita O Grande Inquisidor, mas Jesus não foi um pacifista ingênuo como um Gandhi adocicado da não violência. Jesus também encarou seus inquisidores. Segundo o quarto evangelho da Bíblia, Jesus diante do sumo sacerdote Anás, O Grande Inquisidor do poder religioso, assim se manifestou: “Eu falei às claras para o mundo. Eu sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde todos os judeus se reúnem. Não falei nada escondido. Por que você me interroga? Pergunte aos que ouviram o que eu lhes falei. Eles sabem o que eu disse. […]. Se falei mal, mostre o que falei de mal. Mas se falei bem, por que você bate em mim?” (João 18,20-23).

    Ao longo da história e atualmente em nossa sociedade capitalista, extremamente desigual, há vários tipos de silêncios: a) parte do povo é silenciado de mil formas. Em muitas periferias se diz: “Aqui ninguém vê nada, não ouve nada e nem fala nada. Se ver, ouvir e falar, morre no mesmo dia”. É o terror do Grande Inquisidor do tráfico protegido pela classe dominante e política que acumula capital com o genocídio de mais de 30 mil jovens por ano; b) grande parte da classe trabalhadora é obrigada a se silenciar, porque se falar o que sente e reivindicar seus direitos é sumariamente demitida e jogada no olho da rua. Nas capitais, os metrôs e os ônibus coletivos superlotados se transformaram em lugares para se desabafar as repreensões sofridas durante os dias de trabalho exaustivo sob pressão de metas, com trabalho degradante e chefes que pressionam o tempo todo; c) há também o silêncio dos omissos que para tentar salvar a própria pele se tornam cúmplices e coniventes de tantos Grandes Inquisidores; d) Há o silêncio imposto pelos fundamentalistas religiosos e moralistas que ao defender abstratamente Deus, família e bons costumes, colocam na fogueira quem se rebela diante das mediocridades, puritanismo, cretinice e hipocrisia. Tantos são os silenciados! E o pior, o silêncio, a surdez e a cegueira diante das atrocidades do Inquisidor Mor no Brasil, instalado no Palácio do Planalto, estão nos levando à destruição irreversível. Calar, jamais! A postura de Jesus de Nazaré, segundo o Evangelho de João, foi de encarar os Grandes Inquisidores e não abaixar a cabeça diante das torturas.

    No Brasil atual, Bolsonaro encarna o Grande Inquisidor Mor, e como dragão do Apocalipse, cavaleiro da morte e exterminador do futuro, tem transformado o Brasil em uma grande fogueira, onde ardem em chamas os biomas da Amazônia, do Pantanal, do Cerrado etc. Negacionista que odeia a vida e a verdade, adepto de torturador, parceiro de milicianos, ignorante, medíocre, autoritário etc. O Grande Inquisidor fala de três forças – milagre, mistério e autoridade. No Brasil há uma trilogia inquisitorial também que perpassa os 520 anos de Estado violentador: escravidão, ditadura e tortura. Sob o chicote do Inquisidor Mor, escoltado por milhares de militares e com uma legião de coronéis e generais do desgoverno federal, seguem sendo supliciados os povos indígenas, os quilombolas, todos os povos tradicionais e os biomas. É primavera em chamas no Pantanal e em todo o Brasil! Nas ruas das grandes cidades brasileiras, os irmãos e irmãs em situação de rua já são quase 300 mil e são forçados a dormir com um olho aberto, pois os Grandes Inquisidores podem lhes jogar gasolina e fogo ou envenenar sua comida com chumbinho de forma sorrateira. Grandes Inquisidores com a roupa de latifundiários, de grileiros, de madeireiros, de garimpeiros ou de agentes do agronegócio seguem invadindo os territórios indígenas e dos povos tradicionais, tirando-lhes o sono e impondo terror com jagunços, milicianos e com a cumplicidade do aparelho repressor do Estado. Enfim, no Brasil, O Grande Inquisidor tem muitas faces e vestes.

    23/10/2020.

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica (SAB), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Normal absurdo. Quem define o que é normal? Normal que é arma de morte, que reproduz desigualdade?

    2 – Greg News: Eleições Municipais. O que está em jogo nas eleições de 2020? Poder do prefeito. 09/10/20

    3 – Grande Live em defesa do Rio São Francisco: contra barragem de Formoso e usina nuclear – 05/10/2020

    4 – Contra todas as cercas: Homenagem a Pedro Casaldáliga. Por CPT, MST, MAM, CIMI, MAB etc. – 08/9/2020

    5 – Pantanal Vivo! Artistas em defesa do Pantanal. Música: João Ba. Chamado em defesa da vida -29/9/2020

    6 – Pantanal pede socorro(Solos) – Canção do Presente (Anderson Zottis – Crítica 21) – 19/9/2020

    7 – Fome no Brasil volta a subir e atinge mais de 10 milhões de brasileiros, diz IBGE – JN -18/9/2020

    8 – Toneladas de mercúrio entram clandestinamente no país para abastecer garimpo de ouro – 30/8/2020

  • O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, nos interpela

    O Grande Inquisidor, de Dostoiévski, nos interpela

    A convite do ator Celso Frateschi assisti e comentei a peça teatral “O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, que é de leitura indispensável. O Grande Inquisidor é um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski: “Os Irmãos Karamazov”, publicado como uma série no Mensageiro Russo, de janeiro de 1879 a novembro de 1880.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Assistir à belíssima apresentação de O Grande Inquisidor com Celso Frateschi foi para mim um momento inesquecível e fez passar um filme na minha cabeça. Recordou-me as muitas vezes em que, como a maioria do povo brasileiro, eu também senti na pele estar sob certo tipo de inquisição por algum Grande Inquisidor. A peça O Grande inquisidor me fez recordar quando eu trabalhava em latifúndios como família agregada. Ao ver nossa produção, fruto da mãe terra e do nosso trabalho, sendo levada no caminhão do fazendeiro, dois gritos irrompiam no meu coração: “Isso não é justo!”,  “Isso não é justo!” e “Deus não quer isso!”, “Deus não quer isso!”  Esses gritos retinam nos meus ouvidos para sempre. Marcado por essa experiência de ser explorado pelo latifúndio e por latifundiários, tenho dedicado minha vida a lutar por justiça no seu sentido mais profundo: justiça agrária, justiça urbana, justiça ambiental e respeito aos direitos humanos fundamentais. A violência perpetrada pelo Grande Inquisidor, seja ele cardeal, latifundiário ou outro carrasco gera indignação nas pessoas violentadas.

    Andar na contramão do Grande Inquisidor exige muito amor, paixão pela causa dos violentados e coragem. Segundo Dostoiévski, em O Grande Inquisidor, em Sevilla do século XVI, na Espanha, em tempos de chumbo e auge da mais terrível inquisição, Jesus Cristo reaparece esbanjando ternura, amor, afabilidade, com uma luz irradiante de amor que humanizava o ambiente. Porém, Jesus é submetido a um cruel processo inquisitorial por um cardeal. Eis uma metáfora da nossa realidade de mundo sob cruel superexploração, em 2020, e especialmente do Brasil, país imerso novamente em violência generalizada, tortura, com relações sociais escravocratas e ditadura, de mil formas. Muitas afirmações e perguntas de O Grande Inquisidor são emblemáticas e nos interpelam, tais como: “Por que vieste para nos estorvar?”, “Como pode um rebelde ser feliz?”, “Que liberdade é essa se a obediência é comprada com pão?”, “Os homens anseiam por comunidades de culto”, “Tu vieste só para os eleitos?”, “Quem retém o pão em suas mãos?”, “Mesmo que haja outra vida, não será para escravos obedientes”, “Não digas nada”, “Cala-te!”, “Te julgarei e te condenarei como o maior dos hereges”, “Não existe nada mais insuportável para a humanidade que a liberdade”, “Nada é mais irresistível que a atração do pão”, “Existem três poderes, três forças na terra: o milagre, o mistério e a autoridade”, “O homem busca muito mais o milagre do que Deus”, “Tu mereces ser queimado na fogueira da inquisição”, “Os grãos de areia são fracos, mas se amam”, “Amanhã eu te queimarei”, “Vá e não voltes nunca mais!”, e tantas outras afirmações e perguntas que cortam como navalha.

    O ator Celso Frateschi

    Realmente, há no meio do povo ânsia imensa por “comunidades religiosas de culto”. O fundamentalismo religioso do neopentecostalismo está sendo trombeteado aos quatro ventos por igrejas eletrônicas que reduzem Deus a um quebra-galho, autoajuda e fomentando uma falsa teologia, que é a chamada Teologia da Prosperidade, afundando as pessoas em água benta, em desencarnação da fé cristã e em amputação da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Orar faz bem, mas não qualquer tipo de oração, pois há determinados tipos de oração que transferem para Deus responsabilidades que são nossas.

    Faz necessário recordar que o bom pastor do capítulo dez do Evangelho de João, na Bíblia, convida as ovelhas para saírem do curral e as conduz para verdes pastagens, para campo aberto – espaço de liberdade, não abstrata, mas com condições objetivas que viabilizem o ser livre efetivamente. Lamentavelmente, no neopentecostalismo brasileiro, os falsos líderes religiosos, sejam padres ou pastores, incitam o povo a ficar entocado nos espaços religiosos, tiram as pessoas dos espaços públicos e, assim, aprisionam as pessoas domesticando-as com moralismos que são Grande Inquisidor, chegando a aberrações tais como furtar do povo doações para construir templos luxuosos e até sino de 17 milhões de reais. Absurdo! Idolatria! Não esqueçamos: o neopentecostalismo foi exportado dos Estados Unidos para o Brasil e América Latina, como analisa o mineiro Délcio Monteiro de Lima, no livro Os demônios descem do norte, e fomentado pelos papas João Paulo II e Bento XVI.

    Há vários sentidos para Religião: no sentido original, Religião vem de re-ligar, re-ler, re-eleger e, assim, pode nos religar com o mistério de amor infinito e profundo que nos envolve com o próximo, com todos os seres vivos e com o nosso Eu mais profundo. Entretanto, com o andar histórico, as Religiões se tornaram Instituições com dogmas, doutrina, funcionários e tendem a se autorreproduzirem em estruturas de poder opressor.

    Parece-me que Dostoiévski critica de forma contundente não o ensinamento e a práxis de Jesus de Nazaré, vista da perspectiva da Teologia da Libertação, mas critica a versão do ensinamento e da práxis de Jesus, segundo a teologia dogmática clássica, que sob muitos aspectos deturpa o que o Galileu revolucionário ensinou e testemunhou. Dostoiévski denuncia de forma implacável a Igreja Instituição e a diabólica inquisição que excomungou Jesus de Nazaré revolucionário, porque ele estorvava e estorva os podres e violentos poderes. Para se deleitar em podres poderes e comodismo, muitos não mudam de vida como propõe Jesus, mas mudam Jesus adocicando-o ou enquadrando-o a escusos interesses. Se Jesus voltasse agora, ele não teria lugar na estrutura do próprio Cristianismo, como tanta gente marginalizada e violentada na sua dignidade. Por exemplo, as três palavras com as quais, segundo O Grande Inquisidor, se domina todos: “milagre, mistério e autoridade”. Para a Teologia da Libertação, milagre não é mágica, não é algo feito por Jesus que seja impossível de ser feito por outra pessoa humana. Milagre não estupra a natureza. “A graça supõe a natureza”, já dizia o filósofo e teólogo Tomás de Aquino. Jesus não tinha um superpoder sobrenatural inacessível aos outros humanos. Jesus não nasceu Cristo, mas se tornou Cristo, porque se humanizou de forma esplêndida. Milagre é um processo de solidariedade gratuita que questiona dogmas, leis e regras que geram marginalização e, por isso, liberta as pessoas, mas sempre nas entranhas das relações humanas e sociais. Um aparente bom pastor, mas na realidade inquisidor, opressor, dominador, muitas vezes invoca o mistério para impor um “cale-se!”, porém diante do mistério, conforme dizia o filósofo Wittgenstein, “devemos nos calar somente após dizermos a última palavra”. Assim como Jesus revolucionário estorva os Grandes Inquisidores da história, sigamos estorvando os inquisidores da atualidade. (Obs.: Na próxima semana publicaremos a 2ª parte deste texto).

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Fernando Francisco de Gois, outro Cristo e Servo de Deus no meio dos excluídos, outro bom samaritano, em entrevista a frei Gilvander – 09/9/2020.

    2 – Mov. Negro, Quilombolas e Pescadores do Baixo São Francisco se REBELAM contra mais barragem. Vídeo 6 – 22/9/2020

    3 – “O anjo das ruas”, Padre Júlio Lancellotti com André Trigueiro – 22/9/2020

    4 – Padre Júlio Lancellotti, uma vida dedicada a amar e defender os irmãos em situação de rua – 19/9/20

    5 – “Saga do Velho Chico”, de Quitéria Gomes. NÃO à barragem de Formoso, Pirapora/MG –Vídeo 5 – 07/9/20

    6 – “Basta de barragens!”, grita o Povo do Baixo São Francisco. UHE de Formoso, NÃO! Vídeo 4 – 07/9/2020

    7 – Muitos Gritos do Brasil contra a construção da Barragem de Formoso, em Pirapora/MG -Vídeo 3 -07/9/20

    8 – “Não aceitamos barragem de Formoso em Pirapora/MG”, gritam no Baixo São Francisco -Vídeo 2 – 07/9/20

    9 – Povo do Baixo São Francisco NÃO ACEITA mais barragem: Não à de Formoso, Pirapora/MG-Vídeo 1 -07/9/20

  • DEUTERONÔMIO: NÃO à idolatria, ao trabalho escravo e à agiotagem

    DEUTERONÔMIO: NÃO à idolatria, ao trabalho escravo e à agiotagem

    Religião alienada das questões sociais escraviza o povo, hoje e no passado. Quando tendências religiosas intimistas, espiritualistas, amputadoras da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo e desencarnadoras da fé cristã são alardeadas por líderes religiosos, sem pastores, padres ou leigos/as, levam as pessoas a cruzar os braços e apenas orar pedindo que Deus resolva de forma mágica as injustiças sociais, o que só piora a situação de injustiças reinantes.

    Gilvander Moreira[1]


    Assim, sem perceber, as pessoas alienadas religiosamente se tornam cúmplices dos processos de opressão do povo. Ao contrário, quando tendências religiosas que animam o povo a buscar na luta coletiva e comunitária a superação dos dramas e das injustiças que se abatem sobre o povo injustiçado, as lutas populares libertárias são potencializadas, pois o povo descobre que só na luta coletiva pode conquistar seus direitos. Valorizando a dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo e a opção de Javé pelos oprimidos, a fé cristã mobiliza para lutas libertárias. Do contrário, de fato, certos tipos de expressões religiosas se transformam em ópio do povo.

    O livro de Deuteronômio não tolera idolatria, uso indevido do nome de Deus. “Não pronuncie em vão o nome de Javé seu Deus” (Dt 5,11), exortam de modo enfático os levitas, animadores das comunidades, que não podiam ter terra para não adquirir poder. O problema não está simplesmente em pronunciar o nome de Deus em vão, mas em usar para fins escusos o nome de Deus, pois, invocar o nome de Deus induz as pessoas a acreditar que quem o invoca é de fato um enviado de Deus. Sabemos que em um país com povo eminentemente religioso, nas eleições, quem se pronuncia como ateu perde voto e quem se apresenta como religioso ganha um grande volume de votos. Portanto, no Brasil, se apresentar como pessoa religiosa tornou-se uma estratégia eleitoral. Trata-se de um tipo de assédio religioso para fisgar as pessoas e induzi-las a acreditar que, pelo simples fato de alguém usar linguagem religiosa e ter aparência piedosa, já é digno de confiança. Ledo engano. A realidade demonstra que isso não é verdade.

    Os estragos aos direitos trabalhistas, previdenciários e ambientais foram aprovados no Congresso Nacional com os votos da Bancada da Bíblia – mais de cem pastores que se tornaram deputados federais – atuando junto com as Bancadas do Boi (Bancada dos latifundiários e do agronegócio) e da Bala (os que absolutizam o direito à propriedade só para eles mesmos e mentem afirmando que é com repressão que se resolverão problemas sociais). Portanto, cuidado com os que falam muito o nome de Deus, mas não cultivam atitudes coerentes com o Deus Libertador. As primeiras Comunidades cristãs, segundo o Evangelho de Mateus, já alertavam sobre as falsas promessas e para a necessidade de prática libertadora: “Cuidado com os falsos profetas: eles vêm a vocês vestidos em peles de ovelha, mas por dentro são lobos ferozes” (Mateus 7,15). “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor”, entrará no reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que está no céu” (Mateus 7,21).

    Trabalhar, sim, mas repousar no sábado. E honrar a memória dos ancestrais. O livro de Deuteronômio repudia trabalhar como escravo. “Não faça trabalho algum no sábado…” (Dt 5,12-13). Muito eloquente o modo como o livro de Deuteronômio enfatiza e alerta a todos/as, com detalhes, para não trabalhar todos os dias e nem de forma extenuante. Ninguém da família deve trabalhar no sábado, nem pessoas escravizadas e nem algum animal. Para que deixar de trabalhar todos os dias? – indagam os exploradores do trabalho alheio. “Que todos repousem no sábado, como você” é a resposta do deuteronomista em Dt 5,14.  Um princípio básico da Constituição do povo de Deus é garantir o direito ao repouso e ao ócio, o que é algo tremendamente anticapitalista, pois quanto mais se desenvolve o sistema capitalista mais se superexplora o trabalho por metas de produção e pela intensificação de exigências, impondo trabalho extenuante. A experiência histórica da escravidão no Egito, sob o Império dos Faraós, e das opressões ao longo da história da humanidade jamais pode ser esquecida. Jamais a história lida sob a perspectiva dos violentados pode ser encoberta ou apagada. Os novos opressores sempre insistem em apagar a história alegando mentirosamente que “não houve escravidão”, “não houve ditadura”, “não houve tortura”, porque tramam reinventar novas escravidões e novas ditaduras sangrentas.

    O livro do Deuteronômio prescreve também: honrarmos os nossos ancestrais. “Honre seu pai e sua mãe…” (Dt 5,16) não se refere apenas ao nosso pai e à nossa mãe, mas refere-se a todos/as nossos/as ancestrais e antepassados/as. Honrar “pai e mãe” implica honrar todos os profetas e as profetisas da Bíblia, todos/as os/as mártires de todos os tempos, todas as pessoas que contribuíram para que fôssemos quem somos e tivéssemos acesso ao que temos. Tudo o que existe: direitos individuais e sociais, bem como grandes descobertas e cultura em geral, é obra dos/as nossos/as antepassados/as.

    Verdadeira Constituição dos Povos de Deus da Bíblia, o Decálogo, que está em Êxodo 20,1-17 e em Deuteronômio 5,6-22, é formado de princípios que visam assegurar a construção de uma sociedade que não mate, não roube, não adultere, não calunie e nem desrespeite os direitos das mulheres e nem invada terras que são, por origem, do povo, pois “a terra pertence a Deus”. Ozorino Pires, camponês de 75 anos, atualmente assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa, MG, gosta de dizer, evocando sua motivação de fé em Deus para estar na luta pela terra: “A Escritura diz que a terra foi criada por Deus sem cerca e sem porteira para todo mundo viver dela. Pelo que eu sei, Deus quando fez a terra não passou escritura para ninguém não. Somos filhos da terra e filhos de Deus”.

    No meio do livro do Deuteronômio, em Dt 15,1-23, temos o núcleo das relações sociais defendidas pelos Deuteronomistas: “Não deve haver pobre entre vocês, porque Javé vai abençoar você na terra que Javé seu Deus dará a você, para que a possua como herança” (Dt 15,4). Ou seja: Deuteronômio defende a construção de uma sociedade sem explorados e sem exploradores, com todos tendo acesso à terra “como herança”, uma sociedade justa economicamente e com sustentabilidade ecológica. Aqui os autores do Deuteronômio defendem três aspectos imprescindíveis das relações sociais: a) Não pode haver na sociedade relações sociais que empobreçam as pessoas; b) Todos terão acesso à posse da terra. Não se permite concentração da terra em poucas mãos; c) Ninguém será proprietário de terra. Somente o usufruto da terra, “como herança” dada por Deus, é defendido pelo Deuteronômio.

    Ao defender relações sociais que não gerem desigualdade social, o livro de Deuteronômio está em sintonia com o livro de Levítico, que prescreve a realização do Ano do Jubileu, de 50 em 50 anos (Lv 25,8-17): revolução geral da sociedade, com a terra sendo devolvida aos seus antigos possuidores e herdeiros (Lv 25, 10.13) ao defender que a “terra pertence a Deus” (Lv 25,23) e com I Reis que prescreve que a “terra é herança de Deus” (1 Rs 21,3), não sendo passível de ser comprada e nem vendida. Ninguém deve se considerar proprietário de terra, mas apenas posseiro, com direito ao usufruto.

    Ao prescrever relações sociais que não causem empobrecimento de ninguém, acesso à terra para todos/as e proibição de se transformar a terra em mercadoria, privatizando-a, o livro de Deuteronômio está sugerindo que de fato a causa matriz da desigualdade social é a apropriação da terra em processos de grilagem ou em propriedade privada capitalista. A grilagem e a latifundiarização dos territórios se tornam a âncora que sustenta todas as engrenagens de exploração que se desenvolvem em uma sociedade capitalista.

    As Comunidades que estão por trás do Deuteronômio, por experiência própria e pelas lições da história, sabem que não bastam leis justas, mas que é preciso cultivar relações de solidariedade libertadora permanentemente. Isso é defendido em Dt 15,7-11. Estejamos sempre atentos e dispostos a acolher quem por um motivo ou outro se tornou vulnerável. Porém, a solidariedade não pode ser assistencialista e nem gerar dependência. Precisa ser solidariedade aliada à luta pela justiça no seu sentido mais profundo. No caso de políticas públicas, não apenas políticas compensatórias ou de quotas, mas também políticas re-estruturadoras das bases da sociedade.

    De sete em sete anos se deve fazer um Ano Sabático, durante o qual as dívidas deverão ser perdoadas. “Todo credor que tenha emprestado alguma coisa a seu próximo, perdoará o que tiver emprestado. Não explorará seu próximo, nem seu irmão, porque terá sido proclamado um perdão geral em honra de Javé” (Dt 15,2). Esta utopia está sendo buscada pela comunidade dos povos que fizeram Aliança com Javé, Deus solidário e libertador. Isso implica que a sociedade que Deus quer não pode ter espaço para agiotagem, nem de banqueiros, nem de empresas e nem de pessoas que preferem viver sem trabalhar e só emprestando dinheiro.

    Enfim, por tudo exposto acima, percebemos que o livro de Deuteronômio pugna pela vivência da Aliança de Javé, Deus solidário e libertador, com seu povo escravizado, mas adverte: Se aparecerem empobrecidos na sociedade, é o SINAL: a ALIANÇA com JAVÉ está sendo rompida…

    Belo Horizonte, MG, 22/9/2020

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander – 15/01/2020

    2 – Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral – 18/6/2020

    3 – Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia – CEBI/MG – Parte I

    4 – Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa – Parte II

    5 – Livro do Deuteronômio – chaves de leitura – Mês da Bíblia de 2020 – por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

    5 – Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 – 02/2/2020

    6 – Livro do Deuteronômio – Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues – Entrevista completa

    7 – Live – CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020

    8 – Live – Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia

    9 – Deuteronômio 1 parte (Por Sandro Galazzi)

    10 – Deuteronômio 2 a redação profética (Por Sandro Galazzi)

    11 – Deuteronômio 3 a redação de Josias (Por Sandro Galazzi)

    12 – Deuteronômio 4 a história deuteronomista (Por Sandro Galazzi)

  • DEUTERONÔMIO: “Constituição de 1988” para o povo?

    DEUTERONÔMIO: “Constituição de 1988” para o povo?

    No Brasil, a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 pode ser vista como uma espécie de Livro do Deuteronômio na vida do povo brasileiro. Após muita luta social, resgatando a memória das lutas de resistência popular, o povo organizado, na luta, conquistou a inserção de vários princípios e regras na Carta Magna para garantir respeito à dignidade de todas as pessoas, tais como: ‘função social da propriedade’, ‘desapropriação de latifúndios que não cumprem sua função social’; forte ênfase nos direitos sociais, entre os quais estão: ‘o direito à educação, à saúde, à terra, à moradia, ao meio ambiente saudável e equilibrado’; princípios libertadores, ou seja: ‘respeito à dignidade da pessoa humana’, ‘direitos humanos’, ‘liberdade de expressão’, ‘espírito republicano’, ‘direito de manifestação’, ‘liberdade religiosa’; prescrição para se demarcar as terras dos Povos e Comunidades Tradicionais, tais como: ‘indígenas,’ ‘quilombolas’ etc.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Tudo isso está assegurado na Constituição Federal, mas a classe dominante, cotidianamente, mais do que impedir a efetivação desses direitos sociais, os destroem. A história demonstra que só com luta social permanente se conquistam direitos e se impedem retrocessos de direitos conquistados com suor e sangue pela classe trabalhadora. Se o povo se acomoda, vai sendo violentado aos poucos, até ser sacrificado.

    O livro do Deuteronômio contém narrativas de um povo comprometido pela ALIANÇA (BeRiT, em hebraico,) com Yahweh, Deus solidário e libertador, que “libertou do Egito o povo escravizado”. O fio condutor do Deuteronômio é um povo que busca, eticamente, colocar em prática o projeto de Aliança firmado entre eles, POVO escravizado por mais de 500 anos sob o imperialismo dos faraós no Egito, e o Deus YAHWEH, acima de tudo, libertador. Para isso, marcham no deserto por cerca de “40 anos”, a fim de conquistar uma “terra onde corre leite e mel” (Dt 26,9), e, no final, ao sopé do Monte Sinai, celebram a projetada Aliança.

    Por isso, o livro de Deuteronômio rechaça, com veemência, as práticas que se ancoram em imagens distorcidas de Deus: idolatria. Os redatores e as redatoras do livro de Deuteronômio são tão radicais contra a idolatria e percebem tão bem que os falsos profetas e os falsos pastores são propagandistas da idolatria, que alertam: “Não dê ouvidos a profeta que apresenta sinal ou prodígio. Mesmo que apresente prova, não dê ouvidos!” (Dt 13,2-4). Mais! Falso profeta não pode ser respeitado e nem tolerado: “O falso profeta deverá ser morto.” (Dt 13,6). É claro que não podemos entender esse versículo como uma autorização para pena de morte para os falsos profetas e falsos pastores, mas como um alerta para os estragos humanos e sociais que os mesmos causam no tecido social. O correto e ético é ‘puxar o tapete’ que sustenta esses falsos profetas e pastores, retirando deles todas as armas de morte que usam, com sutilezas, para enganar o povo, ao invés de cuidar desse povo injustiçado.

    O texto de Dt 15,12-18, que apresenta um ensino sobre a libertação dos escravos hebreus, retoma e desenvolve a lei que está em Ex 21,2-6; fazendo isso, porém, em linguagem que liberta e evangeliza, e não em linguagem legislativa.

    Quando um de seus irmãos, hebreu ou hebreia, for vendido a você como escravo, ele servirá a você durante seis anos. No sétimo ano, você o deixará ir, em liberdade. Contudo, quando você deixar que ele vá em liberdade, não o despeça de mãos vazias: carregue os ombros dele com o produto do rebanho de você, da sua colheita e de cereais e de uva. Dê-lhe de acordo com a bênção que Javé seu Deus tiver concedido a você. Lembre-se que você foi escravo no Egito, e que Javé, seu Deus, resgatou você” (Dt 15,12-15).

    O texto evoca um contexto do povo da Bíblia sobrevivendo em tempos de escravidão, sob relações sociais escravocratas, nas quais quem detinha poder econômico e político comprava pessoas como se fossem mercadoria e as escravizava. Vários povos dos tempos bíblicos foram escravizados durante uns 500 anos pelo imperialismo dos faraós no Egito, mas se libertaram por volta de 1200 antes da Era Comum. Após alguns séculos, foram escravizados novamente pelo Império Assírio, depois pelo Império Babilônico e, posteriormente, pelo Império Persa, Grego, Romano e, na sucessão da história, pelos impérios: português, espanhol, inglês, estadunidense, império das transnacionais etc., como assistimos hoje.

    Pela narrativa de Dt 15,12-15, os escravos são reconhecidos pelo autor de Deuteronômio como ‘irmãos’ e, surpreendentemente, inclui a perspectiva de gênero (‘hebreu’ ou ‘hebreia’). É inspirador ver no Deuteronômio o reconhecimento da igualdade de dignidade entre homem e mulher. Mesmo que o contexto seja de escravidão, o texto ensina que a escravidão não será “ad aeternum”: será apenas por ‘seis anos’. Ninguém nasce destinado a sobreviver, pela vida inteira, como escravo. Nascemos para a liberdade, mas não para uma liberdade abstrata. Liberdade, sim, mas com condições materiais objetivas capaz de efetivá-la.     

    A orientação para descansar no 7º ano, Ano Sabático, é oriunda da mística segundo a qual o Deus criador, após criar todas as criaturas nas ondas da evolução, descansou no 7º dia. Por isso, intui-se que Deus quer que descansemos no 7º dia. Daí decorre a orientação para deixar a mãe terra descansar no 7º ano, em uma perspectiva de agricultura ecológica. E após 49 anos (7 anos x 7 anos), no Ano do Jubileu, deve se fazer uma reorganização geral da sociedade: as terras compradas ou invadidas deverão ser devolvidas aos seus ancestrais, todas as dívidas devem ser perdoadas, as pessoas escravizadas devem ser libertadas e a sociedade deve ser revolucionada, para que todos e todas tenham condições materiais e objetivas de ‘ter vida e liberdade em abundância’.

    Cultivando essa mística, o livro de Deuteronômio alerta: “Não escravize ninguém para além de seis anos” (Dt 15,12a.18). “Liberte quem você escravizou, no sétimo ano.” (Dt 15,12b.18). Isso é anunciado de forma enfática, pois se diz em Dt 15,12 e se repete em Dt 15,18 na conclusão da unidade textual. No entanto, muito eloquente é o fato de que o livro de Deuteronômio não prescreve apenas libertação formal, que concede liberdade abstrata, mas que muitas vezes, até aumenta as amarras escravizadoras, como aconteceu no Brasil. Em 1850, 38 anos antes da Abolição formal da escravidão de milhões de negros escravizados, escravizou-se a terra, com a Lei 601, Lei de Terras, ao legislar, afirmando que a única possibilidade de acesso à terra seria por meio de compra. Criou-se, assim, o cativeiro da terra antes de acabar com o cativeiro dos negros escravizados. Procedendo assim, juridicamente se pavimentou a estrada para se criar outro tipo de escravidão sob a égide de liberdade abstrata e formal.

    Com a abolição formal da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888, os negros escravizados saíram de mãos vazias, sem jamais ter condições de ter acesso à terra, pois não tinham dinheiro para comprar nem mesmo um sítio. Consequentemente, de escravizados juridicamente se tornaram sem-terra, iniciando o que muitos chamam de escravidão moderna ou contemporânea, na prática, em muitos casos, até mais cruel. Como? Nos moldes de intensificação do trabalho por metas de produção, ganho por produção, trabalho intermitente, terceirizado, uberizado ou… sabe-se lá o que mais…

    Portanto, relacionando o Livro do Deuteronômio com a Constituição de 1988, reconhecemos a caminhada e a luta do povo como um constante êxodo, em busca de libertação, guiado por um Deus que, sendo Pai-Mãe, atrai, educa, é Deus-Amor, Deus-Libertador!

    Belo Horizonte, MG, 8/9/2020

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander – 15/01/2020

    2 – Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral – 18/6/2020

    3 – Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia – CEBI/MG – Parte I

    4 – Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa – Parte II

    5 – Livro do Deuteronômio – chaves de leitura – Mês da Bíblia de 2020 – por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

    5 – Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 – 02/2/2020

    6 – Livro do Deuteronômio – Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues – Entrevista completa

    7 – Live – CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020

    8 – Live – Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia


    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

  • DEUTERONÔMIO: Se há empobrecidos, a Aliança com Deus está rompida

    DEUTERONÔMIO: Se há empobrecidos, a Aliança com Deus está rompida

    Há 50 anos, no Brasil, mês de setembro é também Mês da Bíblia na Igreja católica e somos convidados ao estudo de um livro da Bíblia. Em 2020, a reflexão sugerida pela CNBB[1] é sobre o Livro do Deuteronômio. Olhando superficialmente e à primeira vista, o Livro do Deuteronômio[2] parece ser uma “Segunda Lei” como se fosse um código de ética e de costumes. Isso é, justamente, o que sugere a etimologia das palavras (em grego: deutero = segunda, nomos = lei). DEUTERONÔMIO (“Código de Leis de Direitos Humanos”) compreende uma série de ensinamentos, acompanhados de exortações, apelos e advertências da tribo sacerdotal dos Levitas.

    Por Gilvander Moreira[1]

    Tais ensinamentos se referem ao período que abrange desde a conquista da terra prometida – Canaã/Palestina/Israel – até o exílio na Babilônia, em 587 antes da Era Comum. Provavelmente, o livro de Deuteronômio é fruto de inúmeros ensinamentos orais dos Levitas, encarregados por Moisés de guiarem o povo, para que se conservasse fiel à Aliança com Javé, Deus solidário e libertador do povo escravizado. Moisés era considerado por todos como um grande líder do povo escravizado na Caminhada de Libertação do imperialismo dos faraós no Egito. Bem mais tarde essas tradições orais, elaboradas na época tribal, foram registradas por escrito, em documentos redigidos por Escribas da Corte de Josias, já no final da época monárquica, ou seja, dos Reis.  Isso, como já se pode suspeitar, alterou bastante o conteúdo daquelas tradições orais, elaboradas em um tempo em que o povo não tinha reis e tomava decisões a partir dos costumes dos clãs e tribos.  Hoje, ainda há no Livro vestígios de ensinamentos da época tribal, mas sempre envolvidos pelo pensamento autoritário e centralizador da monarquia.

    Na iminência do exílio também para o povo do sul da Palestina, por volta de 587 antes da Era Comum (A.E.C.), bem depois da desintegração do Reino do Norte da Palestina, com o exílio imposto pelo Império Assírio, por volta de 722 A.E.C., foi que aconteceu a redação final do documento. O contexto era de recrudescimento do imperialismo estrangeiro, de superexploração e de desagregação social do povo. A edição final do livro de Deuteronômio pretende apresentar um projeto para construção de uma sociedade justa economicamente e solidária socialmente. Para isso, alerta: “Se vocês não obedecerem a Javé seu Deus, não colocando em prática todos os seus mandamentos e estatutos que eu hoje lhes ordeno, virão sobre vocês…” (Dt 28,15): exílio na própria terra, sofrimento, adoecimento, violência social, reproduzindo a morte. E, como consequência, haverá “terra queimada onde não se semeia e nada brota nem cresce” (Dt 29,21), ou seja, desertificação e anulação das condições materiais e objetivas de vida. Essa advertência me faz recordar Mozart, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), do noroeste de Minas Gerais, que me disse quando eu era criança e nunca esqueci: “Há muitas injustiças no mundo porque as pessoas não colocam em prática a lei de Deus, mas seguem a lei dos homens que mandam politicamente e economicamente”.

    No livro do Deuteronômio há uma mistura de tempos nos textos.Com 34 capítulos, o livro do Deuteronômio, o quinto da Bíblia, não é um livro de história e nem é crônica jornalística, escrita no calor dos acontecimentos. Escrito provavelmente uns 600 anos após ocorrer a parte mais antiga dos acontecimentos, o livro do Deuteronômio é uma “teologia da história”, ou seja, um esforço de entender a história do ponto de vista de Deus que faz Opção pelos escravizados e injustiçados. Este livro constitui, por si só, a Fonte Deuteronomista que, junto com as Fontes Javista, Eloísta e Sacerdotal, são responsáveis pela formação do PENTATEUCO, o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia Judaica e Cristã: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

    Em um olhar panorâmico, à primeira vista, o livro do Deuteronômio constitui-se de discursos atribuídos a Moisés, discursos de despedida, uma espécie de testamento espiritual. Um dos motivos que, provavelmente, levaram os autores e as autoras do livro do Deuteronômio a colocar as narrativas na boca de Moisés, que era reconhecido como um grande profeta, líder libertador, pode ter sido a intenção de passar a ideia de que os textos eram de sua autoria, visando dar credibilidade aos mesmos. Porém, ao ler atentamente os textos de Deuteronômio, olhando nas linhas e nas entrelinhas, ‘no dito e no não dito’, nas ambiguidades e contradições ao longo das narrativas, percebemos que, no texto de Deuteronômio se misturam textos e contextos de várias épocas e, como uma corda de três fios, se faz referências a três tempos:

    a) tempo em que os fatos aconteceram;

    b) tempo em que os acontecimentos foram transmitidos oralmente;

    c) tempo em que foram fixados por escrito, com revisões, atualizações etc.

    Ao ler os textos de Deuteronômio, podemos pressupor que estaremos lidando com experiências de vida e de Aliança de um povo escravizado com Javé, experiências estas que envolvem um período de mais de 600 anos, desde o início da conquista da Terra Prometida – Canaã/Palestina, por volta de 1200 Antes da Era Comum, até o ano do Exílio na Babilônia, por volta de 587 antes da Era Comum (A.E.C.).

    Para compreendermos de forma sensata e libertadora os textos do Deuteronômio, é necessário pressupor que o livro envolve várias etapas e um longo processo de gestação, nascimento e de desenvolvimento. O povo em marcha de libertação das opressões, que buscava seguir a Aliança com Javé, tinha sido um povo escravizado, mas cheio de fé em um Deus libertador e, por isso mesmo, povo que resiste e luta pela superação de toda e qualquer escravidão.

    Em uma primeira etapa, a sabedoria do povo se torna cultura, bons valores. Por exemplo, a nossa experiência camponesa de partilhar com a vizinhança um pedacinho do porco matado por nossa família, ajuda-nos a imaginar a partilha e a solidariedade que foi experimentada na época da vida nos clãs, sob o regime do tribalismo. Ser solidário/a era um valor a ser posto em prática e também era uma necessidade de sobrevivência dos grupos minoritários, em contexto de grandes opressões. Essa prática de solidariedade entre as famílias e comunidades ou clãs, com o passar do tempo, começou a se desintegrar. Vírus do individualismo e sede de acumulação começaram a seduzir as pessoas. Nesse momento, surgiu a necessidade de se escrever tais tradições, com o objetivo de tentar resgatar as memórias libertadoras. Quando começaram a aparecer pedintes, estrangeiros, viúvas e órfãos desamparados, era sinal de que a Aliança com Javé estava sendo rompida.

    Em uma segunda etapa, criam-se leis para não haver pobres. Por exemplo, a utopia sonhada e defendida pelos autores e autoras do livro do Deuteronômio brada: “Que não haja pobres no meio de vocês” (Dt 15,4). Ao acordar a memória, percebiam que ‘lá atrás ninguém estava sem-terra’. Para resgatar a equidade nas relações sociais cria-se a lei do Ano Sabático que prescreve: ‘a cada sete anos, a terra deve descansar’. E após sete vezes sete anos, ou seja, 49 anos, no ano seguinte – 50º ano – se faça um jubileu, ano da graça de Javé, que consiste em propor uma reorganização geral da sociedade (Cf. Lv 25,8-55). As terras compradas devem ser devolvidas aos seus antigos donos/ancestrais (Cf. Lv 25,28), porque “a terra pertence a Deus” (Lv 25,23). Todas as pessoas escravizadas deverão ser libertadas (Lv 25,41). Todas as dívidas devem ser perdoadas. “Ninguém explore seu irmão” (Lv 25,17). Declare-se um perdão geral.

    Esse era o espírito do jubileu prescrito em Levítico 25, e retomado em Deuteronômio, por ter sido, provavelmente, vivenciado, pelo menos em parte, quando o povo vivia em clãs, sob o regime tribal, com razoável igualdade e equidade social.  E, provavelmente, o período da devolução das terras tenha sido mais curto: sete anos e não 50, pois se chamava “Ano Sabático”. Ora o sábado ocorre de sete em sete dias… A centralização do poder pela monarquia a pedido dos donos de bois (latifundiários, comerciantes, generais, juízes e sacerdotes) havia desintegrado essa experiência, que era coluna mestra da aliança de Javé com o povo que tinha sido escravizado no Egito sob o imperialismo dos faraós.

    [1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

     Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

    1 – Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander – 15/01/2020

    2 – Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral – 18/6/2020

    3 – Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia – CEBI/MG – Parte I

    4 – Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa – Parte II

    5 – Livro do Deuteronômio – chaves de leitura – Mês da Bíblia de 2020 – por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

    5 – Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 – 02/2/2020

    6 – Livro do Deuteronômio – Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues – Entrevista completa

    7 – Live – CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020


    [1] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

    [2] Título dado ao texto pelos tradutores da Bíblia da língua Hebraica para o Grego, durante o 3º século antes da Era Comum, tradução esta que ficou conhecida como “Septuaginta”, versão dos “Setenta sábios”.