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Tag: Bertolt Brecht

  • O que nos têm freado?

    O que nos têm freado?

    Circula um vídeo em que um completo imbecil racista é expulso por passageiros do metrô de Nova York com uma pratada de sopa na cara. Além do imbecil que, antes de ser enxotado do metrô, brada insolências por mais de dois minutos na linguagem universal da imbecilidade – portanto não é necessário fluência no idioma inglês para atestá-lo – outra coisa que salta aos olhos é a quantidade de pessoas caladas, omissas. De fato, num vagão lotado, os passageiros que se insurgem contra o parvo racista não ultrapassam meia dúzia. Na expressão de muitos dos que se mantiveram neutros é até possível perceber algo distinto da indiferença, como que uma vontade freada de intervir. Diante disso, convém perguntar: o que os freou? Porque não se juntaram àquela meia dúzia de corajosos encrenqueiros?

    O que pensariam aquelas pessoas que se escondiam atrás dos escudos de seus celulares, visivelmente constrangidas? Estariam constrangidas com a fala do pateta ou com a passividade delas mesmas?

    Antes de prosseguir, preciso advertir que este texto não se configura em uma lição de moral. Ou se é, então fica sendo também para este que escreve, pois recentemente, quando passei por situação parecida no metrô paulistano, me acovardei. O vagão todo se acovardou. O rapaz, em que tudo no aspecto indicava um desiquilíbrio emocional grave (portanto não deixa de remeter ao nova-iorquino) apenas parou de importunar aos berros uma moça desconhecida dele – e cujos olhos constrangidos quase gritavam por socorro – com a chegada do segurança que o expulsou do vagão. Na ocasião, senti a mesma perplexidade de agora vendo o vídeo. O que os freou? O que nos freou? Perguntava-me.

    Talvez o que nos freie a ação proveniente da justa indignação seja a assimilação do egoísmo do qual o metrô é por excelência um dos grandes espaços de ocorrência. Talvez junto da fumaça tóxica da metrópole que se entranha por nossos poros, tenha também entrado em nós a mais rotunda indiferença. Talvez o metrô seja na esfera pública a localidade onde mais se acentua nossa vergonha de sermos solidários. Onde o egoísmo é lei, solidariedade é subversão. Sim, temos vergonha de sermos solidários, importarmo-nos é motivo de acanhamento. De minha parte, foi isso que se deu. E esta constatação me envergonhou depois. E que bom que me envergonhou.

    Da parte dos demais passageiros, tanto de Nova York quanto de São Paulo, confesso que desconheço seus motivos. Porém, partindo do pressuposto que a maioria dos passageiros nos dois ambientes reconhecia a gravidade da situação e a desaprovavam, não seria um absurdo relacionar sua indiferença, sua apatia, também com essa noção indigente que ganha força e que consiste em acreditar que uma suposta neutralidade oferece aos seus detentores uma espécie de esteio moral para seu conformismo.

    Ou, posto de outra forma: será que a noção de neutralidade não seria um salvo-conduto para o egoísmo? Será que os passageiros do metrô de Nova York abrandaram seus mal-estares dizendo a si mesmos que foram neutros, que convém não se meteram? Com efeito, muito além das situações atípicas que se tornam assustadoramente típicas, mas também diante das injustiças cotidianas, a neutralidade pode nos livrar dos aborrecimentos de uma discussão; pode nos livrar das brigas, dos imbróglios, das pendengas, das tretas, dos litígios e das encrencas; pode manter intactas nossas preciosas networks às quais nos agarramos como Shylock se agarra a seus ducados; a neutralidade pode, enfim, acabar por nos conformar. Eis aí a palavra a que remetem os passageiros indiferentes do metrô nova-iorquino.

    A neutralidade, todavia, não irá nos livrar desse lobo que espreita atrás da porta. Martin Luther King Jr. afirmava que os lugares mais quentes no inferno são reservados para os que, num período de crise moral, mantêm sua neutralidade.

    Quem se mantém neutro diante de quaisquer embates, do mais insignificante ao mais dramático, seja ele micro ou macropolítico, tem, obviamente, toda a liberdade de fazê-lo, mas deve ter a consciência de que sua neutralidade é também uma tomada de posição política, e das piores. Talvez conviesse afixar nos metrôs de Nova York e também nos nossos, a título de lembrete a quem se esconde atrás do biombo da neutralidade e como homenagem àqueles que tomam partido, tal qual a meia dúzia de valentes encrenqueiros nova-iorquinos, um célebre poema porrete, lamentavelmente atualíssimo:

    “Primeiro levaram os negros

    Mas não me importei com isso

    Eu não era negro

     

    Em seguida levaram alguns operários

    Mas não me importei com isso

    Eu também não era operário

     

    Depois prenderam os miseráveis

    Mas não me importei com isso

    Porque eu não sou miserável

     

     

     

    Depois agarraram uns desempregados

    Mas como tenho meu emprego

    Também não me importei

     

    Agora estão me levando

    Mas já é tarde.

    Como eu não me importei com ninguém

    Ninguém se importa comigo.” (Intertexto, Bertolt Brecht)

     

    Link para o vídeo, via Vice: https://www.vice.com/pt_br/article/mb7ywn/princess-nokia-video-racista

     

    por T. S. Paulo: estudante de jornalismo.

     

     

  • Contra a tirania do neoliberalismo

    Contra a tirania do neoliberalismo

    Querida Cynara Socialista Morena Menezes,

    Seu texto, Contra a tirania do econocentrismo, me instigou a escrever. Especialmente o primeiro parágrafo: “Por que dependemos tanto do humor das bolsas de valores? Por que temos de nos preocupar tanto com a balança comercial? Por que a economia está sempre à frente, dominando as decisões políticas? Não deveria ser o oposto, a política é quem deveria pautar a economia para fazê-la ir pelo caminho acertado, planejado, lógico? Seguir tudo o que a economia manda é justo ou, pelo contrário, aprofunda as desigualdades?”

    Há muitos economistas que defendem a “ciência econômica” como algo que flui da natureza, algo como a física ou a biologia. Chamam, por exemplo, de “taxa natural de juros” àquela exorbitância concentradora de renda praticada pelo Banco Central do Brasil. Julgam-na perfeitamente justificada, dada que é “natural”. Diria Brecht:

    Desconfiai do mais trivial,

    na aparência singelo.

    E examinai, sobretudo,

    o que parece habitual.”

    Outros a veem ciência social, indissociável da política. Outros ainda, como o professor Paul Singer, não a entendem como ciência, mas um pedaço de ciência: “Eu diria que ciência é a somatória das disciplinas. A somatória de Economia mais História, Sociologia, Política, etc. é que seria uma possível Ciência do Homem.”

    Assim sendo, as respostas às questões desse campo variam substancialmente, conforme a quem se pergunta. Ao questionarmos os economistas da corrente majoritária, hoje no Brasil e no mundo, sobre a dominância da economia sobre as decisões políticas, certamente, ouviremos que as leis econômicas são imutáveis e que, ao transgredí-las, obteremos resultados desastrosos. Mas, nem todos economistas responderão assim.

    Há economistas, que em geral não são ouvidos na mídia tradicional, que entendem que não há, na verdade, protagonismo da economia sobre a política e, sim, o inverso. As ditas “leis econômicas” se prestam a justificar posições ideológicas que ficaram escondidas na formulação das próprias “leis”. A decisão política sempre prevalece, dirão. Exemplificando, novamente com a questão da taxa de juros, Keynes e seus seguidores dirão que a taxa praticada por uma sociedade é um acordo, uma tradição. A tradição brasileira é praticar a taxa de juros mais alta do mundo e não há qualquer maldição, ou “lei econômica” que nos obrigue a isso, afirmarão.

    Não existem, para muitos economistas, decisões de política econômica certas ou erradas, mas decisões que se conformam a certos objetivos políticos de concentrar ou distribuir renda, fundamentalmente. Decisões que favorecem interesses e contrariam outros. Celso Furtado disse:

    “[…], pois a luta contra o subdesenvolvimento não se faz

    sem contrariar interesses e ferir preconceitos ideológicos”.

    Faço parte desse grupo que acredita que quando caminhamos para a perda de renda dos mais pobres, não estamos, simplesmente, diante de um efeito colateral de um política econômica “correta”. Estamos assistindo à decisão política de concentrar renda, tranvestida de lei econômica implacável.

    Ao estudarmos o período da guerra fria, nos anos que seguiram a II Grande Guerra, veremos que foi um período de grande aumento do bem-estar dos trabalhadores. As “leis” eram outras? O arranjo político era outro, penso. Arranjo que se desfez e é simbolizado pela subida de Thatcher e Reagan ao poder. Esse é o neoliberalismo que amargamos até hoje. Balançou com a crise dos subprimes, mas não caiu.

    Finalizo com mais um pedacinho de Brecht:

    Suplicamos expressamente:

    não aceitei o que é de hábito

    como coisa natural,

    pois em tempo de desordem sangrenta,

    de confusão organizada,

    de arbitrariedade consciente,

    de humanidade desumanizada,

    nada deve parecer natural,

    nada deve parecer impossível de mudar.”

    Um grande abraço.

  • Cultura Sem Terra conquista o interior mineiro

    Cultura Sem Terra conquista o interior mineiro

    Campo do Meio, uma cidadezinha de 12 mil habitantes no cantinho do sul de minas, se encantou com a arte dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, durante o 1º Festival de Cultura Campesina. Realizado nos dias 22 e 23\10, o evento levou para a Praça da Matriz da pacata cidade a diversidade de linguagens, expressões e cores que compõem a Reforma Agrária Popular. Por lá passaram cerca de 2 mil pessoas durante os shows, teatros, mostra fotográfica, debates, feira de alimentos saudáveis, entre outras atividades.

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    Foto: Geanini Hackbardt/MST

    “Traduzimos para os trabalhadores da cidade todos os elementos que compõem nosso projeto. Desde a luta pela terra, pela educação do campo e por dignidade, até a produção musical, poética, de alimentos saudáveis. Um canto por terra, arte e pão, entoado por cerca de 120 militantes que se envolveram na construção desses dois dias de festa”, avaliou Bruno Diogo, da Direção Estadual do Setor de Produção. A Feira da Reforma Agrária e a Culinária da Terra entregaram mais de uma tonelada de alimentos direto das mãos do produtor para o mercado local.

    Toda a programação configurou um grande ato político, como jamais ocorreu ali, algo perceptível nas expressões de surpresa e exclamações dos moradores. Um ato de celebração, que evidenciou o resultado da resistência dos trabalhadores por 18 anos acampados na Usina Ariadnópolis, assentados na área de Primeiro do Sul e Santo Dias. “Comemoramos as conquistas geradas pela ousadia dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nessa região de Minas Gerais, uma região historicamente dominada pelo latifúndio, que mais recentemente tem sido dominada pelas empresas do agronegócio”, explicou Silvio Netto, da Direção do MST.

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    Foto: Geanini Hackbardt/MST

    Este foi só o primeiro

    O movimento pretende realizar eventos semelhantes em pelo menos seis regiões, das nove em que está presente em Minas Gerais. “Nossa intenção é realizar muitos outros momentos como este. Estamos mostrando que o MST não só faz produzir as terras que o latifúndio abandonou. O MST também tem o dever de ocupar as cidades, mostrar que sem a reforma agrária, sem a agricultura camponesa, sem a cultura popular, não é possível que o povo tenha dignidade. Teremos muitos outros festivais nas praças, na roça, em Campo do Meio, em Alfenas, em Belo Horizonte”, projetou o dirigente.

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    Foto: Geanini Hackbardt/MST

    O Teatro conta a história

    Diversas apresentações cênicas foram marcantes na programação, como o Grupo Máscaras, o Circo Amarelou e os Sapucaiaços, que fazem um bem bolado unido música e bom humor.

    Durante a aula inaugural da Escola Estadual Eduardo Galeano, o Grupo Máscaras divertiu os estudantes com a peça A Cor Flicts, baseada no livro de Ziraldo. O diretor do grupo, Alberto Emiliano (conhecido como Preto) foi
    homenageado como um guardião da cultura caipira do sul de minas. “Ele criou o Máscaras e trouxe até nós. O teatro não é novidade na vida do povo sem terra do sul de minas, Preto, foi o grande responsável por essa popularização, por isso a justa homenagem”, explica Silvio Netto.

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    Foto: Geanini Hackbardt/MST

    Já as místicas realizadas pelos militantes do movimento contaram a história do Quilombo Campo Grande. Este processo de resistência negra dominou uma extensão territorial maior que Palmares, abrangendo regiões do Alto São

    Francisco, Alto Paranaíba, Triângulo Mineiro, Centro e Sudoeste de Minas. O quilombo, coordenado por um agricultor chamado de Pai Ambrósio, chegou a ter 15 mil habitantes em 25 vilas confederadas, nas quais além de
    negros, se refugiavam índios e brancos pobres.
    “A nossa regional foi nomeada como Quilombo Campo Grande como forma de  reescrever esta  história apagada dos livros. A cultura também tem esse papel, de trazer ao povo a memória de luta que o capital esconde. Foram muitos os ataques da coroa àquelas comunidades e o povo enfrentou com muita garra, assim como os Sem Terra fazem em  Ariadnópolis”, compara Maysa Mathias, militante do MST, negra e organizadora do festival.

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    Foto: Geanini Hackbardt/MST

     

    Para Hadd Dalton, do Grupo Sapucaiaços, arte, vida e política não se dissociam. “Não tem como relacionar o teatro, a arte, com a vida/luta dos movimentos sociais sem pensar na frase do Bertolt Brecht, onde ele fala: todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver; e o que é viver, senão lutar.” Segundo o contador, esses espaços são de grande aprendizado. “Foi nos movimentos sociais, na luta e nas rodas, que encontrei as melhores histórias e causos, cantei as melhores bandeiras, e aprendi com ambos, que participação social é a arte de viver e que partindo da cultura eu faria política.”

    Esperança sem fim

    Apesar da festividade, o conflito de terras mais antigo de Minas Gerais – Ariadnópolis – ainda não foi solucionado. O Governo do Estado deu prosseguimento no processo de desapropriação das terras da Antiga Usina, no entanto, ele está parado, aguardando decisão do judiciário. “O festival também vem no sentido de demarcar que nos despejar é despejar toda essa cultura”, assinalou Silvio Netto.

    “Saímos da sede em um acordo, na esperança de que a justiça tivesse uma solução definitiva, mas essa demora é uma tortura para todos nós. Por quantos anos mais teremos que esperar e aguentar as provocações e ameaças dos jagunços, faltando apenas uma decisão de um juiz”, cobrou Fátima Meira, da Direção Regional. O Quilombo Campo Grande resiste, como seus antepassados o fizeram, mas para fazer justiça a essa história, as terras precisam tomar o caminho que lhes é devido, a desapropriação.

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    Foto: Maria Aparecida/ MST