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    MÉXICO: Quatro anos depois, famílias ainda buscam corpos dos 43 estudantes desaparecidos

    Jovem buscador de fossas clandestinas luta para devolver à família os restos mortais do irmão

    A perda dos líderes e entes queridos é trágica para qualquer povo, mas para uma cultura marcada pela ritualização da morte, não há nada mais devastador do que ser roubado do direito à vida e ao velório do corpo de um filho. Não há nada mais desesperador para o povo famoso em todo mundo pela celebração do seu Dia dos Mortos do que a espera eterna de familiares vítimas de desaparecimento político.

    No Natal de 2015, ainda estudante do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a repórter Luara Wandelli Loth percorria as montanhas do Estado de Guerrero, no México, farejando com os buscadores das famílias dos desaparecidos, fossas clandestinas onde pudessem ter sido escondidos os cadáveres dos 43 jovens campesinos e de tantos outros milhares de trabalhadores e estudantes.

    Quatro anos se passaram e nem Estado, nem narcotráfico, nem milícias policiais, nem o casal de políticos envolvidos no desaparecimento forçado mais cruel da história da América Latina recente deram conta do paradeiro dos seus corpos ou restos mortais. Um ano depois de retornar do México, a repórter, já formada, decidiu construir um túmulo simbólico para dar sentido a essa morte sem corpo na forma de narrativa. O lançamento oficial do livro Sepultura de Palavras para os desaparecidos, no dia 27 de setembro, a partir das 19 horas, na Fundação Cultural Badesc, em Florianópolis, marca os quatro anos do sequestro e desaparecimento forçado dos 43 estudantes da Escola Normal Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa, em Iguala, que ela qualifica como crime de Estado e de lesa-humanidade.

    Mesmo sem resposta, a tragédia continua mobilizando famílias e movimentos sociais que, a partir desse crime criaram uma espécie de exército pelo resgate da vida e da morte dos mais de 30 mil desaparecidos no país. Hoje, se os normalistas estivessem vivos, já teriam recebido seus diplomas de maestros. As famílias fazem buscas movidas pela expectativa de encontrar os restos mortais, ao mesmo tempo em que o fracasso dessa esperança nutre a ilusão de que os desaparecidos estejam vivos, trabalhando como escravos do tráfico e que um dia voltarão para casa. Só fragmentos de dois dos 43 corpos foram localizados no caso de Iguala, mas sem levar ao paradeiro dos demais. Em outros dos mais de 30 mil de casos ocorridos no México, o achado de um osso, de um pedaço de crânio ou de um braço não paralisa a busca, como anota a jornalista. É só a sanha para que os abnegados cães humanos das montanhas se embrenhem ainda mais nos espinheiros para buscar as outras partes do seus mortos, sem paz e descanso, até recompor o corpo inteiro.

    Dom Lupe, farejando nas montanhas a morte dos filhos sequestrados

    Publicado pela Editora Insular, o livro-reportagem conta as histórias dos que sobrevivem à dor da perda lutando por verdade e justiça. Num enfoque diferenciado de outras abordagens, narra o drama cotidiano das famílias dos desaparecidos na procura de fossas clandestinas. Os personagens são os obstinados integrantes dos grupos de buscadores de valas e fossas clandestinas em Guerrero, uma das regiões mais assoladas pela violência e pela pobreza na América. São homens e mulheres que deram um sentido heroico comovente a suas vidas, como Guadalupe Contreras, exímio buscador, que desenvolveu uma técnica para farejar o cheiro de morte nas montanhas, na esperança de encontrar o cadáver do filho desaparecido. Malhado pela miséria e pela violência, o sábio Dom Lupe tornou-se professor de buscas em outras paragens. A pedido de outros familiares, estendeu seus ensinamentos para estados como Veracruz, no Golfo do México, onde recentemente foram localizados mais de 160 corpos ocultados num terreno. Além do seu, passou a buscar os filhos dos outros.

    O título é inspirado na obra da africana Mukasonta Scholastique, autora de A mulher de pés descalços, que também escreveu uma “sepultura de palavras” para homenagear a mãe e metaforicamente cobrir o seu corpo desnudo quando foi assassinada como uma “barata” no holocausto ruandense. Além das narrativas, Luara oferece um ensaio fotográfico para transmitir a dimensão da luta que as palavras não alcançam. “É preciso não deixar que esse crime seja esquecido para que essas mortes não tenham sido em vão”, acredita a autora, que recebeu menção honrosa em concurso nacional de fotografias dos grandes rituais funéreos do Dia dos Mortos no México no ano do sequestro dos estudantes. Imagens e narrativas devem ser, para a repórter, “uma arma contra a banalização dos desaparecimentos”. Até porque, mesmo depois da onda gigantesca de protestos contra o massacre de Iguala, a violência causada pela associação criminosa entre autoridades públicas, políticos, narcotraficantes e policiais manteve sua curva crescente.

    Conforme revela o livro, os grupos de buscadores, ligados a diferentes correntes políticas, desafiam um Estado dominado pelo narcotráfico, onde polícia, políticos e organizações criminosas muitas vezes andam de mãos dadas ou atadas. A autora, na época estudante de Jornalismo da UFSC e intercambista da Universidade Autônoma do Estado do México (UAEMex), acompanhou de forma engajada as notícias sobre o desaparecimento dos estudantes e a onda de protestos que ficaram marcados pelo grito “Vivos os levaram, vivos os queremos”. Sob a égide do presidente neoliberal Enrique Peña Nieto, o Estado tentou impor o silêncio, mas a indignação tomou conta do México, causando uma repercussão internacional expressiva, embora menor do que o horror ensejava. Na época, por exemplo, a chacina dos 12 cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo recebeu uma atenção infinitamente maior da grande mídia na América Latina e na Europa do que o extermínio dos 43 normalistas, muitos deles apenas adolescentes.

    Neta de buscador em Iguala. Imagens dos atingidos pelos desaparecimentos integram o livro

    De volta ao Brasil, Luara começou a desenvolver seu trabalho de conclusão de curso sobre os desaparecimentos no Estado de Guerrero e para ir mais longe na pesquisa e reportagem, retornou ao México em 2015, onde permaneceu até março de 2016 . Recebida e hospedada por familiares dos desaparecidos, exerceu perigosamente o jornalismo investigativo e arriscou-se, acompanhando pessoalmente o trabalho do grupo de buscadores. As imagens, narrativas e depoimentos desses inconformados herdeiros de uma morte imaterial são marcas lancinantes de um período de atrocidades vivido pelos mexicanos sob o comando do neoliberalismo que esmagou e derrotou a revolução mexicana e com ela a riqueza maior do país que são os povos indígenas.

    CONFIANÇA NO VALOR DA VIDA RENASCE COM OBRADOR

    Neste aniversário, reapresentantes do comitê dos pais dos meninos sequestrados, torturados e assassinados renovam as esperanças com a eleição do novo presidente Andres Manuel Lopez Obrador, que assumirá em dezembro deste ano, na contramão dos governos conservadores e entreguistas que tomaram o poder no continente americano. Acreditam que, seguindo as recomendações dos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, o líder de esquerda possa reabrir o caso e sepultar de vez a história oficial implantada pelo governo anterior. Numa conclusão julgada suspeita, improvável e manipuladora, a promotoria de Pieña Neto defendeu que os jovens morreram assassinados e que seus corpos foram queimados em um lixão e por isso desapareceram. Essa versão cômoda para o governo, encerraria a busca dos cadáveres, mas foi amplamente desmoralizada pela ausência de sinais de comprovação e por uma chuva torrencial no dia do massacre que desmente por si só a falaciosa incineração. Só agora a população atingida ou sensibilizada pelos desaparecimentos forçados recupera um pouco a confiança na dignidade e no valor da vida, com a expectativa da instalação de uma Comissão da Verdade e Justiça específica para o massacre anunciada pelo próximo governo.

    Capa do livro com foto de Luara Wandelli Loth

    Sepultura de palavras para os desaparecidos denuncia e reabre uma ferida que nunca vai cicatrizar e que exige da humanidade inteira uma tomada de posição. Até porque, como avisa a autora, o mundo não conseguirá dormir um “sono tranquilo” enquanto não devolver os corpos dos normalistas e dos outros milhares de desaparecidos. A grande reportagem que resultou em livro foi orientada pelo professor Carlos Locatelli, do curso de Jornalismo da UFSC e enriquecida pelas apresentações do historiador Waldir Rampinelli e da professora de Jornalismo Daisi Vogel. Integrante da direção dos Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC) e especialista na história política do México, Rampinelli sublinha que “o livro é uma leitura obrigatória para entender esta região marcada por grandes conflitos, desde que por aqui meteram os pés os conquistadores europeus”. A obra é resultado de um “trabalho duro, penoso, doloroso, talvez mais difícil do que cobrir as guerras do Iraque e da Síria”, acrescenta o historiador.

    No contextualização desse crime em massa, Luara reconstitui a história e a importância das Escolas Normais Rurais, que são sinônimo de resistência política. Doutora em Literatura, Daisi Vogel aponta que “as imagens, palavras e estudos desta extraordinária reportagem se movem caudalosas e nos arrastam como águas de uma enchente.” Acompanhando a saga dos buscadores, o livro-reportagem, na opinião da jornalista, encontra o seu próprio sentido: “mostrar o rastro de destruição desses desaparecimentos para a população inteira do país, especialmente para os habitantes de Iguala, cuja população sobrevive ao efeito devastador do sequestro dos 43 estudantes de Ayotzinapa”.

    O grande mérito dessa obra de jornalismo, literatura e história é mostrar que o horror dos desaparecimentos devastou as populações de origem indígena mais empobrecidas do México, mas não as calou, nem as paralisou. Na mesma medida em que sofre a opressão, o povo guerrerense reforça, há séculos, a escolha pelo caminho da rebeldia. Os que procuram pelas montanhas os restos mortais do filho, irmão, pai, mãe, esposa, companheiro, vizinho, amigo ou parente escolhem transformar corpos em sementes de transformação.

     

    Depoimento da autora:

    “O desaparecimento forçado é uma espécie de auge da devastação social no nosso continente, um crime de lesa-humanidade. Quero que esse livro não seja apenas uma denúncia escandalosa e paralisante, mas que mostre também a força descomunal e violenta da resistência. Ela se apoia em comunidades gigantes no tamanho e na força que estão por trás das pequeninas vítimas que choram. “

     

    Cantracapa com nota biográfica da autora e depoimento de buscador

    Sepultura de palavras é uma expressão que tomei emprestada da escritora de memórias ficcionadas, Scholastique Mukasonga, única sobrevivente de sua família do genocídio em Ruanda. Uma das consequências da perversidade da política neocolonial é instituir o ódio ao outro como laço societário primário e aí instalar sua máquinas de morte. 
    Em A mulher dos pés descalços, Mukasonga propõe-se a resgatar simbolicamente sua mãe da vala-comum, com as únicas ferramentas que lhe restavam: palavras e papel. “Sepultura de palavras” se inscreve nessa perspectiva de jornalismo que resgata partes aterradas da memória e da carne dos povos da América.

    Apesar das abundantes semelhanças com Brasil, que de alguma forma estão presentes em cada linha, o livro resulta de um olhar estrangeiro que, quando possível, distancia-se. Não é o meu povo, ao qual pertenço organicamente que quero tirar da vala e cobrir com suaves lençóis de memória, mas o nosso povo. 

    O desaparecimento forçado é uma espécie de auge da devastação social no nosso continente, um crime de lesa-humanidade. Não caberia impor impressões pessoais de jornalista, nem buscar explicações definitivas para um fenômeno tão complexo como a persistência do desaparecimento forçado no século XXI, em uma das regiões mais pobres e violentas do México. O trabalho identifica as contradições sociais sem a pretensão de explicar tudo ou oferecer uma conclusão última. Em vez disso, a pesquisa abre muitas outras hipóteses e questionamentos que continuam a me perturbar como autora. Durante os meses de investigação, busquei preservar o vínculo inevitável que leva as histórias singulares das pessoas atingidas pelo desaparecimento forçado às dimensões particulares e universais que conectam essas vidas ao contexto nacional e internacional dos crimes medievais do neoliberalismo. O todo é esburacado, mas segue sendo ligado por milhões de fatos que não cessam de intersectar a história dos povos violados pelo poder no Brasil, no México, na América e em todo o mundo. 

    Tento celebrar, como me foi possível, o ato de testemunhar uma realidade, de acompanhar as pessoas se transformando e transformando o mundo ao seu redor, aos pouquinhos. Nossos buscadores de Guerrero são pessoas que nunca traem a sua via desejante. Enquanto não temerem o cheiro de corpos em decomposição, nunca abandonarão a fome de vida. Recusam-se a oferecer aos mandantes dos desaparecimentos o controle sobre esse desejo. É porque talvez, sejam os únicos a dormirem sem culpa, no afã de continuar cumprindo sua louca missão de buscar. Dá medo que um dia esse trabalho ao mesmo tempo de negação e reconstrução do mundo seja esfacelado e desapareça do tempo e do motor da história.

    É um livro sobre como se forjam lutadores sociais na difícil tarefa de perceber que sua dor não é um fator de isolamento, mas é algo, em certa medida, compartilhável, universalizável e, portanto, politizável. Quero que esse pequeno livro não seja apenas uma denúncia escandalosa e paralisante, mas que mostre também a força descomunal e violenta da resistência. Ela se apoia em comunidades gigantes no tamanho e na força que estão por trás das pequeninas vítimas que choram. Lutas sem povos são para o jornalismo inócuo e conformista de cada dia. Faz parte do encantamento da reportagem ver como a resistência em alguns momentos se equivale ao tamanho da opressão. Pude testemunhar como as pessoas redescobrem a vida em comunidade, os limites do individualismo, e como começam a lutar por si e pelos outros. Como elas se recusam a desaparecer, a se exilar em suas periferias, em seus quartinhos sem assoalho.

    Devo confessar que senti nessas famílias a dor do processo de saída do estado de alienação para uma tomada de consciência. As pessoas precisam, por vezes, ceder à força do narcoestado periférico, categoria à qual se insere o estado mexicano na atualidade. O ganho de consciência transforma os olhares de forma definitiva, mas esse não é um movimento linear. É repleto de contradições, avanços e recuos que são, de certa forma justificáveis: as pessoas precisam sobreviver, dar leite às crianças, regar as flores e subir em vans apertadas.

    As covas clandestinas reveladas após o caso Ayotzinapa, quando desapareceram 43 estudantes sonhadores e indômitos, são constrangedoras e emudecem os defensores da ideologia do “desenvolvimentismo” emblema maior do neoliberalismo. Parece que os vencidos da história se recusam a ser enterrados, provando mais uma vez que o osso é um herói de guerra. Ele emerge quando menos se espera no Atacama, no Acari, em Iguala. É como um cheiro de podridão que irrompe num salão luxuoso. Os representantes do poder e todos os seus cúmplices precisam de justificativas fáceis para explicar: “Eram todos narcos. É apenas mais uma matança entre ELES”. Duvidar da humanidade do outro é sempre um grande trunfo para espalhar o medo. 

    As ruínas são testemunhas desse estranho progresso, que traz barbárie, mas que traz sem querer sua semente de destruição. Não há como uma sociedade enterrar no esquecimento suas vítimas e não sofrer as consequências disso. Não adianta recalcar traumas. A luta, os esforços, por menores que sejam, serão redimidos por cada novo movimento social, levante, revolta. Surgirão novos significados. A cada levante, os vencidos são citados na ordem do dia. Eles vivem.

    Serviço:

    Lançamento de Sepultura de Palavras para os desaparecidos, de Luara Wandelli Loth,
    Editora Insular.
    Lançamento: 27 de setembro de 2018, das 19 às 22 horas.
    Local: Fundação Cultural Badesc, rua Visconde de Ouro Preto, número 216 Centro de
    Florianópolis.
    Contatos com a Fundação: fone(48) 3224-8846, email:
    fundacaoculturalbadesc@gmail.com

  • Ayotzinapa Vive

    Ayotzinapa Vive

    Hoje o México está de luto. Há um ano, durante a noite de 26 de setembro e a madrugada de 27, policiais federais e municipais de Iguala perseguiram e atacaram estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa. Deixaram um saldo macabro de pelo menos nove pessoas mortas, 41 estudantres desaparecidos e 27 feridos. Nossa repórter Isabella Lanave estava no México quando os fatos ocorreram. Seu relato:

    As tardes em Guadalajara eram sempre longas; o café da manhã era às 11h e o “almuerzo” ficava pra depois das duas. Moravam eu, Lulu, Cauan, Francieska e Laura na Kasa Mezquitan, a mais bonita do bairro. Paredes vermelhas, flores e folhas verdes pelo ambiente e uma arquitetura tradicionalmente mexicana. O sol batia forte perto do meio dia e, quando chovia, era preciso correr para não se molhar entre o caminho quarto-cozinha.

    Não me recordo o dia da semana, quando cheguei em casa para a primeira refeição do dia e a dona da casa, Lulu, contou sem muitos detalhes sobre um desaparecimento de 43 estudantes em alguma cidade mexicana — até então desconhecida para mim.

    “Como somem 43 estudantes e ninguém tem uma resposta?”, eu mal imaginava que essa pergunta estaria sem resposta até hoje, um ano depois do desaparecimento.

    Nesse momento senti falta de uma televisão na casa que eu vivia. Queria muito ver como a televisão ia mostrar o caso. Mas eu só encontrei televisão, dias depois, na casa do Don Rami. Um lugar simples, caseiro e com o melhor taco com frijoles de Zapopan. Nem na casa dos amigos, nem na universidade, nem nos bares que eu frequentava eu encontrava tv — o que na verdade não me fez falta.

    No outro dia todos só falavam dos estudantes. Eu nem bem tinha passado pelo portão do Centro de Artes, Arquitetura e Design da Universidade de Guadalajara, onde eu estudei durante 6 meses em 2014, quando uma colega de classe me perguntou se eu já estava sabendo do caso dos alunos da escola de Ayotiznapa, em Guerrero. Eu disse que sim, mas perguntei se ela não poderia me explicar de novo. Fiz isso várias vezes. Sempre dizia, “sim, eu vi que os estudantes desapareceram! Mas você sabe o que aconteceu?”.

    Apesar de sites pelo mundo todo começarem a noticiar o desaparecimento dos estudantes, eu sentia como se ninguém quisesse falar em voz alta do motivo de tudo isso. Professores citavam, amigos indagavam, mas as conversas eram no canto dos corredores ou em voz baixa pela rua. Só era diferente nas manifestações.

    A primeira que eu acompanhei — e uma das primeiras em Guadalajara — foi no dia 8 de outubro. A Lulu, dona da casa onde eu morava, recebeu o convite pelo Facebook e me avisou mesmo que com um certo receio, pois ela sabia que estrangeiros não podiam frequentar protestos. Vesti minha saia mexicana, soltei meu cabelo escuro e encaracolado, peguei minha câmera e fui. As alemãs que moravam comigo foram até o ponto da saída do protesto e decidiram voltar — realmente, se essa história de estrangeiro fosse levada a sério, era melhor elas não estarem por ali.

    A rua estava tomada. Famílias, homens, mulheres, crianças e idosos cuparam a Calzada da Independencia no centro da cidade, uma das ruas mais movimentadas de Guadalajara. Os rostos dos estudantes também estavam ali, nas camisetas dos manifestantes, em forma de cartazes, pedidos de justiça e palavras de ordem (“vivos se los llevaron, vivos los queremos” e “ayotzinapa vive, la lucha sigue”). Conforme a noite ia caindo, milhares de velas refletiam os rostos de cada um que levava o seu copo iluminado.

    Chegamos até a Plaza de la Liberación, onde todos deixaram suas velas e escutavam o que os líderes de movimentos falavam. A cena era como de um filme triste. Minutos de silêncio pelos estudantes, gritos pela aparição imediata, lágrimas que caíam entre gritos de justiça. Não era a primeira vez. Todos que estavam ali sabiam que não era um caso isolado.

    Entretanto, a visibilidade que se deu ao caso dos estudantes se deve, principalmente, ao fato de não terem sido dois, seis ou 15 desaparecidos. Foram 43! No México, desde 2006, mais de 22 mil casos de pessoas desaparecidas foram registradas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), sem contar os que não foram denunciados.

    Depois do dia 26 de setembro, pelo menos duas vezes por mês as ruas de Guadalajara eram tomadas por alguma ação por Ayotzinapa. Ninguém aceitava o que estava acontecendo e, muito menos, as respostas oficiais do governo. Alguns dos primeiros boatos foram de que os ônibus dos estudantes que seguiam em direção à cidade de Iguala foram barrados, numa tentativa de evitar uma manifestação durante o comício de Maria Los Angeles Pineda, mulher do ex-prefeito da cidade.

    Porém, a versão oficial do Governo diz que os jovens foram pegos por policiais corruptos e entregues à facção “Guerreros Unidos”, que mataram e queimaram os estudantes em um lixão, acreditando que eles fossem membros de uma facção rival, “Los Rojos”.

    E, mais recentemente, no relatório finalizado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), se comprovou a impossibilidade da queima dos jovens nesse lixão, pois, entre outros motivos, não existem restos mortais e tampouco qualquer resquício que evidencie a versão oficial. Uma outra versão soltada pela imprensa seria de que drogas foram colocadas em um dos ônibus, o que teria sido o motivo para serem parados. Mas nada justifica o que ocorreu.

    Entretanto…

    Lembro de quando fui tomar um chocolate — não tomo café — com um jornalista que conheci nas marchas. Ele sempre estava lá, com sua caneta e caderno escuro, olhava para mim com um olhar curioso e nós nunca nos falávamos. Até que certo dia, por ter conhecido o fotógrafo que trabalhava com ele, nos falamos, e, desde então, as marchas se tornaram mais divertidas.

    E além disso, foi ele quem me ajudou a compreender que o verdadeiro motivo do ataque aos estudantes é o medo. As Escolas Normalistas no México foram criadas em 1926. A estrutura é simples, os alunos são internos e dividem seus quartos e refeitórios. A Escola de Ayotzinapa, que teve Lucio Cabañas — revolucionário e fundador do grupo armado Partido dos Pobres, que lutava contra despejos forçados e a desigualdade principalmente de camponeses — como aluno e professor, assim como diversas outras escolas rurais do país, tem a fama de “formar guerrilheiros”.

    As escolas foram criadas para formar professores que pudessem atuar como líderes comunitários nas áreas mais precárias do país. Quase todos os alunos são de famílias indígenas, camponesas ou moradoras de bairros pobres.

    Fabian Soares Lopes, estudante da Escola Rural Normal de Ayotzinapa, com o qual pude conversar numa manifestação em Guadalajara, confessa, em voz baixa e me permitindo fotografa-lo apenas sem mostrar o rosto — “não quero ser o 44” — como é degradante o estado da escola. “A estrutura e as salas estão em péssimas condições. Às vezes, nem o colchão onde dormimos serve, está bem destruído”.

    Após uma mudança do governo mexicano em relação às regras do financiamento escolar, as escolas têm que sobreviver quase que totalmente de doações arrecadadas pelos próprios estudantes. Das 36 escolas rurais formadas no início do século passado no México, hoje só existem 17. Casos de mortes e desaparecimentos são comuns ao longo do tempo de existência das Escolas.

    Em Ayotzinapa, dois alunos foram assassinatos em 2011. Os seus estudantes têm uma presença importante na vida política e pública no estado de Guerrero, participam em manifestações e possuem relações com organizações civis, polícias comunitárias, professores e camponeses. Além de terem realizado diversos posicionamentos públicos e políticos sobre assassinatos de ativistas e prisões de líderes da região, em um constante protesto contra o modelo econômico do país.

    Guerrero

    Antes de eu voltar pro Brasil, saiu uma edição especial da Revista Proceso sobre o caso dos estudantes. Um emaranhado de reportagens sobre o caso que já haviam saído na revista junto com novas descobertas. Lembro que eram meus últimos dias no México e eu estava naquela pressa para conseguir encontrar uma lembrancinha para meus amigos mais próximos, quando passei por uma banca e vi “Una historia de corrupción, barbarie e impunidad”.

    El gobierno sabía, Complicidades y mentiras, Los que no existen, Heridas nacional… O estado de Guerrero é tomado pelo narcotráfico, sendo algumas regiões proibida a entrada de representantes do governo. O secretário de comissões legislativas de Assuntos Indígenas, Agraria e Turismo afirma que diante da incapacidade do governo do estado para enfrentar a violência, “criaram-se polícias comunitárias em diversas cidades”. E foram os integrantes desses grupos, que se desenvolveram na União dos Povos e Organizações do Estado de Guerrero (UPOEG), que descobriram fossas com corpos enterrados durante a busca pelos estudantes.

    Os representantes estudantis da escola de Ayotzinapa também compartilham da opinião de que não existe apenas um culpado. “Não culpamos o narcotráfico, porque eles e o governo são a mesma coisa”.

    Marchas e Protestos

    Devido principalmente à falta de respostas, uma caravana com os familiares dos estudantes desaparecidos, o Comitê Estudantil de Ayotzinapa e as organizações de direitos humanos que estão acompanhando o caso, passaram, em novembro de 2014, pelas principais cidades do país buscando repassar a verdadeira informação sobre o caso. Guadalajara foi uma delas.

    Era uma terça-feira de sol, como geralmente eram as tardes por lá. Os pais chegariam perto das 14h e o encontro seria na Universidade de Guadalajara (UDG). Antes, uma coletiva de imprensa. Depois, um momento para pais e estudantes compartilharem os fatos.

    Foi difícil segurar as lágrimas. O ônibus chegou perto do horário marcado e, pouco a pouco, a tristeza tomou cara, braços e pernas. Já não eram mais os estudantes lá de Guerrero desaparecidos. Era como se aqueles, estampados nas camisetas de cada família, estivessem ali. Era por eles que mães e pais criaram forças para andar pelo país e passar a verdadeira história de Ayotzinapa. Eram pais que transformaram suas lágrimas em voz.

    “Nos fazem mais fortes quando vemos que todos vocês estão junto com a gente e querem que tudo isso se resolva. Nossa prioridade agora é que nossos filhos regressem com vida”, afirma J., pai de um dos estudantes.

    No fim do dia a caravana seguia para a Cidade do México, para se encontrar com as outras caravanas espalhadas pelo país, na grande marcha nacional no dia 20 de novembro do ano passado.

    Um ano

    Hoje, 26 de setembro, as ruas do México vão estar tomadas em busca de uma resposta concreta pelo caso, que ainda não tem uma versão que se possa confirmar ou tão pouco compreender.

    Até agora, três corpos foram identificados e um dos ativistas responsáveis pela investigação do crime, integrante da polícia comunitária de Guerrero, foi encontrado morto com um tiro na cabeça dentro de um táxi. Toda as provas estão sendo anuladas, escondidas ou modificadas.

    E a razão disso é simples: Ayotzinapa foi um crime de estado. O que reflete numa crise intensa do sistema de justiça mexicano, que já conta com uma violação permanente dos direitos humanos.É muito importante que falemos sobre o que ocorreu. Principalmente em um país como o México, onde na última década foram registrados 1183 agressões a jornalistas que documentam movimentos sociais, além de 130 mortos e 38 desaparecidos, não podemos ficar calados.

    É preciso que todos saibam o que acontece na nossa América Latina. Nenhuma mãe precisa passar pelo sofrimento de vestir uma camiseta com o rosto de seu filho desaparecido. “Nin uno más”!