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  • Golpe pra quê?

    Golpe pra quê?

    Um dos principais gestos analíticos para a devida compreensão do atual momento da crise democrática brasileira é a distinção entre a figura pessoal do presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarisimo, entendido como projeto político disruptivo.

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

    Sim, por mais estranho que possa parecer, fica cada vez mais claro que uma coisa não está, necessariamente, vinculada à outra.

    Explico.

    Há Jair Bolsonaro na política brasileira desde a década de 1990. Já bolsonarismo começou a nascer em 2014, quando o até então parlamentar de baixo-clero, inexpressivo, animador de auditório, aumentou seu capital eleitoral em quase 400%, tornando-se o deputado federal mais votado pelo Estado do Rio de Janeiro.

    O bolsonarismo é o resultado de um conjuntura específica de crise, alimentado por uma sociedade que se vê colapsada e impulsionada por outro projeto político disruptivo: o lava-jatismo.

    Durante algum tempo, bolsonarismo e lava-jatismo estiveram na mesma trincheira, mas nunca foram a mesma coisa. Juntos, mas não misturados!

    Bolsonaro soube se aproveitar do clima. Havia concorrentes. Marina Silva era a principal. Jair acabou vencendo a corrida. Venceu, também, porque foi mais esperto.

    Parece que agora, no exato momento em que escrevo este texto, o presidente Jair Bolsonaro começa a fazer o movimento de descolamento do bolsonarismo, abandonando a agenda da ruptura disruptiva e adotando a estratégia do aparelhamento institucional.

    Novamente, vem agindo com astúcia política, e se mostrando ainda mais perigoso para o contrato social inaugurado na redemocratização e instituído pela Carta de 1988.

    Olhando daqui, com certo distanciamento, creio que seja possível localizar na crônica os dois momentos que marcaram a inflexão do Bolsonaro disruptivo, que acreditava estar liderando uma revolução saneadora, para o Bolsonaro sistêmico, manipulador das instituições.

    Foram dois momentos que mostraram ao presidente que se continuasse marchando com os insanos, provavelmente não terminaria o mandato.

    O primeiro foi o dia 22 de maio, quando o presidente Bolsonaro, diante da possibilidade de ter seu aparelho de celular apreendido para perícia por ordem do ministro Celso de Melo, decidiu que, sim, interviria no Supremo Tribunal Federal. Em seus devaneios golpistas, Bolsonaro acreditou mesmo que bastava enviar um destacamento militar ao STF para fechar a corte superior da Justiça brasileira. O mais assustador é que ele não estava sozinho no projeto. Entre os generais palacianos houve quem apoiasse a ideia.

    Ao perceber que generais da ativa, com comando efetivo de tropas, não o acompanhariam na quartelada, o presidente recuou. Os bastidores da conspiração foram revelados na edição de agosto da Revista Piauí, em matéria assinada por Mônica Gugliano.

    O segundo momento foi o dia 18 de junho, quando Fabrício Queiroz, depois de mais de um ano desaparecido, foi preso.

    Queiroz é o fio solto do esqueminha de corrupção de baixo clero que enriqueceu o clã Bolsonaro. O presidente sabia perfeitamente que estava ali o seu ponto fraco e, acuado, se convenceu de que não tinha vara longa o suficiente para bancar o conflito com as outros poderes da República.

    A partir de então, vimos outro Bolsonaro, mais habilidoso no jogo político institucional. Aproximação com o centrão, piscadelas para medidas de transferência de renda, afastamento do núcleo ideológico mais radicalizado e liderado por Olavo de Carvalho, constantes pitos públicos em Paulo Guedes. Tudo isso indica que Bolsonaro está tentando se afastar do bolsonarismo.

    Os pilares do bolsonarismo são o neoliberalismo ortodoxo de Guedes e a guerra ideológica olavista. Ao que parece, Bolsonaro está dando de ombros para ambos. A ver se sustenta.

    Precisamos mencionar ainda o dedo certeiro na escolha do comando do Ministério Público. A dupla Augusto Aras e Lindoura Araújo não está apenas esvaziando a Operação Lava Jato. Está ocupando o território.

    Quando começou o governo, Sérgio Moro parecia muito maior e mais perigoso para as garantias democráticas que o próprio Bolsonaro.

    Moro era o herói laureado pela grande imprensa, o lorde gentil e educado, premiado, capa de revista, maxilar quadrado, terno preto alinhado, com caimento perfeito nos ombros. Já Bolsonaro era o aloprado desajeitado, feioso, o “burro chucro” que prometia tropeçar nas próprias pernas na primeira esquina.

    Nas crises, o tempo corre especialmente rápido.

    Hoje, Moro, sem nenhum poder efetivo de decisão, tenta se manter no jogo, contando com a lealdade de seus aliados na grande mídia e no poder Judiciário. Não é algo irrelevante, mas parece pouco para o homem que, em algum momento, foi o mais poderoso player em atuação no tabuleiro da política nacional.

    Já Bolsonaro demonstra ter aprendido a operar, e manipular, as instituições da República.

    Um dos mais importantes e inesperados acontecimentos nesta “temporada 2020” da crise democrática brasileira é o apequenamento de Moro e o amadurecimento político de Bolsonaro. Como os dados estão rolando, nada garante que até 2022 a situação continuará assim. A fotografia do momento é essa.

    Os dias 28 de agosto e 1º de setembro são outros dois momentos cruciais na recente crônica da crise.

    Em 28 de agosto, Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, foi afastado do mandato por decisão monocrática de Benedito Gonçalves, ministro do Superior Tribunal de Justiça, em episódio inédito na história da moderna democracia brasileira. Witzel foi afasto à revelia da Assembleia Legislativa, sem que seus advogados tenham sequer recebido denúncia formal do Ministério Público. O processo foi manipulado pelo Palácio do Planalto, diretamente pelo gabinete do presidente da República.

    Parte da esquerda comemorou a derrocada de Witzel, como se fosse a redenção da memória de Marielle Franco. A derrocada de Witzel é vitória de Bolsonaro, mais uma. Nada além disso.

    Ao abater Witzel, Bolsonaro matou dois coelhos com única paulada: eliminou um desafeto político e controlou o processo de escolha do próximo procurador Geral do Estado do Rio de Janeiro, a quem caberá decidir o futuro de Flávio, o 01.

    Em 1º de setembro, dando desculpa esfarrapada, Deltan Dallagnol se desligou da operação Lava Jato. Dallagnol enfrenta dificuldades no STF e no Conselho Nacional do Ministério Público, onde Gilmar Mendes e Augusto Aras afiam a lâmina da guilhotina. Dallagnol não seria o primeiro a perder o pescoço na mesma guilhotina que ajudou a montar.

    Caiu, assim, o último grande símbolo da Lava Jato, deixando o terreno livre para que Bolsonaro se aproprie da força-tarefa, direcionando a artilharia lava-jatista aos seus adversários, à esquerda e à direita.

    Vamos combinar, né? É muito melhor do que, simplesmente, extinguir a operação, que ainda conta com sólido capital político. Mas vale usar a marca e manter a narrativa do combate à corrupção, fazendo do Ministério Público uma política “soft”, sem armas de fogo.

    Nem precisa de arma de fogo não. O monopólio do processo penal é mais mortal que fuzil. Além do mais, essa coisa de canhão na rua e milico fechando tribunal é tão demodê.

    Claro que tudo pode mudar, que Dallagnol e Moro podem se recuperar, que os quadros lava-jatistas ainda leais à República de Curitiba podem virar o jogo, novamente. Mas a fotografia do momento, repito, é essa.

    Fato fato mesmo é que nos últimos dias Jair Bolsonaro está dormindo mais tranquilo, assistindo a recuperação de sua popularidade e se sentindo cada vez mais confortável nos corredores do poder. A cadeira já não queima tanto.

    Talvez esteja perguntando a si mesmo: onde eu estava com a cabeça? Golpe pra quê?

  • Qual será o lugar de Aras na história da crise democrática brasileira?

    Qual será o lugar de Aras na história da crise democrática brasileira?

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Não é nenhuma novidade ver profissionais do Direito ocupando posição de grande influência política no Brasil. É algo tão antigo quanto a própria existência nacional. Basta lembrar de Joaquim Nabuco, que no final do século XIX disse que as “faculdades de Direito são a antessala da Câmara dos Deputados”.

    Mas algo mudou no perfil da atuação política dos profissionais do Direito. Empoderados pela Constituição de 1988, eles não se contentam mais em serem apenas bacharéis eleitos que se locupletam com cargos políticos e gordos salários. Pretendem interferir na realidade nacional, participar ativamente do debate público. Têm seus próprios projetos de nação. Estão convencidos de que podem mesmo salvar o país.

    Vários são os nomes: começando por Joaquim Barbosa e chegando até Sérgio Moro, passando por Deltan Dallagnol, Luís Roberto Barroso e tantos outros. Aqui, neste ensaio, quero tratar de um personagem específico, alguém que vem constantemente frequentando o noticiário político: Augusto Aras, Procurador Geral da República.

    Aras representa bem a complexidade da crise democrática brasileira.

    Membro do Ministério Público Federal desde 1987, Aras está longe de ser “bolsonarista raiz”, tampouco é “terrivelmente evangélico”. Na campanha para a PGR, Aras até piscou para os conservadores, falou em “ideologia de gênero”, criticou a criminalização da homofobia. Estava interessado no emprego.

    Bastam dois cliques no Google para descobrir que o jurista baiano não tem compromisso de longa data com a agenda conservadora nos costumes. Bem pelo contrário, pois Aras chegou a oferecer, em 2013, uma festa em homenagem ao ex-deputado petista Emiliano José. Zé Dirceu e Rui Falcão estavam entre os convivas. Por muito menos, o Bolsonarismo já colou o selo de “comunista” na testa de outros.

    Jair Bolsonaro, que de bobo não tem nada, sabe que o PGR é estratégico para a sobrevivência política do presidente da República. Bolsonaro acompanhou de perto, de dentro da Câmara dos Deputados, o que Rodrigo Janot fez com Michel Temer. Duas denúncias em exercício de mandado, o que acabou consumindo todo o capital político de Temer, que não fez mais nada a não ser se defender.

    Fica, então, a pergunta: por que Bolsonaro escolheu um não alinhado para posição tão decisiva? Certamente, havia outros candidatos mais palatáveis à ala ideológica do governo. Difícil saber o que passa na cabeça do presidente. Resta apenas tatear a crônica e sugerir algumas hipóteses. Vamos lá.

    Aras foi indicado por Bolsonaro em 5 de setembro de 2019. Naquela altura, as relações de Bolsonaro com Moro já estavam um tanto estremecidas. COAF, Juízes de garantia e a disputa pelo controle da Polícia Federal. Não eram poucos os pontos de tensão.

    Estava claro para todos que bolsonarismo e lava-jatismo não eram aliados orgânicos.

    A Lava Jato foi determinante para pavimentar a chegada de Bolsonaro no Palácio do Planalto, mas jamais deixou de ter seu próprio projeto de poder. Esse projeto tem nome, sobrenome e horizonte cronológico: Sérgio Moro, 2022. No horizonte lava-jatista, Bolsonaro sempre foi visto como um momento de transição.

    Bolsonaro, escaldado, precisava de alguém no comando do Ministério Público que fosse capaz de agir como contraponto à Lava Jato. Sob todos os aspectos, Aras era o nome ideal. Crítico histórico da Lava Jata, Augusto Aras foi o principal antagonista de Rodrigo Janot, o PGR que entre 2015 e 2017 atuou como fiador dos menudos de Curitiba.

    Para além de rivalidades, vaidades e projetos pessoais de poder, entre Janot e Aras há uma clara diferença naquilo que se refere ao conceito de Ministério Público. Desde a década de 1990 que Janot defende um Ministério Público ativo politicamente, cuja função seria “representar os interesses da sociedade civil, que ainda não é capaz de se fazer representar pelo voto”, como disse em conferência ministrada no congresso anual da OAB em 1996.

    Na época, Janot era o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, a ANPR. Na lógica de Janot, o despreparo da sociedade civil faz com que o voto seja manipulado por políticos profissionais inescrupulosos, cabendo ao Ministério Público a missão de tutelar o povo.

    Já Augusto Aras defende um MP contido e respeitador do sistema político-partidário. Em sua produção intelectual, Aras se mostra muito preocupado com a fragilização dos partidos políticos, o que seria o principal fator de enfraquecimento da democracia representativa brasileira. Nas palavras do próprio Aras:

    “Os partidos políticos são relevantes para a sociedade brasileira, em especial porque despersonalizam o poder político institucionalizado. Todas as vezes que nós temos os salvadores da pátria e aventureiros do poder político, nós corremos o risco de mitificações que geraram ditaduras, como as de Mussolini (Itália) e Hitler (Alemanha) e, no Brasil, com os coronéis da região Nordeste e os caudilhos do sul.”

    Tal como Janot, Aras também vê certo despreparo do povo, que ainda não teria se interessado em fiscalizar a fidelidade partidária dos seus eleitos. Mas enquanto Janot vê a solução no Ministério Público ativista, Aras argumenta que saída passa pela própria política institucional, pelo fortalecimento dos partidos, cabendo ao poder judiciário apenas criar jurisprudência para coibir a infidelidade partidária.

    “Temos de evitar aventureiros”, afirmou Augusto Aras em entrevista ao Jornal “A Tarde” publicada em 19 de junho de 2016.

    Hoje, Aras é subordinado leal de Jair Bolsonaro, que trocou de partidos diversas vezes e que, neste exato momento, é um presidente sem partido. O mundo não gira. O mundo capota.

    O que estou querendo dizer é que a jornada que Augusto Aras está movendo contra a Lava Jato não é apenas estratégia para agradar o chefe e faturar a indicação para o STF. É produto de convicção política, é questão conceitual. Para Aras, o MP não pode aceitar que uma de suas forças tarefas conspire para a destruição do sistema político/partidário.

    Seria superestimar demais Bolsonaro e sua equipe imaginar que eles, conhecendo as convicções teóricas de Aras, sabiam que o procurador baiano é o homem ideal para colocar freios na Lava Jato? Ou será que o governo da décima maior economia do mundo se deixou levar pelo papinho da ideologia de gênero que Aras lançou durante a corrida à PGR e escolheu o chefe do MP baseado apenas nisso?

    Fato mesmo é que Aras está fazendo dois trabalhos. É o protetor dos milicianos fascistas que ocupam o Palácio do Planalto. Mas é também o inimigo mais perigoso que a Operação Lava jato já teve.

    Muitos já tentaram, mas ninguém conseguiu acuar a Lava Jato com a eficiência de Augusto Aras. Os operadores sentiram o golpe e colocaram os pés pelas mãos, numa tentativa desesperada de alargar o apoio na opinião pública ao bater, com pelo menos cinco anos de atraso, na porta de José Serra. Aconteceu no último 3 de julho.

    A Lava Jato tenta, desesperadamente, tirar o nariz da água.

    Retomo a pergunta inicial: qual será o lugar de Augusto Aras na história da crise democrática brasileira?

    Depende da avaliação. O que é pior para o Brasil?

    Se acharmos que é Bolsonaro e sua quadrilha, colocaremos Augusto Aras na lata de lixo da história, junto com outros colaboracionistas. Se acharmos que é a Lava Jato, talvez o jurista baiano tenha alguma chance de sair disso tudo com alguma menção honrosa na biografia.

    E você? O que acha?