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Tag: Associação Juízes para a Democracia

  • A maioria dos juízes brasileiros é punitivista

    A maioria dos juízes brasileiros é punitivista

    Há uma cisão entre os juízes e juízas no Brasil. Uma maioria punitivista se contrapõe a uma minoria garantista. O que defendem os garantistas? O que defendem os punitivistas? O que isso tem a ver com a democracia e com o autoritarismo? O que isso tem a ver com o superencarceramento em vigor no Brasil? O que isso tem a ver com a prisão de muitos réus quando a sentença ainda pode ser alterada? São essas perguntas que buscaremos responder.

    A juíza Laura Benda e o criminalista e professor Sérgio Salomão Shecaira trataram desses temas em evento do Centro Acadêmico XI de Agosto, na segunda 13/08, sobre a presunção de inocência e o caso do ex-presidente Lula.

    Se, desde 1991, existe uma Associação Juízes para a Democracia (AJD) é por que há juízes que não são pela democracia. Assim a juíza, presidenta do Conselho Executivo da AJD, abriu sua exposição. Lembrou que os juízes e as juízas garantistas [que garantem aos réus os direitos estabelecidos na Constituição e nas leis] são uma minoria no Brasil e têm sido perseguidos pelos Tribunais Superiores. Lembrou o exemplo do juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, alvo recente de penalidade administrativa de censura aplicada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo.

    A condenação de Corcioli foi repudiada pela AJD:

     

    “O problema, de demasiada gravidade, é que os fatos que ensejaram a sanção consistem em decisões proferidas pelo referido magistrado paulista na esfera de sua independência funcional e que poderiam ser objetos de impugnação pela via recursal adequada. Todavia, substituiu-se tal via para o intimidatório caminho correcional.

    Importante considerar que grande parcela das decisões judiciais em questão têm a característica de limitarem a atividade punitiva estatal e de privilegiarem a liberdade do ser humano sobre a custódia. Acrescente-se que tais atos decisórios foram devidamente fundamentados em dispositivos legais e constitucionais em vigor no Brasil e em sólidas doutrina e jurisprudência.”

     

    Podemos dizer, em outros termos, que a atividade de Corcioli, que limitava o punitivismo do Estado e era pautada pelo respeito às garantias e aos direitos dos cidadãos estabelecidos na Constituição e nas leis, foi punida pelo Tribunal de Justiça paulista. Corcioli faz parte da minoria, a que se referiu Laura Benda, de juízes garantistas.

    O Estado Democrático de Direito, que tem na presunção de inocência um de seus principais alicerces, pressupõe controles para evitar o arbítrio do Estado contra o cidadão, continua Laura Benda. A tese da juíza é reforçada pela nota que a Associação Juízes para a Democracia publicou recentemente em defesa do Estado Democrático de Direito:

     

    “As diversas instâncias do Poder Judiciário estão se sentindo compelidas a adaptar suas pautas ao calendário eleitoral, e mesmo o Supremo Tribunal Federal, que deveria ser o guardião da Constituição Federal, passa a realizar julgamentos modificando entendimentos jurisprudenciais consagrados para atingir (ou não!) determinados atores políticos. De outro lado, juízes com posicionamentos ideológicos divergentes do campo político majoritário são perseguidos e sofrem procedimentos administrativos com vistas à punição.

    Todas essas circunstâncias levam a Associação Juízes para a Democracia a vir a público para denunciar que a ruptura do Estado Democrático de Direito no Brasil já é uma realidade, aprofundando-se a cada dia e ampliando os termos da violação cotidiana à Constituição e às liberdades cidadãs.”

     

    O professor Sérgio Salomão Shecaira dedicou sua preleção ao juiz Roberto Corcioli. Qualificou-o de íntegro e vítima de um “Tribunal de Justiçamento, que professa uma ideologia fascista”. Ele revelou sua esperança que a condenação seja revertida.

    Shecaira considera ridícula a discussão sobre a presunção de inocência, uma vez que o texto constitucional não deixa nenhuma margem a dúvidas: “Ninguém”, e ele repete, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” O que, então, mudou para o STF colocar em discussão esse princípio constitucional? A resposta para ele é que precisavam “mandar para a prisão alguém que ganhará as eleições se não for condenado”.

    Ele entende que a “magistratura está cindida. Poucos aplicam a lei. O punitivismo é representado pela maioria dos juízes”. Conta ele que 45% dos habeas corpus levados ao Superior Tribunal de Justiça tem origem em São Paulo, embora o estado tenha 22% da população. Qual seria a razão, indaga ele e responde: “O Tribunal de Justiça de São Paulo não cumpre a lei, nem para questões sumuladas, nem para cálculo de penas. E estão indo para a cadeia os três Ps: pobres, pretos e periféricos”.

    Outro dado, que reforça o punitivismo dos magistrados paulistas, nos é trazido por Luciana Zaffalon em sua tese doutorado: São Paulo tinha 221.636 pessoas presas em 2016. Ou seja, com 22% da população do país, o estado de São Paulo “concentra aproximadamente 36% da população prisional do país”.

    Rosa Weber não tinha domínio do fato

    Ele volta um pouco na história para lembrar do “Mensalão” (Ação Penal 470 – AP470) e sua relação com a Lava Jato. Lembra que Rosa Weber, que tinha Sérgio Moro como assessor, proferiu a pérola: “Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”. Lembra também que Claus Roxin, que desenvolveu a teoria domínio, afirmou que o uso feito do domínio do fato na AP470 não cabia na teoria dele. Declara Shecaira, por fim, “Rosa Weber não tinha domínio do fato.”

    Aquilo que o “Mensalão” teve de sui generis, condenar sem provas, foi radicalizado com a Lava Jato. “Se for para aplicar a lei, não dá para condenar Lula. Sérgio Moro está lá para condenar. Ele não é um juiz. Falta a ele um dos princípios mais caros aos magistrados: olhar o caso desde o princípio para ver se o réu é culpado ou não”.”, afirma.

    O jurista José Afonso da Silva, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, em parecer sobre o caso Lula, lembrado por Shecaira, enfatizou:

     

    “O princípio ou garantia da presunção de inocência tem a extensão que lhe deu o inciso LVII do artigo 5o da Constituição Federal, qual seja, até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A execução de pena antes disso viola gravemente a Constituição num dos elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito, que é um direito individual fundamental.”

     

    Você errou? Não tem problema, é só continuar errando

    Disse Lênio Luiz Streck sobre o voto de Rosa Weber no Habeas Corpus de Lula: “Votar contra a presunção da inocência em nome do ‘princípio [sic] da colegialidade’ é manter coerência? Colegialidade é só forma? É puro consenso? De minha parte, afirmo que, se a opção fosse por ser coerente com o que há de mais fundamental na democracia, o voto seria pelo que está na Constituição Federal de 1988, a presunção da inocência. Isto porque a integridade controla e baliza a coerência. Seja coerente sem ter integridade, e você pode ser coerente no erro. É algo como ‘você errou? Não tem problema, é só continuar errando.’”

    Shecaira agrega o voto de Rosa Weber à recusa de Carmem Lúcia em colocar em votação pelo pleno do STF a questão do cumprimento da pena quando ainda existe a possibilidade da sentença pode ser modificada: “A razão é ideológica. Não se quer que tenhamos um presidente de esquerda no Brasil. Há uma evidência solar que agem contra os interesses do povo”.

    Notas

    1 Para ver a nota pública “A censura aplicada ao juiz Roberto Corcioli fragiliza o Estado Democrático de Direito”, publicada pela Associação Juízes para a Democracia:

    https://ajd.org.br/nota-publica-a-censura-aplicada-ao-juiz-roberto-corcioli-fragiliza-o-estado-democratico-de-direito/

    2 Para ver a nota pública, da Associação Juízes para a Democracia, em defesa do Estado Democrático de Direito:

    https://ajd.org.br/nota-publica-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito/

    3 Para ver o parecer do jurista José Afonso da Silva:

     

    https://marins.jusbrasil.com.br/noticias/561691906/parecer-do-jurista-jose-afonso-da-silva-contra-prisao-de-lula-e-protocolado-no-stf

     

    4 O artigo de Lênio Luiz Streck sobre o voto de Rosa Weber está em:

    A colegialidade, o direito e moral em guerra e a sinuca de bico do STF. Por Lenio Streck

    5  A íntegra da tese “Uma espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema de justiça paulista com as disputas da política convencional”, de autoria de Luciana Zaffalon Leme Cardoso, está disponível em:

    http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18099.

    6 Esse texto tem o selo 009-2018 do Observatório do Judiciário.

    7 Para ver a apresentação e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja:

    Observatório do Judiciário: convidamos você para participar

  • Ministro do STF e Procurador-Geral da República esconderam provas no “Mensalão”

    Ministro do STF e Procurador-Geral da República esconderam provas no “Mensalão”

    Imaginemos uma cena dantesca: um ministro do STF e um procurador-geral da República resolvem dividir um inquérito em dois e, conforme vão chegando certas “provas”, que favoreceriam os réus, eles as alocam no inquérito sigiloso, cujo acesso era negado a todos.

    Pois bem, como veremos, foi exatamente isso que ocorreu na Ação Penal 470, chamada de Mensalão pela imprensa tradicional: a defesa só teve acesso a certas provas, que inocentariam seu cliente. após a condenação.

    O jornalista Ricardo Melo escreveu, para a Folha de S. Paulo, em 03/03/2014, que o único caminho para o Supremo Tribunal Federal reaver o respeito dos brasileiros seria: “refazer, do começo ao fim, o julgamento do chamado mensalão petista”. No meio de diversas irregularidades, uma salta aos olhos: “Talvez a mais espantosa das ilegalidades, a ocultação deliberada de investigações. A jabuticaba jurídica tem nome e número: inquérito 2474, conduzido paralelamente à investigação que originou a AP 470”.

    Tudo começou quando uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a CPMI dos Correios, pediu ao Ministério Público o indiciamento de 126 pessoas. Em dez dias, o Procurador-Geral da República, Antônio Fernando de Souza, transformou 126 em 40 acusados e apresentou denúncia ao STF. Qual teria sido seu critério de seleção para esses 40 acusados?

    Mas deixemos Maria Inês Nassif contar os detalhes. Ela publicou este texto na Carta Maior em junho de 2013.

    Joaquim Barbosa e Antonio Fernando de Souza esconderam provas que poderiam mudar julgamento do “mensalão”

    São Paulo – O então procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, criaram em 2006 e mantiveram sob segredo de Justiça dois procedimentos judiciais paralelos à Ação Penal 470. Por esses dois outros procedimentos passaram parte das investigações do chamado caso do “Mensalão”.

    O inquérito sigiloso de número 2474 correu paralelamente ao processo do chamado Mensalão, que levou à condenação, pelo STF, de 38 dos 40 denunciados por envolvimento no caso, no final do ano passado, e continua em aberto. [Esse inquérito 2474 ainda está em segredo de justiça e foi remetido à Justiça Federal do Distrito Federal, em maio de 2018. O que justificaria esses 12 anos de inquérito?]

    E desde 2006 corre na 12ª Vara de Justiça Federal, em Brasília, um processo contra o ex-gerente executivo do Banco do Brasil, Cláudio de Castro Vasconcelos, pelo exato mesmo crime pelo qual foi condenado no Supremo Tribunal Federal (STF) o ex-diretor de Marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato.

    Esses dois inquéritos receberam provas colhidas posteriormente ao oferecimento da denúncia ao STF contra os réus do mensalão pelo procurador Antônio Fernando, em 30 de março de 2006. Pelo menos uma delas, o Laudo de número 2828, do Instituto de Criminalística da Polícia Federal, teria o poder de inocentar Pizzolato.

    O advogado do ex-diretor do BB, Marthius Sávio Cavalcante Lobato, todavia, apenas teve acesso ao inquérito que corre em primeira instância contra Vasconcelos no dia 29 de abril deste ano [2013], isto é, há um mês e quase meio ano depois da condenação de seu cliente. E não mais tempo do que isso descobriu que existe o tal inquérito secreto, de número 2474, em andamento no STF, também relatado por Joaquim Barbosa, que ninguém sabe do que se trata – apenas que é um desmembramento da Ação Penal 470 –, mas que serviu para dar encaminhamento às provas que foram colhidas pela Polícia Federal depois da formalização da denúncia de Souza ao Supremo. Essas provas não puderam ser usadas a favor de nenhum dos condenados do mensalão.

    Essa inusitada fórmula jurídica, segundo a qual foram selecionados 40 réus entre 126 apontados por uma Comissão Parlamentar de Inquérito e decidido a dedo para qual dos dois procedimentos judiciais (uma Ação Penal em curso, pública, e uma investigação sob sigilo) réus acusados do mesmo crime deveriam constar, foi definida por Barbosa, em entendimento com o procurador-geral da República da época, Antônio Fernando, conforme documento obtido pelo advogado. Roberto Gurgel assumiu em julho de 2009, quando o procedimento secreto já existia.

    A história do processo que ninguém viu

    Em março de 2006, a CPMI dos Correios divulgou um relatório preliminar pedindo o indiciamento de 126 pessoas. Dez dias depois, em 30 de março de 2006, o procurador-geral da República, rápido no gatilho, já tinha se convencido da culpa de 40, número escolhido para relacionar o episódio à estória de Ali Babá. A base das duas acusações era desvio de dinheiro público (que era da bandeira Visa Internacional, mas foi considerado público, por uma licença jurídica não muito clara) do Fundo de Incentivo Visanet para o Partido dos Trabalhadores, que teria corrompido a sua base aliada com esse dinheiro. Era vital para essa tese, que transformava o dinheiro da Visa Internacional, aplicado em publicidade do BB e de mais 24 bancos entre 2001 e 2005, em dinheiro público, ter um petista no meio. Pizzolato era do PT e foi diretor de Marketing de 2003 a 2005.

    Pizzolato assinou três notas técnicas com outro diretor e dois gerentes-executivos recomendando campanhas de publicidade e patrocínio (e deixou de assinar uma) e foi sozinho para a lista dos 40. Os outros três, que estavam no Banco do Brasil desde o governo anterior, não foram mencionados. A Procuradoria-Geral da República, todavia, encaminhou em agosto para a primeira instância de Brasília o caso do gerente-executivo de Publicidade, Cláudio de Castro Vasconcelos, que vinha do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso. O caso era o mesmo: supostas irregularidades no uso do Fundo de Incentivo Visanet pelo BB, no período de 2001 a 2005, que poderia ter favorecido a agência DNA, do empresário Marcos Valério. Um, Pizzolato, que era petista de carteirinha, respondeu no Supremo por uma decisão conjunta. Outro, Cláudio Gonçalves, responde na primeira instância porque o procurador considerou que ele não tinha foro privilegiado. Tratamento diferente para casos absolutamente iguais.

    Barbosa decretou segredo de Justiça para o processo da primeira instância, que ficou lá, desconhecido de todos, até 31 de outubro do ano passado, quando a Folha de S. Paulo publicou uma matéria se referindo a isso (“Mensalão provoca a quebra de sigilo de ex-executivos do BB”). Faltavam poucos dias para a definição da pena dos condenados, entre eles Pizzolato, e seu advogado dependia de Barbosa para que o juiz da 12ª Vara desse acesso aos autos do processo, já que foi o ministro do STF que decretou o sigilo.

    O relator da AP 470 interrompera o julgamento para ir à Alemanha, para tratamento de saúde. Na sua ausência, o requerimento do advogado teria que ser analisado pelo revisor da ação, Ricardo Lewandowski. Barbosa não deixou. Por telefone, deu ordens à sua assessoria que analisaria o pedido quando voltasse.

    Quando voltou, Barbosa não respondeu ao pedido. Continuou o julgamento. No dia 21 de novembro, Pizzolato recebeu a pena, sem que seu advogado conseguisse ter acesso ao processo que, pelo simples fato de existir, provava que o ex-diretor do BB não tomou decisões sozinho – e essa, afinal, foi a base da argumentação de todo o processo de mensalão (um petista dentro de um banco público desvia dinheiro para suprir um esquema de compra de votos no Congresso feito pelo seu partido).

    No dia 17 de dezembro, quando o STF fazia as últimas reuniões do julgamento para decidir a pena dos condenados, Barbosa foi obrigado a dar ciência ao plenário de um agravo regimental do advogado de Pizzolato. No meio da sessão, anunciou “pequenos problemas a resolver” e mencionou um “agravo regimental do réu Henrique Pizzolato que já resolvemos”. No final da sessão, voltou ao assunto, informando que decidira sozinho indeferir o pedido, já que “ele (Pizzolato) pediu vistas a um processo que não tramita no Supremo”.

    O único ministro que parece ter entendido que o assunto não era tão banal quanto falava Barbosa foi Marco Aurélio Mello.

    Mello: “O incidente [que motivou o agravo] diz respeito a que processo? Ao revelador da Ação Penal nº 470?”
    Barbosa: “Não”.
    Mello: “É um processo que ainda está em curso, é isso?”
    Barbosa: “São desdobramentos desta Ação Penal. Há inúmeros procedimentos em curso.”
    Mello: “Pois é, mas teríamos que apregoar esse outro processo que ainda está em curso, porque o julgamento da Ação Penal nº 470 está praticamente encerrado, não é?”
    Barbosa: “É, eu acredito que isso deve ser tido como motivação…”
    Mello: “Receio que a inserção dessa decisão no julgamento da Ação Penal nº 470 acabe motivando a interposição de embargos declaratórios.”
    Barbosa: “Pois é. Mas enfim, eu estou indeferindo.”

    Segue-se uma tentativa de Marco Aurélio de obter mais informações sobre o processo, e de prevenir o ministro Barbosa que ele abria brechas para embargos futuros, se o tema fosse relacionado. Barbosa reitera sempre com um “indeferi”, “neguei”. (Clique aqui e veja trecho da sessão)
    O agravo foi negado monocraticamente por Barbosa, sob o argumento de que quem deveria abrir o sigilo de justiça era o juiz da 12ª Vara. O advogado apenas consegui vistas ao processo no DF no dia 29 de abril do mês passado.

    Um inquérito que ninguém viu

    O processo da 12ª Vara, no entanto, não é um mero desdobramento da Ação Penal 470, nem o único. O procurador-geral Antonio Fernando fez a denúncia do caso do Mensalão ao STF em 30 de março de 2006. Em 9 de outubro daquele ano, em uma petição ao relator do caso, solicitou a Barbosa a abertura de outro procedimento, além do inquérito original (o 2245, que virou a AP 470), para dar vazão aos documentos que ainda estavam sendo produzidos por uma investigação que não havia terminado (Souza fez as denúncias, portanto, sem que as investigações de todo o caso tivessem sido concluídas; a Polícia Federal e outros órgãos do governo continuavam a produzir provas).

    O ofício é uma prova da existência do inquérito 2245, o procedimento paralelo criado por Barbosa que foi criado em outubro de 2006, imediatamente ganhou sigilo de justiça e ficou sob a responsabilidade do mesmo relator Joaquim Barbosa.

    Diz o procurador na petição: “Por ter conseguido formar juízo sobre a autoria e materialidade de diversos fatos penalmente ilícitos, objeto do inquérito 2245, já oferecia a denúncia contra os respectivos autores”, mas, informa Souza, como a investigação continuar, os documentos que elas geram têm sido anexados ao processo já em andamento, o que poderia dar margens à invalidação dos “atos investigatórios posteriores”. E aí sugere: “Assim requeiro, com a maior brevidade, que novos documentos sejam autuados em separado, como inquérito (…) ”.

    Barbosa defere o pedido nos seguintes termos: “em relação aos fatos não constantes da denúncia oferecida, defiro o pedido para que os documentos sejam autuados em separado, como inquérito. Por razões de ordem prática, gerar confusão.”

    No inquérito paralelo, o de número 2474, foram desovados todos os resultados da investigação conduzida depois disso. Nenhum condenado no processo chamado Mensalão teve acesso a provas produzidas pela Polícia Federal ou por outros órgãos do governo depois da criação desse inquérito porque todas todos esses documentos foram enviados para um inquérito mantido todo o tempo em segredo pelo Supremo Tribunal Federal.

    Notas

    1 A matéria da jornalista Maria Inês Nassif para a Carta Maior, 03/junho/2013, foi publicada em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Joaquim-Barbosa-e-Antonio-Fernando-de-Souza-esconderam-provas-que-poderiam-mudar-julgamento-do-%27mensalao%27/4/28145

    2 A matéria do jornalista Ricardo Melo para a Folha de S. Paulo, 03/março/2014, está em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ricardomelo/2014/03/1420220-comecar-de-novo.shtml

    3 Esse texto tem o selo 008-2018 do Observatório do Judiciário.
    4 Para ver a apresentação e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja: https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/

  • O funcionamento aristocrático da Justiça paulista

    O funcionamento aristocrático da Justiça paulista

    O direito e a administração da justiça tanto são um produto das sociedades
    quanto são produtores das sociedades, ou seja,
    eles podem ter uma relativa autonomia para aprofundar a democracia
    ou para impedir o aprofundamento da democracia.
    Os tribunais podem ser parte de uma solução democrática
    ou parte de um problema democrático.
    Boaventura de Sousa Santos

    O Tribunal de Justiça e o Ministério Publico de São Paulo são politizados? São partidarizados? Contribuem ou atrapalham o aprofundamento da democracia? Essas foram as questões que Luciana Zaffalon buscou responder, em sua tese de doutorado de 2017, tendo como objeto de análise o Sistema de Justiça do Estado de São Paulo e os impactos sociais da administração da justiça nos campos da segurança pública e penitenciário.

    “O Poder Judiciário e o Ministério Público do Estado de São Paulo agem politicamente como se partidos políticos fossem. Isto é, representam e protegem uma fração da sociedade.” Essa é sua principal conclusão

    O estudo de Zaffalon nos ensina que Geraldo Alckmin teve papel destacado, no período analisado, entre 2012 e 2016, como o protagonista das reformas legislativas que beneficiaram as carreiras jurídicas. Diz o estudo: “São os atos de vontade do governador do Estado de São Paulo que tornam possível o funcionamento aristocrático da justiça local, viabilizando a evolução da organização corporativa do poder em detrimento da cidadania.”

    O parágrafo final da tese conecta os ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos com a realidade do Sistema de Justiça paulista: “Lembramos por fim, em diálogo uma vez mais com Boaventura de Sousa Santos, que ‘nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e seletivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade’. Ao analisar as contribuições da justiça local para o aprofundamento democrático, concluímos que o Estado de São Paulo leva ao limite o postulado de Boaventura de Sousa Santos que afirma que “vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas”.

    Reproduzimos a entrevista que Luciana Zaffalon concedeu à jornalista Débora Melo da revista Carta Capital, em julho de 2017.

    “Há uma dinâmica que financia a atuação elitista da Justiça paulista”

    Pesquisadora da FGV revela como o Judiciário atua para blindar o Executivo e, assim, garante benefícios corporativos para além do teto constitucional

    Partindo da ideia de que o sistema de Justiça pode tanto favorecer o aprofundamento democrático quanto criar obstáculos ao aperfeiçoamento da democracia, a pesquisadora Luciana Zaffalon, da Fundação Getulio Vargas, se propôs a desvendar o que chama de processo de politização do Judiciário paulista em sua tese de doutorado em administração pública e governo.

    Ao mesmo tempo em que atua de forma a blindar a política de segurança pública do governo do Estado –todo o período analisado diz respeito à gestão de Geraldo Alckmin (PSDB)–, o Judiciário paulista negocia formas de garantir a manutenção e a ampliação de seus benefícios corporativos. Não por acaso, a única situação em que o Executivo foi derrotado pelos desembargadores em 100% dos processos foi quando questionou a aplicação do teto remuneratório das carreiras do serviço público.

    “Os números demonstram que as verbas estão chegando e os pedidos do governo estão sendo atendidos”, disse Zaffalon em entrevista a CartaCapital.

    “Todo o espírito da tese é dizer de que maneira os interesses se confundem, de que maneira os interesses corporativos estão se sobrepondo às garantias de cidadania das pessoas mais vulneráveis do Estado, sejam as que estão privadas de liberdade, sejam as que estão nas periferias das grandes cidades e são afetadas por políticas de segurança dramaticamente cruéis”, continuou a advogada, que por quatro anos atuou como Ouvidora-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (2010-2014).

    Intitulada Uma Espiral Elitista de Afirmação Corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema de Justiça paulista com as disputas da política convencional, a tese apresentada à FGV revela que a presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) é bastante solícita aos pedidos do Executivo do Estado. A suspensão de decisões que contrariam os interesses do governo é comum na Corte.

    A pesquisa leva em conta as duas últimas gestões do TJ-SP (de 2012 a 2015) e analisa os impactos sociais das decisões da Justiça na segurança pública e no sistema penitenciário. Uma das conclusões do estudo é que o Judiciário paulista atua de forma “antidemocrática”: representa e protege as elites por meio do corporativismo e reserva às classes populares as forças de segurança e o sistema prisional.

    CartaCapital: O que a levou a fazer essa pesquisa?
    Luciana Zaffalon: Eu sempre tive clareza de que o sistema de Justiça tanto pode favorecer o aprofundamento democrático como pode obstaculizar uma democratização mais profunda da nossa sociedade. E foi quando eu fui trabalhar como ouvidora externa da Defensoria Pública que eu passei a compreender dinâmicas que estavam, até então, completamente invisíveis para mim a respeito do funcionamento de uma instituição de Justiça e das relações que são mantidas com diferentes entes como, por exemplo, o Executivo do Estado.

    CC: Qual a principal conclusão a que você chegou sobre o funcionamento dos três Poderes em São Paulo?
    LZ: Há um imbricamento muito profundo entre os três Poderes, o que cria uma esfera de atuação elitista da Justiça, uma atuação mobilizada quase invariavelmente por interesses corporativos.

    CC: Que obstáculos você encontrou?
    LZ: Foi impossível trabalhar com as folhas de pagamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. As folhas de pagamento do Ministério Público estavam disponíveis em planilhas de Excel, facilmente manuseáveis. Com a Defensoria Pública, os dados estavam em PDF, o que contraria a Lei de Acesso à Informação, mas ainda assim foi possível baixar e converter os arquivos.
    Com relação ao tribunal, isso foi absolutamente impossível. Os arquivos foram disponibilizados em formato de imagem, com inúmeras páginas, e não estavam em ordem alfabética. Então eu acabei usando os dados publicados pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça].

    CC: O que isso representa?
    LZ: São decisões institucionais que demonstram onde está o compromisso e onde não está o compromisso. E o compromisso não está com a transparência.

    CC: Onde está o compromisso?
    LZ: O que fica claro é que, de fato, a gente observa uma espiral elitista de afirmação corporativa.

    CC: Quais foram as maiores surpresas que você teve durante a realização desse trabalho?
    LZ: A única surpresa positiva foi o fato de as planilhas remuneratórias do Ministério Público estarem no formato adequado. As mais dramáticas dizem respeito ao volume de suplementações orçamentárias recebidas pelo Tribunal de Justiça. Cabe à Assembleia Legislativa analisar a abertura desses créditos, mas, durante todo o período analisado, a Assembleia transferiu para o Executivo essa prerrogativa. Isso causa um prejuízo concreto, porque a suplementação orçamentária passa a ser negociada dentro do gabinete do governo, fugindo de qualquer possibilidade de controle público. Uma das principais surpresas que eu tive foi o fato de o tribunal ter recebido 21% do total de suplementações orçamentárias do Estado em um único ano, em 2015. É um volume muito grande de dinheiro para ser negociado dessa forma. Também chamou a atenção o fato de apenas 3% do Ministério Público não receber acima do limite do teto constitucional [33.700 reais].

    CC: E quais outros aspectos negativos você encontrou?
    LZ: A surpresa que me fez sentir um mal estar físico durante a execução da pesquisa foi o caso da “suspensão de segurança”, figura processual que garante que qualquer ente público possa pedir direto à presidência do tribunal a suspensão dos efeitos de uma decisão de primeira instância que lhe contrarie.
    Eu quis entender de que maneira a presidência do TJ, nas gestões [Renato] Nalini e [Ivan] Sartori, se posicionou diante dos pedidos do governo Estado no período analisado. O meu recorte de análise foi segurança pública e sistema prisional. Eu tomei o cuidado de ser o mais conservadora possível na definição da minha metodologia, para não correr o risco de ser acusada de qualquer enviesamento.
    Então eu analisei todos os casos, de todos os entes públicos que pediram para a presidência do tribunal suspender os efeitos de uma decisão de primeira instância que lhe contrariava. A média de suspensão observada no período foi de 41%, mas alguns casos fogem completamente dessa média. E o que me deixou abalada diz respeito à forma como a presidência do tribunal atendeu aos pedidos do governo do Estado com relação à garantia de direitos mínimos para as pessoas privadas de liberdade.
    Do que eu estou falando? Eu estou falando da observância do Estatuto da Criança e do Adolescente, de problemas de superlotação na Fundação Casa, problemas com banheiros e com ventilação, de garantia de banho quente para presos com tuberculose, por exemplo, de garantia de atendimento médico e de instalação de equipe mínima de saúde. Em uma unidade prisional morreram 60 pessoas, por questões de saúde, em um único ano. É disso que eu estou falando.
    De todos os casos analisados, em apenas um caso que dizia respeito à garantia de direitos para pessoas privadas de liberdade a presidência do tribunal não atendeu ao pedido do governo.

    CC: A que você atribui isso?
    LZ: À negociação de orçamento, à suplementação orçamentária. Todo o espírito da tese é justamente dizer de que maneira os interesses se confundem, de que maneira os interesses corporativos estão se sobrepondo às garantias de cidadania das pessoas mais vulneráveis do Estado, sejam as que estão privadas de liberdade, sejam as que estão nas periferias das grandes cidades e são afetadas por políticas de segurança dramaticamente cruéis.
    Enquanto isso, as instituições de Justiça estão em negociações que garantam os seus benefícios corporativos, independentemente de isso representar um passo atrás na luta pela garantia de direitos das pessoas que mais precisam delas.
    Como eu disse, o Tribunal de Justiça chegou a receber 21% das suplementações orçamentárias do Estado. Os números demonstram que as verbas estão chegando e os pedidos do governo estão sendo atendidos. Então há uma dinâmica que financia a atuação elitista do sistema de Justiça e que está, na outra ponta, representando o abandono da sua função primordial, que é garantir o Direito e funcionar como uma parte apartada do Executivo no mecanismo de execução de peso e contrapeso.

    CC: Por que o recorte foi feito na segurança pública e no sistema penitenciário?
    LZ: Porque é a parte mais dramática. Há dois grandes campos abarcados na pesquisa. Um é a forma como sociedade controla o Estado, porque não podemos esquecer que as carreiras jurídicas são compostas por funcionários públicos, que têm que ser cobrados como tal.
    De outro lado, temos o controle que o Estado exerce sobre a população, e o elemento mais cruel disso, mais pesado, se dá por meio da atuação das forças policiais, pelo poder de força do Estado. Isso se dá tanto na atuação das polícias quanto na privação de liberdade.
    Uma questão em relação ao Ministério Público, por exemplo, é que a Constituição Federal atribui a esse órgão a competência para fazer o controle externo da atuação das polícias. Mas, ao olhar para o Estado de São Paulo, nós observamos que os últimos sete secretários da Segurança Pública são oriundos do Ministério Público. Ou seja, o órgão que deveria fazer o controle externo das polícias se converte no gestor da política de segurança pública.

    CC: Essa relação entre os três Poderes ajuda a explicar a permanência do PSDB no governo de São Paulo por mais de 20 anos?
    LZ: Eu acho que a falta de freios e contrapesos afeta o aprofundamento democrático e gera resultados como esse, como a falta de alternância.

    Notas

    1 A entrevista de Luciana Zaffalon, feita por Débora Melo, foi originalmente publicada em https://www.cartacapital.com.br/politica/ha-uma-dinamica-que-financia-a-atuacao-elitista-da-justica-paulista.

    2 A íntegra da tese “Uma espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema de justiça paulista com as disputas da política convencional”, de autoria de Luciana Zaffalon Leme Cardoso, está disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18099.

    3 Esse texto tem o selo 007-2018 do Observatório do Judiciário.

    4 Para ver a apresentação e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja: https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/

  • ABJD repudia aumento de 16,38% aprovado pelo STF e CSMP

    ABJD repudia aumento de 16,38% aprovado pelo STF e CSMP

    Em carta enviada aos membros do Congresso Nacional a ABJD manifesta repúdio acerca dos reajustes do Judiciário e do Ministério Público, exigindo a rejeição do projeto.

    Veja a integra abaixo:

    Excelentíssimos senhores membros do Congresso Nacional

    A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia- ABJD, entidade que congrega membros de todas as carreiras jurídicas, estudantes de direito e membros da academia, vem a público manifestar seu repúdio ao aumento de 16,38% no subsídio dos magistrados brasileiros e membros do Ministério Público, decidido pelo Supremo Tribunal Federal em sessão administrativa na última quarta-feira, dia 08 de agosto de 2018 e pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal no dia 10 de agosto de 2018.

    Enquanto o governo Temer faz  mais anúncios de corte de benefícios e de investimentos em saúde, educação, pesquisa e tecnologia, a pobreza extrema volta a ser uma realidade no Brasil e a reforma trabalhista produz seus efeitos nefastos sobre a vida das trabalhadoras e dos trabalhadores, o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal tomarem uma decisão que, por seu efeito cascata, terá impacto de mais de R$ 4 bilhões nas contas da União e dos estados, sendo 717,2 milhões por ano  apenas no Judiciário federal nas três instâncias, soa como deboche e descaso com o que está acontecendo no país.

    Neste sentido, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD que acompanha o comportamento do Poder Judiciário e do sistema de justiça, Incluindo o debate sobre remuneração de cargos das carreiras jurídicas, dirige-se aos membros do Congresso Nacional, exigindo um mínimo de coerência  do Poder Legislativo que, por sua maioria, aprovou os chamados “pacote de maldades” do governo Temer, para que diga não aos privilégios, rejeitando esse projeto injusto e indigno.

    Nota:

    1 Esse texto tem o selo 006-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ver a apresentação e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja: https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/

  • Justiça: respeito às regras não causa impunidade

    Justiça: respeito às regras não causa impunidade

    Você sabia que o Código de Processo Penal (CPP) brasileiro é de 1941? Você sabe que ele regula os direitos e garantias dos cidadãos nos processos daqueles acusados de crime. Mas sabia que o CPP entrou em vigor por um decreto-lei imposto por Getúlio Vargas durante o Estado Novo?

    Pois bem, aprendemos com o texto que se segue, de Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa, que o Código de Processo Penal do Brasil é de 1941 e que é, segundo eles, “autoritário e assumidamente fascista (basta ler a exposição de motivos)”.

    Fomos ler a Exposição de Motivos do projeto do Código de Processo Penal do Brasil de Francisco Campos, em setembro de 1941, e encontramos o seguinte parágrafo:

    “As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico‑penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código.”

    Não precisamos continuar a leitura da exposição de motivos para concordar com os autores, não é mesmo?

    Temos aqui no nosso país, portanto, uma penosa convivência entre um Código de Processo Penal de cunho autoritário e a democrática Constituição de 1988. Além dessa contraposição, não está efetivado, no país, o cumprimento completo dos preceitos da Convenção Americana de Direitos Humanos, nos ensinam os autores.

    Bem, vamos ao ótimo texto de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, para o Consultor Jurídico:

    Agente público que faz o que não pode dá causa à impunidade

    Recordando a clássica lição de James Goldschmidt[1], o processo penal de uma nação não é outra coisa que um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de sua Constituição, de modo que a uma Constituição autoritária teremos um processo penal inquisitório e autoritário; mas, por outro lado, diante de uma Constituição democrática, inexoravelmente teremos que democratizar o processo penal.

    Esse é um dos desafios não totalmente superados pelo processo penal brasileiro, na medida em que temos um CPP [Código de Processo Penal] de 1941, autoritário e assumidamente fascista (basta ler a exposição de motivos), convivendo com uma Constituição democrática de 1988. Essa acoplagem e conformidade constitucional e convencional (CADH) não está de todo efetivada e cobra um preço altíssimo no dia a dia forense, especialmente pela baixa interiorização e efetivação de tais garantias fundamentais por parte dos tribunais.

     

    A busca domiciliar é uma medida extremamente invasiva e violenta,

    gerando grave restrição nos direitos fundamentais da dignidade e proteção do domicilio,

    na medida em que “a casa deve(ria) ser um asilo inviolável do individuo”.

     

    Um dos fatores de maior fragilização do direito fundamental é a possibilidade de entrada por parte de agentes do Estado em caso de “flagrante delito” ou ainda “com consentimento do morador” (pois tal consentimento deveria se dirigir apenas a outros particulares, não a agentes do Estado, por evidente constrangimento situacional). Contribui para o abuso a conjugação das hipóteses de crime permanente = flagrante permanente, dando margem a que a polícia ingresse no domicílio a qualquer hora do dia ou da noite, sem o consentimento do morador e sem autorização judicial.

    Nessa perspectiva, temos insistido que, mesmo no caso de “crime permanente”, é imprescindível que exista “justa causa” prévia à entrada na casa, elementos robustos prévios ao ingresso e que permitam inferir a existência do crime permanente. Não pode a situação de flagrância ser imaginada. Essa linha argumentativa também foi acolhida pelo STF no REXT 603.616 e no STJ (importante ler o Recurso Especial 1.574.681-RS, rel. min. Schietti Cruz, j. 20/4/2017).

    Na mesma perspectiva, Alexandre Morais da Rosa exemplifica que, “dito diretamente: deve ser posta e não pressuposta/imaginada. Não basta, por exemplo, que o agente estatal afirme ter recebido uma ligação anônima, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegado droga, na casa ‘x’, bem como que ‘acharam’ que havia droga porque era um traficante conhecido, muito menos que pelo comportamento do agente ‘parecia’ que havia droga. É preciso que o flagrante esteja visualizado ex ante. Inexiste flagrante permanente imaginado. Assim é que a atuação policial será abusiva e inconstitucional, por violação do domicílio do agente, quando movida pelo imaginário, mesmo confirmado posteriormente. A materialidade estará contaminada pela árvore dos frutos envenenados”[2].

     

    Também é preciso repensar a questão do “consentimento” dado pelo morador à autoridade policial.

     

    Duas situações[3]:

    a. Quando alguém está cautelarmente preso (prisão preventiva ou temporária) ou em flagrante e é conduzido pela autoridade policial até sua residência, “consentindo” que os policiais ingressem no seu interior e façam a busca e apreensão, entendemos que há uma inequívoca ilegalidade, pois estamos diante de um consentimento viciado, inválido portanto. É insuficiente o consentimento dado nessa situação, por força da intimidação ambiental ou situacional a que está submetido o agente. Deve-se considerar viciado o consentimento dado nessas situações e, portanto, ilegal a busca domiciliar, pois há um inegável constrangimento situacional. Analisando um caso desses, o Tribunal Supremo da Espanha (STS, 13 de junho de 1992)[4] entendeu na mesma linha, ou seja, de que o detido não está em condições de expressar livremente sua vontade e existe uma “intimidação ambiental” que macula o ato:

    O problema radica em saber se um detido ou preso está em condições de expressar sua vontade favoravelmente a busca e apreensão, em razão precisamente da privação de liberdade a que está submetido, o que conduziria a afirmar que se trata de uma vontade viciada por uma intimidação sui generis… e dizemos sui generis porque o temor racional e fundado de sofrer um mal iminente e grave em sua pessoa e bens, ou pessoa e bens de seu cônjuge, descendentes ou ascendentes, não nasce de um comportamento de quem formula o convite ou pedido de autorização para realizar a busca com o consentimento do agente, senão da situação mesma de preso, isto é, de uma intimidação ambiental (grifo e tradução nossa).

    Nessa perspectiva, a busca e apreensão em domicílio de imputado cautelarmente preso somente pode ser realizada com mandado judicial.

    Há uma presunção de vício de consentimento em decorrência da situação em que se encontra.

    b. Insuficiência de consentimento em se tratando de agentes públicos. Outra linha de argumentação, apontando para a ilegalidade da busca domiciliar feita por autoridades públicas com base no consentimento do morador (mesmo estando em liberdade), vai no sentido de que “inexiste previsão legal de busca domiciliar mediante o mero e suposto consentimento do proprietário, já que a anuência, quando de fato há, é evidentemente dada sob constrangimento. Ingresso não autorizado judicialmente, quando as investigações poderiam facilmente ter conduzido à representação por mandado de busca e apreensão. Pela clara violação ao art. 5º, IX, da Constituição Federal, deverá ser decretada nula a apreensão dos objetos na residência do réu, remanescendo apenas a apreensão decorrente da busca pessoal e as provas dela derivadas”.

    Esse é o entendimento da 3ª Câmara Criminal do TJ-RS (rel. des. Diógenes V. Hassan Ribeiro, Processo 70058172628)[5], que parte da premissa de que quando a Constituição fala em “consentimento” isso não se dirige aos agentes do Estado, quaisquer que sejam, pois esses devem, previamente, obter o mandado judicial. Portanto, quanto ao consentimento, essa autorização constitucional refere-se a particulares cujo ingresso e permanência é autorizado pelo proprietário para afastar o crime de invasão de domicílio do artigo 150 do CP.

    Em que pese o tema continuar sendo controvertido, gradativamente os tribunais começam a decidir de forma mais criteriosa e conforme o texto constitucional, a exemplo das decisões do STF e STJ citadas anteriormente.

    Agora surge mais uma interessante decisão no âmbito do TJ-SP (Apelação Criminal 0011532-88.2017.8.26.0320, 2ª Câmara Criminal, rel. des. Sergio Manzina Martins). Tratava-se, em síntese, de um caso no qual guardas-municipais receberam “denúncia anônima” e fizeram uma busca domiciliar, sem mandado judicial, sob o pretexto de “consentimento do morador”. Encontrando drogas no interior, foi efetivada a apreensão e prisão em flagrante do morador.

    O acusado foi abordado em frente à sua casa

    e realizada a apreensão no interior do domicílio onde a droga estava ocultada.

    O primeiro problema analisado pelo TJ-SP foi: pode a Guarda Municipal exercer atividade investigatória dessa forma? Não. Inicialmente, explica o relator, os guardas realizaram autêntica atividade policial em inequívoca investigação de fato criminoso (quando deveria ter levado ao conhecimento da autoridade policial competente). “Não estavam visualizando, naquele momento, nenhuma situação imediata de flagrância, senão, munidos de uma simples noticia de crime, passaram pretensiosamente a investigá-la como se policiais fossem. Ocorre que guardas civis não são — porque não devem mesmo ser — policiais”, explica o relator, que segue analisando o alcance do artigo 144 da CF e do artigo 241 do CPP.

    Segundo ponto: o fato de haver um crime permanente legitimaria o ingresso e posterior busca e prisão? Tampouco se pode invocar, explica o relator, o argumento de que “qualquer um do povo” poderia realizar a prisão em flagrante, na medida em que não seria qualquer um do povo que poderia ingressar na casa do réu e realizar a devassa. “Enfim, prender alguém em sequência direta de flagrante visual é uma coisa; investigar crime para encontrá-lo bem quieto, lá onde ele acontecia atrás de um pneu, é outra. Se nós, homens do direito, não soubermos a diferença, então ninguém mais saberá. O tema aqui, não é se o crime existia ou não. Muito menos se era permanente ou não. O tema, no caso, é como esse crime veio à luz.” O tema é a licitude ou ilicitude da prova, que, no caso, é ilícita. Diante disso, como a prova foi considerada ilícita e também a dela derivada, o acusado foi absolvido nos termos do artigo 386, II do CPP.

    No fundo, agentes públicos que exercem funções que não são as suas absolvem potenciais culpados.

    Como sempre dissemos, é preciso respeitar as regras do jogo sem que isso signifique impunidade, todo o oposto. Situações assim comprovam nossa tese de que não é o respeito ao devido processo o responsável por eventual “impunidade”, senão o atropelo dessas regras, patrocinados pelo próprio Estado e seus agentes.

    [1] No capolavoro Problemas Juridicos y Politicos del Proceso Penal, Bosch, Barcelona, 1935.
    [2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. O mantra do crime permanente entoado para legitimar ilegalidades nos flagrantes criminais. Publicado na coluna “Limite Penal”, no site www.conjur.com.br. Acesso em: 31/7/2014).
    [3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 15ª edição. Editora Saraiva, 2018, p. 514 e ss.
    [4] Citada por HINOJOSA SEGOVIA, op. cit., p. 75-76.
    [5] APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. BUSCA DOMICILIAR ILEGAL. NULIDADE DA APREENSÃO. PROVA REMANESCENTE. INSUFICIÊNCIA.
    I. Nulidade por violação de direito constitucional. Inexiste previsão legal de busca domiciliar mediante o mero e suposto consentimento do proprietário, já que a anuência, quando de fato há, é evidentemente dada sob constrangimento. Ingresso não autorizado judicialmente, quando as investigações poderiam facilmente ter conduzido à representação por mandado de busca e apreensão. Pela clara violação ao artigo 5º, IX, da Constituição Federal, deverá ser decretada nula a apreensão dos objetos na residência do réu, remanescendo apenas a apreensão decorrente da busca pessoal e as provas dela derivadas.
    II. Tráfico de Entorpecentes. Não há provas da atividade de traficância. A investigação procedida pela Polícia Civil conta apenas com fotografias em nada comprometedoras, pessoas não identificadas e imputações pouco detalhadas. Em juízo, nada consta além do depoimento dos policiais e da negativa do réu. Impositiva a absolvição (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 3ª CCrim, Rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro. Ap. n. 70058172628. Porto Alegre, 15 de maio de 2014).

    Aury Lopes Jr. é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

    Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

     

    Notas

    1 A matéria de Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa foi originalmente publica em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-10/limite-penal-agente-publico-faz-nao-causa-impunidade

    2 Esse texto tem o selo 005-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 O convite para participar e a apresentação do Observatório do Judiciário está em: https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/

     

  • Estamos ganhando da impunidade?

    Estamos ganhando da impunidade?

    “Enquanto a gente discute a presunção de inocência desta forma,
    enquanto nós admitimos que pode o Supremo Tribunal Federal mudar a Constituição,
    enquanto nós admitimos que a Polícia Militar tem controle absoluto sobre a população,
    essa população vai morrer.”
    Roberto Tardelli

    Por que acreditamos que o Brasil é a terra da impunidade se temos mais de 700 mil presos? Por que acreditamos que a Polícia prende e o Judiciário solta se temos cerca de 300 mil presos provisórios que ainda podem ser julgados inocentes? É eficiente retirar direitos dos acusados pela Justiça quando um estudo do Ministério Extraordinário da Segurança Pública estima que a população carcerária brasileira será de 841,8 mil ao final de 2018?

    O número de presos provisórios indica que a regra é supor que todos são culpados até que se prove o contrário. Além do mais, quando acrescentamos o dado que a imensa maioria da população carcerária brasileira é pobre e negra, concluímos que o direito à liberdade lhes foi retirado. Que, mesmo sendo um direito constitucional, para pobres e negros não existe presunção de inocência.

    Como devolver a um cidadão o tempo que o Estado o prendeu indevidamente?

    Se o Estado cobrar mais dinheiro ou mais bens do que devia, existe a possibilidade de devolver.

    O tempo encarcerado não pode ser restituído.

    Os juízes podem errar, intencionalmente ou não. Em 2017, a Defensoria Pública de São Paulo reverteu 44% das decisões que levou ao Superior Tribunal de Justiça. Se os réus desses 44% de casos tiverem sido presos, após o julgamento de segunda instância, o Estado terá cometido uma injustiça irreparável com eles: foram submetidos às condições degradantes dos presídios brasileiros e foram inocentados quando o processo chegou à última instância.

    Essa é a razão que fez com que as sociedades adotassem o princípio de que todos são inocentes até que se prove o contrário ou, o que é o mesmo, que alguém só pode ser considerado culpado quando não existir mais a possibilidade da sentença ser modificada.

    Ao permitir, em 2016, a prisão em segunda instância, o STF “autorizou” que o Tribunal de Justiça de São Paulo emitisse 13.887 novos mandados de prisão. Como afirma o ex-procurador de Justiça Roberto Tardelli, esse número de réus, cujos recursos ainda não foram julgados pela instância máxima, equivale a 20 penitenciárias de 700 vagas cada uma.

    Argumenta-se que é preciso prender após a segunda instância pois há réus perigosos, há aqueles que podem perturbar provas e há aqueles em que existe indício de fuga. Pois bem, o Código de Processo Penal prevê que nesses casos existe fundamento para a prisão e a prisão provisória pode ser decretada. No entanto, esse não é o caso de todos os cerca de 300 mil presos provisórios no país.

    A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), a Associação Juízes para a Democracia (AJD) e o Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) promoveram, na sexta 03/08 um Ato em Defesa da Presunção de Inocência e Independência Judicial. O ato fez parte da campanha para que STF restabeleça o respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência:

    Toda pessoa é inocente até que se prove sua culpa. Esse é um princípio fundamental do direito, expressamente referido na Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948 e incorporado à nossa Constituição, em seu artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

    O Supremo Tribunal Federal pode e deve restabelecer o respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência. A ABJD em conjunto com outras organizações está organizando uma Campanha nacional para exigir que o Tribunal vote o mérito das ações de controle concentrado de constitucionalidade que estão no seu plenário, para dar efetividade a um dos preceitos constitucionais que fazem parte da base do Estado Democrático de Direito.

    Para Laura Rodrigues Benda, presidenta do Conselho Executivo da AJD, está ficando claro, para todos nós, que o estado democrático de direito brasileiro é ilusório:

    “o próprio fato de ter que existir uma associação de juízes para a democracia

    demonstra que, se alguns são para a democracia, é por que outros não são”.

    Sobre a prisão quando ainda cabe recurso aos tribunais superiores e os 14 mil novos mandados de prisão somente em São Paulo, ela afirma: “o argumento de que a gente faz isso para acabar com a impunidade, que é o país da impunidade, que se refere aos crimes de colarinho branco, à Lava Jato, aos crimes dos políticos, não é verdadeiro, porque essas 14 mil pessoas não são pessoas da Lava Jato, dos crimes de colarinho branco ou dos partidos políticos (…) e dessas pessoas que estão sendo cada vez mais presas, muitos inclusive vão ser assassinados pelo Estado, com a conivência do Estado dentro das prisões. O que estamos fazendo, além de ruir com nossos princípios democráticos, é assassinar pessoas. E a maioria dessas pessoas vão ser pobres, vão ser negras e vamos seguir nesse processo de exclusão social e racial.”

    “A sensação que a gente tem, e ela é absolutamente correta, é que o Ministério Público se tornou um Tea Party (nome dado ao grupo de radicais de extrema direita do Partido Republicano dos EUA). Quem não é de extrema direita está absolutamente sem inserção social lá dentro.” Essas foram as primeiras palavras do procurador aposentado Roberto Tardelli no ato dessa sexta-feira. Ele prossegue:

    Eu diria hoje que o Ministério Público é uma extensão da viatura da Polícia Militar.

    Quando eles falam da quebra do princípio da presunção de inocência, a gente tem que pensar que não é somente a quebra apenas de um princípio constitucional, é muito mais do que isso. É a quebra da coluna vertebral de todo nosso sistema.

    Nem 10% dos homicídios são solucionados. Com tudo isso que estamos prendendo, nós continuamos com 90% dos homicídios não apurados. Isso é impunidade.

    Nós quebramos a espinha dorsal. A antecipação do cumprimento de pena é trágica em todos os aspectos. (…) Se eu posso prender uma pessoa antes, por que eu não posso cobrar um tributo? Por que eu não posso penhorar uma casa, um carro? Por que eu não posso tomar o filho de alguém? Quebrou a porteira.

    Tardelli complementa que não será com atitudes como sair prendendo desesperadamente, nem quebrando garantias constitucionais, nem supervalorizando o depoimento de policiais que melhoraremos esse quadro.

    Tânia Oliveira, da ABJD, reproduz a conversa com uma professora de filosofia do direito que disse: “o cidadão, que está aí na mídia, que foi condenado em segunda instância e está preso, costuma formular a seguinte frase: ‘eu já provei a minha inocência, agora eu quero ver eles provarem a minha culpa’. Quando a gente pega emblematicamente essa frase do Lula, a gente tem o seguinte panorama: essa é a realidade do processo penal brasileiro”.

    “A grande verdade é que o cidadão entra, no sistema do processo penal brasileira, culpado.

    É ele que tem que provar, na verdade, a sua inocência”.

     

    “Uma outra Justiça é necessária” é o título do artigo da desembargadora Kenarik Boujikian Felippe, para a edição especial do jornal Brasil de Fato sobre a presunção de inocência. Sustenta ela:

    Se pensarmos que um dos objetivos da República é erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades, é obrigatório concluir que o Judiciário está a quilômetros de distância disso. Na verdade, a mensagem que se está transmitindo é que o Judiciário visa atender os donos do poder econômico.
    (…)
    Na área penal, esta percepção é ainda maior pelo encarceramento massivo de uma população pobre, periférica e, majoritariamente, negra, somado ao gigantesco número de presos provisórios, que só vem aumentando após o julgamento do STF que relativizou o alcance do princípio da presunção de inocência.
    (…)
    A questão que o povo pergunta é: por que houve uma mudança de posição pouco antes do julgamento de Lula?

     

    Notas

    1 Para ver a matéria “Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo”: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas

    2 Para ver mais informações sobre a Campanha Presunção de Inocência e baixar o formulário para colher assinaturas: http://www.abjd.org.br/p/toda-pessoa-e-inocente-ate-que-se-prove.html

    3 Para assistir o vídeo do Ato em Defesa da Presunção de Inocência e Independência Judicial em https://www.facebook.com/ABJuristasPelaDemocracia/

    4 Esse texto tem o selo 003-2018 do Observatório do Judiciário