Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ
A última pesquisa de opinião realizada pela CNT/ MDA sobre o governo Bolsonaro indicou um crescimento das avaliações “ótima” (de 9,5 para 14,3%) e “péssima” (de 21,5 para 32,3%) em comparação ao mês anterior. Realizada entre os dias 7 e 10 de maio, portanto, em meio ao crescimento significativo de casos e mortes provadas pela COVID-19, estes números não surpreendem, tendo em vista a característica super-polarizada e super-ideologizada de seu governo. Mesmo em decrescente (32,1 para 22,9%), o avaliador regular continua figurando entre os mais representativos – atrás apenas do avaliador do péssimo. São eles que me despertam mais curiosidade investigativa.
Afinal, como pensa aquele que nem ama nem odeia Bolsonaro? E o que isso tem a ver com a recente (e interessante) incursão de Anitta nos debates políticos, em suas lives de quarentena?
Convicção ideológica demora a ser formada, mas também demora a ser desfeita. O bolsonarismo não é bem uma ideologia, mas um fenômeno político que se ancora a tradições políticas de extrema direita que remetem ao período da Ditadura Militar, modificada e renovada em função da crise política do tempo presente (iniciada no Brasil em junho de 2013). Durante a pandemia, Bolsonaro vem se mostrando firme às convicções que o elegeram – negacionismo científico, programa ultra-liberal na economia e indisposição política para negociar com a diferença são alguns exemplos – e há um público que entende este movimento como sinal de coerência e fidelidade.
Autenticidade, sinceridade e simplicidade são qualidades cada vez mais virtuosas em tempos de intimidade e exposição de privacidade nas redes sociais, e Bolsonaro se transformou em “mito”, entre 2014-2018, usando e abusando desses movimentos. Como presidente, ele fala e governa para a sua “bolha”, com a radicalidade que encontramos nos debates políticos típicos de Facebook. Um debate que não parece muito disposto a falar para não convencidos, cercado pelos iguais, na lógica Facebook de fechar o alcance dos posts a leitores que curtem e comentam apenas entre si. Isto é um grave problema de um ponto de vista republicano e democrático.
Diz um princípio republicano básico moderno, uma vez presidente, em nome de uma razão de Estado, o espírito de facção se desfaz na defesa comum da res publica (coisa pública); ainda que seja orientada por princípios ideológicos, o presidente não governa apenas para os seus, os que pensam igual a ele, mas para todos. Ser democrático significa, necessariamente, negociar na diferença, visto que a maioria eleitoral não impõe erradicação da diferença, mas convívio com ela.
Identifico o movimento recente de Anitta como um gesto “furador de bolha”, alcançando justamente o avaliador “regular” do governo Bolsonaro. Ela acena para o público comum não – polarizado, decisivo não só para a vitória eleitoral (como reforçam sempre os cientistas políticos), mas para acomodação do debate democrático no cotidiano, trazendo a política para o interior da casa (literalmente) a um público que, a princípio, não se interessaria por política e tem tantas dúvidas quanto ela, Anitta. Um público jovem em maioria que busca aproximação e intimidade com a artista que admira, por isso segue o cotidiano de Anitta, e agora, em tempos de quarentena, intensifica esse grau de intimidade por meio das lives.
A modéstia em tom “alunal” não combina com a afirmação das certezas e convicções ideológicas que tanto circulam no ambiente das guerras virtuais. Antes de formar opinião, ela busca a informação da amiga jornalista Gabriela Prioli – que traduz, aliás, de maneira bastante didática, conceitos e teorias bastante abstratos, para Anitta e seu público. Paulo Freire chamaria este gesto de Anitta de “curiosidade ingênua”, passo decisivo para uma “curiosidade epistemológica”. O avaliador regular de um governo extremista talvez esteja em busca das mesmas respostas às perguntas trazidas por Anitta à Priolli: afinal, quais as regras do nosso jogo político? Quem são os jogadores? O que eles representam?
Precisamos entender melhor o público que votou em Bolsonaro não por conhecer seu projeto a fundo, mas para dar uma “chance a ele”, por ele ser “novo”, simplesmente por isso. Na campanha havia aqueles que o apoiavam sem fechar com o “pacote completo”, sem acreditar que ele conseguiria cumprir o que estava prometendo. O eleitor de Bolsonaro que se manifesta nas redes sociais são relativamente fáceis de mapear, mas e aqueles que votaram sem fazer alarde? E tantos outros, que votariam em Lula se ele estivesse concorrendo e, diante do impedimento, passou para o Bolsonaro? Eles não são poucos, ao contrário do que a lógica “das bolhas políticas” possa indicar.
Nas eleições, Bolsonaro conseguiu expressar o sentimento de “indignação” comum a tantos, canalizando a energia crítica em circulação no nosso ambiente de crise – como gosta de lembrar o historiador Rodrigo Perez. Esta crítica, que está na voz do homem e da mulher comum, não é patrimônio apenas do leitor interessado por política no padrão Facebook, mas está no ônibus, na fila do elevador, do supermercado etc. É dele que vem aquela típica sentença iniciada por “É um absurdo!”.
Em tempos de pandemia de Covid-19, o “absurdo!” tem se manifestado e está na voz do presidente. O embate entre vida e morte está posto e é o próprio Bolsonaro que relativiza o valor das vidas, tão caras às mais diversas paletas de cores ideológicas. Talvez por este gesto, associado a uma total falta de plano de combate ao coronavirus, tantos avaliadores do governo estejam passando do “regular” para o “péssimo”.
O trabalhador que vai à rua hoje o faz com medo do vírus, com medo da morte, diferente do empresário que aparece ao lado de Bolsonaro, que pede o fim do isolamento mas não quer colocar a própria pele e da sua família em risco. Tal conclusão não demanda maior grau de politização. A malandragem de Anitta está justamente aí, neste tempo de quarenta: ampliar e dar vazão às perguntas daqueles que estão “meio por fora da política”, sobretudo, um público de jovens abertos a todo tipo de novidade. Eles são fundamentais ao ambiente de debate democrático. Mais ainda agora, quando o presidente da República tenta transformar o pacto pela vida em questão de “bolha”.
“Bom dia, meu povo!”. Depois de ligar o celular e iniciar uma sequência de stories no Instagram logo cedo, uma sorridente bailarina carioca e moradora de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense rebola ao som de Kevinho, Anitta e até K-Pop (ritmo pop coreano que contagia às atuais gerações) para milhares de fãs. Os corações-likes vão surgindo na tela do celular enquanto Thaís Carla, de 27 anos, desce até o chão, faz movimentos do funk carioca e encerra com uma ‘sarrada no ar’ pra ninguém botar defeito. Em determinado momento, alguém comenta: “Você vai morrer se continuar gorda assim”.
Gorda.Thaís Carla é gorda. E apesar das críticas claramente destrutivas, faz questão de autoafirmar sua condição: “A palavra gorda não deveria ser uma ofensa ou xingamento. Ser gorda é uma característica física”, explica. Por conta do peso e de promover a pauta body positive, uma bandeira progressista que tem crescido cada vez mais pelo mundo e no Brasil, Thaís é alvo de amor e ódio a todo instante.
Segundo ela, o body positive é a promoção de uma relação menos conflituosa e de maior aceitação com o seu corpo e os dos outros: “O “body positive” é corpo positivo, não só traduzido, mas na prática. E podemos entender que é uma forma de afirmar que todos os corpos podem ser lindos e devem ser respeitados, independente das diferenças. Essa pauta veio para abrir possibilidades de enxergar a beleza para além de endeusar apenas os corpos magros”, aponta.
E não foi do nada. Thaís já flertava com o movimento antes de conhecê-lo mais a fundo: “Era algo que eu já vivenciava, mas não tinha dado nome. Até que meu marido me apresentou a palavra gordofobia. Então eu comecei a pesquisar mais sobre e descobri alguns termos”.
A gordofobia também dá as caras na internet. Entre os milhares de fãs – são mais de meio milhão de seguidores no Instagram – os haters (internautas que odeiam algo ou alguém e registram isso nas redes sociais) fazem questão de xingar, depreciar ou tentar abalar a autoestima da moça. Mas Thaís não dá bola: “Meus feedbacks têm sido muito gratificantes. Diariamente recebo mensagens de mulheres e homens que se libertaram dessa pressão estética e assim estão vivendo mais felizes”.
Thaís Carla com Anitta
A bailarina tem ido cada vez mais longe. Em 2017 começou a integrar o balé de Anitta, atualmente a cantora mais famosa do Brasil. O desempenho artístico de Thaís, contudo, não é recente. Começou a dançar aos 4 anos, ganhou um quadro de talentos do “Domingão do Faustão” (TV Globo) e integrou o elenco do extinto programa “Legendários”, de Marcos Mion (Record), durante 4 anos.
A luta de Thaís contra a gordofobia encontra eco nas pautas de liberdade individual, como é o caso das bandeiras LGBT, feminismo e racial. As semelhanças ocorrem, no geral, com a dificuldade da pessoa ser aceita ou ser livre dentro da sociedade: “Na gordofobia, além das agressões com o corpo gordo, existe a falta de acessibilidade em lugares comuns, como ônibus, avião, barzinho, loja de roupa, entre outros, por um simples motivo, nenhum desses lugares nos cabe. Mas cada pauta deve ter o protagonismo de fala de quem vivencia”, explica.
Para entrar nessa luta, a dançarina recomenda: “Eu costumo convidar a pessoas a conversarem diariamente no espelho, lembrando que o importante é agradar a si mesma”.
Em tempos de padrão de beleza, Thaís é uma ilha de resistência. Poderosa!
As fotos são REPRODUÇÃO / INSTAGRAM e da dança é DIVULGAÇÃO