Jornalistas Livres

Tag: Angela Davis

  • Angela Davis compara encarceramento à escravidão moderna

    Angela Davis compara encarceramento à escravidão moderna

    Por Midiã Noelle

    Há mais de 35 anos Angela Davis, ícone da luta pelos direitos civis, foi presa nos EUA acusada de ser cúmplice em um assassinato. Os 17 meses que passou dentro da prisão a fizeram refletir sobre diversas questões acerca do sistema carcerário. Seus artigos e pensamentos sobre aqueles dias, reverberam até a atualidade. Seja onde nasceu, no Alabama, Estados Unidos, ou em um município do recôncavo baiano. Pela sua trajetória inspiradora, a integrante do Panteras Negras nos anos 70, mais uma vez veio ao Brasil. Desta vez, sua sexta entrada ao país, sendo a quarta na Bahia, para participar de atividades desenvolvidas no âmbito do 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha e comemorações da agenda da sociedade civil Julho das Pretas.

    Durante os dias que ficou na Bahia, a convite do Coletivo Angela Davis da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), do Odara – Instituto da Mulher Negra e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher (Neim) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Davis participou na cidade de Cachoeira de um evento sobre Feminismo Negro Decolonial nas Américas e, em Salvador, da conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”. Este evento, ocorrido na noite de terça-feira (25), lotou a Reitoria da UFBA com mais de 700 pessoas e emocionou a todos/as, tanto pelas falas de referências do movimento de mulheres negras, como Angela Figueiredo, Dulce Pereira e Naiara Leite, que relembraram as perdas de Luiza Bairros e Mãe Beata de Yemanjá, e a importância da luta diária contra o racismo e o sexismo, quanto pela bela apresentação do Slam das Minas e as colocações da convidada.

    Auditório da UFBA lotado para conferência com Angela Davis. Foto: Juh Almeida

    Entretanto, antes do momento aberto ao público, a filósofa concedeu entrevista à imprensa. Neste momento, diferente do momento da noite, Davis pode responder questões e pontuar com mais detalhamento suas impressões sobre o “sistema carcerário industrial” que alimenta os presídios de corpos negros em uma escala global. As contribuições colocadas pela ativista durante a coletiva denunciaram o punitivismo do encarceramento e como essa lógica tem “mantido ligações muito óbvias com o sistema de escravização”.

    Segundo Angela explicou para as pouco mais de 30 pessoas presentes e para milhares de outras que acompanhavam a transmissão on line, essa relação não é apenas no estabelecimento de uma analogia, mas também de genealogia. Ela fez referência de que o sistema escravocrata queria manter o sistema como instituição, porém com uma forma “mais humanizada”. Ou seja, os argumentos se equiparam, segundo a ativista, quando argumentamos “em prol da reforma do sistema carcerário”. “É simplesmente um argumento que visa manter o racismo e a repressão do encarceramento e do aprisionamento. E, portanto, a abolição é a estratégia que abraçamos”.

    Angela destaca que essa noção de abolição visa transformar a sociedade para que não haja mais a necessidade da manutenção destas medidas de repressão, pois o encarceramento nunca resolveu os problemas para os quais pressupõe-se que seria a resposta. “A abolição do sistema carcerário nos convida a construirmos uma sociedade onde não haja racismo. Sem estruturas hétero patriarcais. Sem estruturas capitalistas. Onde haja educação livre e acesso livre, ou gratuito, ao sistema de saúde”, enfatizou e concluiu destacando que repudiar o sistema carcerário vigente é, sobretudo, lutar pelo socialismo.

    Fotos de Juh Almeida

    Caso Rafael Braga
    Preso há quatro anos, o caso de Rafael Braga tem mobilizado o Brasil por se apresentar como um caso explícito de racismo institucionalizado na justiça brasileira, em que apenas a versão da polícia é considerada. Ao ser questionada sobre como órgãos internacionais podem contribuir para que casos como o do jovem sejam denunciados e solucionados, sobretudo por estarmos na Década Internacional de Afrodescendentes, instituída pelas Nações Unidas, Angela disse que a década em si contribui apenas no pensar arcabouços para nos “levar a construir redes mais amplas de solidariedade”, considerando ser uma ex-prisioneira política grata às pessoas que se uniram em âmbito global para exigir a sua liberdade na campanha “Free Angela”.

    Davis destacou ainda como melhor caminho a continuação dos movimentos pelas libertações de prisioneiros políticos, no intuito de contribuir para casos como de Rafael Braga, dos detidos em Israel engajados em lutas contra a ocupação palestina, dos aprisionados na Europa por estarem engajados na luta contra a fobia do Islã e do racismo, entre outras situações, como a de Assata Shakur, que também foi dos Panteras Negras e continua a viver no exílio em Cuba.

    As mulheres e o encarceramento
    Durante a coletiva que mais parecia uma prévia da conferência que aconteceria na noite do mesmo dia, Davis pontuou a necessidade de se pensar em todas as circunstâncias dentro do sistema carcerário feminino mundialmente. Por mais que, ao se falar em encarceramento a imagem que vem às mentes das pessoas são de homens, pois são aqueles que efetivamente estão encarcerados em maior escala, isso não significa que não podemos adquirir conhecimento sobre as circunstâncias que envolvem as encarceradas, e, também, aquelas afetadas pelo contexto carcerário. “É uma conexão entre a violência institucional, por um lado, e a violência individual. Ou a violência que ocorre em relações íntimas”.

    Angela apontou ainda que, no que o Estado é o agente punitivo para os homens, mas que há formas de punição consideradas privadas, geralmente mencionadas como violência doméstica, que afetam muito mais as mulheres. “As mulheres apontam para o fato de que dentro desse mundo dos ‘livres’, não encarcerados, têm vivenciado a violência sexual. Quando as mulheres visitam as prisões e são sujeitas as revistas constrangedoras, ou revistas invasivas, que utilizam buscas ou revistas vaginais e no reto, isso também constitui violência sexual”.

    A filósofa também evidenciou as condições e violências sofridas por pessoas encarceradas trans, principalmente mulheres trans, e como é necessário compreender o sistema carcerário de forma mais ampla, em especial no que tange as questões de gênero, como um aparato que sustenta percepções ideológicas ou ideologias de raça e sexismo. Ela ressaltou ainda o alto índice de encarceramentos no Brasil, o quarto país em maior número, sendo majoritariamente de pessoas negras, homens e mulheres pretos/as e pardos/as. E, apesar de o maior número de encarcerados serem o masculino, nos relembrou que são as mulheres negras as protagonistas nas lutas contra o sistema carcerário “nesse sistema tão saturado pelo racismo”.

  • Cidinha da Silva: A cadeira de Miss Davis

    Cidinha da Silva: A cadeira de Miss Davis

    Eu sou uma mulher de sorte. Esta afirmação tem a força de atrair cada vez mais os bons augúrios e afastar a desinsorte, já que aquele nomezinho de quatro letras nem pronuncio.

    Acontece que fui a Cachoeira turistar com familiares e à noite resolvi tietar amigas que participavam de um curso sobre feminismo negro decolonial nas Américas, promovido pelo Coletivo Ângela Davis. Encontros daqui e dali, papos rápidos, beijos e abraços e um restaurante escolhido para jantar. De repente as vozes sussurradas e emocionadas dão conta de uma presença em movimento: “Olha ela, é Ângela. É Ângela. Ela saiu de casa. Ela está vindo.”

    E quem é que vem para a mesma calçada onde estou e senta-se à mesma mesa, a três cadeiras de distância da locutora que vos fala? Ela, a Pantera, como o pessoal a estava chamando por lá. A que chamaram de Ângela, sem sobrenome, porque passou a ser da família. Tá bom, tá bom. Era a mesa da diretoria e da amada, por isso ela se sentou na “minha mesa”. Não tem problema, pessoal, isso não embaralha minha sorte.

    Conversa vai, conversa vem, uma filha do Rei de Oyó postada à cabeceira da mesa iniciou, com Ângela, um papo sobre política brasileira. Eu me mordi de vontade de participar com meu inglesinho de boa base gramatical e pronúncia imperfeita, só que não fui mencionada, convidada, e me resignei ao silêncio observador. Cada qual reinando no seu reino.

    Alguém, creio que a própria Ângela, resolveu rearranjar os lugares da mesa para que os casais separados ficassem próximos. Uma vizinha de cadeira moveu-se para o lugar de Ângela Davis, a primeira a se levantar. E ela, a Pantera, sentou-se onde? Adivinhem. Quem responder “ao lado de Cidinha da Silva”, ganha um doce.

    A primeira sensação quando isso acontece, vou contar para você que nunca se sentou ao lado de um ícone, é: O que posso falar que não vá incomodá-la? A pessoa está ali no bar para relaxar. As anfitriãs já haviam montado um forte esquema espacial para blindá-la das cansativas selfies, não queria ser eu a incomodá-la. Optei por ficar calada e, se surgisse alguma oportunidade falaria algo.

    Angela Davis no Brasil. foto: Forum Anarquista Especifista em: https://www.facebook.com/faebahia/photos/a.684794088222670.1073741828.684778788224200/1393549037347168/?type=3

    Ângela sorriu para mim e me cumprimentou, perguntou como estava? Respondi ao cumprimento e aproveitando a deixa disse-lhe que diria minha frase clichê desde 1997, quando a encontrei em sua primeira vinda ao Brasil: “A primeira vez que te vi foi em Atlanta, em 1994, e você tinha longuíssimos dreadlocks”. Muito simpática, ela disse que se lembrava, que meu rosto lhe era familiar nessas duas décadas que vinha ao Brasil. Calma, gente! É óbvio que ela não se lembrou de mim, principalmente no evento em Atlanta, onde havia centenas de mulheres negras. Talvez se lembrasse que tinha mesmo dreads àquela época, e a lembrança de dreads cortados sempre traz uma nostalgia, ou talvez (sou otimista) se lembrasse da minha frazezinha-clichê, que, vamos combinar, já era a terceira-vez que eu dizia a ela.

    Ainda na linha simpatia total, ela me perguntou o que havia sido o evento de Atlanta e o que eu fazia por lá. Respondi que se tratava de uma edição da Black Women’s Health Conference, e eu, que estudava e morava em Illinois à época, havia ido lá encontrar uma companheira de Geledés, participante do encontro. Depois ela me perguntou como se dizia ketchup em português. Respondi que era daquele jeito mesmo e que a gente só acentuava a letra u. Rimos. Pedimos ketchup ao garçom que nunca o trouxe e como as batatas fritas de Ângela já estavam pela metade, fui ao balcão buscar o molho vermelho. Conversamos ainda sobre a tradição africana de deixar o sal em cima da mesa, ao invés de entregá-lo a alguém que o solicita. Sobre banhos de sal grosso e sobre jogar sal para trás como táticas de proteção espiritual e ainda, sobre não entregar uma faca com a ponta voltada para a pessoa que a recebe.

    Bem, essa prosopopéia toda foi para justificar porque sou uma mulher se sorte, uma legítima filha do Rei. Mas, o mais importante da noite ainda não contei. É que ao mudar-se de lugar, Ângela Davis que é muito alta, sentou-se numa cadeira maior do que as outras ou que estava num ponto mais alto da calçada. Fato é que a junção das duas coisas deixou-a em destaque na mesa. Ninguém reparou porque ela já era a grande estrela e era natural que a víssemos como a maior de todas. Mas ela, muito incomodada, falava como que para si mesma, que estava mais alta do que todo mundo e olhava para o chão e para os lados, buscando solução para o problema. Eu, pensando se tratar da própria altura dela, disse que ela era mesmo a mais alta da mesa e ela respondeu: “Eu sei, mas tem alguma coisa errada aqui”.

    Então, mais uma vez, Ângela se levantou e trocou de lugar, sentando-se na cadeira ao lado, mais baixa ou que não estava num ponto alto da calçada, ficando assim na mesma altura das demais pessoas. E disse aliviada: “Agora, sim! Agora eu estou confortável!”