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  • A difícil escolha entre cozinhar ou tomar banho

    A difícil escolha entre cozinhar ou tomar banho

    O Brasil concentra 53% da água doce da América do Sul e 12% do mundo. Esse recurso, essencial para a vida humana e cada dia mais cobiçado pelas grandes potências, corre sérios riscos de ser privatizado em nosso país. Depois que o Congresso Nacional aprovou e Bolsonaro sancionou, com vetos, há pouco mais de dois meses, o Novo Marco Legal do Saneamento (PL 4.162/2019), o governo federal tem feito gestões para que os governos estaduais apressem esse processo.

    Ana Luisa Naghettini, estudante de Matemática Computacional na UFMG e militante independente em defesa do meio ambiente, e Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Um forte lobby na mídia também está em ação. O objetivo, na linha da privatização imediata proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é que os governos estaduais vendam, rápido e a qualquer preço, as suas empresas. O objetivo é convencer a população de que a privatização das companhias de água e saneamento é “o único caminho para o Brasil enfrentar o grave déficit no setor”. Para tanto, dados alarmantes são apresentados quase diariamente: “48% da população brasileira não tem coleta de esgoto”; “o país convive com 3.257 lixões a céu aberto”; “é necessário investir R$ 753 bilhões até 2033 para enfrentar esses problemas”.
    Antes mesmo de a nova legislação ser aprovada, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), já dava um largo passo nesse sentido, com a Copasa, a estatal mineira de águas e saneamento, informando aos seus acionistas e ao mercado que iria contratar serviços para começar o processo de desestatização.

    A situação se torna mais grave ainda quando se sabe que, caso o Congresso Nacional não derrube os 11 vetos de Bolsonaro a esta legislação, as empresas estatais, responsáveis por 70% desse serviço, não poderão mais assinar contrato com os municípios, sendo obrigadas a se submeterem às licitações, sob a ótica do mercado. Além disso, a obrigação de realizar licitações e as metas de desempenho para contratos tenderão a prejudicar as empresas públicas locais, piorando a qualidade dos serviços prestados.

    Os vetos eram para ter entrado em pauta no Congresso em setembro, com muitos governadores e prefeitos trabalhando pela derrubada deles. Até agora não foram apreciados e não falta quem aposte que, por conta das eleições municipais, dificilmente isso acontecerá em 2020. O que complicará ainda mais a situação das empresas de saneamento, a começar pela Copasa.

    Risco

    Num momento em que o governo Bolsonaro é mundialmente criticado pelo desmonte das políticas ambientais e pela negligência no combate aos incêndios na Amazônia e no Pantanal, além do negacionismo em relação ao vírus do covid-19, não só a nova legislação sobre saneamento virou lei, como o risco agora é que essas empresas sejam privatizadas sem que as pessoas se deem conta da gravidade do que está em jogo.
    Uma das principais causas da rápida proliferação do covid-19 no Brasil (o país ostenta o triste recorde de terceiro no mundo em mortes) reside exatamente na falta de acesso de expressivos contingentes da população à água tratada e ao saneamento.
    Some-se a isso que estudo do Observatório Fluminense Covid-19 (formado por sete instituições de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro, entre elas a UFRJ e a UFF) aponta que a própria estabilização do vírus na América Latina deve se dar em patamares elevados e permanecer atuando na região por mais dois anos.

    Ao defender a privatização imediata de suas empresas de saneamento, o Brasil coloca-se na contramão do que acontece no mundo. Segundo estudo do Instituto Transnacional da Holanda (TNI), entre 2000 e 2017, cerca de 1700 municípios de 58 países, entre eles Berlim (Alemanha), Paris (França) e Budapeste (Hungria) reestatizaram seus serviços. Só na França, 106 cidades fizeram isso. Fora do continente europeu, Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia) são alguns dos casos sul-americanos que reestatizaram serviços públicos básicos, entre eles o de fornecimento de água e ampliação de redes de esgoto.

    Lucro

    As principais razões para as reestatizações foram a colocação do lucro acima dos interesses das comunidades, o não cumprimento dos contratos, das metas de investimentos – principalmente nas áreas periféricas e mais carentes -, e os aumentos abusivos de tarifas.
    O governo Bolsonaro e a mídia corporativa brasileira que o apoia ignoram esse tipo de alerta e destacam apenas que “a livre concorrência no setor permitirá mais investimentos – são esperados R$ 600 bilhões, grande parte internacionais, até 2033” – e que “a universalização dos serviços de saneamento ocorrerá em 30 anos”. Acena-se com promessas, para quebrar resistências e ganhar a opinião pública.

    Não foi por falta de recursos, como alega o governo Bolsonaro, que se optou pela privatização. Um total de R$ 1,2 trilhão acaba de ser repassado para os bancos privados a título de auxiliá-los durante a pandemia. Um terço desse valor por ano seria mais do que suficiente para resolver o problema do saneamento no Brasil.
    Nada foi dito sobre a nova legislação possibilitar que os pobres fiquem cada vez mais distantes do acesso à água tratada e ao saneamento e que o alegado prazo próximo a vencer, para o fim dos lixões, foi prorrogado. Não foi dito, igualmente, que as empresas multinacionais dispõem agora de uma chance de ouro para controlar também as cobiçadas águas brasileiras.

    Esse, aliás, parece ser o ponto essencial, porém obscuro nessa legislação.

    A nova lei trata da questão do saneamento, mas empresas de saneamento são também as que fornecem água. Assim, a privatização das primeiras traria, como consequência, também a privatização das águas, cujo fornecimento ficaria a cargo de quem visa apenas o lucro.

    Dos atuais 5.571 municípios brasileiros, no máximo 500 têm condições de atrair investimentos no setor. Sem dúvida haverá disputa pela privatização de empresas estatais em grandes metrópoles como Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Curitiba e Brasília.

    Mas quais empresas se interessarão por fornecer serviços em municípios pobres do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, no sertão nordestino ou no interior da Amazônia? Esses, certamente, serão abandonados à própria sorte, pois o chamado “investimento cruzado”, que determina que o lucro obtido pelas empresas estatais nas áreas mais ricas seja aplicado nas regiões pobres e carentes, não existirá mais.

    Jereissati e sua Coca-Cola

    Não há também justificativa social para a pressa com a qual essa nova legislação foi aprovada. O relator da matéria, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), rejeitou todas as emendas de mérito propostas para que o texto não voltasse à Câmara dos Deputados para uma nova apreciação. A oposição propôs que a matéria fosse debatida após o fim da pandemia. Deveria ter sido o caminho natural, diante de uma medida de tamanha
    importância, mas foi derrotada.
    De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Sinis) de 2018, mais de 83% da população brasileira tem acesso a serviços de abastecimento de água e 53,2% usam serviços de esgotamento sanitário. O marco legal anterior, estabelecido por lei de 2007, definia diversos princípios fundamentais como universalidade, integralidade, controle social e utilização de tecnologias apropriadas.
    Também estabelecia funções de gestão para os serviços públicos, como planejamento municipal, estadual e nacional e a regulação, que devem ser usados como normas e padrões. Uma das mudanças mais significativas introduzida pelo novo Marco foi a retirada da autonomia dos estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão água para as populações e cuidarão dos resíduos sólidos.
    Em síntese, o que foi aprovado é um enorme retrocesso sob a ótica dos interesses da maioria da população. Razão pela qual a aprovação desse novo marco legal provocou reação imediata apenas nas redes sociais, pois a mídia corporativa o apoia e o endossa, bem como a toda a agenda ultraliberal de Paulo Guedes.

    “Sobreviverá quem puder pagar”, escreveu a destacada jornalista Hildegard Angel, ao frisar que “a água de nossas nascentes, fontes, rios, lagoas não pode ter dono. Querem engarrafar a água (…) colocar uma etiqueta e botar preço”.

    Já o deputado e ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias (PT-MG), preferiu lembrar que “a privatização das águas foi votada no dia em que morreram mais de 1100 brasileiros”, acrescentando que é “assustador observar esse tipo de prioridade, que é do grande capital e do mercado, não dos brasileiros”.

    Mais contundente, a presidente da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, a companhia estatal de águas e saneamento do Estado de São Paulo, socióloga Francisca Adalgisa, garantiu que “é bala na cabeça da população mais pobre”, pois se essas empresas não forem privatizadas, também não receberão mais recursos do governo para os investimentos de que necessitam.
    Nada disso parece ter sensibilizado uma população anestesiada em meio a várias pandemias simultâneas. E o lobby pela privatização cresce e aposta na vitória de candidatos “sensíveis” ao mercado nas eleições desse ano nas principais capitais para facilitar as vendas.

    Ribs


    Atualmente no Brasil os serviços de água e esgoto são prestados, em sua grande maioria, por empresas estatais, não sendo vedada a possibilidade de associações entre entes estatais e o setor privado, através das chamadas parcerias público-privadas (PPPs). Nesse sentido, a Sabesp, a empresa de saneamento de São Paulo, é um mau exemplo, que a mídia corporativa brasileira esconde. Mesmo pública, a empresa tem 50% de seu capital privado. Os acionistas dão as cartas e deixam milhões de pessoas sem coleta e tratamento de esgoto na maior cidade do Brasil e da América Latina.

    Outro mau exemplo do que faz o setor privado nessa área é Manaus. Com 20 anos de gestão privada, a capital amazonense tem apenas 12,5% de cobertura de esgoto, dos quais só 30% são tratados. Mais de 600 mil pessoas – um terço do total da população -, continuam sem acesso à água potável. Não por acaso Manaus liderou a primeira onda de mortes por coronavírus no país e o risco de um retorno do vírus, mais forte ainda, na cidade é real.
    Por isso, o economista Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), consultor de agências da ONU e autor de mais de 40 livros sobre desenvolvimento econômico e social, propõe que diante do Covid-19 e da situação caótica da economia brasileira sob a gestão Bolsonaro é fundamental o resgate do papel do Estado, a adoção da renda básica generalizada, o reforço da saúde pública e o financiamento local, com a transferência, de maneira organizada, de
    recursos a cada município. “É no nível local que se sabe qual bairro é mais ameaçado, onde falta água ou saneamento, quais famílias estão mais fragilizadas”, afirma.
    O que Dowbor defende é o oposto do que define a nova legislação. Na mesma linha, o economista francês Thomas Piketty, autor de “Capital e Ideologia”, seu mais recente trabalho lançado no país, diz que as elites brasileiras cometem um erro ao perpetuar o abismo social, comprometendo o futuro da nação.
    Diferentemente do que pensa Piketty, as elites brasileiras sabem o que querem. Em 2009, no XXIII Fórum da Liberdade, promovido pelo Instituto Millenium, um think tank brasileiro ultraliberal, o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, figura reverenciada pela mídia nacional, proclamava: “jamais os direitos humanos irão suplantar o direito à propriedade”.

    Nos oito anos em que governou o Brasil (1995-2003) isso foi verdade. Seu governo privatizou mais de 100 empresas, entre elas a mineradora Vale do Rio Doce, rebatizada como Vale S.A. O argumento era o de sempre: “ineficiência” e falta de recursos para investir no setor.

    Doze anos depois, a Vale foi responsável pelos dois maiores crimes humanos e ambientais da história brasileira: o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais, com a morte de duas centenas e meia de pessoas e a destruição da bacia do rio Doce, um dos maiores da região Sudeste. As famílias dos mortos, desaparecidos e dos atingidos pela lama e água contaminada ainda lutam para receber indenizações. Enquanto isso, as ações da vale seguem nas alturas.
    Foi também no governo de Fernando Henrique Cardoso que o Brasil passou a ter agências reguladoras para fiscalizar a atuação das empresas recém-privatizadas. O resultado é que essas agências, Anatel, na área da telefonia, Anac, na aviação civil, e Aneel, nas águas e energia, rapidamente foram colonizadas pelo capital privado, por aqueles a quem deveria fiscalizar. E acabam não fiscalizando nada. Resultado: serviços de péssima qualidade, tarifas caras e cidadãos transformados em meros consumidores. E os serviços, antes um direito social, viraram atividade econômica regulada pelo mercado, possibilitando basicamente acúmulo do capital privado.

    Durante a realização do 8º Fórum Mundial da Água, em 2018 em Brasília, empresas como a gigante nacional de refrigerantes e cervejas Ambev, e as multinacionais Nestlé e Coca-Cola participaram do evento como financiadoras, mas também fizeram várias sugestões. Coincidentemente, essas sugestões, pelas mãos do senador Tasso Jereissati, foram transformadas em projeto de lei e agora integram o novo Marco do Saneamento. Para quem não sabe, Jereissati é acionista da Coca-Cola Brasil e um dos maiores interessados em entregar à iniciativa privada os bens comuns nacionais.
    Duramente criticadas pelos brasileiros em suas redes sociais, essas empresas apressaram-se em dizer que não têm nada a ver com a privatização de águas no país. A Coca-Cola Brasil divulgou um longo texto em que considera “boato” qualquer relação com o novo Marco Legal do Saneamento Básico. Já a Nestlé, há anos, vem desmentindo, também por redes sociais, que tenha interesse em privatizar o aquífero Guarani, uma reserva de 1,2 milhões de quilômetros quadrados, compartilhada por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

    Esse assunto, claro, nunca é tratado nas TVs ou emissoras de rádio.

    O então presidente da República, Michel Temer, que chegou ao poder depois do golpe, travestido de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff em 2016, também negou que houvesse qualquer entendimento nesse sentido. Mas não deixa de ser coincidência que tenha sido em seu governo que o primeiro projeto de lei alterando a legislação de 2007 sobre saneamento fosse enviado ao Congresso.
    Igualmente não deixa de ser coincidência que esse novo marco tenha sido aprovado a toque de caixa pelo governo Bolsonaro, em plena pandemia, quando a população brasileira está assustada com o número crescente de mortos e sem condições de protestar nas ruas e praças públicas, como sempre fez.
    Pelo visto, o governo Bolsonaro está seguindo à risca a proposta de seu mundialmente criticado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para quem a pandemia deveria ser aproveitada “para passar a boiada”.
    As medidas impopulares não só estão sendo aprovadas, como se preparam para sair do papel sem que a maioria das pessoas se dê conta disso. Quando perceberem, poderão já estar pagando muito mais caro pela água que utilizam. Ou, pior ainda: tendo que escolher entre cozinhar e tomar banho.

    Charge de Bacellar


  • O MELANCÓLICO FIM DA LAVA JATO

    O MELANCÓLICO FIM DA LAVA JATO

     

    ARTIGO

    Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

    Depois de embalar o sonho das “pessoas de bem”, que vestiram verde e amarelo e foram às ruas apoiar o pretenso combate à corrupção, o fim da Operação Lava Jato está próximo e não poderia ser dos mais melancólicos.
    Tudo indica que ela será substituída pela criação da Unidade Nacional Anticorrupção (Unac) por parte do Ministério Público Federal. A Unac, se realmente prosperar, terá sede em Brasília e concentrará ações atualmente dispersas entre as unidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. A proposta é do próprio procurador-geral da República, Augusto Aras que, diferentemente dos seus antecessores, foi escolhido pelo presidente Bolsonaro sem levar em conta a lista tríplice elaborada pela categoria.
    A decisão de Aras é uma das consequências práticas da guerra que passou a ser travada entre bolsonaristas e lava-jatistas, após a demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça. Moro, que foi conivente com parte dos abusos cometidos pelo governo enquanto esteve no poder, saiu atirando e acusando Bolsonaro de “tentar interferir politicamente na Polícia Federal”.
    Um dos principais beneficiados pela Lava Jato, Bolsonaro, que dificilmente teria sido eleito se não fosse a criminalização e o ódio ao PT que ela disseminou, viu na atitude de Moro uma forma de atingir seu governo, mas, principalmente, de se cacifar para a disputa presidencial em 2022. É importante lembrar que o apoio de Moro junto à opinião pública, no momento em que deixou o governo, era significativamente superior ao do próprio Bolsonaro.
    Os partidos de oposição, por sua vez, há muito denunciam os desmandos da Lava Jato
    e como ela, em seis anos de existência, tem cometido todo tipo de ilegalidade. Além de grampear os telefones dos advogados que defendem o ex-presidente Lula nos processo do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, os advogados Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Martins lembram que o próprio Lula foi condenado sem provas e por “atos indeterminados”.

    Vale dizer: depois de anos revirando a vida e quebrando todos os sigilos bancários, fiscal e telefônico do ex-presidente Lula, de sua família e amigos, não foi encontrado nada que pudesse incriminá-lo.
    Às denúncias dos advogados de Lula vieram se somar, em meados do ano passado, a série de vazamentos publicados pelo site The Intercept BR. Eles mostraram conversas dos procuradores que atuam na Lava Jato, em Curitiba, trazendo à tona muito do seu modus operandi. A série, que ficou conhecida como #VazaJato, mostrou, por exemplo, que Moro não atuou apenas como juiz, mas como auxiliar da própria acusação.
    Caía por terra o discurso de “juiz imparcial” sob o qual Moro sempre tentou se acobertar. Os vazamentos deixaram visível também a perigosa proximidade entre os lava-jatistas e integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF). Quem se lembra de um exultante procurador chefe em Curitiba, Deltan Dallagnol em conversa com Moro, assegurando “In Fux we trust”? Fux, no caso, é o ministro Luiz Fux.
    As denúncias da #VazaJato correram mundo e foram destaque nos principais jornais da Europa e dos Estados Unidos, contrastando com o silêncio que sobre elas reinou na mídia brasileira. Silêncio explicado pelo fato da mídia local ter se valido das cinematográficas operações da Lava Jato para disseminar o ódio ao PT, patrocinar o golpe contra a presidente Dilma Rousseff (impeachment sem crime de responsabilidade é o que?), prender e impedir Lula de disputar as eleições de 2018, abrindo espaço para a vitória de Bolsonaro e suas políticas antipopulares, antinacionais e de submissão aos interesses dos Estados Unidos.
    Na semana passada (1/7), nova reportagem do The Intercept BR, em parceria com a agência de jornalismo investigativo Pública, mostrou algo ainda mais grave e que veio confirmar denúncias que pairavam sobre a Lava Jato: a interferência de agentes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e do próprio FBI, polícia e serviço de inteligência daquele país, em suas ações.
    Quem se lembra que um dos policiais que escoltou Lula, quando ele saiu da prisão para ir ao enterro do seu neto, usava adesivo que não era da Polícia Federal?

    As novas revelações do The Intercept BR/Pública mostram uma parceria “informal” entre Lava Jato e autoridades estadunidenses que, exatamente por ter se dado de maneira  informal, é ilegal. Se o compromisso da Lava Jato fosse realmente combater a corrupção e não atender aos interesses de setores dos Estados Unidos (deep State?), bastaria ter se pautado pelos canais legais. Desde 2001, com o decreto 3.810, Brasil e Estados Unidos firmaram acordo prevendo procedimento escrito e formal, intermediado por órgãos específicos de lado a lado.
    Em outras palavras, mais do que uma operação anticorrupção, como sempre tentou se mostrar, a Lava Jato começa a ter sua verdadeira face desenhada. Ela é parte do kit da “guerra híbrida” adotado pelos Estados Unidos para intervir na política e na vida de países. No caso brasileiro, as razões são muitas. Desde o início dos anos 2000, estudos apontavam que o Brasil tinha tudo para, em menos de duas décadas, se transformar em potência mundial.
    Esses estudos, claro, incomodaram a grande potência mundial e potência maior do hemisfério, mas acabaram sendo deixados de lado em função dos ataques terroristas às torres gêmeas, em 2001. Nesse meio tempo, assumiu o poder no Brasil e também na maioria dos países da América do Sul, governos populares que buscaram o desenvolvimento de suas economias e parcerias no cenário internacional.
    O Mercosul foi fortalecido, a Unasul foi criada e o Brasil esteve à frente do surgimento do BRICS e passou a integrá-lo, juntamente com Rússia, Índia, China e África do Sul.
    Como se isso não bastasse, o Brasil anunciou em 2007 a descoberta do pré-sal e em 2014, apesar da pesada campanha da mídia para derrotar o PT, Dilma Rousseff consegue se reeleger, com a agremiação dando início ao seu quarto mandato à frente da presidência da República.
    Para alguns, tudo isso não passa de “teoria da conspiração”, mas se os fatos forem observados, coincidentemente as ações da Lava Jato apontam para a desorganização e estabelecimento do caos na economia brasileira e para a criminalização de governos que possibilitaram inúmeros avanços ao país.

    Outro efeito prático da Lava Jato foi, sob o argumento de “combate à corrupção”, levar empresas brasileira como a construtora Odebrecht praticamente à falência, obrigada a demitir mais de 230 mil funcionários. Já a Petrobras, além da campanha de desmoralização a que foi submetida, teve que pagar multas milionárias para acionistas
    nos Estados Unidos.
    Em 2014, os serviços de inteligência dos Estados Unidos já tinham sido pegos com a boca na botija, espionando a então presidente Dilma e os contratos para exploração do pré-sal que estavam sendo preparados pela Petrobras. O então presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, nunca negou as espionagens e, até onde se sabe, não pediu desculpas pela ação dos serviços de inteligência. Essa história, em detalhes, está registrada no documentário do diretor estadunidense Oliver Stone, intitulado Snowden. O documentário está disponível na Netflix.
    Vale observar ainda que operações semelhantes à Lava Jato (ou mesmo seus desdobramentos) tiveram lugar na América do Sul, redundando em desorganização da economia desses países, criminalização de governantes populares, eleição de governos neoliberais ou mesmo em golpes de Estado, sempre sob o argumento do “combate à
    corrupção”.
    Voltando a Moro e Dallagnol, nesses seis anos de Operação Lava Jato, eles passaram de figuras inexpressivas a estrelas do noticiário da mídia brasileira (TV Globo à frente). Só que agora estão às voltas para explicar o inexplicável.
    Como se aliaram a integrantes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a agentes do FBI contra empresas brasileiras? Como incriminaram e condenaram, sem provas, o ex-presidente Lula? Como agiram de maneira nitidamente partidária, uma vez que as condenações recaíram quase que exclusivamente sobre o PT e aliados, deixando de fora notórios corruptos do PSDB?
    Apesar dessas questões já serem levantadas pelos advogados de Lula antes mesmo dele passar 580 dias na prisão, só agora ganharam ressonância.
    Por mais de seis anos – março de 2014 é considerado o seu começo – a Operação Lava Jato mandou e desmandou no Brasil. Além do “combate à  corrupção” ter sido transformado pela direita e pela mídia corporativa em problema número 1 do país, em nenhum dos Poderes houve quem se dispusesse a enfrentá-la.
    A presidente Dilma Rousseff, com sua postura republicana, jamais interferiu ou tentou interferir nessas ações. No Congresso Nacional, a maioria dos integrantes, mais preocupada com as eleições que aconteceriam em poucos meses, não deu atenção ao
    assunto e, pelo lado do Judiciário, tudo parecia certo.
    Só que não.
    As operações que tiveram início com a prisão, pela Polícia Federal, de um dono de posto de gasolina em Brasília (daí o nome Lava Jato) onde havia uma casa de câmbio utilizada para evadir divisas do país, rapidamente levou o Ministério Público Federal em Curitiba a criar uma equipe de procuradores para atuar no caso, sob o argumento de que já investigava um dos doleiros (Albert Youssef) envolvidos em transações com o dono do posto de gasolina.
    Numa história que ainda precisa ser devidamente esclarecida, uma investigação que deveria ter ficado em Brasília foi parar na capital do Paraná. Mais ainda: a descoberta de que Yousseff havia dado de presente uma Land Rover para um ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, jogou a empresa no olho do furacão.
    Num passe de mágica, os procuradores em Curitiba, chefiados por Dallagnol, começaram a buscar, de todas as formas, um elo entre a corrupção de diretores da Petrobras e o ex-presidente Lula. Nenhum outro presidente lhes pareceu suspeito. Moro, aliás, foi contra investigar Fernando Henrique Cardoso, para não “melindrar apoio importante”.
    Um mês e pouco depois, a operação já contava 30 pessoas presas e 46 indiciadas pelos crimes de formação de organização criminosa, crimes contra o sistema financeiro nacional, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Nas 71 operações acontecidas desde então, mais de 100 pessoas foram presas e quase o mesmo número condenadas.
    Os processos contra os acusados, o tempo em que ficavam presos sem julgamento, as
    condições em que eram mantidos encarcerados, nada disso parecia importar para a Justiça brasileira e muito menos para a mídia. Enquanto isso, vazamentos, cujo timing
    político era nitidamente calculado, foram fundamentais para impedir, em março de 2016, que Lula se tornasse chefe da Casa Civil de Dilma, e, em 2018, contribuíram para torpedear a candidatura do petista Fernando Haddad à presidência da República.
    Ninguém, obviamente, é contra o combate à corrupção. Mas o que chama atenção é que a Lava Jato não combateu a corrupção. O que ela combateu foi o PT, a democracia, as principais empresas brasileiras e a soberania do país. Uma das primeiras medidas econômicas aprovadas pelo Congresso Nacional, depois do golpe contra Dilma e da posse do ilegítimo Michel Temer, foi um projeto do senador tucano José Serra (SP), alterando a legislação sobre o pré-sal brasileiro, a fim de beneficiar as empresas multinacionais.
    Para complicar ainda mais essa história, que em muitos aspectos se assemelha a um triller de cinema, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki, morre, em janeiro de 2017, num acidente de avião. Teori era o relator da Lava Jato na Suprema Corte e estava às vésperas de retirar o sigilo de cerca de 900 depoimentos e homologar as 77 delações da Odebrecht. Ele vinha publicamente fazendo censuras à atuação do juiz Moro e da própria Lava Lato.
    Sua família nunca acreditou no resultado da perícia sobre o acidente.
    Depois da morte de Teori, opera-se uma curiosa coincidência. Todas as pessoas chave na Lava Jato, sejam seus integrantes, sejam aqueles, em instâncias superiores, que vão julgar os atos de seus integrantes, passam a ser de Curitiba ou vinculados a Curitiba: Moro, o desembargador do TRF-4, João Pedro Gebran Neto, o ministro do STJ, Félix Fischer, e o ministro que ocupa a relatoria da Lava Jato no STF após a morte de Teori, Edson Fachin.
    Fazendo um corte para os dias atuais, o destino da Lava Jato, mesmo com todas as suas ilegalidades, poderia ter sido outro se não fosse a ambição de Moro. Ao querer incluir em seu currículo além do cargo de ministro da Justiça (negociado com Bolsonaro ainda na campanha eleitoral) uma vaga no STF ou mesmo a presidência da República, entrou em rota de colisão com Bolsonaro.

    O problema para Bolsonaro é que Moro acabou se transformando em “queridinho” de parte da direita brasileira (Globo à frente) e, segundo o sociólogo português, Boaventura de Souza Santos, em candidato dos Estados Unidos à presidência do Brasil, a pessoa ideal para manter o país atrelado aos interesses do Tio Sam. Bolsonaro e Moro estão, assim, disputando num mesmo campo.
    É importante lembrar também que figuras como o ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacha Duran, que, há mais de três anos, vem tentando fazer delação premiada contra Moro, parece que finalmente conseguirá. Entre outras coisas, Duran tem dito dispor de provas da existência de vendas de sentenças por parte da “República de Curitiba” e de propina ligando essas sentenças, as delações premiadas e advogados amigos de Moro.
    Os integrantes da Lava Jato, obviamente, não estão dispostos a aceitar seu fim
    passivamente. Na última quinta-feira (2/7), numa tentativa de mostrar serviço, a Lava Jato, que andava meio sumida, reapareceu fazendo uma operação de busca e apreensão na casa do tucano José Serra. Há pelo menos dez anos que as denúncias contra Serra são conhecidas e não deixa de ser esquisito só agora a turma de Curitiba, através do braço de São Paulo, ter resolvido agir.
    A explicação mais plausível parece ser a de que a Lava Jato, a fim de tirar o foco das denúncias de que vem sendo alvo, usou essa operação como manobra diversionista. Diante da ameaça de extinção, nada melhor do que uma ação em cima de um notório
    corrupto que sempre esteve acima da lei, para tentar se mostrar imparcial.
    Outra prova de que a turma da Lava Jato está se sentindo acuada foi o adiamento do
    julgamento de Dallagnol no Conselho do Ministério Público, pelo Power Point contra Lula. Marcado para amanhã (7/7), última sessão antes das férias do meio de ano, o adiamento surpreendeu alguns conselheiros e foi interpretado como medo de derrota,
    especialmente diante das recentes revelações da #Vazajato.
    Se as previsões do ministro do STF, Gilmar Mendes, estiverem corretas, em setembro os dois processos impetrados pela defesa de Lula arguindo a suspeição de Moro para julgá-lo serão analisados. Some-se a isso que a Comissão de Direitos Humanos da ONU já tem em seu poder a documentação envolvendo o julgamento e as condenações, sem provas, de Lula.
    Pelo “conjunto da obra” e por razões diferentes, o fim da Lava Jato está próximo e aqueles que se orgulharam de ter vestido verde e amarelo e ido às ruas apoiar seus “heróis” vão começar a ter vergonha.
    Fizeram papel de bobos.