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  • Voltar ao mundo? Argentina entre o FMI e o abismo

    Voltar ao mundo? Argentina entre o FMI e o abismo

    por Coletivo Passarinho

    O eixo discursivo central da campanha eleitoral de Mauricio Macri para a presidência foi “voltar ao mundo”. Era hora de superar o atraso e o isolamento da era Kirchner, aproveitar o grande potencial humano e produtivo da Argentina e produzir reformas capazes de reinserir o país na economia mundial. Nas falas televisivas dos apoiadores do então candidato dizia-se com frequência que a Argentina precisava voltar a ser um país normal. E um país normal, para a elite argentina, bem como para parte significativa de sua classe média, é um país em que se pode comprar e vender dólares sem restrições.

    Vencidas as eleições, o novo mandatário tratou de colocar em prática seu choque “modernizador”: abriu o país às importações, liberou o controle cambiário sobre o valor do dólar, derrogou tributos sobre a exportação do trigo, milho e soja e reduziu impostos sobre automóveis, motos e embarcações de luxo, quase sempre importados. Aproveitou a boa recepção à sua vitória nas economias do centro do capitalismo, que viram aí uma oportunidade de iniciar a virada no tabuleiro, com auspícios de uma derrocada em série dos governos populares da região, para alçar voos maiores. Em dezembro do ano passado, Buenos Aires sediou a 11ª Reunião Ministerial da Organização Mundial de Comércio (OMC). No final deste ano, presidirá a Cúpula do G20, a reunião das vinte economias mais ricas do planeta, que terá o tema “construindo consenso para um desenvolvimento equitativo e sustentável”.

    Por debaixo desse véu modernizador, o mundo volta à Argentina sob outra forma, arcaica. No dia 8 de maio, diante da desvalorização galopante do peso argentino, da ineficácia da alta dos juros e da venda sucessiva de reservas para conter a subida do dólar, em pronunciamento oficial, o presidente declarou que decidiu iniciar diálogo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para “fortalecer este programa de crescimento e desenvolvimento”. A euforia dá lugar ao pesadelo, como no filme de terror Escape From Tomorow, em que um pai leva a família de viagem para a Disney sem revelar que foi demitido.

    O outro lado do conto de fadas é um país empobrecido (ao menos para suas vastas maiorias) e que, desde que Macri assumiu, somente agudizou seus problemas estruturais. O setor exportador de soja e minérios aumentou consideravelmente a sua rentabilidade. O setor financeiro obteve ganhos fabulosos com o empréstimo de dinheiro ao Estado a juros exorbitantes. A bicicleta financeira consistente na compra e venda sucessiva das Letras do Banco Central (Lebac) já no ano passado atingia 26% de juros (El país, 23/06/2017). Para o setor produtivo industrial quase nada chegou neste contexto de plena abertura aos investidores. Já para a massa trabalhadora restou o aumento do desemprego, a desindustrialização, a redução do valor real dos salários e o aumento brutal das tarifas de serviços públicos.

    Em termos macroeconômicos os desequilíbrios somente se acentuaram: a abertura econômica gerou mais dependência. O governo impulsionou forte processo de endividamento externo dando um passo atrás no caminho de redução da dívida ocorrido durante o período kirchnerista. O déficit de conta corrente alcançou 5% do PIB, superando os 2,8% de 2015 e os registros da década de 1990. A avalanche importadora, em um cenário de abertura comercial, provocou a elevação do déficit de comércio exterior para o nível mais elevado dos últimos 40 anos. Ao contrário dos tão sonhados investimentos produtivos incrementou-se a fuga de capitais, e ainda se tentou amenizar o déficit pelo aumento da dívida externa.

    O macrismo e seu leque de aliados chamaram as reformas implementadas até agora de “gradualistas”. Avançaram com a reforma previdenciária, com uma reforma tributária com caráter regressivo e têm na agenda uma reforma trabalhista de propósito flexibilizador e precarizador. O remédio do ajuste, no entanto, nunca é suficiente. A morte iminente do paciente, em vez de colocar em questão o próprio tratamento, para os financistas de plantão é sempre uma oportunidade para legitimar um aumento da dose. Por isso, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central do Brasil sob a presidência de FHC, ao falar da crise argentina diz que “hoje as opções são fazer mais rápido este ajuste, que sempre esteve entre os objetivos do governo, ou ter problemas muito mais sérios” (Ámbito Financiero, 14/05/2015). O retorno ao FMI serve, portanto, para pôr fim ao “gradualismo” e substituí-lo pelo choque descarado, legitimando um incremento da austeridade.

    Por outro lado, a consciência do significado do pedido de resgate na Argentina não é pequena. O FMI apoiou o programa econômico ortodoxo e regressivo da última ditadura militar. Foi protagonista direto dos planos massivos de privatização e desregulação da era Menem, na década de 1990, apoiando o programa de convertibilidade que estabeleceu a paridade entre o dólar e o peso. Programa este que culminou com a crise econômica e social sem precedentes de dezembro de 2001. No início de 2002, 25% dos argentinos estavam desempregados e o índice de pobreza chegava a quase 60%.

    Agora, o FMI vem ao resgate de um governo neoliberal cujos altos postos são formados, sobretudo, por CEOs: ex-diretores executivos de grandes empresas, muitos deles oriundos do setor financeiro e bancário. A chamada “porta giratória” entre setor privado e setor público é, na atual gestão, mais vigente do que nunca. Os dirigentes, formados em sua maioria em universidades norte-americanas ou em universidades particulares de elite na Argentina, tem pouca conexão com seu próprio país. Mais do que isso: tem pouco do seu patrimônio pessoal nessas terras. O ministro da fazenda, Nicolas Dujovne, possui 88,25% dos seus bens declarados no exterior. O presidente do Banco Central, Federico Sturzenegger, 70,04% (La Nación, 22/08/2017). São eles, junto com o presidente Maurício Macri, envolvido no escândalo das offshores descobertas no caso Panamá Papers, que querem convencer a população de que um novo empréstimo com o fundo dará proteção ao país.

    No entanto, um recente informe do Centro de Estudios de Opinión Pública (CEOP) aponta que 77% dos argentinos são contra o pedido de empréstimo ao FMI. Ao contrário do que gostariam alguns ideólogos do mercado e do governo, a população não esquece que o desastre de 2001 veio depois de anos de ingerência direta e de aplicação das políticas do FMI. Não por acaso, os colunistas econômicos do establishment não deixam de apontar para os riscos de uma nova explosão “populista”. E para mostrar que Macri não está sozinho neste processo de aprofundamento da inserção subordinada da Argentina na economia-mundo, Trump, Merkel y Rajoy não tardaram em deixar claro o apoio às medidas do governo.

    O próprio Ministro da Fazenda argentino já admitiu que o país terá mais inflação e menos crescimento (La Nación, 14/05/2018). A última terça-feira (15) foi considerada o dia D, pois venciam 30 bilhões de dólares em Letras do Banco Central (Lebacs). O perigo imediato de forte desvalorização cambiária decorrente da não renovação das Lebacs e consequente corrida ao dólar pode ser controlado. O Banco Central Argentino, além de ofertar 5 bilhões de dólares pelo segundo dia consecutivo, emitiu dívida com a oferta de novos títulos do tesouro. Ainda que o governo tenha conseguido controlar o cenário, o problema de fundo permanece. “As Lebac são uma bola de neve que se chuta para frente” (Izquierda Diario, 15/05/2018). Cedo ou tarde, o caminho do endividamento, fracassa.

    Após reunião ministerial na segunda-feira (16), o chefe de gabinete, Marcos Peña, esclareceu a nova linha política: chegar a um grande acordo nacional com o objetivo de reduzir o déficit fiscal, sendo que o marco para tal acordo é o orçamento de 2019. Disse, ainda, que o caminho é o correto, mas é preciso acelerá-lo (La Nación, 15/05/2018).
    O caminho já é conhecido e os resultados também: ajuste sobre o povo, aumento das desigualdades, desmonte do Estado e mais recessão. Economiza-se para diminuir o déficit e “honrar” os compromissos com o setor financeiro. A ação indutora do Estado como impulsor da atividade econômica vai às favas. A economia encolhe e a arrecadação tributária diminui. Resultado final: todo ajuste é insuficiente, demandando ainda mais ajuste. E o país navega na catástrofe social, que é narrada pelos cínicos de plantão como um mal necessário.

    Resta saber por quanto tempo a narrativa vendida pela imprensa que apoia o governo vai sustentar o discurso que é desmentido no cotidiano da população argentina. Nesta quarta, pelo menos duas mobilizações contra o FMI estão convocadas, uma no Obelisco e, outra, no Ministério de Economia. Amanhã, várias organizações convocam uma manifestação na Praça de Maio. A pressão ao governo argentino aumenta e vem de todos os lados.

  • Macri descarregou seu ódio de classe contra a multidão mobilizada

    Macri descarregou seu ódio de classe contra a multidão mobilizada

    Via: La Izquierda Diário
    Tradução: Juliana Medeiros

    Dezenas de milhares se mobilizaram até o Congresso, horas antes de começar a sessão que trataria da contrareforma da previdência.

    Embora a CGT não tenha chamado para a mobilização, nesta segunda-feira uma multidão composta por dezenas de milhares de jovens trabalhadoras e trabalhadores, de aposentados e estudantes se mobilizaram e ocuparam os arredores do Congresso Nacional.

    Após uma ordem judicial, o ‘Governo de Cambiemos’ tomou a decisão de realizar uma operação repressiva diferente da última quinta-feira, quando o governo foi forçado a suspender a sessão em meio a uma brutal repressão da Gendarmeria Nacional.

    Segunda-feira, em uma segunda tentativa oficial para que os legisladores aprovassem a lei, Horacio Rodríguez Larreta ordenou uma operação apenas com a Polícia da Cidade, aquela à qual se somaria, em uma segunda etapa repressiva, a Polícia Federal. A Gendarmeria estaria impedida de intervir, embora, em um momento da tarde, fosse vista preparando-se para o caso de que fosse convocada.

    Havia também uma mudança na cerca. Ao contrário da quinta-feira, desta vez o Parlamento foi cercado com cercas de dois metros de altura que impediram a aproximação do prédio a menos de 200 ou mesmo a 300 metros. Um convite à raiva e indignação daqueles que queriam se aproximar do Congresso para repudiar o plano de ajuste de pensões de Macri.

    A sessão começaria às 14 horas. Poucos minutos antes, os manifestantes acompanhavam através de seus celulares o que estava acontecendo dentro do Parlamento. A garantia de que Cambiemos conseguiria quórum foi aquecendo o clima daqueles que haviam chegado à praça realmente indignados. A Polícia foi passando de uma atitude (estranhamente) passiva para outra que expressa o que eles realmente sabem fazer.

    Depois de duas horas sem avançar, finalmente, do Ministério de Segurança e Justiça de Buenos Aires, se baixou a ordem de descarregar a repressão. Balas de borracha, gases lacrimogêneos e cacetadas a quem lhes cruzava pela frente.

    Já iniciada a sessão, muitos deputados da oposição pediram que se suspendesse porque ao redor do Congresso se desencadeava uma dura repressão policial. As cercas em um momento foram inúteis e a Polícia começou a atacar a população mobilizada.

    Por volta da 15h, o presidente da Câmara, Emilio Monzó, propôs um quarto intervalo e chamou a seu gabinete os líderes de blocos para avaliar como continuar. Depois de se comunicar com a Casa Rosada, Monzó anunciou que a sessão deveria continuar e a lei deveria ser votada.

    Foi então quando Monzó disse, sem eufemismos, que havia “agressões na rua, mas os agentes estimavam controlá-las na próxima meia hora”. O que Monzó quis dizer com “controlá-las”?

    Como se tudo estivesse planejado, Monzó apenas disse isso e na praça se desencadeou uma caçada. As forças policiais (já somadas às patrulhas da Polícia Federal) voltaram a disparar novamente balas de borracha e gases. Perseguiram os manifestantes, os espancaram e levaram vários detidos.

     

     

    Havia carros de patrulha, motocicletas e até viaturas policiais que, como se tivessem recebido a mesma ordem, passaram por cima das pessoas em vários pontos da geografia central da cidade. Algumas das vítimas, de jovens a aposentados, tiveram de ser hospitalizadas com graves ferimentos.

    Havia feridos por atropelamento, por balas de borracha, pelos efeitos dos gases de pimenta e lacrimogêneos e pelas pauladas que antecediam a detenção.

    Pelo menos quatro manifestantes perderam um dos olhos: um trabalhador do Estaleiro Rio Santiago que se mobilizara desde a Ensenada junto com 700 companheiros, um militante da Frente das Organizações em Luta (FOL) e dois da Coordenação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP).

    Entre os feridos/detidos está ainda Carlos Artacho, operador de telefone, líder do PTS e membro (pela minoria) da comissão diretiva da Foetra Buenos Aires. Por horas a polícia o manteve preso sem atenção médica, apesar do fato de que seu rosto foi quebrado a pauladas.

    Havia muitas queixas sobre um modus operandi da Polícia: cada mulher ou homem que caía nas mãos dos efetivos recebia uma bateria de golpes e insultos do tipo “nós vamos matá-los” ou “você vai desaparecer”.

    Vários jornalistas foram atacados e outros foram detidos durante a cobertura dos eventos. De acordo com a agência Télam, foi relatada a detenção de trabalhadores da FM La Patriada e as feridas sofridas pelo jornalista Mauro Fulco do C5N, “alcançado pela repressão policial nas proximidades do Congresso”, bem como um jornalista da Crónica TV.

    Por sua vez, o sindicato Sipreba denunciou a agressão policial contra dois fotógrafos da Página12, Bernardino Ávila (ferido com um corte na testa) e Leandro Teysseire (ferido no rosto pelo impacto de uma bala de borracha).

    O governo montou um teatro. Na primeira cena das horas anteriores, a operação policial parecia estar muito mais relaxada do que o planejado pela ministra Bullrich, que enviou um exército de gendarmes no dia da sessão falida da última quinta-feira.

    Na segunda cena, se mostravam pessoas jogando pedras e a “polícia inofensiva que não conseguia agir”. Muitos líderes das organizações mobilizadas denunciaram a presença de infiltrados. O ex-deputado Claudio Lozano pôde verificá-lo em sua própria carne.

     

     

    O governo montou esse cenário de provocação para deslegitimar a mobilização maciça que expressava o ódio de um setor muito amplo da sociedade sobre essas medidas anti-trabalhadores.

    A imprensa oficial reproduziu o livreto de Cambiemos. Eles falaram o dia inteiro sobre a violência. Não a do governo e suas forças repressivas, mas de alguns manifestantes que, depois que homens uniformizados começaram a caçar, se defenderam jogando pedras.

    Um confronto assimétrico entre o Estado armado até os dentes e manifestantes que só tem para se defender galhos de limão e algumas pedras.

    Falam de manifestantes violentos mas, como disse a legisladora porteña do PTS-FIT, Myriam Bregman, em um programa do C5N, “Macri fala de violência quando ele e sua família durante a ditadura passaram a ter entre 7 e 47 empresas”.

    Aqueles que apoiaram o genocídio e hoje roubam 17 milhões de pessoas e suas já escassas rendas lançam através da mídia viciada, que também apoiou o genocídio – como o Grupo Clarín e o La Nación – campanhas macartistas contra manifestantes e a esquerda que defende os aposentados.

    A FIT levou mais de um milhão de votos nas últimas eleições e se mobilizou para impedir que esta lei fosse aprovada. Nicolás del Caño disse que apenas à ponta de pistolas se poderia aprová-la porque mais de 70% da população se opõe a isso.

    As leis anti-trabalhadores, medidas regressivas que procuram retroagir os direitos adquiridos que custaram ao movimento trabalhista décadas de luta para conquistá-las, são a base para entender por quê um setor dos manifestantes tentou impedir as leis colocando seu corpo. Arriscando sua vida.