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  • Morre Tepori Kamaiurá, grande matriarca do Xingu

    Morre Tepori Kamaiurá, grande matriarca do Xingu

    por Nina Kahn

     

     

     

    Uma triste notícia para os povos do Alto Xingu. Tepori foi uma importante mulher de seu tempo.

    Faleceu Tepori Kamaiurá, uma grande mulher do Alto Xingu. Ela estava com 99 anos.

    Acervo Projeto Xingu/EPM-UNIFESP – Tepori em 1966, por Roberto Baruzzi©

    Tepori viveu para prover, educar, aninhar, preparar e conviver com importantes e inigualáveis lideranças do que veio a se constituir como Parque Indígena do Xingu (MT). Era irmã do cacique Takumã e do pajé Sapaim, foi esposa de Paru Yawalapiti e, entre seus muitos filhos, estão o cacique Aritana e o precocemente falecido Pirakumã, cuja foto contendo a agressiva presença da polícia na Esplanada dos Ministérios em Brasília durante a Mobilização Nacional Indígena em 2013, foi bastante divulgada.

     

    Era adolescente quando os irmãos Villas-Boas se apresentaram na região que ainda não era Parque do Xingu, que foi criado em 1961. Dois personagens foram estratégicos para a integração geopolítica dessa Terra Indígena concebida pelos Villas-Boas. Ao norte, Raoni Metuktire e ao sul, Paru Yawalapiti, os engenhosos agentes da diplomacia que se impôs para que a integridade cultural dos povos que hoje se convenciona chamar de “xinguanos” permanecesse.

    Tepori era sóbria e discreta. Falava baixo, nunca ficava parada e dava a impressão de não se importar com assuntos que não estivessem relacionados à casa, à alimentação, ao conforto dos muitos filhos e netos.(Certamente com os bisnetos e tataranetos!) Parecia indiferente à presença de pessoas em sua casa, principalmente os brancos. Sem alarde, enviava uma criança para entregar ao visitante um belo naco de beiju recém assado, ou uma generosa cuia de mingau do sumo cozido da mandioca que estava há horas fervendo no quintal. Dela não se percebia qualquer olhar esperando agradecimento, mas achava normal ganhar de presente, na hora adequada, tecidos e miçangas. Se gostasse, guardava tudo nos recônditos de sua casa; se não gostasse, deixava de lado, como que franqueando a posse para quem quisesse. Tepori não fazia média. Entendia português, mas não fazia questão de conversar com quem não falasse sua língua. Enérgica, quando desprevenida dirigíamos-lhe o olhar, era puro afeto.

    Tepori durante exames em pesquisa ação do Projeto Xingu.

    A dignidade, o orgulho e a generosidade de toda sua descendência são a marca da mulher Tepori. Os homens Paru, Sapaim, Takumã, Aritana, Pirakumã, Kotok, e tantos outros de sua família, refletem essa grande mulher que soube forjá-los conforme seu tempo e seu olhar.

     

     

     

    imagens por Helio Carlos Mello© – acervo Projeto Xingu/EPM-UNIFESP

  • Programa de índio

    Programa de índio

     

    Meus dias de índio no Alto Xingu se furtaram à data prevista, adiando-se aos atrasos da chegada de valiosas doses de vacina que serão, em sua rotina e ciclos anuais, levadas à terra indígena do Parque por enfermeiras que acompanho em expedição de imunização. Nesses dias de refluxo sigo vagando na pequena cidade de ruas imensas, como se várias avenidas Paulista e desertas se sucedessem no espaço urbano da jovem cidade de Canarana, no Estado de Mato Grosso. O município é um desses que se fundaram no nada, durante o regime militar, em região de pura mata que vai rendendo o cerrado na transição para a poderosa e cobiçada floresta amazônica.

    Um inesperado convite me veio na noite de sábado de um amigo jovem e forte índio Kamaiurá, vendo em mim um certo desconsolo com a monotonia da cidade. Sugeriu-me para ir assistir a um jogo de futebol no domingo com seus amigos. Eu, que nunca fui de bolas, não me excitei tanto com a proposta, mas considerei a possibilidade. Leonardo, técnico em enfermagem, passou a me contar as qualidades do jogo que ocorreria, e logo me despertou grande interesse pelo evento.

    A partida seria entre o Xingu Clube Futebol, formado por índios Kamaiurá, Kuikuro, Yawalapiti, Kaiabi e Matipu, contra o adversário Culuene, time composto por moradores da mesma localidade, um distrito de Canarana a 50 quilômetros de distância. No domingo às 13 horas foi marcado o encontro com o time, numa praça local, para embarcar no micro-ônibus escolar que nos levaria ao campo do distrito de Culuene para partida válida pelo Campeonato Municipal Amador da 1ª Divisão, devidamente registrado na Federação de Futebol.

    São 13 horas e o sol está a pino a esquentar tudo que não tem sombras, por isso ficamos sob as árvores da praça e o antigo avião suspenso no ar em colunas de concreto, objeto público que orgulha os sulistas e desnovela a senda dos povos tradicionais. O atraso do ônibus motiva os jogadores indígenas, “isso é bom, pois faz a gente chegar com raiva”, diz um deles provocando risos. Quando partimos o pequeno ônibus se enche de motivação e a alegria se intensifica em piadas de línguas indígenas que nada entendo, mas o humor é algo que não necessita tradução. O veículo segue apressado no asfalto que finda, longo caminho de terra batida por duas horas nos levarão para Culuene.

    Chegamos. O time xinguano, sério agora, vai em bloco procurar o parco vestiário. Eu a rodear o campo logo conheço Toni, pequeno garoto de 10 anos, descalço e sem camisa, que livre me diz: “sou o gandula e vou ganhar dez reais”. Sem que eu tivesse tempo de prosseguir o diálogo ele se arvora num pé de manga próximo. Vou ao vestiário onde o time do Xingu se aperta já na troca de roupas e em um idioma comum falam algo que lembra música, algo que une o time na vontade de vencer.

    A partir daqui começa a se evidenciar grandes diferenças no comportamento e rotinas dos times. Enquanto os índios vão ocupando o campo em exercícios físicos, o time local segue em roda orando seu pai nosso. A população local vai se aglomerando em volta do campo trazendo suas cadeiras domésticas.

    Uma gente morena de sol, donas de casas e do campo e seus filhos, homens com seus chapéus e muito trabalhador de roça e suas latinhas de cerveja e as moças bonitas. Ao apito do juiz é a garra que se mostra nessa gente toda. Sem grandes problemas ou expulsões o jogo é ágil e intenso, jogo bom de ver onde a bola não pára e os homens tremem o chão.

    Me chama a atenção a torcida que não raro deixa evidenciar sua parcela de preconceito ao índio, com ironias nada amigáveis quando o time local recebe ou faz gols. Quatro a quatro será o placar de meu programa de índio, um empate que simboliza mesmo o encontro desses povos que aqui dividem a terra,costumes e pretensões.

    Na satisfação final do empate todos se cumprimentam e a torcida recolhe suas cadeiras e partimos para casa. Já noite caindo no ônibus sigo pensando no pequeno gandula Toni, feliz por seus dez reais e um país todo pela frente, ainda.