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Tag: Ação Penal 470

  • Fux: “o charlatão togado”

    Fux: “o charlatão togado”

    Charlatão, nos ensina Houaiss, é “que ou aquele que se apresenta nas praças ou nas feiras para vender drogas e elixires reputados milagrosos, seduzindo o público e iludindo-o com discursos e trejeitos espalhafatosos (diz-se de mercador ambulante)”. Ou, por extensão, no sentido pejorativo: “diz-se de ou pessoa muito esperta que, ostentando qualidades que realmente não possui, procura auferir prestígio e lucros pela exploração da credulidade alheia; mistificador, trapaceiro, impostor”.

    Por que Zé Dirceu assim qualifica Luiz Fux, em Zé Dirceu: Memórias?

    Precisamos voltar um pouquinho na história.

    O denunciante do Mensalão, Roberto Jefferson, teve seu mandato de deputado federal cassado por ter feito “acusações sem provas’. Foi o que concluiu a Câmara Federal. Sem se deter nesse “detalhe”, o Procurador-Geral da República, Antônio Fernando Souza, afirmou na sua denúncia ao STF: “Relevante destacar, conforme será demonstrado nesta peça, que todas as imputações feitas pelo ex Deputado Roberto Jefferson ficaram comprovadas.”

    “A expectativa era que o plenário do STF não aceitasse a denúncia. As próprias CPMIs não provaram que houvera compra de votos e muito menos minha participação nessa suposta compra”, afirma Zé Dirceu. A verdade é que o STF acolheu a denúncia e, em 2012, ele foi condenado.

    Joaquim Barbosa, em ato “demagógico” e apoiado numa figura de “trânsito em julgado parcial”, avalia Zé Dirceu, determinou sua prisão no dia de comemoração da proclamação da República em 2013.

    Como explicar as atitudes de Barbosa e de outros ministros do STF, indicados pelo próprio governo Lula?

    “Nunca me opus à [indicação} de Joaquim Barbosa, porque toda sua vida em Brasília, profissional e acadêmica, aconselhava. Ele era progressista, eleitor do PT, convivia em nosso meio, mas depois, já no cargo, revelou-se um autoritário e assumiu o papel que a mídia e o Ministério Público queriam”, declara.

    As pressões para a escolha de um ministro do STF vêm de todos os lados: do próprio STF, dos Tribunais de Justiça, do Congresso, da mídia etc. Afirma ele:

     

    “Nós não tínhamos força para fazer isso [indicar somente ministros progressistas], porque nós dependemos do Parlamento, do Senado, felizmente, vamos dizer assim. E dependemos dos poderes que existem no país. O Supremo influencia a indicação do ministro, o STJ nem se fale. O que o governo tem pendente lá no STJ bilhões, dezenas de bilhões e problemas gravíssimos, entendeu?”

     

    Mesmo assim, ele acredita que somente Cezar Peluso e Carlos Alberto Direito, dentre os indicados durante os governos do PT, eram declaradamente conservadores. Todos os outros indicados eram progressistas, alinhados com a causa da democracia e do PT. Houve, porém, desagradáveis surpresas com vários deles.

    Fachin, que fez uma veemente defesa de Dilma em um ato em que ele próprio pedira para falar, “se fazia amigo e aliado de todos os movimentos sociais, na academia e na advocacia – um engodo.”

    Barroso se considera “refundador da República”, ele acha “que os fins justificam o meios e hoje muda a Constituição, legisla, usurpa o Poder Legislativo, tudo com base no princípio constitucional da Moralidade, uma fraude”. Complementa Zé Dirceu: “Esse lenga-lenga que corrupção é de político, a corrupção está na essência e no coração do capitalismo, porque o dinheiro é que está na essência e no coração … isso não quer dizer que temos que aceitá-la.”

    Ele acredita que as prerrogativas dos juízes, como a vitaliciedade, a exposição conferida pela mídia e a submissão a grupos de pressão são os principais responsáveis pelas ações contrárias às histórias de certos ministros. “A única coisa que eu cobro é coerência com sua história, coragem para enfrentar os lobbies, coragem para enfrentar o poder da mídia, coragem para enfrentar esse punitivismo que tomou conta do Brasil”, pontua ele.

    Sobre Luiz Fux, Zé Dirceu é mais incisivo:

    “E tem o caso do Fux, que é um caso aberrante, porque ele procurou … todos os réus da Ação Penal 470, chamada de Mensalão, para … ele me assediou. Sabe o que é assediar uma pessoa até me encontrar? Para dizer … primeiro ele conhecia realmente o processo, as vírgulas do processo … para bater no peito e dizer que matava no peito, que nos éramos inocentes e que ia nos absolver. Esse é um charlatão ou não é?”

     

    A Ação Penal 470, conhecida como Mensalão, indicou, para ele, o início da “virada da Suprema Corte na direção do populismo judicial e do ativismo político, da judicialização da política, a Corte Suprema a serviço da luta contra a corrupção, quando os fins justificam os meios – era somente o começo”.

     

    Notas

    1 As declarações de José Dirceu foram extraídas i. do livro Zé Dirceu: Memórias. São Paulo, Geração Editorial, 2018. 496 p. (https://www.zedirceumemorias.com.br/) e da entrevista que Zé Dirceu deu à TV 247 (https://youtu.be/DLV6hRVmY3Q.)

    2 Essa matéria recebeu o selo 030-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

  • “Eles resistiram”, dizem PMs. “Foram executados”, dizem testemunhas

    “Eles resistiram”, dizem PMs. “Foram executados”, dizem testemunhas

    Douglas Silva (17) e Felipe Macedo Pontes (17) foram mortos, em 2011, por PMs em São Bernardo do Campo

    Nesta quarta-feira, dia 29 de agosto de 2018, às 10hs, no Fórum de São Bernardo do Campo, será realizado o julgamento do major da PM, Herbert Saavedra. O destino do oficial será decidido por 7 jurados no júri popular da Vara do Júri de São Bernardo do Campo – São Paulo. Ele, juntamente com o soldado da PM Alberto Fernandes de Campos e o cabo Edson Jesus Sayas Junior, são acusados pelos assassinatos dos adolescentes Douglas Silva e Felipe Macedo Pontes, ambos com 17 anos, ocorridos no dia 30 de novembro de 2011, no Bairro Demarchi, em São Bernardo do Campo. Na época do crime Saavedra era capitão da PM e comandava a equipe da Força Tática.

    Os outros 2 PMs envolvidos não serão julgados nesta quarta porque recorreram da sentença de pronúncia (decisão que determina o julgamento perante o júri popular). O Tribunal de Justiça ainda não julgou os recursos.

    Policiais alegam resistência. Testemunhaar negam

    Segundo a versão dos policiais na época, os adolescentes Douglas Silva e Felipe Macedo Pontes morreram em confronto. A ocorrência foi registrada pelos policiais 6 horas depois dos fatos, como “resistência seguida de morte”. Mas testemunhas ouvidas na época por entidades de direitos humanos, pela Ouvidoria de Polícia e pela Polícia Civil, afirmaram que os jovens foram executados pelos policiais militares, sem que esboçassem qualquer tipo de reação. Uma testemunha chegou a presenciar os PMs forjando provas no local do crime, para simular um suposto confronto. Ela afirmou ter visto os policiais tirando armas de fogo de dentro da viatura da PM e colocando as nas mãos dos jovens. Essa e outras testemunhas foram ouvidas na Vara do Júri, durante a instrução do processo criminal.

    Os jovens estavam saindo da Escola

    Na noite do dia 30 de novembro de 2011, os amigos Douglas e Felipe estavam saindo de moto da escola estadual onde estudavam no Bairro Demarchi, em São Bernardo do Campo, quando foram abordados pelos 3 PMs da Força Tática. Posteriormente, os policiais disseram que eles eram suspeitos de um roubo no bairro. “Porém, esse suposto roubo jamais ocorreu, já que nenhuma ocorrência do tipo foi registrada na Delegacia da área, assim como nenhuma vítima ou testemunha do suposto crime foi localizada pela própria polícia”, afirma o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Condepe (Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana), que acompanha o caso desde o início.

     

    Há fortes indícios de execução, afirma advogado Ariel Castro Alves, do Condepe

    Segundo Ariel, as investigações do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) demonstraram que Felipe foi assassinado na própria abordagem e Douglas foi morto a caminho do Hospital, após, inclusive, ter dito a uma testemunha que temia ser morto pelos PMs no caminho ao Hospital, por ter presenciado o assassinato de seu amigo na abordagem policial. “Existem fortes indícios de que os adolescentes foram executados pelos PMs, já que conforme os laudos do IML, Douglas levou 5 tiros e Felipe recebeu 4 disparos”, afirma Ariel, complementando que o laudo residuográfico do Instituto de Criminalística não constatou resíduos de pólvora nas mãos das vítimas.

    Os adolescentes, que não tinham antecedentes, trabalhavam e estudavam

    “Os adolescentes trabalhavam e estudavam e não tinham antecedentes de envolvimento com atos infracionais na Vara da Infância e Juventude. Os laudos do Instituto Médico Legal demonstraram que as mortes foram ocasionadas por vários disparos de armas de fogo dos PMs, que atingiram órgãos letais dos corpos. Um jovem foi morto no local da abordagem e o outro a caminho do Pronto Socorro Municipal, conforme as investigações da Polícia Civil”, informa o advogado André Alcantara, membro da Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (ACAT- Brasil) e do Condepe.

    A denúncia do Ministério Público

    Após 4 anos de investigações, somente em 2015, os policiais militares Herbert Saavedra, Alberto Fernandes de Campos e Edson Jesus Sayas Junior, se tornaram réus no Processo Criminal pelos 2 homicídios. Na época, o juiz Fernando Martinho de Barros Penteado, da Vara do Júri de São Bernardo do Campo, acatou a denúncia criminal apresentada pela promotora de Justiça Thelma Thais Cavarzere. Na denúncia, a promotora afirmou taxativamente que “os imputados mataram Douglas para assegurar a ocultação e a impunidade do homicídio que praticaram contra Felipe”. Por fim, a promotora denunciou os 3 PMs pelos 2 homicídios qualificados.

    Sentença de Pronúncia da Vara do Júri de SBC

    No dia 17 de fevereiro de 2017, após terminar a fase de instrução processual, na qual foram ouvidas as testemunhas do crime e analisadas todas as provas e laudos produzidos durante o Inquérito da Polícia Civil, o juiz titular da Vara do Júri de São Bernardo do Campo, Fernando Martinho de Barros Penteado, decidiu que os réus deveriam ser julgados pelo Júri Popular, entendendo que estavam presentes os “indícios suficientes de autoria e materialidade” com relação ao envolvimento dos PMs com o crime. A sentença cita os depoimentos das testemunhas protegidas, que foram ouvidas em audiência, que afirmaram que os jovens estavam desarmados e foram assassinados pelos policiais militares. (Anexo).

    Autos do Inquérito Policial não foram encontrados por 8 meses

    Em julho de 2012, o Ministério Público Federal de São Paulo, após ser acionado pelos advogados André Alcantara e Ariel de Castro Alves, pediu ao Procurador Geral da República a federalização das investigações sobre as mortes dos 2 adolescentes. Na época, os autos do Inquérito Policial estavam sumidos há 6 meses. Porém, 2 meses depois do pedido de federalização, os autos do Inquérito Policial foram encontrados no Fórum de Santo André e não no de São Bernardo, onde deveriam estar.

    Human Rights Watch cobrou providências do Governador de São Paulo

    Em 29 de julho de 2013, a ONG (Organização Não Governamental) internacional Human Rights Watch apresentou um documento ao Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, citando os assassinatos de Douglas e Felipe, em São Bernardo do Campo, como exemplo de “casos padrão” na atuação da Policia Militar Paulista, nos quais “policiais executam pessoas e, em seguida, acobertam esses crimes”.

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 028-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

     

  • Como o golpe foi construído a partir da condenação de Zé Dirceu

    Como o golpe foi construído a partir da condenação de Zé Dirceu

    por Rodrigo Perez Oliveira*

    Tem tanta coisa envolvida no julgamento de Lula que fica até difícil recortar um aspecto específico para comentar. É esse o meu esforço neste pequeno ensaio. Quero discutir aquele que me parecer ser o núcleo central da crise que vivemos, algo que não é exatamente uma novidade, mas que já está circulando por aí (e nós não demos a devida atenção) desde 2005: a aplicação seletiva do paradigma indiciário ao Direito Penal.

    Começou lá, há 13 anos, no tão midiaticamente aclamado “julgamento do mensalão”: a Ministra Rosa Weber, na Suprema Corte, disse explicitamente que não tinha provas cabais contra José Dirceu, mas que ainda assim o condenaria, com base na bibliografia disponível.

    Como Zé Dirceu é um homem odiado à direita e à esquerda, aplausos foram ouvidos dos dois lados. A direita odeia Zé Dirceu porque sabe, perfeitamente, que ele é um dos maiores quadros da história da esquerda brasileira. A direita, que não é boba, tem todos os motivos do mundo para odiar Zé Dirceu.

    Alguns grupos da esquerda odeiam Zé Dirceu porque se sentiram desprestigiados no governo popular que ocupou parte do Estado em 2003. Odeiam por ressentimento. Poucos sentimentos humanos são tão baixos e amargos como o ressentimento.

    Enfim, o fato é que Zé Dirceu foi condenado e não aconteceu nada, e não fizemos nada. Ou melhor, Zé Dirceu foi para o sacrifício e tudo continuou caminhando como se nada tivesse acontecido.

    Mas aconteceu, aconteceu tudo: a matriz do golpe foi forjada ali, sob a forma da incorporação ao repertório do direito penal brasileiro de um paradigma teórico que pode até ser legítimo em outras ciências sociais ou mesmo em outros ramos do direito, mas jamais no direito penal. Jamais!

    Pra explicar melhor, apresento um autor que é muito conhecido pelos historiadores profissionais: Carlo Ginzburg, o historiador italiano que nos anos 1970 teorizou sobre o tal paradigma indiciário, em um ensaio cujo título é “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”.

    Trata-se de um texto bastante lido nos cursos de graduação em História. Penso que dizer umas poucas palavras sobre o texto de Ginzburg pode nos ajudar a compreender algo a respeito da crise brasileira contemporânea. É que o conhecimento histórico é útil à vida.

    O argumento de Guinzburg é muito simples: no século XIX afirmou-se nas ciências humanas um paradigma científico que propõe o conhecimento da verdade através da interpretação de pequenos indícios. O autor toma como exemplo desse paradigma indiciário o “método moreliano” de verificação da autenticidade das obras de arte.

    Ao invés de buscar a “verdade da obra” nos traços mais notórios das escolas estéticas (que são mais facilmente imitáveis pelo falsificador), o especialista deve se debruçar sobre os detalhes que apontam para as características pessoais dos artistas. Aqui, no indício, no que o falsário não consegue imitar, estaria a “verdade da obra”.

    O paradigma indiciário rendeu bons frutos para a pesquisa histórica, tendo na segunda metade do século XX se transformando em um importante programa de estudos históricos que costumamos chamar de “micro história”.

    Ou em outras palavras, para que o meu argumento fique mais claro: o historiador pode basear suas hipóteses na interpretação criativa dos indícios. O juiz penal não pode. E isso pelo simples fato de que a função do historiador não é julgar, é compreender, como já disse Marc Bloch, outra importante referência para os historiadores profissionais. Já o juiz penal tem poder sobre aquilo que é o elemento mais sagrado do contrato social civilizado: a liberdade do corpo.

    O que acontece se um historiador, em um livro ou em um artigo, apresenta ao seu leitor uma tese baseada na interpretação criativa de indícios?

    Se o procedimento de pesquisa e escrita não for bem executado, estará trazendo a público um conhecimento pouco confiável, frágil, o que é um problema grave, mas que pode ser contornado por outro historiador, por outro especialista mais cuidadoso.

    Por outro lado, se um juiz penal procede assim, um inocente pode ser condenado. Não existe tragédia maior que a condenação de um inocente.

    O que o Juiz Sérgio Moro e seus colegas de Porto Alegre fizeram no caso Lula foi, justamente, a aplicação seletiva ao direito penal do paradigma indiciário, tal como a Ministra Rosa Weber havia feito em 2005.

    Se vocês tiverem tempo e paciência para ler a sentença do Juiz Sérgio Moro, verão que o argumento fundamental é: em “atos de ofício indeterminados”, Lula beneficiou a empreiteira OAS e recebeu o imóvel do Guarujá como propina. As visitas do casal Lula da Silva ao apartamento e as obras que teriam, segundo os delatores, sido coordenadas por Dona Marisa Letícia, são indícios que comprovam a culpa do réu.

    Meus amigos e minhas amigas, em direito penal, indícios não podem comprovar culpa. Cada um de vocês pode achar que o apartamento estava de fato sendo reservado para Lula, o que também não significa que ele o compraria com dinheiro sujo.

    Por que Lula não poderia comprar o imóvel com seus próprios proventos, com dinheiro legal, com fonte declarada? Só por que ele não tem berço, só por que ele nasceu no Nordeste, não pode, honestamente, comprar um tríplex no Guarujá? Este é outro aspecto do caso Lula que diz muito sobre a mentalidade do brasileiro médio. Mas não é disso que quero falar, não aqui.

    Retomando o fio.

    Vocês têm o direito de achar que Lula é culpado, que os indícios bastam, mas aí, como disse Reinaldo Azevedo (sim, estou citando Reinaldo Azevedo. Tempos estranhos!), já é uma questão de crença. E crença é assunto de foro íntimo. Cada um que se resolva com a sua.

    O fato, fato mesmo é: Sérgio Moro, que agiu como promotor desde o início do processo, não conseguiu provar a culpa e mostrar em quais “atos de ofício” Lula teria beneficiado a empreiteira. Se não provou cabalmente, meus amigos, não pode condenar. Simples assim.

    Aí você pode dizer: então é impossível combater a corrupção, pois crime de corrupção não deixa provas cabais.

    Quem disse?

    Quem disse que crime de corrupção não deixa provas cabais?

    E o Aécio? E o Temer? E o Cunha? E o Cabral? E o Gedel?

    Conta na Suíça, áudio, mala de dinheiro com 500 mil reais, apartamento à la Tio Patinhas. Tudo isso é prova cabal, taxativa.

    Ah, mas e quando essas provas cabais não existem?

    Se as provas cabais não existem, não pode condenar. Simples assim.

    Pode ser que com isso o culpado fique impune? Pode sim, paciência!

    É melhor o culpado ficar impune do que o inocente ser punido injustamente. Repito: a tragédia do Estado de direito não é a impunidade. É a punição injusta.

    Mas como nada é tão ruim que não possa piorar, o tal paradigma indiciário está sendo aplicado seletivamente por algumas frações do judiciário brasileiro, aplicado, apenas, contra lideranças do campo político progressista. A interpretação criativa dos indícios só serve se for para condenar políticos progressistas.

    É por isso que temos que tomar cuidado com uma máxima que está sendo verbalizada por algumas vozes da esquerda brasileira:

    “O que aconteceu com Lula já acontece há muito tempo com pobres e pretos, e não tem nenhuma novidade”.

    A leitura está errada. A máxima correta seria:

    “Aconteceu com Lula porque já acontece há muito tempo com pobres e pretos”.

    Entendem a diferença? Lula é uma importante liderança política, a mais importante do Brasil moderno. Foi Presidente da República, discursou na ONU, tomou chá com a Rainha da Inglaterra, mas nunca fez parte das elites. Ele pode até ter achado, em algum momento, que tinha sido aceito no clube, mas na real nunca foi.

    É por isso que o judiciário, poder historicamente conservador onde os grandes cargos são transmitidos como um tipo de herança familiar, está fazendo o que está fazendo com Lula.

    Por um motivo muito simples, meus amigos: Lula nunca fez parte das elites brasileiras. Para as elites da terra, Lula sempre foi preto, pobre, favelado, nordestino, peão analfabeto. E pior: sujeito abusado, insolente, que não “sabe o seu lugar”.

    Se eles estão fazendo isso com Lula, com alguém conhecido internacionalmente, o que não farão com pretos e pobres desconhecidos? A situação dessas pessoas ficará ainda pior.

    A condenação de Lula é simbólica, é como se as elites da terra estivessem dizendo: “vocês ousaram eleger um dos seus para governar esse país, ousaram consumir, ousaram estudar na universidade. A brincadeira acabou. Voltem para o seu lugar, de onde nunca deveriam ter saído”.

    Entendem, amigos? Sob todos os aspectos a condenação de Lula é uma tragédia: é uma tragédia para o contrato social civilizado, que não admite a interpretação criativa de indícios como procedimento do direito penal. É uma tragédia para a população brasileira mais pobre, que ficará ainda mais vulnerável ao arbítrio da lei.

    Defender Lula, de todas as formas, custe o que custar, é uma obrigação moral.

    • Rodrigo Perez Oliveira é historiador e professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia.

    Notas

    1 Essa matéria foi publicada originalmente na Revista Forum em:  https://www.revistaforum.com.br/como-o-golpe-foi-construido-partir-da-condenacao-de-ze-dirceu/

    2 Essa matéria recebeu o selo 027-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
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