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  • A escada de Moro ao Ministério tem graves violações de direitos

    A escada de Moro ao Ministério tem graves violações de direitos

     

    Nota da ABJD em defesa da imparcialidade do Judiciário e contra o partidarismo de Sérgio Moro

    “A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURISTAS PELA DEMOCRACIA (ABJD), entidade que congrega os mais diversos segmentos de formação jurídica em defesa do Estado Democrático de Direito, VEM A PÚBLICO, diante do aceite do juiz federal Sérgio Moro para integrar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, MANIFESTAR ESPANTO E GRAVE PREOCUPAÇÃO com este gesto eminentemente político e consequencial ao comportamento anômalo que o juiz vinha adotando na condução da Operação Lava-jato.

    A conduta excepcionalmente ativista adotada pelo juiz da 13a Vara Federal de Curitiba sempre foi objeto de críticas contundentes por parte da comunidade jurídica nacional e internacional, rendendo manifestações em artigos especializados e livros compostos por centenas de autores, a denunciar o uso indevido da lei em detrimento das garantias e liberdades fundamentais. Em diversos episódios, restou evidente a violação do principio do juiz natural no critério da imparcialidade que deve reger o justo processo em qualquer tradição jurídica. Um juiz deixa de ser independente quando cede a pressões decorrentes de outros Poderes do Estado, das partes ou, mais grave, a interesses alheios à estrita análise do processo, deixando não apenas as partes, como também toda a sociedade sem o resguardo dos critérios de justiça e do devido processo legal.

    Um juiz que traz para si a competência central da maior operação anticorrupção da história do Brasil não pode pretender atuar sozinho, à revelia dos demais Poderes e declarando extintas ou suspensas determinadas regras jurídicas para atender a quaisquer fins de apelo popular. Um juiz com tal concentração de poder deveria ser exemplo de máxima correição no uso de procedimentos jurídicos e tomada de decisões processuais, tanto pelos riscos às liberdades e direitos dos acusados como pelos efeitos nocivos de caráter econômico inexoravelmente provocados pela investigação de agentes e empresas.

    No entanto, o que se viu nos últimos anos foi o oposto. O comportamento do juiz Sérgio Moro, percebido com clareza até pela imprensa internacional ao noticiar um julgamento sem provas e a prisão política de Lula, foi a de um juiz-acusador, perseguindo um réu específico em tempo recorde e sem respeitar o amplo direito de defesa e a presunção de inocência garantida na Constituição.

    Recordem-se alguns episódios que denotam que o ativismo jurídico foi convertido em instrumento de violação de direitos civis e políticos, a condicionar o calendário eleitoral e o futuro democrático do país, culminando com a aceitação do magistrado ao cargo de Ministro da Justiça:

    1 No início de 2016, momento de grave crise política, o juiz Sérgio Moro utilizou uma decisão judicial para vazar a setores da imprensa uma conversa telefônica entre a então Presidenta da República, Dilma Rousseff, e o ex-Presidente Lula por ocasião do convite para assumir um ministério;

    2 Em março de 2016, o juiz autorizou a condução coercitiva contra o Lula numa operação espetáculo, eivada de irregularidades e ilegalidades também contra familiares e amigos do ex-Presidente;

    3 Em 20 de setembro de 2016, às vésperas das eleições municipais, o juiz aceitou uma denuncia do Ministério Público contra Lula e iniciou a investigação do caso Triplex. O que se seguiu durante os meses seguintes foi um festival de violações ao devido processo legal, de provas ilícitas a violação de sigilo profissional dos advogados. Esses abusos foram denunciados ao Comitê Internacional de Direitos Humanos da ONU;

    4 A sentença condenatória do caso Triplex, em julho de 2017, provocou revolta na comunidade jurídica, que reagiu com uma enxurrada de artigos contestando tecnicamente o veredito nos mais diversos aspectos e chamando a atenção para o comportamento acusatório e seletivo do magistrado;

    5 A divulgação da sentença condenatória do caso foi feita um dia após a aprovação da reforma trabalhista no Senado Federal, quando então já se falava em pré-candidatura de Lula ao pleito de 2018;

    6 O julgamento recursal pelo TRF4 em 27 de março de 2018, como se sabe, foi realizado em tempo inédito, em sessão transmitida ao vivo em rede nacional. Vencidos os prazos de embargos declaratórios, o Tribunal autorizou a execução provisória da pena, dando luz verde à possível prisão a ser decretada pelo juiz Sérgio Moro, momento em que as ruas se acirraram ainda mais com a passagem das Caravanas do pré-candidato Lula pelo sul do país;

    7 No dia 05 de abril, o STF julgou o pedido de habeas corpus em favor de Lula e, por estreita margem de seis votos a cinco, rejeitou o recurso pela liberdade com base na presunção de inocência. No próprio dia 05, contrariando todas as expectativas e precedentes, o juiz Sergio Moro determinou a prisão de Lula e estipulou que este deveria se apresentar à Polícia Federal até às 17h do dia seguinte. O mandado impetuoso é entendido pela comunidade jurídica, mesmo por quem não apoia o ex-Presidente, como arbitrário e até mesmo ilegal;

    8 Lula decidiu cumprir a ordem ilegal para evitar maiores arbitrariedades, pois já ecoava a ameaça de pedido de prisão preventiva por parte de Sérgio Moro. No dia 07 de abril, Lula conseguiu evitar a difusão de uma prisão humilhante, saindo do sindicato nos braços do povo, imagem que correu o mundo como símbolo da injustiça judiciária;

    9 No dia 08 de julho, houve um episódio que escancarou a parcialidade de Sérgio Moro. O juiz, mesmo gozando de férias e num domingo, telefonou para Curitiba e, posteriormente, despachou no processo proibindo os agentes da Polícia Federal de cumprirem uma ordem de liberação em favor de Lula expedida pelo juiz de plantão no TRF4, o desembargador Rogério Favreto. Frise-se: mesmo sem ter qualquer competência sobre o processo, já em fase de execução, Sérgio Moro desautorizou o cumprimento do alvará de soltura já expedido, frustrando a liberação, descumprindo ordem judicial, ignorando definitivamente a legalidade, o regime de competência e a hierarquia funcional;

    10 Avançando para o processo na justiça eleitoral, já às vésperas das eleições presidenciais em primeiro turno e com o franco avanço do candidato Fenando Haddad, que substituiu Lula após o indeferimento da candidatura, o juiz Sérgio Moro determinou a juntada aos autos da delação premiada do ex-ministro Antônio Palocci contra Lula, depoimento que havia sido descartado pelo MPF e que foi ressuscitado com ampla repercussão da mídia. Sabe-se agora, pelo vice-Presidente eleito, General Mourão, que nesse tempo as conversas para que Moro viesse a compor um cargo político central no futuro governo já estavam em andamento;

    11 Coroando a cronologia de ilegalidades e abusos de poder, frisa-se que Sérgio Moro, ainda na condição de magistrado, atuou como se político fosse, aceitando o cargo de Ministro da Justiça antes mesmo da posse do Presidente eleito e, grave, tendo negociado o cargo durante o processo eleitoral, assumindo um dos lados da disputa, conforme narrado pelo General Hamilton Mourão. Tal movimentação pública e ostensiva do juiz confirma a ilegalidade de sua atuação político-partidária em favor de uma candidatura, o que se vincula ao ato de divulgação do áudio de Antonio Palocci para fins de prejudicar uma das candidaturas em disputa. O repúdio a essa conduta disfuncional motiva a ABJD a mover representação junto ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ – com o fim de exigir do órgão o zelo pela isenção da magistratura, o respeito ao principio da imparcialidade e a garantia da legalidade dos atos de membros do Poder Judiciário.

    Moro não poderia, em acordo com as normas democráticas vigentes, praticar qualquer ato de envolvimento político com o governo eleito ou com qualquer outro enquanto fosse juiz. Ao fazê-lo viola frontal e acintosamente as normas que estruturam a atuação da magistratura, tornando tal violação ainda mais impactante ao anunciar que ainda não pretende se afastar formalmente da magistratura, em razão de férias vencidas.

    O ativismo do juiz Sérgio Moro não abala apenas a segurança dos casos por ele julgados e a Lava-jato como um todo, mas transfere desconfiança a respeito da ética e da independência com que conduzirá também o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, um ministério ampliado e com poderes amplos, no momento em que o país passa por grave crise democrática, em que prevalecem as ameaças e a perseguição aos que defendem direitos humanos e uma sociedade mais justa.”

    Notas

    1 Esse artigo foir originalmente publicado em http://www.abjd.org.br/2018/11/emdefesadaimpacialidadedojudiciario.html

    2 Essa matéria recebeu o selo 046-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

     

  • Estamos ganhando da impunidade?

    Estamos ganhando da impunidade?

    “Enquanto a gente discute a presunção de inocência desta forma,
    enquanto nós admitimos que pode o Supremo Tribunal Federal mudar a Constituição,
    enquanto nós admitimos que a Polícia Militar tem controle absoluto sobre a população,
    essa população vai morrer.
    Roberto Tardelli

    Por que acreditamos que o Brasil é a terra da impunidade se temos mais de 700 mil presos? Por que acreditamos que a Polícia prende e o Judiciário solta se temos cerca de 300 mil presos provisórios que ainda podem ser julgados inocentes? É eficiente retirar direitos dos acusados pela Justiça quando um estudo do Ministério Extraordinário da Segurança Pública estima que a população carcerária brasileira será de 841,8 mil ao final de 2018?

    O número de presos provisórios indica que a regra é supor que todos são culpados até que se prove o contrário. Além do mais, quando acrescentamos o dado que a imensa maioria da população carcerária brasileira é pobre e negra, concluímos que o direito à liberdade lhes foi retirado. Que, mesmo sendo um direito constitucional, para pobres e negros não existe presunção de inocência.

    Como devolver a um cidadão o tempo que o Estado o prendeu indevidamente?

    Se o Estado cobrar mais dinheiro ou mais bens do que devia, existe a possibilidade de devolver.

    O tempo encarcerado não pode ser restituído.

    Os juízes podem errar, intencionalmente ou não. Em 2017, a Defensoria Pública de São Paulo reverteu 44% das decisões que levou ao Superior Tribunal de Justiça. Se os réus desses 44% de casos tiverem sido presos, após o julgamento de segunda instância, o Estado terá cometido uma injustiça irreparável com eles: foram submetidos às condições degradantes dos presídios brasileiros e foram inocentados quando o processo chegou à última instância.

    Essa é a razão que fez com que as sociedades adotassem o princípio de que todos são inocentes até que se prove o contrário ou, o que é o mesmo, que alguém só pode ser considerado culpado quando não existir mais a possibilidade da sentença ser modificada.

    Ao permitir, em 2016, a prisão em segunda instância, o STF “autorizou” que o Tribunal de Justiça de São Paulo emitisse 13.887 novos mandados de prisão. Como afirma o ex-procurador de Justiça Roberto Tardelli, esse número de réus, cujos recursos ainda não foram julgados pela instância máxima, equivalem a 20 penitenciárias de 700 vagas cada uma.

    Argumenta-se que é preciso prender após a segunda instância pois há réus perigosos, há aqueles que podem perturbar provas e há aqueles em que existe indício de fuga. Pois bem, o Código de Processo Penal prevê que nesses casos existe fundamento para a prisão e a prisão provisória pode ser decretada. No entanto, esse não é o caso de todos os cerca de 300 mil presos provisórios no país.

    A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), a Associação Juízes para a Democracia (AJD) e o Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) promoveu, nessa sexta 03/08 um Ato em Defesa da Presunção de Inocência e Independência Judicial. O ato fez parte da campanha para que STF restabeleça o respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência:

    Toda pessoa é inocente até que se prove sua culpa. Esse é um princípio fundamental do direito, expressamente referido na Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU em 1948 e incorporado à nossa Constituição, em seu artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

    O Supremo Tribunal Federal pode e deve restabelecer o respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência. A ABJD em conjunto com outras organizações está organizando uma Campanha nacional para exigir que o Tribunal vote o mérito das ações de controle concentrado de constitucionalidade que estão no seu plenário, para dar efetividade a um dos preceitos constitucionais que fazem parte da base do Estado Democrático de Direito.

    Para Laura Rodrigues Benda, presidenta do Conselho Executivo da AJD, está ficando claro, para todos nós, o estado democrático de direito brasileiro é ilusório: “o próprio fato de ter que existir uma associação de juízes para a democracia demonstra que, se alguns são para a democracia, é por que outros não são”.

    Sobre a prisão quando ainda cabe recurso aos tribunais superiores e os 14 mil novos mandados de prisão somente em São Paulo, ela afirma: “o argumento de que a gente faz isso para acabar com a impunidade, que é o país da impunidade, que se refere aos crimes de colarinho branco, à Lava Jato, aos crimes dos políticos, não é verdadeiro, porque essas 14 mil pessoas não são pessoas da Lava Jato, dos crimes de colarinho branco ou dos partidos políticos (…) e dessas pessoas que estão sendo cada vez mais presas, muitos inclusive vão ser assassinados pelo Estado, com a conivência do estado dentro das prisões. O que estamos fazendo, além de ruir com nossos princípios democráticos, é assassinar pessoas. E a maioria dessas pessoas vão ser pobres, vão ser negras e vamos seguir nesse processo de exclusão social e racial.”

    “A sensação que a gente tem, e ela é absolutamente correta, é que o Ministério Publico se tornou uma Tea Party (nome dado ao grupo de radicias de extrema direita do Partido Republicano dos EUA). Quem não é de extrema direita está absolutamente sem inserção social lá dentro.” Essas foram as primeiras palavras do procurador aposentado Roberto Tardelli no ato dessa sexta-feira. Ele prossegue:

    Eu diria hoje que o Ministério Público é uma extensão da viatura da Polícia Militar.

    Quando eles falam da quebra do princípio da presunção de inocência, a gente tem que pensar que não é somente a quebra apenas de um princípio constitucional, é muito mais do que isso. É a quebra da coluna vertebral de todo nosso sistema.

    Nem 10% dos homicídios são solucionados. Com tudo isso que estamos prendendo, nós continuamos com 90% dos homicídios não apurados. Isso é impunidade.

    Nós quebramos a espinha dorsal. A antecipação do cumprimento de pena é trágica em todos os aspectos. (…) Se eu posso prender uma pessoa antes, por que eu não posso cobrar um tributo? Por que eu não posso penhorar uma casa, um carro? Por que eu não posso tomar o filho de alguém? Quebrou a porteira.

    Tardelli complementa que não será com atitudes como sair prendendo desesperadamente, nem quebrando garantias constitucionais, nem supervalorizando o depoimento de policiais que melhoraremos esse quadro.

    Tânia Oliveira, da ABJD, reproduz a conversa com uma professora de filosofia do direito que disse: “o cidadão, que está aí na mídia, que foi condenado em segunda instância e está preso, costuma formular a seguinte frase: ‘eu já provei a minha inocência, agora eu quero ver ele provarem a minha culpa’. Quando a gente pega emblematicamente essa frase do Lula, a gente tem o seguinte panorama: essa é a realidade do processo penal brasileiro. A grande verdade é que o cidadão entra, no sistema do processo penal brasileira, culpado. É ele tem que provar, na verdade, a sua inocência”.

    “Uma outra Justiça é necessária” é o título do artigo da desembargadora Kenarik Boujikian Felippe, para a edição especial do jornal Brasil de Fato sobre a presunção de inocência. Sustenta ela:

    Se pensarmos que um dos objetivos da República é erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades, é obrigatório concluir que o Judiciário está a quilômetros de distância disso. Na verdade, a mensagem que se está transmitindo é que o Judiciário visa atender os donos do poder econômico.
    (…)
    Na área penal, esta percepção é ainda maior pelo encarceramento massivo de uma população pobre, periférica e, majoritariamente, negra, somado ao gigantesco número de presos provisórios, que só vem aumentando após o julgamento do STF que relativizou o alcance do princípio da presunção de inocência.
    (…)
    A questão que o povo pergunta é: por que houve uma mudança de posição pouco antes do julgamento de Lula?

     

    Notas

    1 Para ver a matéria “Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo”: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas

    2 Para ver mais informações sobre a Campanha Presunção de Inocência e baixar o formulário para colher assinaturas: http://www.abjd.org.br/p/toda-pessoa-e-inocente-ate-que-se-prove.html

    3 Para assistir o vídeo do Ato em Defesa da Presunção de Inocência e Independência Judicial em https://www.facebook.com/ABJuristasPelaDemocracia/