Ao testemunhar uma abordagem violênta que ocorria próximo a janela da sua casa a professora e ativista Maria Nilda de Carvalho, a Dinha, começou a gravar com o celular. Os policiais perceberem a filmagem, e invadiram sua casa arrombando o portão, e a porta, abrindo a janela e derrubando a cortina. Os policiais fizeram xingamentos e jogando as luzes lanternas, tentaram intimidar a ativistas com ameaças de prisão.
Dinha é articuladora em seu bairro, zona sul de São Paulo, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, e graças a sua experiência e consciência teve coragem de gravar a ação da polícia contra pessoas no seu bairro. Ela gravava e transmitia simultaneamente a um dos grupo da Rede, para conseguir se proteger. Os policiais então invadiram a sua casa.
Campanha de proteção a Ativista
Em função dos danos causados a sua casa e a necessidade de maior proteção a ativista, a Rede lançou uma campanha no link : https://abacashi.com/p/portas-janelas-e-camera-de-vigilancia-para-dinha as doações também servem para comprar uma câmera de vigilância e ampliar a proteção da ativista que sofreu ameaça dos policiais.
A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio é um grupo que se pauta no trabalho em rede composto por organizações, como coletivos, ONGs e Pastorais, e pessoas, com atuação voluntária, que são ativistas e profissionais de várias áreas tanto do setor público, quanto do privado do Estado de São Paulo. Esta articulação de militantes denuncia as frequentes ações de violência policial, que ocorrem principalmente nos bairros periféricos de São Paulo, e buscam informar as vítimas e as conectar as instituições e ONGs que possam protegê-las.
Assista a entrevista de Dinha contando mais sobre a ação e sua atuação na Rede de Proteção ao testemunho.
Apesar das ameaças ela não saiu de casa com medo dos policiais. Eles arrombaram a porta da sala, causando destruição em sua casa e desespero em sua família, composta por crianças pequenas. Os policiais tomaram o celular da mão de Dinha, na tentativa de apagar os vídeos, ameaçando levá-la à delegacia, incriminá-la, ou fazer isso com vizinhos, caso ela não cedesse o aparelho ou se recusasse a ir com eles.
Os policiais também olharam sua casa, fotografaram o interior e uma policial feminina a revistou truculentamente. Antes da invasão, Dinha ainda teve tempo de avisar amigos e familiares, que logo foram socorrê-la. Ao fim, os policiais foram embora e deixaram seu celular com sua vizinha.
Os policiais alegavam estar na abordagem, procurando o assassino de um outro policial, que segundo a reportagem da Ponte.org teria acontecido num bairro à 18 km. De qualquer forma nada justifica essa abordagem ilegal, que contraria a Constituição Federal, a qual garante a casa como um asilo inviolável. Neste vídeo da Ponte.org é possível ver algumas das imagens gravadas por Dinha da ação da polícia na rua e na invasão da sua casa.
Assassinatos, espancamentos, palavras e omissões matam, e são a marca dos ataques racistas e xenofóbicos em Portugal. Diversas entidades estão denunciando e se reunindo para se opor a esses ataques. A morte de mais uma vítima, o jovem Bruno Candé, ator, negro e português está motivando diversas ações e um ato de repúdio está marcado para hoje (31.07.2020) Às 18h. Esse fato não isolado, é demonstrado neste artigo de Rita Cássia Silva, que também lembra outras vítimas recentes, como Luís Giovani Rodrigues, assassinado por espancamento no fim de 2019, Cláudia Simões e sua filha, que sofreram violência física e também as frases ditas à Deputada da Assembleia da República Portuguesa, Joacine Katar Moreira, Mulher negra.
Por Rita Cássia Silva (*), especial para o Jornalistas Livres
“Não existe nem nunca existirá respeito às diferenças em um mundo em que as pessoas morrem de fome ou são assassinadas pela cor de pele” (Sílvio Almeida, 2019, p.190).
No início do corrente ano de 2020, pudemos observar de camarote (rede social facebook) um Deputado da Assembleia da República Portuguesa, André Ventura, Homem branco, sugerir contra uma Deputada da Assembleia da República Portuguesa, Joacine Katar Moreira, Mulher negra, que “seja devolvida ao seu país de origem”. O contexto demarcava uma proposta da Deputada Joacine Katar Moreira (na época integrante do partido Livre) em que os patrimónios materiais africanos preservados nos museus portugueses deveriam de ser devolvidos aos seus países africanos de origem. Embora tenham decorrido manifestações de repúdios e encaminhamentos de procedimentos contra o tal posicionamento sexista e racista do Deputado André Ventura, por parte de partidos políticos da esquerda portuguesa, junto ao Presidente da Assembleia da República Portuguesa, Dr. Eduardo Ferro Rodrigues, o facto é que os partidos não avançaram para voto de condenação para não “amplificar” as declarações do referido Deputado.
Decorre que o “episódio infeliz da democracia” sem sanção disciplinar e, com um entendimento parlamentar de que foi dado um ponto final ao episódio, reverberou-se no passado Sábado, dia 25/07/2020, no ator português, Homem negro, Bruno Candé, assassinado a queima-roupa em plena luz do dia, pelas mãos de um Homem português, branco, no auge dos seus 76 anos de idade. “Preto, vai para a tua terra” trata-se de uma frase muito utilizada contra pessoas negras naturais portuguesas ou com percursos de migrações, contra pessoas racializadas, na sociedade portuguesa em diferentes contextos. Ficámos a saber através das fontes noticiosas portuguesas que esta frase foi justamente uma das frases que Bruno Candé ouvira da boca do Homem que lhe retirou a vida. Bem como, “Vou violar a tua mãe”, “Fui à tua mãe e àquelas pretas todas de merda”, “Tenho armas do ultramar em casa e vou-te matar”.
Bruno Candé foi assassinado no seguimento do espancamento perpetrado contra o jovem estudante negro, cabo-verdiano, Luís Giovani Rodrigues, no fim de 2019, em Bragança, ato que teve enquanto consequência a sua morte. No seguimento da violência física que deixou Cláudia Simões, Mulher negra, desfigurada e sua filha pequena, criança negra, traumatizada, no Conselho da Amadora, por parte de um agente da força de segurança pública. Também no seguimento do assassinato de George Floyd pelas mãos de um agente da força de segurança pública nos E.U.A., ato potencializador do Movimento Black Lives Matter cujas reverberações fez-se sentir em diferentes localidades do globo terrestre. Em entrevista ao Apenas Fumaça (projeto de média independente), publicada no Geledés – Instituto da Mulher Negra, em 2018, Mamadou Ba, Dirigente da SOS Racismo, comunicara que “Em 15 anos mais de 10 jovens negros morreram nas mãos da polícia”. Quanto as Mulheres negras/mães, Mulheres/mães racializadas (brasileiras), Mulheres/mães brancas em situações de pobreza, as práticas de racismo/xenofobia/discriminações múltiplas não são diferentes: é-lhes negado o direito à maternidade, em situações de vulnerabilidades sociais, a saber: se forem vítimas de violências domésticas, se estiverem no país ao abrigo do tratado de saúde entre Portugal e países africanos ex-colonizados, se estiverem desempregadas e forem pedir ajuda a determinadas instituições do Estado que têm em suas prerrogativas apoiar pessoas em situações de vulnerabilidades sociais. Se não aceitarem ligar as trompas de falópio! É-lhes atribuído a condição enquanto seres humanos indignos de criarem seus filhos e filhas: “a mãe está com problemas psicológicos”, “a mãe não tem competências parentais”, “a mãe é um monstro”, “não se sabe se a mãe, por ser brasileira, é de favela ou empresária”, “a mãe é drogada, anda com drogados e não tem higiene”, “a mãe é burra”, “a mãe é muçulmana, vai praticar fanado”, “a mãe abandonou o filho”, “a mãe é agressiva”, “a mãe mente”, “a mãe é garota de programa”, “a mãe é histérica”, “a mãe trabalha de mais”, “a mãe é alienadora”… Às crianças, por sua vez, por vezes ficam órfãs de mães vivas, sendo subjugadas a vários tipos de violências (perda do direito de conviverem dignamente com suas mães e famílias biológicas – criminalização da pobreza, discriminação étnico-racial, xenofobia, reprodução social do colonialismo, abusos sexuais, discriminação de género, convivências impostas em regimes de guardas compartilhadas entre progenitores agressores e/ou abusadores e, mães protetoras, re-vitimizadas institucionalmente). Tais situações contidas em relatórios entregues a AR, através de associações civis, denunciadas publicamente em jornais portugueses, denunciadas a organismos internacionais, ao que parecem não causam nenhum movimento de empenho transformacional por parte da classe política.
No mais recente relatório da ONU, Dainius Pūras, psiquiatra, relator especial, recomenda aos Estados Membros a incorporação do Direito a Saúde Mental em todos os contextos mundiais. Recomenda que os Estados devem adotar todas as medidas necessárias para garantir a proteção e o florescimento de um espaço cívico como indicador chave do cumprimento do direito à saúde. O que significa que deve haver participação cidadã das pessoas nos processos que dizem respeito às suas vidas. Não pode haver desenvolvimento de saúde coletiva em territórios onde há negação das vozes de grupos de pessoas historicamente oprimidas durante séculos (mulheres, crianças, pessoas negras, pessoas racializadas). Pūras afirma que o modelo biomédico corre o risco de legitimar práticas coercitivas que violam os direitos humanos e podem implantar ainda mais a discriminação contra grupos que já estão em situação marginalizada ao longo de suas vidas e através das gerações.
“Por ser uma sistematização que nega o outro, uma decisão furiosa de negar ao outro qualquer atributo de humanidade, o colonialismo compele o povo dominado a se interrogar constantemente: Quem sou eu na realidade?”.
O problema é precisamente este. Vivemos no ano 2020, legitimando posicionamentos e procedimentos coloniais em Portugal. Protege-se agressores, racistas, machistas, abusadores sexuais, raramente as vítimas.
A sugestão de “devolução à sua terra” por parte de um Homem branco, detentor de privilégios, dentro da Casa da Democracia – AR, proferida contra uma das três únicas Deputadas Mulheres negras, em Portugal, feriu atrozmente a nossa democracia. Sobretudo porque além de termos perdido um momento único de afirmação dos valores democráticos em Portugal, de dignificação da pessoa humana Mulher negra (torturada durante séculos), de dignificação das pessoas humanas em suas diferentes culturas que contribuem para o desenvolvimento socioeconómico e cultural do país e de inibição de práticas nefastas à humanidade, como o racismo e o sexismo, potencializou-se socialmente mais práticas de violências contra pessoas negras, racializadas, sejam elas naturais portuguesas ou possuam elas percursos de imigrações. Bruno Candé Marques, artista negro português, nascido em Portugal em 1980, foi brutalmente assassinado devido ao racismo estrutural que não tem sido ferozmente combatido em Portugal, desde a primeira infância às faculdades, empresas, instituições do Estado e AR. Não faltam relatos das vítimas! Não faltam pesquisas qualitativas e quantitativas! Não faltam relatórios de organizações internacionais que têm vindo na última década, recomendar mudanças estruturais a Portugal.
Que o assassinato de Bruno Candé em Portugal, bem como o assassinato de George Floyd nos E.U.A., todas as mortes de pessoas negras e indígenas no Brasil, resultantes do genocídio que está a decorrer, os assassinatos de 52 pessoas em Moçambique, em Abril deste ano, as retiradas de crianças negras, racializadas, indígenas, de suas famílias biológicas, em Portugal, no Brasil, nos E.U.A., em outros países europeus, entre tantas outras barbaridades, não sejam passíveis de não serem debatidas socialmente. Somos ou não, mulheres e homens do nosso tempo? Somos ou não capazes de responder socialmente com celeridade e firmeza que não podemos ser tornados cúmplices das mais variadas formas de violências? A Bruno Candé Marques, um irmão, paz eterna. Deixou esposa e três filhos pequenos. Deixou a sua Mãe com 78 anos de idade. Mais uma Mãe Mulher negra que perde um filho para a prática racista. Do fim do século XIV até os dias atuais, as Mulheres Negras choram as retiradas violentas dos seus filhos e filhas. Séculos de desumanização do povo negro. Aos familiares e amigos do irmão Bruno Candé Marques: força positiva, resiliência, saúde e determinação. Que nunca nos esqueçamos de que o presente social esclarecedor em que estamos vivenciando em Portugal, demarca o futuro das gerações de crianças que estão crescendo. O Racismo estrutural MATA. Queremos pessoas negras e racializadas a viver em PAZ. Saudar dívidas históricas significa criar os alicerces para que pessoas com responsabilidades políticas e toda a sociedade não reproduzam discriminações racistas, sexistas ou xenofóbicas contra as pessoas. Todas as pessoas têm direito a sua dignificação. Artigo 1o da Constituição da República Portuguesa. Que faça-se Luz!
ALMEIDA, Silvio (2019), Racismo Estrutural, São Paulo, Sueli Carneiro Pólen. FANON, Frantz (1968), Os Condenados da Terra, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
A reportagem “Epidemia de execuções: PM catarinense mata 85% mais no isolamento social” foi realizada colaborativamente entre Portal Catarinas, CatarinaLAB e Folha da Cidade.
Ilustração: Hadna Abreu
Guilherme da Silva dos Santos, 21 anos; Matheus Cauling dos Santos, 17 anos; Derick da Luz Waltrik, 17; Walace Índio Farias, 18; Wellinton Jonatan da Silva, 21; Shilaver da Silva Lopes, 22; Yure Esquivel da Rosa, 17; Lucas Pereira da Silva, 21; Everton da Rosa Luz, 22; Leonardo Leite Arruda Alves, 18; Marlon Leite Arruda Alves, 15; e Jonatan Cristhof do Nascimento, 24.
Os tempos são de pandemia, mas as 12 cruzes fincadas no canteiro central da rua Silva Jardim, na entrada do Morro do Mocotó, no Centro de Florianópolis, não prestam homenagens aos mortos da covid-19 como milhares idênticas espalhadas em memoriais pelo país. A epidemia que sobe o morro na calada da noite, que caça alvos em uma suposta lista e sentencia ali, no calor do momento, é outra, e teve início há muitos anos. Só não inventaram ainda vacina capaz de contê-la: as mortes de jovens negros e favelados pela polícia.
A polícia catarinense matou uma pessoa a cada três dias em 2020. São 60 mortes até 29 de junho. Na pandemia, a partir de 16 de março, a letalidade cresceu 85%. Os gatilhos puxados por policiais catarinenses mataram 35 pessoas. Em 2019 foram 19 mortos nas ações policiais neste período.
Em Florianópolis, este ano, as intervenções policiais mataram pelo menos 11 jovens entre 20 de janeiro e 1º de junho. O mais novo tinha 15 anos; o mais velho, 24. Uma a cada quatro mortes violentas na cidade, este ano, foi pelas mãos da polícia. Em cinco anos já são 64 vítimas fatais nessas ações.
As famílias contestam as versões policiais, falam em execução, alterações das cenas dos crimes e negligência no atendimento. “Onde está a gravação deles que mostra que os guris os enfrentaram, como informaram no B.O.? Que eu saiba eles usam uma câmera na camisa, eu gostaria de ver, onde está?”, questiona a empregada doméstica Raquel Leite Arruda, mãe dos irmãos Marlon e Leonardo, mortos no domingo de Páscoa,
As versões conflitam com as afirmações do comandante do 4º Batalhão, coronel Dhiogo Cidral de Lima: “Todas as ocorrências foram legítimas, as pessoas envolvidas nesse enfrentamento tinham uma extensa ficha criminal”, disse o tenente-coronel, por telefone.
Um relatório de investigação conduzido pela Polícia Militar, nomeado de “Relatório Técnico Operacional” e obtido pela reportagem, elaborado pelo 4º Batalhão de Florianópolis em 2018, listou 55 pessoas na comunidade do Mocotó como envolvidos com o tráfico de drogas. Desses, quatro foram mortos em “confrontos”.
O documento virou inquérito policial, mas não foi diligenciado pela Polícia Civil. O Ministério Público chegou a alertar que investigação da PM não teria elementos para afirmar existência de uma facção.A Justiça chegou a prender parte dos citados.
“E uma verdadeira reprodução do que já havia sido apurado pela Polícia Militar, sem acrescentar nenhuma nova informação ou alargar as investigações”, relatou o promotor Luiz Fernando F. Pacheco. O inquérito tramita desde 2018 sem oferecimento de denúncia. E apesar de ter como base uma investigação da PM, nenhuma informação referente as mortes foi apresentada no inquérito. Em alguns casos, foi juntada certidão de óbito, mas sem explicações das circunstâncias das mortes.
As vidas perdidas desses jovens, que também já tinham chorado a morte de outros amigos, dizem sobre a intensificação de uma guerra sem data para terminar. Para entender o contexto da ausência de trégua, justamente quando há uma luta global para sobreviver à pandemia do novo coronavírus, investigamos algumas dessas mortes, ouvimos moradoras das comunidades, pesquisadoras, além da própria polícia e outras fontes oficiais.
Os dados desta reportagem estão no Anuário Brasileiro de Segurança Pública e nos relatórios da Secretaria de Segurança Pública de SC. A informações referentes às mortes em ações policiais em Florianópolis no ano de 2019 só contabilizam casos até o mês de junho daquele ano. A informação foi requisitada à SSP por meio de assessoria de imprensa e via LAI, mas ainda não foi disponibilizada pelo órgão.
Em consulta ao sistema do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a reportagem verificou que dos 12 mortos pela PM na região do Mocotó e listados na abertura desta reportagem, apenas um tinha condenação, por roubo, e quatro estavam relacionados no relatório que apura tráfico de drogas na comunidade. Os demais não respondiam qualquer ação penal na Justiça catarinense.
Sobre a investigação da PM, que alega ter como mote a existência de uma facção criminosa instalada no Mocotó, o Ministério Público apontou que os elementos são frágeis para tal afirmação, mas que constituem indicativos para prosseguimento das investigações.
Levantamento da reportagem apurou que das 64 mortes em ações policiais em Florianópolis desde 2016, cinco casos foram distribuídos para a Vara do Tribunal do Júri. Ou seja, apenas 7% das mortes em operações policiais serão analisadas na Justiça.
Para a professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Flavia Medeiros, casos de violações de direitos, que envolvem tortura, tentativa de morte e morte, mostram que as instituições policiais estão mais preocupadas com o uso da força e manutenção de uma ordem hierárquica e desigual na sociedade, do que necessariamente com a proteção dos cidadãos. “É papel do MP [Ministério Público] o controle externo do uso da força, tanto MP quanto judiciário são omissos neste controle. E essa omissão é forma de corroborar com a ação policial”.
“Aqui tudo parece Que era ainda construção E já é ruína Tudo é menino, menina No olho da rua O asfalto, a ponte, o viaduto Ganindo pra lua Nada continua” (Caetano Veloso)
O prédio localizado no número 103 da rua do Carmo, a poucos passos do marco zero da cidade de São Paulo, contém hoje 100 moradores equilibristas. São idosos, portadores de deficiências físicas e mentais, mulheres, algumas grávidas, e crianças, muitas crianças, vivendo em um prédio-símbolo da Arquitetura da Especulação de que a cidade de São Paulo está repleta. Monstro urbano à espera de valorização imobiliária, o edifício recebeu o apelido de “Caveirão” porque é praticamente um esqueleto de prédio: vigas de concreto recheadas de vergalhões de ferro e 23 lajes, imensas lajes, que foram construídas para abrigar automóveis. No projeto, o Caveirão seria um edifício-garagem.
Dançarinos no vácuo, equilibristas sem rede de proteção, os moradores do Caveirão se situam no último elo da cadeia alimentar que define quem come e quem é comido na cidade. Eles são os comidos. Todo o prédio ecoa a música evangélica que sai aos berros de um dos barracos –sim, dentro do esqueleto, os moradores construíram uma favela com os restos mortais de São Paulo (tapumes de obras, portas descartadas, caibros comidos por cupim). A música evangélica parece que fala com cada um dos equilibristas: “O Deus do Impossível não desistiu de mim. Sua [mão] destra me sustenta e me faz prevalecer…”
O prédio tem lixo espalhado por todo lado. São toneladas de dejetos, que os moradores tentam agora limpar. E está condenado. Em março de 2012 o engenheiro Merinio C. Salles Jr. atestou que “a estrutura vem sofrendo deterioração com o tempo, podendo vir a ruir, tendo em vista que sua estrutura de concreto armado já apresenta sua armadura exposta e sem condições de reparação, podendo assim vir a entrar em colapso causando grave acidente na região”. Mas o ruim tem ficado pior porque, nos últimos sete meses, o Caveirão está assombrado por 18 homens, soldados da PM, que aparecem todos os dias para esculachar os moradores, ameaçá-los e exigir que saiam do lugar. “Vai, sua puta, vagabunda, encosta na parede!” É pé na porta, humilhação das mulheres, destruição dos barracos, pontapés nas televisões e celulares esmigalhados sob os coturnos (para os moradores não filmarem a violência). Em um dos ataques, uma moradora com um bebê no colo e um cadeirante foram jogados no chão. Sofreram ainda com os efeitos do spray de pimenta. Os militares aparecem fardados, mas sem a identificação colada no uniforme.
Caveirão: policiais militares ameaçam moradores
Há relatos de tortura contra os homens, que são obrigados a deitar no chão, de bruços, mãos nas cabeças. Os soldados chutam os corpos e pisam neles. Uma moradora tomou choques elétricos no pescoço e nos bicos dos seios, a energia vinda dos varais de fios elétricos que percorrem a ocupação. Na terça-feira passada (23), os policiais chegaram pouco antes das 19h. Entraram de novo no prédio, sem mandado nem nada e, usando os métodos de milicianos, disseram que ou os moradores do Caveirão saíam por bem ou haveria mortes. Para reforçar a ameaça, rasgaram um colchão a facada, o talhe em forma de cruz. E deixaram o bilhete: “O prazo é hoje”. O Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos está oferecendo auxílio jurídico para as famílias ameaçadas.
O incrível em toda essa história do Caveirão da rua do Carmo é que o proprietário atual, Rivaldo Sant’anna, também chamado de “Rico”, que afirma ter comprado o prédio em 2009 por R$ 800 mil (cerca de 1,5 milhão de reais em valores de hoje), nem sequer possui decisão judicial apoiando sua pretensão de despejar as pessoas que lá residem.
Sofrimento demais
Caveirão abriga vítimas de violência doméstica, como Elisângela (à esq.), que foi arremessada pelo ex-marido do 1º andar, quando estava grávida de 8 meses
Miseráveis, os moradores têm um histórico de dor e sofrimento bíblicos. Elisângela Neves David, 37 anos, sempre foi espancada pelo marido. Grávida de oito meses, ele a arremessou da varanda do apartamento em que viviam. Elisângela foi recolhida pelo SAMU. Vergada de dor, ouviu uma agente de saúde lhe perguntar:
–Você quer fugir?
Ela nem ouviu. Ela sentiu:
–Meu filho ainda está comigo? Minha filha está aqui?
–Sim!
–Quero!
“Era tudo o que eu precisava. Dali, eu fui levada para uma Casa-Abrigo, onde fiquei escondida.” Benjamim, o menino que Elisângela carregava no útero quando foi atacada pelo marido, sobreviveu. “Eu desapareci do mundo e, quando vi, estava aqui.”
Elisângela é auxiliar de enfermagem. Como há três anos não consegue pagar a taxa de anuidade do Conselho Regional de Enfermagem (R$ 172,45 em 2020), não pode exercer sua profissão. Ela vende, então, balas nos semáforos, trufas na porta da escola das filhas, o que der. Agora, em época de pandemia, está impossível trabalhar. As pessoas nem abrem o vidro dos carros, por medo de assalto e do contágio. “Da pobreza eu caí na degradação ”, diz Elisângela.
Valéria da Silva Nascimento, 43 anos, mãe de cinco, vive para o filho portador de deficiência, João Gabriel Henrique da Silva Dias, de 20 anos. Hoje músico e compositor, o jovem toca violão, guitarra, baixo, ukulele. Paraplégico, isso não o impediu de jogar basquete e tornar-se dançarino de hip hop. Na escola, escutou pela primeira vez Geraldo Vandré: “Pra Não Dizer que não falei das Flores”. Um professor tocava ao violão. “Eu me apaixonei e pedi para o professor me ensinar. Um dia ele me deu um violão. Eu chorei de alegria. Não parei mais de tocar.” Gabriel é um sujeito doce, com uma auto-estima de gigante. A mãe sempre o cumulou de amores, de olhares e cuidados. Para sobreviverem, ela cata reciclagem, compra e vende na feira do rolo, costura, lava roupa para fora, às vezes até para pessoas que moram em albergue.
Infância no Caveirão: O menino Samuel David, de 3 anos, é autista e sofre com problemas respiratórios. A mãe, Cristiana, já mora no prédio há 18 anos
Cristiana Alessandra Moreira, de 40 anos, tem dois filhos atualmente: Cauê, de 21 anos, e Samuel Davi, de três anos. Mas Cristiana pariu sete, dos quais cinco morreram logo. Mora no Caveirão há 18 anos, interrompidos quatro vezes por despejos. Voltou sempre. Ela precisa estar todo o tempo com o filho Samuel Davi, que é autista e sofre com problemas respiratórios. Da última vez que foi despejada, a Prefeitura pagou auxílio-aluguel para as famílias que viviam no Caveirão (R$ 400 por mês), mas o benefício foi cortado e Cristiana voltou para o prédio.
Cristiana sai de seu barraco por volta das 11h, com um vasilhame usado de margarina. Está repleto de urina. Samuel Davi, agitado, não deixou que ela dormisse a noite toda. O menino só se acalmou por volta das 5h, quando ela, enfim, descansou. A urina terá de ser despejada no térreo do prédio, porque o Caveirão não tem banheiros funcionando. Aquele que Cristiana construiu com as próprias mãos foi destruído pelos usuários de crack que ocuparam o prédio depois do despejo dos moradores e pela Polícia Militar.
Moradia de carros
Anúncio publicado na “Folha”, em 1964: compre sua garagem automática, por 50.000 cruzeiros
O drama do Caveirão vem de longe. Em 1964, a Folha de S.Paulo publicou anúncio da construção de um edifício-garagem a poucos metros da praça da Sé. Era ele, o espigão da rua do Carmo, ainda em fase de vendas. Nessa época não existia nem o metrô. Mas havia edificações espetaculares e reluzentes de novas. Como a própria Catedral da Sé, inaugurada havia apenas 10 anos (a construção só seria finalizada em 1967). Ou o Fórum João Mendes Júnior, março histórico da cidade de São Paulo e símbolo da Justiça paulista. Pois o Fórum foi inaugurado em 1958, apenas seis anos antes do anúncio da Folha.
O novo empreendimento representava a crença inabalável daquele período de que as cidades do futuro seriam as cidades dos automóveis. Portanto, era preciso construir apartamentos, escritórios e edifícios-garagem, para armazenar gente e dezenas de milhares de veículos. No anúncio da Folha, lê-se que era possível tornar-se o feliz proprietário de uma vaga de carro a poucos metros da praça da Sé, com uma entrada de 50 mil cruzeiros, hoje equivalentes a 2 mil reais.
O fato é que as tais garagens jamais foram entregues e, inconclusas, resultaram em um dos retratos mais obscenamente explícitos da cupidez materialista na megalópole.
Casa sem banheiro, sem teto, sem nada
O Caveirão não tem telhado. Quando chove, chove dentro. Instalações sanitárias existem apenas no térreo. Porque carros não precisam delas. A polícia também fez questão de arrancar e destruir escadas e degraus que ligavam as lajes dos andares. Os moradores sobem e descem escalando escadas imaginárias ou banguelas, com degraus quebrados ou simplesmente faltando. Cristiana sobe e desce essas escadas surreais carregando os cilindros de oxigênio de que o filho Samuel Davi precisa para sobreviver.
Amor de mãe no Caveirão: Valéria e João Gabriel, paraplégico: o jovem está morando no prédio há um mês; para ele, é um “lugar maravilhoso”
João Gabriel, o filho paraplégico de Valéria, mudou-se para o Caveirão há um mês, depois que a mãe pavimentou o chão e construiu rampas para o trânsito da cadeira de rodas. “Pra mim, aqui é um lugar maravilhoso. Eu sinto uma alegria, uma união, um prazer. Aqui tenho amigos para conversar. Sei que posso contar com muitas pessoas aqui dentro e elas sabem que podem contar comigo também.”
“Eu sou muito feliz aqui dentro. E eu sofro por ver que o prédio está se acabando sem cuidado nenhum, o proprietário não o usa para nada, e a gente tem milhares de pessoas vivendo nas ruas”, diz Cristiana.
O drama das famílias do Caveirão é a condição de existência de milhares de pessoas na cidade de São Paulo. A Prefeitura de São Paulo calcula que, em 2019, havia 24.344 pessoas vivendo em situação de rua. Mas o Movimento Pop Rua calcula que o número correto seja superior a 32 mil pessoas. E segue crescendo à medida em que a inadimplência gera despejos por falta de pagamento de aluguel. E a rua é um terror, principalmente para as mulheres, conforme depoimento de Valéria:
“Eu sou uma ex-moradora de rua. Passei sete anos vivendo na rua. Você não pode fazer sua comida, você não pode trazer os seus filhos para a rua, você fica vulnerável, você é mal vista, você é apontada, as mulheres não têm valor nenhum. Se você arrumar um homem, ele vai te espancar, ele vai te estuprar, ele vai te usar. E se você não tiver força, você vai virar uma usuária de droga ou vai se prostituir. A rua é o último lugar. Não tem mais para onde cair quando você chega na rua. Por outro lado, ninguém quer viver em albergue. Porque no albergue você é maltratada, você é pisada, você é humilhada. Os funcionários dos albergues te tratam como lixo. A casa de parentes também não dá. O parente joga na tua cara, quando você tem filhos, maltrata os seus filhos. Vivendo na rua, a gente tem medo do Conselho Tutelar, a gente tem medo de tocarem fogo na gente, de estuprarem minhas filhas. Minha filha foi estuprada num abrigo. Eu achei que ela estava num lugar seguro e ela não estava. Eu sou costureira, sempre trabalhei. Já aluguei um cantinho, mas dali a pouco você é mandada embora do emprego e é despejada. Ninguém mora numa ocupação porque quer. Você mora ao lado de pessoas que não conhece, tem muito barulho, a luz cai, a polícia invade. Você tem mais medo do que qualquer outra coisa.
Mas é infinitamente melhor do que a rua.”
“A minha luta só termina quando eu tiver a minha moradia. Porque para a rua eu e meus filhos não vamos. A PM tem a arma, mas eu tenho o direito legítimo. Eu ofereço o meu peito para a a bala. E, se me matarem, meus filhos lutarão por mim” (Elisângela)
Cidadãos e organizações da sociedade civil, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, quilombolas, religiões de matriz africana e pretos e pretas com distintas confissões de fé, povos do campo, das águas e da floresta, trabalhadores explorados, informais e desempregados, em Coalizão Negra por Direitos, lançaram um manifesto e abaixo-assinado para EXIGIR a erradicação do Racismo como prática genocida contra a população negra.
“Convidamos você a praticar seu antirracismo! Una-se à nós neste manifesto, às nossas iniciativas históricas e permanentes de resistências e às propostas que defendemos como forma de construir democracia, organizada nestas propostas.
Nós, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, que professam religiões de matriz africana, quilombolas, pretos e pretas com distintas confissões de fé, povos do campo, das águas e da floresta, trabalhadores explorados, informais e desempregados, em Coalizão Negra por Direitos, viemos a público exigir a erradicação do racismo como prática genocida contra a população negra.
O Brasil é um país em dívida com a população negra – dívidas históricas e atuais. Portanto, qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo. Convocamos os setores democráticos da sociedade brasileira, as instituições e pessoas que hoje demonstram comoção com as mazelas do racismo e se afirmam antirracistas: sejam coerentes. Pratiquem o que discursam. Unam-se a nós neste manifesto, às nossas iniciativas históricas e permanentes de resistências e às propostas que defendemos como forma de construir a democracia, organizada em nosso programa.
Esta convocação é ainda mais urgente em meio à pandemia da Covid-19, quando sabemos que a população negra é o segmento que mais adoece e morre, que amplia as filas de desempregados e que sente na pele o desmantelamento das políticas públicas sociais. Em meio à pandemia de Covid-19, o debate racial não pode mais ser ignorado.
Neste momento, em que diferentes setores se unem em defesa da democracia, contra o fascismo e o autoritarismo e pelo fim do governo Bolsonaro, é de suma importância considerar o racismo como assunto central.
“Estamos vindo a público para denunciar as péssimas condições de vida da comunidade negra.” Este trecho, retirado do manifesto de fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, de julho de 1978, é a prova de que jamais fomos ouvidos e de que sempre estivemos por nossa própria conta.
Essa é uma luta que não começa aqui, mas que se materializou no pensamento e na ação de homens e mulheres que, em todos os momentos históricos em que a brutalidade foi imposta ao povo negro, levantaram suas vozes e disseram: NÃO!
Não há democracia, cidadania e justiça social sem compromisso público de reconhecimento do movimento negro como sujeito político que congrega a defesa da cidadania negra no país. Não há democracia sem enfrentar o racismo, a violência policial e o sistema judiciário que encarcera desproporcionalmente a população negra. Não há cidadania sem garantir redistribuição de renda, trabalho, saúde, terra, moradia, educação, cultura, mobilidade, lazer e participação da população negra em espaços decisórios de poder. Não há democracia sem garantias constitucionais de titulação dos territórios quilombolas, sem respeito ao modo de vida das comunidades tradicionais. Não há democracia com contaminação e degradação dos recursos naturais necessários para a reprodução física e cultural. Não há democracia sem o respeito à liberdade religiosa. Não há justiça social sem que as necessidades e os interesses de 55,7% da população brasileira sejam plenamente atendidos.
O racismo deve ser rechaçado em todo o mundo. O brutal assassinato de George Floyd demonstra isso, com as revoltas, manifestações e insurreições nas ruas e a exigência de justiça racial. No Brasil, nos solidarizamos com essa luta e com esses protestos e reivindicamos justiça para todos os nossos jovens e para a população negra. E, entre muitos que não podemos esquecer, João Pedro presente!
Em nosso passado, formamos quilombos, forjamos revoltas, lutamos por liberdade, construímos a cultura e a história deste país. Hoje, lutamos por uma verdadeira democracia, exercício de poder da maioria, e conclamamos aqueles e aquelas que se indignam com as injustiças de nosso país.
Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.
Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…
O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus
Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.
Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.
Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.
Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.
Obrigada, querido companheiro!
Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.
Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres