O “presidente da República” numa transmissão ao vivo defendeu o trabalho infantil e afirmou que o “o trabalho enobrece todo mundo”. E ao lembrar do tempo do trabalho infantil em fazendas afirmou que o “trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”
Este é governo que olha para trás e só quer o retrocesso social. Importante é a reação enérgica da sociedade civil, que se une contra estes absurdos.
Leia a nota conjunta:
“Combater o trabalho infantil é meta prioritária do Estado brasileiro, compromisso assumido não apenas perante o conjunto de seus cidadãos, mas também perante a comunidade internacional. Esse compromisso se estabeleceu desde 1988, com a Constituição Federal, que proibiu o trabalho de crianças e adolescentes e garantiu a eles proteção integral, absoluta e prioritária (artigos 7º, XXXIII e 227 do Texto Constitucional). No mesmo sentido, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e do Adolescente e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda no plano internacional e no âmbito laboral, surgem as Convenções 138 e 182 da OIT, que proíbem o trabalho infantil e alertam para seus diversos malefícios, tendo sido tais instrumentos ratificados pelo Brasil, compondo, assim, seu ordenamento jurídico interno. A proteção da infância contra o trabalho infantil não é um compromisso aleatório, sem motivações. Estudos e estatísticas diversos demonstram o quão nocivo o trabalho infantil é para a infância e para a adolescência. Entre outros prejuízos, é inegável que: provoca acidentes e adoecimentos, não raras vezes com mutilações e mortes; leva a baixo rendimento e consequente evasão escolar; colabora para a perda da autoestima; afasta a criança do lazer, da brincadeira e do descanso; provoca inversão de papéis com consequências diversas, como uso de drogas, alcoolismo, gravidez precoce e violência; rouba oportunidades; em suma, macula e mata a infância.
Medicilândia, Pará. Transamazônica, Brasil (agosto, 2017) foto: Tatiana Cardeal
Todo ambiente de trabalho, por mais singelo que seja, apresenta diferentes e importantes graus de risco à saúde psicológica e física do trabalhador. Estes riscos são ainda mais pungentes quando se trata de crianças e adolescentes, sujeitos cuja compleição física e psicológica encontra-se em formação. Essa condição precisa ser respeitada, sob pena de sofrerem, por vezes para toda a vida, as consequências gravíssimas decorrentes da exposição precoce ao trabalho. Ainda, a psicologia é uníssona em afirmar que a criança precisa vivenciar a infância plenamente para que se constitua como um adulto saudável, com todas as suas potencialidades desenvolvidas. O trabalho precoce, seja o proibido ou quando desprotegido, indubitavelmente afasta a criança e o adolescente dessa vivência plena.
O fato de haver exemplos de pessoas que foram submetidas a tais práticas sem que consequências diretas ou perceptíveis se apresentem, não elimina a constatação empírica, fática, de que o trabalho antes da idade permitida traz prejuízos de diversas naturezas, não podendo o trabalho nessas condições, em nenhuma medida, ser naturalizado, tolerado ou estimulado.
A comunidade internacional ressoa essas constatações, tanto que o recente acordo firmado entre União Europeia e Mercosul prevê, expressamente, o compromisso de combate ao trabalho infantil. Ainda, a exploração constatada de mão-de-obra infantil afasta o consumidor consciente, que cada vez mais dita as regras tanto no mercado de consumo interno como externo.
Por todas as razões expostas, as instituições abaixo firmadas repudiam quaisquer afirmações que contrariem o intenso trabalho feito pelo Estado brasileiro e suas diversas instituições para proteger a infância contra o trabalho infantil. Pugnam, ainda, por mais abrangente reflexão a respeito do problema, que leve em conta a proteção integral e prioritária garantida a todas as crianças e os adolescentes brasileiros, considerando o seu absoluto direito de serem plenamente respeitados nessa condição especial que ostentam.
Brasília, 5 de julho de 2019.
Ronaldo Curado Fleury MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO – MPT
Felipe Santa Cruz CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL
Angelo Fabiano Farias da Costa ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES DO TRABALHO – ANPT
Alessandra Camarano Martins ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS ADVOGADOS TRABALHISTAS – ABRAT
Isa de Oliveira FORUM NACIONAL DE PREVENÇÃO E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL – FNPETI”
Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) divulgaram nesta quarta-feira, 15/05, nota pública na qual apontam diversos fatores pelos quais não concordam com a redução de 90% das Normas Regulamentadoras (NRs) de segurança e saúde no trabalho vigentes no país, conforme declaração do presidente da República, Jair Bolsonaro.
Segundo as entidades, constitui retrocesso inadmissível qualquer esforço de revogação dessas NRs, a bem da redução dos custos de produção. “Propor o enxugamento dos custos previdenciários – como o Governo tem proposto ao Congresso Nacional, a reboque da PEC n.6/2019 – e ao mesmo tempo sugerir relaxamento das normas de saúde e segurança do trabalho significa, ao cabo e fim, entoar um discurso essencialmente incoerente, potencialmente inconsequente e economicamente perigoso”, afirma trecho do documento.
Confira abaixo a íntegra da nota.
NOTA PÚBLICA – Normas Regulamentadoras
As entidades abaixo subscritas, representativas dos membros do Ministério Público do Trabalho e da Magistratura do Trabalho de todo o Brasil, tendo em vista as declarações proferidas em redes sociais, no último dia 13 de maio de 2019, pelo Exmo. Senhor Presidente da República Jair Bolsonaro, de que o governo promoverá redução de 90% nas Normas Regulamentadoras (NRs) de segurança e saúde no trabalho vigentes no país, vêm a público externar o seguinte:
Decorridos menos de quatro meses do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho – MG, estimado o maior acidente de trabalho da história brasileira, dando causa à morte de mais de 300 (trezentos) trabalhadores, constitui retrocesso inadmissível qualquer esforço de revogação das normas de prevenção de acidentes e adoecimentos no trabalho, a bem da redução dos custos de produção.
O Brasil figura no cenário internacional como o 4º país do mundo em números de acidentes de trabalho. Segundo dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho do Ministério Público do Trabalho, entre 2012 e 2018 ocorreram no país cerca de 4.738.886 acidentes de trabalhos notificados – sendo 17.315 com óbito -, o que corresponde à média de um acidente de trabalho a cada 49 segundos. Isto significou, entre 2012 e 2018, 370.174.000 dias de afastamento previdenciário, impondo à Previdência Social custos na ordem de R$ 83 bilhões de reais em benefícios acidentários. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os acidentes e doenças de trabalho resultam na perda anual de 4% do Produto Interno Bruto, percentual que, no Brasil, corresponde a R$ 264 bilhões, considerando o PIB de 2017. Logo, propor o enxugamento dos custos previdenciários – como o Governo tem proposto ao Congresso Nacional, a reboque da PEC n.6/2019 – e ao mesmo tempo sugerir relaxamento das normas de saúde e segurança do trabalho significa, ao cabo e fim, entoar um discurso essencialmente incoerente, potencialmente inconsequente e economicamente perigoso.
As normas regulamentadoras do extinto Ministério do Trabalho cumprem, no campo laboral, a função constitucional de tutela da pessoa humana, no marco dos arts. 4º, II, e 5º, caput, CF, e também do meio ambiente equilibrado, na esteira dos arts. 225 e 200, VIII, CF, como já destacado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4066/DF. Daí porque a flexibilização da legislação ambiental trabalhista – necessariamente precaucional e preventiva , aliada à tarifação do dano moral introduzida nas relações de trabalho (art. 223-G da CLT), banaliza a vida humana e a instrumentaliza para a produção de baixíssimo custo, além de representar injustificável restrição na independência técnica de magistrados e membros do Ministério Público que, sob o pálio do Estado Democrático de Direito, devem ter mínimo respaldo para agir preventiva e repressivamente de acordo com a gravidade e a circunstância de cada caso concreto, a salvo de tarifações ou desregulamentações não dialogadas com a sociedade civil organizada.
A proposta de adotar o modelo de capitalização é uma das mais perversas medidas previstas na reforma da Previdência de Jair Bolsonaro (PSL). O que não deu certo em todos os países onde este modelo foi adotado, como Chile, Argentina, Peru e México, Bolsonaro e seu ministro da Economia, o banqueiro Paulo Guedes, querem trazer para o Brasil. Se o sistema for aprovado, milhares de trabalhadores e trabalhadoras correm o risco de viver a velhice na mais completa miséria.
Essa é a avaliação do presidente da CUT, Vagner Freitas, que denuncia a intenção do governo de entregar aos bancos privados o direito à aposentadoria dos brasileiros e brasileiras. Segundo ele, se deputados e senadores aprovarem essa proposta nefasta, o trabalhador será obrigado a fazer uma poupança para se aposentar no futuro. Isso se tiver emprego e salário decentes durante toda sua vida laboral.
“A capitalização da previdência significa acabar com o atual modelo solidário e de repartição, que garante aos brasileiros o direito à aposentadoria no final da vida, para jogar o futuro dos trabalhadores nas mãos dos bancos. Isso não podemos permitir”, diz o presidente da CUT.
O modelo de capitalização funciona como uma espécie de poupança pessoal de cada trabalhador, que tem de depositar todos os meses um percentual do seu salário em uma conta individual para conseguir se aposentar. A conta é administrada por bancos, que cobram taxas de administração e ainda podem utilizar parte do dinheiro para especular no mercado financeiro.
No Brasil, o atual modelo de Previdência é chamado de repartição, ou seja, quem está no mercado de trabalho contribui mensalmente ao INSS e garante o pagamento dos benefícios de quem já se aposentou. E todos contribuem: trabalhador, patrão e governo. Já no modelo de capitalização não tem a contribuição do empregador nem do Estado.
Para o presidente da CUT, se já não é fácil se aposentar com as regras atuais, que garantem a contribuição do trabalhador, do governo e da empresa, será praticamente impossível conseguir fazer uma poupança sozinho, ainda mais com as regras perversas do sistema financeiro que usa o dinheiro do trabalhador para especular.
“Imagina o trabalhador que precisa se virar em um mercado de trabalho informal e desregulamentado pela reforma Trabalhista, com empregos precários e longos períodos de desemprego. Como ele conseguirá fazer uma poupança se falta dinheiro no final do mês?”, questiona Vagner.
Se o trabalhador ficar muito tempo desempregado, fazendo bicos ou totalmente sem renda, nunca conseguirá se aposentar ou se aposentará ganhando uma miséria– Vagner Freitas
“Nem mesmo um benefício no valor de um salário mínimo está garantido. O resultado são milhares de idosos na miséria, na dependência de programas da Assistência Social para não passar fome, como está ocorrendo nos países que adotaram o sistema de capitalização, como o Chile”.
A CUT jamais negociará qualquer proposta de regime que acabe com o modelo solidário e de repartição, como é o nosso, para passar a um regime privado, pessoal, de capitalização, onde o trabalhador não consegue se aposentar ou recebe uma miséria para viver– Vagner Freitas
O modelo chileno
O regime de capitalização adotado pelo Chile em 1981, durante a ditadura militar de Augusto Pinochet, é um exemplo citado pelo presidente da CUT de como o modelo fracassou e, por isso, não deve ser adotado no Brasil.
O país vizinho busca uma nova proposta de Previdência porque quase metade (44%) dos aposentados está abaixo da linha da pobreza e a maioria dos que conseguiram se aposentar recebe quase metade do salário mínimo local.
Nesse modelo, cada trabalhador faz a própria poupança, que é depositada em uma conta individual nas Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs). Os chilenos são obrigados a depositar ao menos 10% do salário por no mínimo 20 anos para se aposentarem. A idade mínima para mulheres é 60 anos e para homens, 65. Não há contribuições dos empregadores nem do Estado.
Como a maioria ganhava salários baixos, ficou grandes períodos desempregada ou não conseguiu fazer uma poupança com recursos suficientes, aproximadamente 80% dos aposentados recebem benefícios de cerca de meio salário mínimo do país, o equivalente a, em média, R$ 694 – o piso nacional do Chile é de 288 pesos, ou R$ 1.575,66.
Lei complementar
E a proposta de Bolsonaro pode ser ainda pior, avalia o presidente da CUT. Isso porque, explica Vagner, as regras de como funcionará a capitalização da previdência só serão apresentadas pelo governo ao Congresso Nacional após a aprovação da Proposta de Emenda a Constituição (PEC 006/2019). Essa regulamentação será feita por meio de uma lei complementar.
A reforma da Previdência inteira é uma aberração que só retira direitos. E uma regulamentação posterior do regime de capitalização significa que a proposta que já é muito ruim, pode ficar ainda pior. É como assinar um cheque em branco e jamais faremos isso– Vagner Freitas
Até agora, o que o texto da PEC sugere, embora de forma pouco esclarecedora, é que a capitalização individual será um regime obrigatório e concorrerá com o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e os Regimes Próprios de Previdência dos Servidores (RPPS).
De acordo com a proposta, a opção por esse sistema será “de caráter obrigatório para quem aderir” e o trabalhador não poderá reconsiderar sua decisão e ingressar no sistema de repartição, que é o modelo atual.
“É fundamental barrar a reforma. Se aprovada, será o fim do direito à aposentadoria. Não podemos deixar votarem esse projeto nefasto”, conclui Vagner.
Colegas trabalhadores de outros ramos entrevistam ex-funcionários da livraria
Ao longo dos últimos anos, assistimos à crise do mercado do livro no Brasil. A quebra de grandes redes de livrarias – como a Fnac, que fechou todas as lojas, ou a Cultura e a Saraiva, que estão em processo de recuperação judicial – abalou toda cadeia de produção, deixando editoras com dívidas milionárias e levando gráficas à falência. Pelos noticiários, conhecemos apenas o ponto de vista dos patrões: uns tentando se salvar, outros enxergando oportunidades para lucrar. Quem passa despercebido nessa história são os milhares de trabalhadores que pagam o pato com sobretrabalho, dupla função, horas extras não-pagas, perseguições, assédio moral e a ameaça de perder o emprego. Que formas de resistência estão sendo travadas no chão das livrarias?
Nessa entrevista, três ex-funcionários remontam uma história subterrânea dos conflitos na Livraria Cultura. Entre 2013 e 2016, trabalhadores de diferentes lojas travaram uma verdadeira guerra silenciosa contra os abusos dos seus patrões. Com o “pacto de mediocridade”, transformaram o processo de trabalho num terreno de disputa. Hoje, anos depois, essa experiência é um exemplo importante para inspirar novas gerações de trabalhadores a resistir, num momento em que essas empresas se encontram muito mais fragilizadas.
Entrevistador: Como foi a história dessa treta na livraria?
Colega 1: A Livraria Cultura tem muitos anos e, durante muito tempo, foi gerenciada por uma mesma família. O filho do fundador herdou a empresa e ficou como presidente. Em 2012, parece que o Itaú entrou como acionista da livraria. Ninguém sabe muito bem – porque eles nunca deram detalhes –, mas especula-se que foi isso: o Itaú entrou como acionista e tinha direito a uma parte da empresa.[1] E, a partir disso, o Itaú começou a implementar mudanças. Na primeira delas, ele falou: “olha, não faz sentido pagar pra um vendedor 5 mil reais por mês” – na época os vendedores ganhavam muito bem – “não faz sentido você pagar um salário de bancário pra um vendedor, e a primeira coisa que vocês vão fazer é dar um jeito de mudar isso.”
Colega 2: Aí em 2012 teve o primeiro grande corte da livraria. Na época, eles mandaram embora todos os vendedores, toda a equipe que existia na loja matriz, em São Paulo… E ficaram só com doze pessoas. A gente brincava que eram os doze apóstolos, que essas doze pessoas foram escolhidas a dedo para continuar lá. Foram as únicas que permaneceram, todos os outros foram cortados. Na leva que entrou depois, o salário já era menos da metade, eles cortaram, sei lá… um salário de 5 mil e quinhentos foi pra 2 mil. Pois bem, mas àquela época, apesar de tudo, a Livraria ainda era um lugar interessante pra trabalhar. Você tinha benefícios, condições interessantes… enfim, apesar de tudo fazia sentido estar lá.[2]
A treta na loja de Curitiba em 2013
Colega 1: Mais ou menos um ano depois, em abril de 2013, teve uma demissão em massa numa loja específica, a loja de Curitiba. O que aconteceu? Uma menina, cansada de algumas condições de trabalho… Ela não tava de acordo com a maneira como a gente era pago, com a maneira como o nosso salário era calculado…
Colega 3: A gente, na época, não tinha acesso ao cálculo do nosso salário. A comissão nunca foi individual, ela sempre foi uma comissão coletiva, então você precisava saber o faturamento, precisava saber o cálculo base, sei lá. Eles nunca abriram esses dados pra gente.
Colega 1: E, bom, essa menina de Curitiba escreveu um texto falando sobre essas questões, e ela mandou pro correio interno, pra toda a empresa.[3] Na época, você tinha essa ferramenta, né, como se fosse um e-mail, um correio interno que você conseguia selecionar a empresa inteira se você quisesse, de todos os setores, e mandar pra todo mundo. Hoje em dia não, né?
Colega 3: Depois que aconteceu isso, eles restringiram essa ferramenta, mas na época dava.
Colega 1: Cara, quando disparou esse e-mail pra empresa… cinco minutos depois, ela foi chamada na sala e tomou uma justa causa. Isso lá em Curitiba. Mas engraçado foi o que aconteceu depois. Todas as pessoas que responderam esse e-mail, independente de qual tenha sido a resposta, foram mandadas embora na sequência. Foi um efeito dominó. A loja de Curitiba praticamente ficou sem funcionário aquele dia, porque quase todo mundo foi mandado embora. Quase todo mundo tinha respondido o correio, sem saber, né?
Colega 3: E pessoas daqui de São Paulo também. Várias pessoas foram mandadas embora também, porque responderam desavisadas.
Colega 1: Eu acho que isso foi uma das primeiras situações de que eu me lembro de ter acompanhado, que foi assim: “meu, tem alguma coisa errada com essa empresa”. E depois a gente começa a perceber nas reuniões. Eu tive poucas reuniões onde o dono tava presente, mas as que eu tive foram suficientes. Teve uma reunião que uma pessoa perguntou: “Olha, mas eu quero saber como que o meu salário é calculado.” E ele virou e falou, “faz regra de três”. A pessoa, em seguida, foi mandada embora. Era assim, se você levantava a mão na reunião, pra interromper ele, para questionar ele, você podia já pegar as suas coisas, levantar e passar no RH. Isso criou uma cultura de medo na empresa. A gente sabia que tinha coisas que podia perguntar e outras que não podia.
A guerra subterrânea na loja matriz
Colega 2: A história realmente começou no Natal de 2015. Em 2015, no dia 23 de dezembro, eles mandaram embora metade da equipe, de novo. Mandaram embora muita gente da equipe de vendas na véspera de Natal, porque não precisava mais. O Natal já tava ali… já tinha vendido o que tinha pra vender, não precisava mais… dispensou. Só que, quando passou o Ano Novo, começou o “Volta às Aulas”. O “Volta às Aulas” começa com um fluxo de trabalho muito absurdo, muito grande, você começa a receber muito livro, muito produto, muita lista de material, cliente ligando, cliente na loja… e a gente não tinha equipe pra fazer esse atendimento. Pra você ter uma ideia, no setor em que eu fico, no piso em que eu fico, tem cerca de sete linhas de telefone e a gente ficava em duas pessoas no piso. Eram duas pessoas pra atender sete linhas de telefone. Fora os clientes que vinham, presenciais… A gente não conseguia dar conta. Então, o que aconteceu? A gente começou a priorizar os atendimentos telefônicos, em primeiro lugar; os atendimentos presenciais, em segundo lugar; e, por último, a arrumação da loja… quase nunca dava tempo. Só que os produtos continuavam chegando.
Colega 1: Chegou num ponto – isso já em final de janeiro, sei lá, metade de fevereiro… – que as pilhas de livro tavam chegando quase no teto. Porque tava chegando e acumulando, você ia jogando pra lá, chegando e acumulando, e as pilhas iam até o teto! A gente não conseguia atender os clientes na loja, porque a gente não achava o livro, porque tava no meio das pilhas… a gente praticamente nadava nas pilhas, mas não tinha o que fazer!
Colega 2: E aí, quando foi no dia 21 de fevereiro de 2016, aconteceu que um funcionário do administrativo passou pela loja, viu o estado da loja, tirou foto e mandou pro presidente. Algumas horas depois, todo o prédio do administrativo – todo mundo, RH, faxineiro, segurança, todo mundo que vocês imaginarem – foi obrigado a descer, ir pra loja e começar a arrumar. Eles fizeram um mutirão pra arrumar a loja que foi mais ou menos das 16h, 17h, até às 9h da manhã do outro dia. Eles vararam direto a madrugada. E aí a gente chega ao fatídico dia, se eu não me engano, é 22 de fevereiro. Quando eu cheguei pra trabalhar, tava todo aquele povo lá do administrativo que tinha varado a noite…
Entrevistador: Até as terceirizadas?
Colega 1: Meu, terceirizado, da empresa, ficou todo mundo! Acho que entrou como banco de horas. (Eles nunca pagaram hora extra pra ninguém…)
Colega 2: Bom, quando eu cheguei lá de manhã, o dono da empresa tava fazendo um discurso. Ele é que estava fazendo a reunião. A reunião de manhã, geralmente quem faz é o gerente, né? É tipo uma reunião de aquecimento, que tem todo dia. Nesse dia, quem tava fazendo essa reunião era o dono. E aí começou a merda: ele humilhou muita gente, ele elogiou muito o administrativo, por ter ficado trabalhando a madrugada toda, e ele humilhou muito o pessoal do piso de loja – os vendedores, os auxiliares de venda, os gerentes da loja… ele humilhou muito. Ele falou que não sabia o que a gente tava fazendo ali, que a gente também não sabia o que a gente tava fazendo ali, e que já que a gente não sabia, ele podia escolher por nós… Ele falou que a loja era um chiqueiro e que nós éramos porcos e que, já que a gente não tomava uma decisão, ele ia tomar uma decisão por nós: “Quem não estiver de acordo com o que estou dizendo, pode passar agora no RH, eu vou pagar todos os direitos, eu faço questão de mandar embora!”. Ele repetiu três vezes isso. Só que isso era uma blefe, e ele não contava que quase a empresa inteira ia passar no RH.
Colega 3: Ele já tinha feito isso em outras lojas, esse blefe não era novo, mas as pessoas têm muito medo dele… ninguém vai levantar e falar “então beleza, eu vou passar no RH”. Ninguém faz isso.
Colega 1: Só que dessa vez ele caiu do cavalo… A loja toda foi.
Colega 2: Bom, eu sei que, assim, fez uma fila na porta do RH. Só que o RH não tava pronto pra receber essa demanda. Não tinha sido acordado nada com o RH, ele não tinha sido avisado disso, né… O que é que o RH fez? Ele não sabia o que fazer, e falou “olha, a gente vai fazer uma lista, vai anotar o nome de vocês aqui, e vai ver que porra que é pra fazer, porque a gente também não sabe”, então começou a anotar os nomes.
Colega 1: Eles começaram a tentar restringir o máximo possível. Falavam: “ó, cara, não põe seu nome na lista não que isso vai dar merda!”, “não põe o nome não porque você vai ser mandado [embora], vai ser difícil depois de arranjar outro emprego, pensa bem!”, ou “ô, você nem tava na reunião, você não pode pôr o nome na lista”.
Colega 2: Por fim, mais ou menos 30, 32 conseguiram colocar o nome na lista. Muita gente eles barraram. Teve gente que ligou – gente que tava de férias, gente que tava na puta que pariu – que ligou dizendo “ah, eu quero colocar o meu nome na lista também!”, mas eles não permitiram. Tá, ficaram esses 30 nomes aí. Passou uns dois dias, e eles começam a chamar um por um numa salinha pra conversar. E aí o discurso era o seguinte: você chegava na salinha, eles elogiavam você, colocavam o seu ego lá em cima, que você era foda, que você era um funcionário exemplo etc, etc, e que eles não queriam perder você, se você realmente tinha certeza do que estava fazendo. “Então vai ser o seguinte, as regras para a sua demissão vão ser as seguintes: a gente vai dar um prazo, estamos em fevereiro, vamos dar um prazo até o final do ano, até dezembro pra mandar todos vocês embora, conforme a vontade e a disponibilidade da empresa. A gente manda quando a gente quiser, se a gente quiser, a hora que a gente quiser, porque a empresa está dando uma oportunidade para vocês, então a gente não tem obrigação nenhuma. Segundo, pra que você faça parte disso, você não pode em hipótese alguma ter nenhum tipo de problema, treta, advertência, suspensão com a livraria. Se você ganhar uma advertência, automaticamente seu nome não estará mais na lista. Você perde o direito a essa oportunidade“.
Perseguições
Colega 1: Foi aí que começou a perseguição. Passou uma semana e aconteceram as primeiras justas causas. Tem algumas justas causas que foram muito tristes, muito bizarras, e que vale a pena contar. As duas primeiras foram o seguinte: chegou uma caixa de lápis de desenhar, lápis de cor, sei lá… Lápis legal, importado. Chegou com um valor muito barato, em promoção. E aí duas colegas, depois do expediente, passaram no caixa e compraram esse produto. No outro dia, elas tomaram uma justa causa. A livraria alegou que elas agiram de má-fé porque compraram um produto abaixo do valor que custava. Só que esse valor… primeiro que a gente não tem acesso, segundo que não é a gente que precifica. E a gente tinha direito. Se tá custando aquele valor, qualquer um tem direito de comprar, como qualquer consumidor ali, mas elas tomaram uma justa causa por má-fé. E o melhor foi o comentário da diretora do RH: “É, vocês queriam ser mandadas embora, agora vocês vão, mas não do jeito que vocês queriam”.
Colega 2: E aí foi uma sequência de justas causas sem fim. Eu contabilizei mais ou menos umas, sei lá, 11 justas causas que aconteceram dessa lista. Num período muito curto de tempo, seis meses no máximo! É muita justa causa pra uma empresa só. E todo mundo era gente que tinha o nome na lista.
Colega 3: Essa lista virou tipo uma lista negra. Era como se fosse uma lista de pessoas que tavam a fim de sacanear a empresa, e a empresa queria sacanear elas.
Colega 1: Isso criou uma situação de pânico e as pessoas começaram a adoecer. Várias pessoas tinham medo de estar sendo vigiadas – lá tem câmera em todo canto, em todo lugar… O pessoal do RH nunca frequentou a loja, agora não saíam da loja. Eles não saíam da loja. Era o tempo inteiro… eles trabalhavam do seu lado, pra ver o que você tava fazendo. Isso criou uma sensação de pânico tão grande nas pessoas, que elas começaram a adoecer e pedir as contas, porque elas não iam aguentar esperar até dezembro para alguma coisa acontecer. Elas começaram a pedir as contas.
Colega 2: Quando chegou em maio, dia 4 ou 5, houve uma segunda reunião. Nisso, eles já tinham conseguido eliminar muita gente da lista, né? E aí, nessa segunda reunião, o dono virou e falou assim: “É o seguinte, eu não vou mais mandar embora ninguém, porque eu não sou obrigado. Eu não acho que vocês merecem esse benefício, essa oportunidade. Quem quiser, que peça as contas, foda-se, eu não vou. Voltei atrás, não quero mais mandar, foda-se… tá achando ruim? Vai lá no Sindicato reclamar! Eu janto com o dono (sic) do Sindicato dos Comerciários, ele é meu amigo, eu sei até que ele gosta de sushi. Vai lá! Vai me processar? Eu não tenho medo de processo, não, pode processar! Não tem problema.”
O Manifesto Livreiro
Colega 1: A partir daí, a gente pensou “bom, alguma coisa precisa ser feita. Isso não pode ficar barato. Todo mundo que se fudeu nesses últimos meses, as justas causas que tiveram, o pessoal que saiu doente, pra agora o cara virar e falar que não vai cumprir a palavra dele? Ele blefou porque ele quis. Se ele tinha se arrependido do blefe, ele podia muito bem ter pedido desculpas. Não só pelo blefe, mas pelas humilhações também. Mas ele não quis pedir desculpas. Então a gente também não pode desculpar isso.” Aí a gente começou a pensar no que fazer. E foi aí que, um dia, caiu na tela de vários vendedores um e-mail com um tal “Manifesto Livreiro”. Era um texto que falava sobre tudo que tava acontecendo. Contava da reunião, contava que o cara tinha voltado atrás, falava sobre acúmulo de função, desvio de função, do salário que a gente não sabia como que eles calculavam… falava sobre os podres, todas as merdas que tavam acontecendo. E tudo usando uma linguagem bem jurídica, então você tinha aparentemente um respaldo da lei ali, da (antiga) lei trabalhista – então, “olha, isso pode, isso não pode, isso confere, isso não confere”… e todo o manifesto ia falando sobre essas coisas e, no final, ele dava a entender que “olha, vocês podem usar isso pra se movimentar, vocês precisam usar isso pra se movimentar”, né?
Colega 3: Mas engraçado é que, quando isso caiu na tela, começou a cair na tela, foi bem aleatório, não foi todo mundo que recebeu…
Entrevistador: Mas vocês abrem e-mail de vocês no trabalho?
Colega 1: Não. Eles chamam de linha direta. É uma espécie de um e-mail, ele passa por um filtro, e ele cai no nosso sistema. Então não é exatamente um e-mail, mas é quase como um. Só que é muito engraçado, porque a pessoa que fez isso… ela burlou todo o sistema pra isso poder cair na nossa tela. Por exemplo, o título do e-mail, o título do e-mail se referia a uma encomenda de livros com a livraria, entendeu? A pessoa usou um e-mail não rastreável, um daqueles e-mails que você usa e depois de 1h, sei lá, ele se destrói sozinho. Eles tentaram de todo o jeito rastrear quem tinha enviado o e-mail, tentaram rastrear IP, colocaram todo o pessoal da informática atrás e não conseguiram rastrear!
Entrevistador: Vocês nunca descobriram quem mandou essa mensagem?
Colega 1: Não. Porque era anônimo, não tinha como rastrear. Caiu na tela de um monte de gente. E aí a gente abria e tinha aquele texto. E assim, quando eles descobriram, eles tentaram apagar o mais rápido da tela de todo mundo. Só que caiu em várias lojas, não foi só em São Paulo. Caiu em várias lojas… E até eles apagarem tudo, a gente já tinha impresso. Então não adiantava eles apagarem, que a gente já tinha a versão no papel. Todo mundo pensou “pô, faz sentido o que tá escrito aqui. Vamo procurar um advogado”. Aí conseguiram uma advogada, e boa parte das pessoas abriu processo com ela. Teve gente que abriu com outros. Foram mais ou menos vinte processos dessa leva.
Colega 2: A gente pensou que quando eles recebessem as notificações e os processos, eles iam mandar todo mundo embora, mas não foi isso que aconteceu. Eles ficaram com mais ódio ainda, com mais raiva dos funcionários terem aberto processo contra eles, trabalhando lá. E aí a guerra tava declarada. Eles colocaram o pior gerente que eles podiam colocar, o mais maldito, o mais filha da puta pra gerenciar a loja. E aí ok, a gente não ia deixar barato também! A gente começou a bolar jeitos de provocar esse gerente, de provocar o pessoal da gestão, enfim, era a única coisa que a gente podia fazer.
Esta entrevista será publicada em duas partes:
Parte 1 (esta aqui)
Parte 2 (a sair em breve)
Aconselhamos os interessados nesse relato que leiam também este RELATO e essa DENÚNCIA.
Viveu algo parecido em seu trabalho? Veja nesta página aqui como você pode enviar um relato para o Passa Palavra.
Notas
[1] Segundo reportagem da época, a Livraria Cultura vendeu 25% de suas ações para o fundo Capital Mezanino, da gestora Neo Investimentos, em 2009. A associação ao Itaú acontece porque uma empresa que pertence ao banco presta serviços de administração para a Neo Investimentos.
[2] Aquilo que os trabalhadores descrevem como “interessante” era, aos olhos dos patrões, “desesperador”. A declaração de um dos proprietários da empresa aparece numa coluna de Gilberto Dimenstein na Folha em 2007.
[3] Em 2013, a denúncia feita por essa funcionária de Curitiba gerou intensa repercussão nas redes sociais, blogs e jornais. Entre outros links, vale conferir esseesse, esse, a página do movimento e a resposta da livraria.
José Dirceu dispensa apresentações. Um dos mais conhecidos ativistas da esquerda brasileira desde a década de 1960, passou de líder estudantil secundarista a guerrilheiro, de preso político a exilado, de clandestino no Brasil a fundador do Partido dos Trabalhadores, de Ministro Chefe da Casa Civil a condenado sem provas no chamado “Mensalão”. Nem seus mais de 70 anos, uma virose “braba” que exigiu uma “bomba” de antibiótico, uma viagem de carro de Campo Grande a Cuiabá (“estou evitando viajar de avião”) e uma queda que lhe luxou uma das costelas foram o suficiente para se negar a uma maratona de compromissos na capital mato-grossense acima de 36 graus. Reunião com a Juventude do PT pela manhã, entrevistas à tarde, palestra para cerca de 200 pessoas no início da noite e autógrafos no seu novo livro, Zé Dirceu – Memórias, Volume 1 (Geração Editorial, 2018. De sua infância à cassação do mandato parlamentar), até as 23:00 provam que ele segue sendo uma potência política e uma voz fundamental na conjuntura atual.
Áudio, fotos e vídeos: www.mediaquatro.com Edição de Vídeos: Anna Clara Natividade
Sobre a Ação Penal 470, o chamado “Mensalão”, e o ativismo jurídico:
“O domínio de fato foi precedido por uma série de medidas que já demonstravam o ativismo político e a submissão à chamada ‘pressão popular’, ou seja, da mídia, no meu caso. Eu não poderia ser cassado porque eu era deputado licenciado e a jurisprudência do Supremo rezava que não podia. Então, por sete a quatro, o Supremo mudou, durante o meu indiciamento na Câmara, o entendimento e reviu a sua jurisprudência. Isso foi em 2005 ainda. Aí construíram a tese de que o parlamentar ‘carrega’ o decoro com ele, ‘carrega’ o mandato com ele. Depois o Supremo me condenou sem provas, mas o Congresso me cassou sem provas, na verdade, dizendo que cassou o Roberto Jefferson porque ele não provou que havia o ‘mensalão’, então ele tinha atacado a honra da Câmara, e me cassaram porque eu era o ‘chefe do mensalão’.
[…] O domínio de fato não tem nenhuma relação com a minha situação, porque o próprio jurista que definiu isso disse à Folha de São Paulo que na verdade essa instituição foi criada na Alemanha para diferenciar os autores de crimes de guerra, os participantes daqueles que tinham o domínio do fato, depois de condenados para diferenciar as sentenças. Não era base para condenação. A base para a condenação eram as provas materiais. O domínio de fato foi criado para diferenciar a pena de morte da prisão perpétua, da pena de 25 anos, de 15 anos, para os demais participantes do crime. […] aqui no Brasil foi usado pra dizer que eu tinha obrigação de saber o que estava acontecendo, porque antes exigia um ‘ato de ofício’. E mais, um ministro dizia que o ônus da prova cabia a mim, o Fux, e a Rosa Weber falou, está nos anais do Supremo, que não tinha prova mas a literatura jurídica permitia. Isso teve consequências graves, abriu caminho para tudo o que assistimos depois na Lava Jato. Infelizmente nós não aprendemos a lição e ainda votamos uma legislação na Câmara que tem sido utilizada de maneira abusiva além do que o texto dos artigos permitisse, como a Lei da Delação, a Lei da Organização Criminosa, Lavagem de Dinheiro, a Lei Antiterrorista… São legislações que têm de ser cercadas de cuidados para que não sejam usada politicamente. Por exemplo, como é que alguém pode ficar preso quatro anos e depois delatar? Como é que alguém pode delatar preso? Os procuradores dizendo na imprensa que iam condenar a 100 anos, prendendo familiares, bloqueando bens, processando familiares… Como é que essa delação pode ser digna, espontânea, à vontade própria? Então houve muita pressão psicológica, na família. […]
Depois nós assistimos às ilegalidades, algumas que o Supremo já deteve, como é o caso das conduções coercitivas sem a recusa do investigado ou réu de se apresentar em juízo quando é intimado pela autoridade competente. Isso agora está proibido. As prisões preventivas, eu fiquei preso um ano e nove meses sem ser julgado na segunda instância. As antecipações de pena… E a situação está se agravando. Hoje não há sigilo bancário, fiscal, telemático, nenhum. O Ministério Público tem o poder de fazer investigações sigilosas, dizem que são administrativas, mas foi o Supremo que deu aquilo que a Constituinte negou. A Constituinte negou que o Ministério Público Federal, Estadual, fosse a polícia judiciária na União e nos Estados. O Supremo em 2016 deu o poder de investigação ao Ministério Público: quem investiga, acusa. Então nós estamos tendo não só o ativismo judicial”
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Sobre a Lei Antiterrorismo e os Movimentos Sociais
“O mais grave é a tentativa de usar Lei Antiterrorismo contra os Movimentos Sociais como ele (Jair Bolsonaro) ameaçou, de classificar o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de terroristas. Isso é gravíssimo! […] Os movimentos têm de atuar dentro da lei, defender a lei, recorrer à lei, ao Ministério Público, ao judiciário. Eles que fiquem com o ônus de compactuar (com as ilegalidades). Como foi o caso da cassação da candidatura do Lula. Nós não podíamos retirar a candidatura do Lula, o Lula desistir, indicar outro. O Lula tinha de ser registrado como candidato porque assim a Constituição reza, porque não foi condenado em última instância.
Evidentemente que, no caso concreto, os movimentos têm todas as condições jurídicas de atuar dentro da lei. E nós temos que lutar para mudar as leis que nós consideramos injustas, faz parte. Lei é produto da sociedade, do movimento da sociedade, das lutas sociais, das lutas políticas, das transformações econômicas e sociais de um país”.
Sobre seu papel hoje e o governo Bolsonaro
“Fazer o que estou fazendo. Andar pelo país, ouvir, aprender, reler o país, que mudou muito nos últimos 15 anos, desde que o Lula foi eleito presidente, nos cinco anos em que eu estive ausente. Falar, contar a minha história, a história da minha geração. Defender o PT, defender o legado de Lula. Defender aquilo que mas propostas que estão sendo apresentadas pelo novo governo com relação a várias questões importantes para o país. Primeiro, a democracia. Realmente a defesa radical da democracia, das liberdades, das garantias individuais, que ele vive ameaçando. Fala em desconstituir os direitos difusos, do consumidor, da mulher, do negro, do índio, do meio-ambiente. Em outros momentos mistura Estado com religião, e isso é gravíssimo, só olhar os conflitos no mundo. Ameaça usar a violência contra os adversários, várias vezes, reiteradas vezes, ou antinacional, apesar de falar de Brasil, Brasil, Brasil. Mas as propostas dele, econômicas, essa submissão dele à política econômica externa do Trump, essa coisa quase inacreditável de colocar o Brasil nessa posição de satélite dos EUA. E principalmente a política econômica, a austeridade, corte de gastos, desconstituição de direitos sociais…
Economia pelo lado do trabalhador, da saúde, da educação, da previdência, não do lado dos juros e da reforma tributária. Não da propriedade, da riqueza e da renda daqueles 10% de brasileiros que têm a metade da renda nacional. E sim dos 50% de brasileiros, 100 milhões, que só tem 10% (da renda). Muito menos do que aqueles 0,1% que têm quase 30% da renda nacional e que deviam pagar imposto sobre grandes fortunas, heranças, doações. Como aconteceu na Franca, agora, quando o clamor nacional foi taxar as grandes fortunas e não a gasolina”.
E a conjuntura nacional em relação à internacional?
“Vejam o que está acontecendo agora na França, na Argentina, na Hungria. Haverá resistência, haverá oposição, haverá luta. Haverá muita oposição às futuras medidas. Eu espero que o futuro governo se mantenha dentro da democracia e aceite as regras do jogo democrático, como nós aceitamos quando eles ocupavam as ruas do país, paravam o país, protestava, ocupavam Brasília, até chegar ao ponto de derrubar a presidenta através de um impeachment que todos nós sabemos que foi forjado. Uma inverdade de pedaladas, de uso de transferências de recursos complementares sem autorização constitucional, enquanto nós sabemos que nada disso era crime de responsabilidade”.
A oposição terá poder para propor mudanças nas leis e resistir ao retrocesso político?
“Nós temos experiência acumulada no Brasil para apresentar propostas de reforma da previdência, tributária, contrapondo a dele (Bolsonaro). Também de sistema bancário e de reforma política. E temos também como enfrentar. Porque o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, e os procuradores que estão em torno dele, podem apresentar uma série de propostas de reforma do Código de Processo Penal que, na verdade, como a prisão em segunda instância, são outra invasão da atribuição constitucional. Isso só o Congresso pode mudar a Constituição onde diz que alguém só pode ser considerado culpado quando o último recurso tramita julgado no Supremo ou no STJ. Tanto é que os procuradores tinham proposto fazer essas mudanças constitucionais, o Ministro Peluzzo, enquanto Presidente do Supremo, enviou uma proposta de PEC pro Congresso, mas não passou.
Então acredito que nós temos condições, sim, de por exemplo debatermos mudanças no regime penal. O que quer o presidente eleito? Terminar com as progressões de penais, agravar as penas… Agora, com essa estrutura penitenciária que nós temos no país, enquanto toda a tendência no mundo é cada vez menos regime fechado, cada vez mais multas pecuniárias, perda de direitos e funções, trabalho alternativo, em último caso exigir regime fechado. Se você não dá condições para o preso trabalhar e estudar, se não dá pra ele condições mínimas de vida, lógico que ele não só reincide no crime, como passa a participar das organizações criminosas como o PCC porque eles têm estrutura para dar apoio e cobertura pra família dele e para ele, às vezes pra fugir, inclusive”.
Como tem sido o cumprimento das sentenças de cadeia por você e pelo Presidente Lula?
“Bom, falando sobre o Presidente Lula, muito bem, com altivez, dignidade, trabalhando, lendo, escrevendo, se relacionando com os companheiros e companheiras todos dos partidos, as lideranças, recebendo visitas. E ele está se defendendo através de seus advogados nas instâncias da justiça e denunciando quando há decisões que nós consideramos que atingem as garantias de direitos individuais e do devido processo legal, o contraditório, que o ônus da prova cabe ao acusador e mesmo quando determinados institutos jurídicos são deformados e utilizados contra nós.
No meu caso, eu fiquei preso um ano e nove meses, já tinha ficado preso sete mesmo no fechado no chamado ‘mensalão’ e quatro meses no semiaberto e dez no aberto. Então eu cumpri a pena e fui indultado, o que é uma verdadeira mancha na história do Supremo Tribunal Federal. […] Eu cumpria pena e transformei um ano e oito meses que eu fiquei preso no Centro Médico Penitenciário de Pinhais no Paraná numa luta. Cuidei de uma biblioteca, reorganizei para atender os presos, sábado e domingo escrevi esse livro que agora estou divulgando pelo Brasil, cuidei da minha família e sou muito grato pela solidariedade e apoio que tive por todo o país.”
Sobre as disputas com a Direita:
“Nós temos que nos acostumar, porque até é um direito, que o MBL, ou as igrejas evangélicas, ou pastores, façam a disputa política conosco, seja pelos bairros das cidades, seja nas universidades e nos sindicatos, porque eles vão acabar trazendo a pluralidade sindical. Nós temos que lutar, porque nós temos do nosso lado os direitos dos trabalhadores e teremos apoio deles. É só olhar a Argentina, a França a Hungria e você vê isso.
Haverá luta no Brasil, haverá resistência na tentativa de retirar direitos. Tem de tirar privilégios, isso nós vamos apoiar! Fazer Reforma da Previdência começa com militares e judiciário, não pelos trabalhadores rurais e pelos trabalhadores da iniciativa privada, que esses contribuem, empregado e empregado, em meio trilhão de reais na Previdência do INSS. Agora, os militares contribuem com R$ 2 bilhões e custam R$ 34, o funcionalismo público, principalmente o judiciário, não contribui nem com 20% dos benefícios que recebe. Então, haverá luta. A ditadura já tentou criar os Diretórios Acadêmicos pelegos, proibiu a UNE, os DCEs. Mas nós sobrevivemos. Em 1976, 77 a UNE já estava reconstruída. E nós mesmos enfrentamos a ditadura e reabrimos todos os centros acadêmicos ainda na década de 60. Agora, é preciso mudar os métodos de atuação dos partidos, do movimento social, das centrais sindicais, que já estão se reunindo para criar seminários e construir um Congresso das Classes Trabalhadoras para enfrentar as medidas do Bolsonaro”.
E quanto às Comunicações?
“O que nós assistimos na campanha foi que foi feita uma reforma eleitoral que deu direito ao candidato de autofinanciar sua campanha. Isso liberou o poder econômico, porque o Meirelles gasta R$ 40 milhões, mas os candidatos do PT, nenhum tinha mais de um milhão pra gastar e assim mesmo do fundo partidário. Segundo, eles diminuíram o tempo de rádio e televisão, nos dias e horários. Aís as televisões, os jornais e as rádios é que faziam a campanha. Terceiro, e é mais grave ainda, eles não combateram Fake News, não combateram o uso ilegal das redes, entendeu? E mais, não combateram a compra de votos! Porque houve uma compra de votos no país imensa. Nós temos que ter, já podíamos ter tido desde 2008, capacidade de responder nas redes. Porque em 2008, na eleição do Obama, já ficou evidente a importância das redes, e na do Trump nem se diga, dando até numa crise internacional. O problema do Brasil é que se precisa aplicar a Constituição. É isso! Porque agora eles começam a ter concorrência pela primeira vez, a Globo, a Record, SBT, Bandeirantes, a Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo, porque o El País tem um jornal na internet e a internet não exige capital nacional, onde só permite 33% de capital estrangeiro, então vão ao Supremo tentar impedir que o El País tenha uma página, um jornal aqui. Mas eles não têm como impedir que as plataformas da Amazon, Netflix, Fox, Warner, Disney, entrem no país. Uma coisa é taxar o Google, taxar os grandes grupos econômicos, grandes monopólios, agora, não tem como impedir que eles disputem publicidade. Então eles (a Grande Mídia nacional) vão ficar cada vez mais dependentes do sistema bancário, da indústria automobilística, farmacêutica, imobiliária e mais dependentes do governo, da publicidade governamental, que é uma grande força principalmente para as oligarquias políticas que dominam rádio e televisão nos estados, onde duas ou três famílias de políticos dominam o cenário. Nós para nos opormos a isso hoje, não precisamos de jornal impresso, nem de televisão, basta utilizar as redes. E o Bolsonaro mostrou isso na campanha. Lógico que isso desequilibra a luta democrática: poder econômico e oligarquias midiáticas fazendo campanha abertamente pra políticos tentando controlar a opinião pública nos estados.
Hoje não há diversidade e pluralismo na Rede Globo, por exemplo, nem na GloboNews. E não há informação, há ‘formação’. Todo o tempo querendo convencer o país de um determinado rumo. É um direito deles fazer isso no editorial. Mas os debates, entrevistas, têm de ser plurais e diversificados porque a Constituição exige. Então o que nós precisamos fazer e não fizemos é aplicar a Constituição”.
Patriotismo, religião e sexo:
“Essa tentativa do Bolsonaro é a mais perigosa. A manipulação da fé do povo. Na verdade, ele usa o nacionalismo, a pátria, religião e a família, como aliás os militares usavam em 64. Era a Marcha da Família, com Deus pela Liberdade, como se o Brasil estivesse ameaçado pelo comunismo, pela União Soviética. Agora é a Venezuela, o PT, são os vermelhos. Há uma manipulação muito grande. E há uma intenção clara de reprimir a diversidade, o pluralismo, as diferentes orientações sexuais. Há um preconceito muito grande contra o pobre, o negro.
Mas ele, até porque não foi tratado pela mídia como deveria ter sido tratado, a mídia foi conivente muitas vezes e omissa com as declarações que ele fazia como ‘matar 30 mil’, ‘vamos metralhar os petistas’, deixando claro o preconceito racial, no caso dos quilombolas, deixando claro o machismo dele, exacerbado, com relação às mulheres, quando acha natural que as mulheres ganhem um salário desigual ao dos homens, que a mulher seja do lar, recatada, essa história que a função da mulher é ser mãe, e tudo isso a humanidade, inclusive o país que ele usa como referência, os EUA, já superou. É um direito das pessoas não concordarem com isso, temos de respeitar. Agora, o governo tentar fazer disso uma escola sem partido? Daqui a pouco vai fazer teatro sem partido, música sem partido, literatura sem partido, imprensa sem partido, igreja sem partido, ou seja, uma coisa totalitária e isso nós temo de combater”.
A questão das disputas e talvez conflitos na América Latina e no mundo.
“Os EUA são um império em decadência e a China em ascensão. Não existe império que entra em decadência sem lutar. O Trump já é a expressão disso: uma tentativa de defender a América em primeiro lugar, de defender a economia e o emprego nos Estados Unidos. Tudo o contrário que o Bolsonaro está pregando no Brasil. O Bolsonaro devia aprender com o Trump a defesa dos interesses nacionais, do emprego brasileiro, da indústria brasileira, da tecnologia brasileira. A China, por outro lado, será a maior potência do mundo nos próximos anos. A questão da guerra comercial, no fundo, é uma cortina de fumaça pra isso. Na verdade, o Trump está esperneando para tentar evitar a decadência dos EUA.
Com relação à América Latina, o Lopes Obrador acabou de ganhar a eleição no México. O Macri hoje perderia a eleição na Argentina. É verdade que o Piñera voltou ao poder, mas ele já perdeu pra Michele Bachelet e surgiu um partido novo forte agora no Chile. Então, são altos e baixos e luta da política e social. A Frente Farabundo Martí governa duas vezes El Salvador. Daniel Ortega já está há dois mandatos na Nicarágua. No Panamá é bem provável que vença uma frente progressista. Na República Dominicana tem um governo progressista. Em Honduras houve um golpe para interromper o governo Zelada. No Equador o Rafael Correa fez seu sucessor mas foi traído, mas ele continua com o respaldo que num plebiscito completamente manipulado ele teve 36% de votos. E o próprio Peronismo resiste, sobrevive e pode vencer novamente na Argentina.
Sobre intervenção militar, conflito regional, se os americanos decidem fazer uma intervenção na Venezuela é evidente que haverá um conflito regional porque imediatamente 500 mil venezuelanos irão imigrar para o Brasil e um milhão para a Colômbia. E muitos colombianos irão imigrar para o Equador, como aconteceu em outros momentos. Vai ser uma desagregação da Amazônia e Colômbia, Equador e Brasil se verão envolvidos nesse conflito. Não adianta falar que não acontecerá. Tem de se opor à intervenção nos assuntos internos da Venezuela. […] Os militares brasileiros, a elite brasileira ficam sonhando com o guarda chuva americano, isso é uma ilusão”.
Como está o Brasil hoje?
“As riquezas que o Brasil tem, o pré-sal que estão entregando, a Amazônia, a água, as terras, o sol… O Brasil é o país mais rico do mundo, porque não tem inverno. Outros são ricos como o Brasil mas têm inverno, como a China, a Rússia, o Canadá. E o Brasil é o sexto país do mundo, quinto território, oitava economia… Industrializado, rico, mas tem desigualdade e pobreza. O principal problema do Brasil é a desigualdade, não é o déficit público, não é o problema do sem-terra ocupar terra, ou o sem-teto ocupar áreas abandonadas nas cidades.
O problema do Brasil é a profunda desigualdade e o profundo egoísmo das elites e a vocação delas para o autoritarismo. A história do Brasil prova isso. Quando há ascensão social, cultural, política, de amplas massas do povo trabalhador, eles vêm e dão o golpe e colocam um governo de direita, muitas vezes com apoio de parcelas dos trabalhadores. Mas a verdade esse é o ciclo da vida histórica do Brasil”.
Nesta quarta-feira (12), às 12h30, metroviários fecharam o portão de entrada do Palácio do Governo de SP devido a negativa do Secretário de Planejamento, o Maurício Juvenal, em receber uma comissão para tratar de compromisso assumido pelo Metrô na campanha salarial e que não foi cumprido até o momento. Ato teve início às 9h30 da manhã.