Jornalistas Livres

Categoria: Saúde Mental

  • “A Sós”: Só um grande jornalista poderia fazer um documentário como este

    “A Sós”: Só um grande jornalista poderia fazer um documentário como este

     

    Vinicius Lima é um jornalista recém-formado pela PUC-SP. Há anos ele trabalha no projeto SP invisível, um movimento que conta histórias  de moradores de rua e de pessoas que vivem ou trabalham nas ruas de São Paulo. Veja a página aqui.

    A experiência serviu para apurar o olhar do jovem repórter. Ali, onde as pessoas genericamente vêem “mendigos”, “vagabundos”, “vítimas do sistema”, “craqueiros”, “coitados”, dependendo de onde o observador esteja no espectro político, Vinicius encontra histórias de vida, alegrias, tristezas, amores, escolhas, os porquês de estarem onde estão e fazendo o que fazem.

    Vinicius vai muito além dos estereótipos porque sabe que eles servem apenas para reforçar as barreiras da invisibilidade e, por que não?, justificar nossa insensibilidade diante da dor e do sofrimento do “Outro” —ele não é um ser como nós, dotado de sentidos como os nossos.

    Já foi moda no jornalismo o repórter se fantasiar de morador de rua, de imigrante turco na riquíssima Alemanha, de miserável no Império Americano. Maquiagem, roupas esfarrapadas, sotaque fajuto, tudo para “vivenciar na própria pele” o que o Outro sentiria na condição de marginalizado e excluído.

    Caô total. Verdadeiro estelionato.

    Primeiro, porque esse método de investigação jornalística cassa a palavra de quem já tem a palavra, quando não a própria existência, negada. Quem fala é o repórter fantasiado.

    Depois, porque nunca, nem com todos os artifícios, reproduz-se a singularidade das histórias de vida de quem acabou indo morar nas ruas. O máximo que se consegue é reverberar os preconceitos e clichês de quem se arvora a intérprete do “marginalizado e excluído”.

    Bem mais difícil foi o percurso investigativo escolhido por Vinicius para falar do amor que acontece nas ruas, pela voz dos próprios amantes. Porque pressupôs um trabalho delicado de prospecção e seleção dos cases apresentados. E porque exigiu o estabelecimento de uma profunda relação de confiança entre entrevistador e entrevistado, algo sempre difícil de obter no território inóspito das calçadas.

    Emocionante, delicado, veraz. Tudo isso poderia ser dito deste documentário, produzido como trabalho de conclusão de curso, sob orientação do professor Marcos Cripa, do jornalismo da PUC-SP. Prefiro dizer que é um pungente resgate jornalístico. Torna visível o que foi invisibilizado por camadas e mais camadas de estereótipos. Dá voz a quem sempre foi calado. Preenche com alma e amor os corpos desumanizados pelo preconceito.

    Você não olhará mais para um morador de rua como olhava antes. É para isso que serve o Jornalismo, afinal! Assista agora:

  • Os Cavaleiros da Contra-Reforma

    Os Cavaleiros da Contra-Reforma

    Quem leu a manchete que divulgou a aprovação da “Nova RAPS” (Rede de Atenção Psicossocial) na última quinta-feira (14), pela CIT (Comissão Intergestora Tripartite – composta por secretários de Saúde da união, estados e municípios), poderia pensar que se trata de uma conquista, que avançamos no campo da política pública de saúde mental no Brasil. Em pleno golpe, um respiro! Nada mais falacioso, no mesmo estilo do que é veiculado na mídia sobre as benesses das reformas todas (trabalhista, da previdência etc.), que o golpe não cessa de nos empurrar goela abaixo todos os dias.

    A manchete nos diz que foram vetadas a abertura de novos leitos em manicômio e que será ampliada a rede de assistência. Pois bem, a lei 10.216 de 2001, que consolida a diretriz da atenção em saúde mental no Brasil, já vetava a abertura de novos leitos nesses lugares que produzem muitas coisas (sobretudo violação de direitos), menos saúde mental. A proposta, alardeada pelo Ministério da Saúde como avanço, foi comemorada pelos setores mais retrógrados da saúde mental no Brasil, aliada da indústria farmacêutica. Na prática, a idéia é aumentar o valor de repasse da diária para os leitos manicomiais e cessar seu fechamento progressivo, que acontecia quando os moradores de hospitais psiquiátricos (que ainda são mais de 4.000 pessoas em pleno século 21…) saíam de seus cárceres para retornar à vida em sociedade. Essas vagas em manicômios (sim, hospitais psiquiátricos e manicômios são a mesma coisa!) não serão mais extintas com a nova política, mas serão disponibilizadas para novas internações, que seguirão produzindo muitos novos moradores.

    Além disso, a ampliação da rede de assistência hospitalar consiste na reinvenção de um modo de cuidado já superado em terras tupiniquins: o ambulatório de psiquiatria, de inspiração biomédica e medicalizante. Neste, o psiquiatra detém o poder hegemônico sobre o tratamento, e outras profissões da saúde, como a psicologia, a terapia ocupacional, etc., e também o serviço social, fundamentais para a alteração da compreensão do fenômeno dos transtornos mentais e seus cuidados para muito além dos marcadores biológicos, são meros coadjuvantes. É claro que os termos usados na resolução não são esses e usam do linguajar da Reforma Psiquiátrica brasileira para propor as mudanças… Não sejamos ingênuos.

    Não bastasse, a resolução prevê maior apoio e fomento às famigeradas Comunidades Terapêuticas, locais de internação para usuários de álcool e outras drogas, normalmente ligadas a setores religiosos, onde o fundamento do tratamento se resume a encarceramento, “enxada e bíblia”, além da clássica violação de direitos. O que está previsto para o Brasil é o que já assistimos em menor escala no município de São Paulo. Um exemplo inegável disto é o fato de que nos últimos dois meses, dois jovens que viviam há anos no centro de São Paulo, cuidados (com muitas dificuldades) por equipes comunitárias, e que sobreviveram às ruas, à doença mental e ao crack, não sobreviveram um mês ao Hospital Psiquiátrico. A lógica “cidade linda” chega ao planalto, para aprofundar o projeto de extermínio dos mais vulneráveis.

    *Psicóloga e psicanalista, trabalhadora da saúde mental pública no Brasil há 25 anos, docente da especialização “Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica: clínica e política na transformação das práticas”, do Instituto Sedes Sapientiae e militante da Luta Antimanicomial