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  • Covid-19 e ação genocida do governo Bolsonaro podem matar 28 mil índios

    Covid-19 e ação genocida do governo Bolsonaro podem matar 28 mil índios

    Por Julio Zelic, especial para os Jornalistas Livres

     

    Vivemos em um tempo tenebroso. O presidente Jair Bolsonaro, sem nenhum peso na consciência, ataca abertamente os povos indígenas. Em janeiro de 2020, por exemplo, Bolsonaro disse durante uma live em suas redes sociais que “Com toda certeza, o índio mudou. Está evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós” [2]. Em diversas outras ocasiões ao longo de sua carreira como deputado e, agora, como presidente, Bolsonaro proferiu discursos contra a demarcação de terras indígenas. Luiz Antonio Nabhan Garcia, secretário fundiário de Bolsonaro, disse, em novembro de 2019, que Hoje, o maior latifundiário do país é o índio [3] e, durante a pandemia, articulou uma instrução normativa com a FUNAI que facilita o roubo das terras indígenas.

    São tantas mentiras e imposturas racistas de Bolsonaro e seus aliados a respeito dos povos indígenas, que não é preciso pensar duas vezes antes de desconfiar de qualquer ação ou omissão do governo.

    A “gripezinha” como minimizou o Presidente, nesta quarta-feira (13/5), já ultrapassou as 12 mil mortes[4] em todo o País. O amparo do governo não é suficiente, e a economia, posta acima de tudo, está trazendo a sombra do medo e a morte para cima de todos.

     

    Para os povos indígenas, as consequências da pandemia se agravam ainda mais.

     

    A FUNAI (Fundação Nacional do Índio), hoje presidida pelo delegado da PF Marcelo Augusto Xavier da Silva, que atuou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da FUNAI, em 2016, como assessor da bancada ruralista, não está dando mínima assistência ou direito à saúde para os indígenas. Não atua para restringir o contato, para proteger a terra, para expulsar os garimpeiros ilegais que transmitem a doença para os índios. Quanto aos casos, hoje, conforme os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), no site “quarentena indígena” já temos a presença do vírus em ao menos 34 aldeias. São 308 contaminados e 77 mortos[5]. Sem contar toda a subnotificação, sabidamente imensa, já que o Brasil é dos países que menos testes tem feito para a doença.

    É importante reparar que, se em 308 casos conhecidos da Covid-19 entre indígenas, registraram-se 77 óbitos, a probabilidade de o índio morrer ao apresentar sintomas é de 25%, enquanto, no Brasil como um todo, essa porcentagem está, hoje, em aproximadamente 7%. Temos portanto uma taxa de mortalidade entre os indígenas mais do que três vezes maior do que a taxa de mortalidade do País. Obviamente, essa situação reforçaria ainda mais a necessidade de ajuda, de tratamento, de EPI’s, de fiscalização. Mas o Estado está ausente, quando o assunto é salvar os povos indígenas de uma doença que não lhes pertence.

    É trágica a constatação de que esta pandemia ainda irá longe, e que muitos indígenas morrerão por omissão criminosa do governo e do órgão que lhes deveria proteger. Segundo o censo de 2010, temos 800 mil índios no Brasil. Se seguirmos a projeção do Bolsonaro, segundo a qual, 70% da população irá se contaminar, e levando em conta uma porcentagem de 80% de assintomáticos[6] (que ainda não sabemos como se aplica aos índios por não existirem pesquisas a respeito), teríamos 112 mil remanescentes dos Povos Originários apresentando sintomas que podem requerer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória. Desses, a prosseguir o alarmante índice de 25% de mortalidade, 28 mil perecerão até o fim da pandemia.

    Que isso não aconteça de novo em nosso país.

    "Cenário

    Vivemos em um tempo de medo e desestruturação no mundo inteiro, convivendo com uma pandemia que ameaça nossa existência e o modo de vida em sociedade. Esta sensação que temos agora já foi sentida pelos brancos há 100 anos, durante outra pandemia que ficou conhecida como Gripe Espanhola. Fato tão distante no tempo mostra quão extraordinário para a Sociedade Nacional é esse medo, essa angústia de adoecer, de ter a morte à espreita, essa incerteza sobre o amanhã de nossa gente.

    Porém, quando olhamos para os povos indígenas, para as culturas e as pessoas tornadas invisíveis pelo mundo do Capital e da especulação, a realidade é muito diferente: doenças e morte são um perigo constante.

    Ao ler diversos documentos históricos, arquivados no site Armazém Memória (aberto a todos), tive a oportunidade de perceber a luta que os povos indígenas travam para sobreviver em meio a uma sociedade que lhes fecha as portas da saúde e dos cuidados. Para além disso, pude encarar a perversão do Estado e da classe dominante quanto ao adoecimento nas aldeias: utilizam-se da fragilidade decorrente das doenças como ferramenta para tomar posse das terras, para expansão de latifúndios, para extração de minérios, para o desmatamento e comércio de madeira, para tudo que gere lucro independentemente das vidas que se perdem no meio dessa exploração desenfreada.

     

    Estado genocida

    Não podemos compreender as doenças que assolam os povos indígenas sem fazer paralelo com as ações do Estado brasileiro. Portanto, usaremos como referência os registros nos Anais do Congresso Nacional, que são documentos importantes para entendermos esta relação: Estado/Povos Indígenas/Epidemias.

    O primeiro ponto notável, antes mesmo de apresentar documentos, é o descaso dos deputados diante das questões indígenas. Podemos ver que a quantidade de discursos no Congresso sobre epidemia em povos indígenas, entre os anos de 1946 e 1996, ou seja, num intervalo de 50 anos, não atingiu a marca de 30, e muitos desses discursos apareceram apenas como uma citação no Dia do Índio, soando como um descarrego de má consciência, depois de terem ignorado as pautas indígenas durante o ano todo.

     

    "Funai liquidará com os índios" - Reprodução "Jornal do Brasil":
    Reprodução “Jornal do Brasil”

    O discurso do deputado Marcos Freire[7], em maio de 1972, apresenta acusações graves à FUNAI, que mesmo sendo um órgão do governo cuja função é ajudar os povos indígenas, tem sido, ao longo da história, incapaz, incompetente e inepta no cumprimento de seu papel. Marcos Freire, após as denúncias contra a FUNAI, anexa a seu discurso uma reportagem publicada no “Jornal do Brasil” a respeito da renúncia de Antônio Cotrim a seu cargo na Funai. Destacarei aqui alguns trechos da notícia:

     

    “Sertanista Antônio Cotrim abandona FUNAI para não ser um “coveiro de índios”

    (Antônio Cotrim) “Afirma que não pretende continuar sendo instrumento de um órgão que é um “blefe à opinião pública” nem colocar em prática uma política indígena errada, pois não procura conciliar os interesses de desenvolvimento da sociedade nacional com a proteção das sociedades primitivas.”(…)

    (…) Antônio Cotrim: “Quando estava entre os kubekrametis, em junho, foi avisado pela FUNAI que havia epidemia de gripe entre os jandeavis, transmitida durante a passagem pela aldeia da missão do Padre Antônio Carlos, da Prelazia do Xingu. Dos 76 índios, morreram 16.

    O sertanista pediu medicamentos à FUNAI, mas eles só chegaram 48 dias depois e em quantidade insuficiente. Essa falta de assistência acabou por revoltá-lo ao ponto de se decidir pela demissão em caráter irrevogável.”(…)

    (…) A morte de mais de 40 parakanãs, além de cegueira em oito, causadas por doenças venéreas transmitidas pelos próprios funcionários da fundação, é relacionada por ele como uma das razões que o está levando a se afastar do órgão.”

     

    A partir deste documento podemos perceber em primeiro lugar a falta de amparo da FUNAI aos povos indígenas. Além disso, vemos também, que nestes casos citados, como em muitos outros, foi o contato dos brancos com os índios que trouxe doenças. É importante ressaltar que as doenças chegam, mas os medicamentos não.

     

    Sobre o caso dos Parakanã, citado por Antônio Cotrim, temos ainda no discurso da deputada Lúcia Viveiros, em outubro de 1979[8], um anexo que prova a reincidência do erro descrito por Cotrim. Novamente representantes da FUNAI levando doença aos Parakanã. Toda repercussão do escândalo denunciado pelo sertanista não foi suficiente para a FUNAI rever sua conduta:

     

    “1976: Uma frente de atração da FUNAI efetua contato com o grupo de Parakanã, junto ao Rio Anapu nas proximidades de Altamira. A situação de saúde dos componentes da equipe de atração, logo antes do contato, era bastante precária (malária e gripe) sem alimentação adequada e apoio suficiente.

    A equipe não optou pelo retorno, como era de esperar, mas permaneceu até o encontro final.

    O resultado foi que, logo depois do encontro, 11 índios morreram de malária e a equipe voltou às pressas impondo aos índios uma transferência e contato violentos com a “civilização”, em condições completamente diferentes dos próprios padrões culturais.

    O grupo Parakanã do Lontra é transferido, pela 4.ª vez, para o atual aldeamento junto ao PI (Posto Indígena) da FUNAI chefiado nesta época por um enfermeiro. Além da mudança de aldeia, neste período várias transformações culturais são impostas ao grupo”

     

    Seguimos com a oportunidade que este documento nos traz de refletir sobre o quinto parágrafo do artigo 231 da Constituição[9]:

     

    “§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.”

     

    Esta lei é uma ferramenta que pode ser utilizada de forma positiva ou negativa, pois permite a remoção de povos indígenas de suas terras em casos de epidemia (entre outros casos descritos no parágrafo). Podemos pensar de maneira positiva quando a remoção dos índios de sua terra visa aos cuidados de sua saúde. Seguindo a lei, após cessados os riscos, os índios deveriam retornar imediatamente para sua terra. Porém, as eventuais boas intenções dos constituintes não impediram a malversação da lei, que se tornou então uma ferramenta a serviço da expulsão dos índios de seus territórios. Como vimos no caso dos Parakanã, o Estado leva a doença e em seguida tira de forma forçada o povo de sua aldeia, pouco se importando com a cultura e o sagrado que ficam na terra em que eles habitam. Ao longo da história, os Parakanã foram remanejados diversas vezes, sempre por conta de algum interesse capitalista. Não por coincidência, este povo tem sua história pontuada pela doença, peste e sofrimento.

     

    Em abril de 1979 o deputado Heitor Alencar Furtado proferiu um discurso muito forte[10], embasando, ainda mais, a denúncia ao Estado que fazemos neste texto.

     

    “Para desalojar tribos indígenas e tomar-lhes a terra, no processo de ocupação que se desenvolveu ao longo da História, o branco sempre se utilizou de métodos desumanos, na maioria das vezes com a conivência das autoridades governamentais. Conta o sertanista Villas-Boas que, no período de construção da Estrada de Ferro Noroeste, os índios durante a noite desmanchavam o que era feito durante o dia. Houve, então, quem sugerisse e, pior, quem pusesse em prática a violência numa de suas formas mais cruéis. Algumas camisas contaminadas com o vírus do tifo foram deixadas junto à estrada. Ocorreu então uma epidemia devastadora e milhares de índios morreram. Quem pagou, ou quem pagará por essas vidas? A quem responsabilizar por estes crimes, senão a uma administração falha e omissa?”

     

    Neste documento podemos ver que para além da incapacidade do governo de cuidar dos povos indígenas, o Estado é conivente com a violência do setor privado contra os povos, cujo objetivo é roubar as riquezas e as suas terras. Vemos também que as doenças foram utilizadas como ferramenta para fragilizar a luta indígena contra a grilagem de suas terras. De tal forma, doenças tornaram-se armas letais que se fingem como um infortúnio, uma fatalidade, mas que escancaram que o governo, além de omisso, é também cúmplice da maldade genocida dos capitalistas, pois não julga os crimes dos invasores e nem sequer presta socorro aos índios adoecidos.

    É preciso respeitar a Constituição e os direitos dos povos indígenas, garantir-lhes o direito à terra, cultura, saúde e à vida. É nosso dever participar da luta dos povos originários para devolver o que lhes pertence por direito inalienável.

     

    [1] Indígena em Manaus, durante pandemia de Covid-19 | Alex Pazuello/Prefeitura de Manaus

    https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/direto-do-confinamento-salvem-os-indios

    [2]https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/24/cada-vez-mais-o-indio-e-um-ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro-em-transmissao-nas-redes-sociais.ghtml

     

    [3] https://exame.abril.com.br/brasil/hoje-o-maior-latifundiario-do-pais-e-o-indio-diz-secretario/

     

    [4] https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/12/casos-de-coronavirus-e-numero-de-mortes-no-brasil-em-12-de-maio.ghtml

    [5] https://quarentenaindigena.info/casos-indigenas/

    [6] https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca

    [7] para ver o discurso completo acesse o Centro de Referência Virtual Indígena: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocIndio/120583

    [8] para ver o discurso completo acesse o Centro de Referência Virtual Indígena: http://www.docvirt.com/docreader.net/DocIndio/121005

    [9]Quadro histórico dos dispositivos Constitucionais – Artigo 231 CEDI – Câmara dos Deputados

    http://www.docvirt.com/docreader.net/LegIndio/1642

    [10] para ver o discurso completo acesse o Centro de Referência Virtual Indígena:

    http://www.docvirt.com/docreader.net/DocIndio/120963

     

     

    Leia mais sobre mortalidade de indígenas por Covid-19 em:

    Garimpo agrava os efeitos da Covid-19 entre os Povos Indígenas

  • Coletivo da UFMT lança vídeo sobre populações negras e Covid-19

    Coletivo da UFMT lança vídeo sobre populações negras e Covid-19

    Nós do Coletivo Negro Universitário da UFMT lançamos esse vídeo “Realidades das Populações Negras sobre o coronavírus (COVID-19)” com a intenção de refletir sobre esse momento de pandemia e isolamento social, considerando nossas realidades enquanto população negra. Nosso objetivo é pensar uma maneira mais eficaz de combater o Covid-19, tendo como centro a experiência de nosso povo.

    No dia 18 de março o CNU lança e envia uma nota para canais de comunicação de MT na qual pedimos que quando tais veículos realizassem matérias sobre as consequências do vírus e da pandemia, considerassem aqueles e aquelas que devido às desigualdades raciais e sociais existentes no Brasil estão mais expostos ao vírus.

    É necessário pensarmos informes que considerem as realidades tanto da população negra quanto das demais populações em situação de vulnerabilidade a fim de que possamos encontrar uma forma de seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Para suprir esta demanda por informação, elaboramos este material logo após a publicação da referida carta.

    Neste vídeo contamos com os relatos de Frederic Nozil, pastor em Porto Príncipe capital do Haiti e de Iracena Marques Vieira, estudante de Administração e Gestão de Recursos Humanos, de Guiné-Bissau. Recebemos o vídeo de Frederic no dia 26 de março e de Iracema no dia 02 de maio de 2020. O link da matéria com novas informações do Haiti do site “O Globo” é do dia 03 de maio de 2020.

    Portanto, esperamos que este material possa ajudar a dar mais atenção para aqueles e aquelas que pensam na realidade vivida pelos povos africanos e por seus descendentes em meio à pandemia.

    Agradecemos a parceria com a Associação de Defesa dos Haitianos Imigrantes e Migrantes em Mato Grosso (ADHIMI-MT), com a página Cultura, História e Língua Haitiana (@culturahistorialinguahaitiana ) e o apoio do Coletivo Negro Audiviosual Quariterê (@quaritere ) pela edição deste material.

  • Podcast com fé, que não costuma falhar

    Podcast com fé, que não costuma falhar

    Podcast Vida em Quarentena
    Ep. 04 – Quarentena com Fé

    Como você mantém a paz de espírito nesta quarentena? É com esta questão que o episódio “Quarentena com fé” vai contar as histórias de nove pessoas de sete religiões diferentes. Pra muita gente a fé tem sido uma forma de viver esse período. Esperança de um futuro diferente, sem vírus, sem desigualdade, sem mortes. Esses são alguns dos relatos que encontramos ao longo destas histórias. O que católicos, umbandistas, muçulmanos, anglicanos, espíritas, budistas e ateus têm em comum? Coloque o fone de ouvido e mergulhe nas histórias do Vida em Quarentena, um podcast feito dentro de casa por muitas vozes!

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    Foto: Srinagar, Caxemira, 2004, http://www.mediaquatro.com
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  • GOG, o poeta: “Se tivesse teste psicotécnico, Bolsonaro não seria presidente!”

    GOG, o poeta: “Se tivesse teste psicotécnico, Bolsonaro não seria presidente!”

    Os repórteres Katia Passos e Fernando Sato, dos Jornalistas Livres conversaram com o poeta GOG, Genival Oliveira Gonçalves, no último dia 5, sobre sua carreira, que completa trinta anos em 2020, política, RAP e seu novo lançamento. O artista nascido em Sobradinho, no Distrito Federal, é conhecido como poeta do RAP Nacional e tem um grande histórico de contribuição para a construção do estilo no país, tendo sido o primeiro a abrir o próprio selo.

    Ao relembrar os trinta anos de carreira, GOG destacou o papel político de suas canções ao abordar o racismo e os partidos de esquerda:

    “Nossa carência política é de lideranças. Cadê as pessoas, a sororidade? Você não percebe isso nem na esquerda nem na direita. Quem está fazendo, quem está nas quebradas, hoje é o movimento social, é o MST que está produzindo.”

    GOG também não poupou de suas críticas o governo Bolsonaro:

    “Se tivesse teste psicotécnico, o Bolsonaro não seria presidente. Qualquer gestor público tem que passar por provas de inteligência emocional.”

    O poeta ressaltou que o presidente perdeu a oportunidade de unir o país neste momento. Para ele a crise política dos partidos esquerda pode ser resolvida quando ela se voltar para si mesma, esquecer o Bolsonaro e voltar e para as base.

    GOG destacou a importância das mídias independentes e como essa contra-narrativa dialoga  com o próprio RAP, como forma de comunicação crítica de de produção de narrativas marginalizadas. Ao longo da entrevista, o rapper cantou alguns de seus sucessos, como ‘Assassinos Sociais’ e ‘Brasil com P’. GOG respondeu diversas perguntas dos internautas ao longo da entrevista, além das perguntas dos repórteres.  

    Ao falar de RAP, o poeta mencionou as importância das rappers, e o papel feminino na cena:

    “É muita gente, a começar pela Ellen Oléria. Eu gosto muito tanto da música quanto da postura da Preta Rara. Ela me traz uma cena que passa pela transversalidade da música e da mulher negra mais empoderada”.

    Para ele, o RAP é anti-sistêmico por natureza, por emocionar ao falar das realidades em que é feito. Sobre seu novo trabalho, o 12º disco, com sete faixas, terá participação de Renan Inquérito e Fábio Brazza. O foco é ancestralidade e nesse ponto contará com a participação, também, de Milton Barbosa do MNU (Movimento Negro Unificado).

    Sobre o COVID-19, GOG lembrou:

    “Nessa pandemia do coronavírus, tem que ter atitude. Mas qual o papel do governo e porque o estado mínimo não serve? O Estado tinha que estar preparado para receber, também, o que é emergência e o que não foi esperado”.

    GOG insistiu sobre a importância de permanecer em casa, mesmo entendendo a preocupação de quem tem que sair para trabalhar: “Sem saúde você não traz o alimento”.

    Veja a entrevista:

  • Valmir Assunção é chamado de “macaco” e “nariz de chapoca” em áudio racista

    Valmir Assunção é chamado de “macaco” e “nariz de chapoca” em áudio racista

    O deputado federal Valmir Assunção (PT-BA) foi vítima de crime de racismo, difamação e ofensa a figura pública nesta sexta-feira santa, 10 de abril, em áudio gravado por uma comerciante bolsonarista do município de Itamaraju, sua terra natal, no Extremo Sul da Bahia. Na gravação que circula em um grupo de WhatsApp, de autoria de Jack Oliveira, o parlamentar itamarajuense é chamado de “macaco”, “ridículo”, “horroroso”, “vagabundo” e “nariz de chapoca”, termos reconhecidamente utilizados como ofensas racistas.

    Além disso, o deputado federal é alvo dos crimes de difamação e ofensa a figura pública em trecho dos áudios no qual Jack afirma que ele “só levou dois motéis para a cidade” usando de “laranjas” e, segundo palavras dela, não levou nenhum outro benefício para o município. “Me aponte alguma coisa que esse macaco trouxe para Itamaraju”, repete a comerciante no áudio, que já circula também em formato de vídeo em correntes de WhatsApp que viralizaram.

    As agressões racistas e difamatórias aconteceram após Valmir divulgar vídeo nas suas redes sociais defendendo a proposta do governador Rui Costa (PT) de instalar 20 leitos de UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) para tratar pacientes infectados pelo COVID-19 em Itamaraju – o que, de acordo com a afirmação da comerciante nos áudios publicados por ela, seria responsável por “levar o Coronavírus” para a cidade.

    A posição contrária aos leitos também é encampada pelo atual prefeito de Itamaraju, Marcelo Angênica (PSDB), de acordo com o deputado Valmir Assunção, que repudiou os crimes dos quais foi vítima e acionou imediatamente a Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA) para apurar o caso. O deputado petista disse que a situação é grave e que não recuará diante das atrocidades que foi obrigado a ouvir.

    “Não posso me abster de denunciar isso, pois sei que o país ainda possui em sua sociedade pessoas racistas e desinformadas. O fato de eu ser negro é motivo de orgulho. A ignorância das pessoas diante desse processo histórico só dificulta a atuação política em Itamaraju e em outras regiões da Bahia e do Brasil. Vou até o fim para que essa pessoa seja punida devidamente dentro da lei”, aponta Valmir Assunção.

    A defesa do parlamentar baiano usará como base para a denúncia a Lei Nº 7716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e que prevê pena de até cinco anos de reclusão para os crimes de racismo praticados no país. “Eu lamento que isso ainda aconteça em nossa sociedade. Mas não podemos deixar isso passar. Não podemos ser cúmplices de crimes como esse. Ainda mais em um momento tão delicado que vivemos”, afirmou Valmir.

    “Ser contrário a tudo que os órgãos de saúde federal, estadual e mundial pregam é uma coisa, mas colocar apoiadores da gestão municipal para cometer racismo extrapola o limite de razoabilidade. Não vamos abaixar a cabeça, vamos defender as vidas, principalmente do povo pobre, nesse momento”, completou o deputado.

  • “Nossos idosos são nossa memória”: o medo da covid-19 nos quilombos

    “Nossos idosos são nossa memória”: o medo da covid-19 nos quilombos

    Com reportagem de Flávia Martinelli e Jéssica Ferreira, especial para o blog MULHERIAS 

    Todo quilombo é memória viva. Cada espaço de resistência criado por remanescentes de escravizados é mantenedor da cultura e da história afro-brasileira. Os 2.847 territórios reconhecidos, apenas entre os certificados no Brasil, carregam em seu cotidiano aquilo que os livros não contam. São, por si só, espaços educacionais preciosos. E ainda há centenas, talvez milhares, que sequer foram mapeados – algo que o Censo de 2020, atualmente adiado, iria quantificar e é fundamental para a discussão de políticas públicas. A negligência diante do risco de contágio pelo coronavírus nessas comunidades representa (mais um) risco de extermínio institucional.

    Se no passado quilombos lutaram por liberdade no regime escravista, hoje é o descaso e até a inconstitucionalidade do Estado que comprometem vidas de remanescentes, além do acesso ou preservação de suas terras, natureza e ensinamentos ancestrais. Na última sexta-feira (27), por exemplo, em meio à pandemia do covid-19, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, assinou e anunciou que o Brasil irá remover as mais de 100 comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão.

    Em repúdio à expulsão dos quilombos de Alcântara, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) pressiona o Estado por políticas públicas adequadas e alerta que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia, livre e informada sobre instalação e impactos de projetos em territórios tradicionalmente ocupados (Foto: Reprodução/Conaq)
    O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia, livre e informada sobre instalação e impactos de projetos em territórios tradicionalmente ocupados (Foto: Reprodução/Conaq)

    Triste ironia, no século 19, bem à época da escravidão, as ricas famílias de fazendeiros de açúcar e algodão em decadência econômica abandonaram a cidade quando uma epidemia, provavelmente de febre amarela, se abateu no local. Apenas negros e indígenas permaneceram entre os casarões e a doença. Lá permaneceram desde então. São os donos das terras, portanto, por posse e direito adquirido, ainda que a luta por reconhecimento como terra quilombola nunca tenha chegado a um acordo.

    A expulsão, que vai contra a recomendação de isolamento social, é motivada pelo convênio que o presidente Jair Bolsonaro fez com os Estados Unidos, para uso do local como mais uma base espacial norte americana. O ato viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais. Em repúdio, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) pressiona o Estado por políticas públicas adequadas, principalmente diante da pandemia.

    Fábrica de bolos da comunidade quilombola do Canelatiua em Alcântara: populações expulsas em plena pandemia para construção de base espacial americana (Fotos: Reprodução Facebook)

    A violência institucional se somou a outra na mesma semana, quando o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em pronunciamento público, afirmou que há presença de SUS em 100% dos quilombos de todo o país. Não é verdade. Ainda que o trabalho de visita de profissionais do programa Estratégia Saúde da Família (ESF) seja muito bem avaliado, houve impacto na saída dos médicos cubanos no Brasil nas áreas rurais e, por consequência, nos  quilombos. A precariedade das dinâmicas de saúde, quando existem, ou das complicações do deslocamento para atendimento em municípios vizinhos, também continuam na pauta de reivindicações do movimento quilombola.

    A política de morte que dá licença para matar

    Em tempos de covid-19, todas essas dificuldades se intensificam e amedrontam quilombos que, culturalmente, reverenciam e exaltam seus sábios anciãos, os chamados griôs. “Eles são nossa memória e nossa história. Telefono aos mais velhos e explico que eles não podem mais, como de costume, ir na casa um do outro”, conta a cientista social Marta Quintiliano, do Quilombo Vó Rita em Goiás. Ali, o posto médico mais próximo fica a 35 minutos a pé da comunidade.

    Marta cita o filósofo e professor camaronês Achile Mbembe para esclarecer que as negligências tem endereço. “Sim, existe uma necropolítica e um necropoder que, juntos, escolhem os sujeitos que vão morrer e que vão viver”, menciona. A teoria escancara a crueldade das práticas de morte de governantes que priorizam a criação de políticas  públicas voltadas para populações que não são as que mais necessitam delas. O poder estatal ganha, assim, licença para matar e têm alvo certeiro: povos periféricos, indígenas, negros, quilombolas e vulneráveis.

    Diante desse cenário, a autogestão dos riscos foi a saída dos moradores do Quilombo Ivaporunduva, que fica em Eldorado, município paulista da região do Vale do Ribeira, uma das mais pobres do país, e cidade natal do presidente Jair Bolsonaro. Ali, a própria comunidade fechou estradas, passou a controlar acessos ao território em três turnos, montou equipes para idas e vindas à cidade e visitas de casa em casa para saber das necessidades de todas as famílias. “Se por aqui alguém contrair o coronavírus, existe muita pouca chance de resistir”, desabafa a educadora e moradora Cristiana Monteiro.

    Já a mineira Maria das Graças Epifânio, filha da histórica Dona Tiana do quilombo urbano Carrapatos da Tabatinga, localizado em Bom Despacho, a 156 quilômetros de Belo Horizonte, sabe que o racismo está enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras e o quanto isso  impossibilita a construção de políticas direcionadas. “Não tem aquele respeito, não tem uma cartilha ou protocolos que expliquem aos profissionais da saúde as características da nossa comunidade ou necessidades pontuais. É uma questão de olhar e entender, de maneira respeitosa, as nossas tradições”, detalha.

    Confia os depoimentos das três mulheres quilombolas que, diante da pandemia, lutam para proteger seus idosos e, portanto, parte de sua história e legado.

    “O posto de saúde mais próximo fica a 35 minutos a pé do nosso quilombo”

    “E se algo acontecer e nos contaminar? O que vamos fazer? A probabilidade do vírus se espalhar é enorme e a morte será em massa nos quilombos ou entre os indígenas”, preocupa-se Marta Quintiliano, de 37 anos, doutoranda em antropologia social na Universidade Federal de Goiás (UFG). Moradora do Quilombo Vó Rita, no município de Trindade, da região metropolitana de Goiânia (GO), ela conta que na comunidade existem de cerca de 200 pessoas; 50 são idosos. O posto de posto de saúde mais próximo, porém, fica a 35 minutos andando a pé e não há hospital para uma consulta ou atendimento especializado na região. 

    O local tinha características rurais, com roçado, até ser engolido pela urbanização. Na transição que a comunidade ainda vivencia, são os mais velhos que contam as histórias de Rita Felizarda de Jesus, que nasceu em 1909, neta de escravizados que deram origem ao quilombo. Vó Rita teria chegado a Goiás com a família vinda da Bahia a pé, depois de uma previsão, surgida à época, de que o mundo acabaria e que o primeiro local a ser atingido seria onde moravam antes.

    A antropóloga Marta, : (Foto: acervo pessoal)
    Marta, doutoranda em antropologia e quilombola: “telefono aos nossos mais velhos e explico que eles não podem mais, como de costume, ir na casa um do outro” (Foto: Isabela Alves)

    No quilombo, Vó Rita teve 11 filhos que criou com o emprego em uma fábrica de farinha na cidade e lavando roupa pra fora. As filhas a ajudavam no trabalho doméstico e na fábrica, os filhos plantavam arroz, mandioca, milho e outros produtos que compartilhavam com a comunidade. Tradições como os bailes, cantigas e rezas são legados que os mais velhos ainda contam.

    O avanço urbanístico na área do quilombo mudou essa rotina sem, no entanto, trazer a infraestrutura médica necessária à comunidade. “O que temos é uma agente de saúde que vem até a comunidade atender a todos. Mas, neste momento de pandemia, ela não está vindo visitar as casas, segundo ela, por questões de segurança”, explica Marta. “Quando acontece alguma coisa, se alguém está doente, a gente liga e pergunta o que é melhor fazer. Agora todo mundo está com medo.”

    Marta conta que muitos na comunidade precisam se submeter a trabalhos com risco de contágio. São ofícios em jardinagem e empregos de motoristas e empregadas domésticas. “Temos um alto índice de serviços informais e desemprego. Não temos condições financeiras nem de comprar álcool gel”, pontua enquanto conta que não houve distribuição do produto no local e explica que a estratégia da comunidade é permanecer dentro de casa e fazer a lavagem adequada das mãos.

    Política pública não é apenas avisar para não sair de casa

    Aos mais velhos, ela explica os motivos para não mais ficarem, como de costume, indo um na casa do outro e reforça a importância de  manter o isolamento. “Mas é difícil. Aqui em casa, por exemplo, tem um monte de idoso. Os que têm doenças não saem de jeito nenhum… E é isso: seguimos conversando com nossos mais velhos orientando por telefone, porque estão angustiados.”

    Mas isso não é uma política pública, muito menos específica aos que, de maneira tão brasileira, marcaram a identidade do Brasil com seus benzimentos, a devoção a São Sebastião e a Santo Antônio e a manipulação de ervas na cura de enfermidades que até hoje a ciência está estudando. “Atenção à saúde com essa população precisa ir além de informação que vem da TV. Aqui, só o que dizem é pra não sair.” 

    “Os idosos são a nossa história, parte da nossa resistência” 

    A agricultora familiar e educadora Cristiana Marinho, de 35 anos, entende que o combate ao coronavírus no Brasil está vinculado ao enfrentamento da desigualdade e da negligência do Estado. Sabe também que essa combinação representa um risco enorme às comunidades periféricas e historicamente ignoradas ou mesmo vistas como inimigas por agentes do poder. Cristiana é moradora do Quilombo de Ivaporunduva, que fica em Eldorado, município paulista da região do Vale do Ribeira, uma das mais pobres do país, e cidade natal do presidente Jair Bolsonaro.

    “É muito preocupante. Se a gente perde parte desses idosos, é nossa história que se perde. Queremos  cuidar deles de todas as formas para que não sejam contaminados. Se por aqui alguém contrair o coronavírus, existe muita pouca chance de resistir”, desabafa. Ela cita a precariedade da estrutura de saúde pública da cidade da família do político que comanda o país. “O município não tem UTI e nem mesmo equipamentos de oxigênio e intubação.”

    Cristiana Marinho, explica que a manutenção da cultura dos quilombos se dá pela sabedoria dos idosos. "A grande preocupação é com esse grupo de risco, que são os idosos, que é nossa história, é parte da nossa resistência" (Foto: acervo pessoal)
    Cristiana, do Quilombo Ivaporunduva: a própria comunidade fechou estradas, passou a controlar acessos ao território e montou equipes para idas à cidade e visitas de  casa em casa para saber das necessidades de cada família (Foto: acervo pessoal)

    Os moradores de Eldorado dependem do hospital regional, de Pariquera que segundo Cristina, tem apenas 39 leitos de UTI. “Estão sendo instaladas mais dez, mas ainda é muito pouco para um número muito grande de gente. Sabemos que é perda mesmo, caso não haja cuidado”. O Vale do Ribeira abriga uma população de quase 500 mil habitantes e inclui em sua área de 31 municípios; nove paranaenses e 22 paulistas.

    A resistência, como sempre, é construída no “nós por nós”

    As comunidades quilombolas da região avaliam o turismo e a ida à cidades como fatores de alto risco de transmissão do vírus. Os próprios moradores de Ivaporunduva, então, bloquearam estradas locais e, por si, vigiam os acessos durante os três turnos. Ninguém entra e ninguém sai. Dentro da comunidade, de cada território, há coordenadores para lidar com a crise.

    Há equipes que cuidam da divulgação de informações, outras cuidam de compras de remédios ou mantimentos na cidade. Parte da alimentação vem das roças orgânicas, mas há alimentos que ainda precisam aguardar a colheita. “Tem também um grupo que vai de casa em casa para saber o que está faltando para cada família. Estamos fazendo de tudo para que ninguém precise sair do isolamento social”, explica Cristiana. “Fiz também um apelo ao posto emergencial de saúde por causa da falta de materiais de prevenção, como álcool em gel, máscaras, luva. Isso deveria ser fornecido, mas que nem os profissionais da saúde têm.”

    Mecanismos de resistência, como sempre, estão sendo construídos por e para eles. “A comunidade está unida, mais do que nunca, para vencer essa luta. Se aos que estão nas cidades já é difícil, nos territórios quilombolas é ainda mais por questões de logística, de transporte, de cuidado e de um olhar diferenciado que não existe nessa questão da saúde para o nosso povo.”

    “Falta aos profissionais de saúde um protocolo de respeito às características da nossa comunidade. É uma questão de olhar, de entender as nossas tradições” 

    Diferente de muitas realidades, há dois anos, toda a dinâmica da saúde pública mudou para melhor no quilombo urbano Carrapatos da Tabatinga, localizado em Bom Despacho, em Minas Gerais, a 156 quilômetros de Belo Horizonte. “A chegada do programa Estratégia Saúde da Família (ESF), foi muito boa pra comunidade toda; tanto pra nós, quilombolas, quanto para quem não é. E é um conforto que a gente tem; não precisar correr léguas para ter atendimento”, conta a moradora da comunidade e técnica de saúde bucal Maria das Graças Epifânio, de 48 anos.

    Maria das Graças Epifânio, 48 anos, conta que o maior problema das políticas públicas de saúde é não respeitar as tradições quilombolas (Foto: acervo pessoal)
    Graça, do quilombo urbano de Carrapatos e Tabatinga: o racismo, enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras, impossibilita a construção de políticas direcionadas. (Foto: Isabela Alves)

    Graça elogia a facilidade de acesso à equipe médica que vai até a comunidade para intervir nos fatores que colocam a saúde em risco. De fato, pesquisas apontam que a política pública promove maior adesão a tratamentos e evita intervenções de média e alta complexidade. Esse nível de atenção resolve 80% dos problemas de saúde da população. Ainda, assim, ela pontua que a população quilombola tem especificidades culturais que devem ser respeitadas pelos agentes da saúde. “Em geral, colocam tudo no mesmo balaio e vão levando. Não precisava ser assim”.

    Filha da matriarca do quilombo, Dona Tiana, falecida no ano passado aos 87 anos, Graça segue a militância pelos direitos quilombolas e é coordenadora de Igualdade Racial da Secretaria de Cultura da prefeitura de Bom Despacho. Ela sabe que o racismo está enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras e o quanto isso  impossibilita a construção de políticas direcionadas. “Não tem aquele respeito, não tem uma cartilha ou protocolos que expliquem aos profissionais as características da nossa comunidade ou necessidades pontuais. É uma questão de olhar e entender, de maneira respeitosa, as nossas tradições”, detalha Graça.

    Dona Tiana, sua mãe, lutou pelo reconhecimento e certificado da comunidade como quilombo urbano da comunidade que, justamente, é referência na valorização da identidade e legado da cultura afro-brasileira. A líder incentivou e criou de grupos de dança afro, afoxé, teatro, capoeira, congado e até uma escola de samba. Detentora de saberes tradicionais, foi “zeladora de Santo”, filha de São Sebastião e benzedeira, reconhecida por toda comunidade de Bom Despacho, pelo poder público e entidades locais enquanto Dandara, sinônimo da resistência quilombola. Veja, abaixo, o documentário sobre sua vida e legado.