Por Bruno Falci e Clara Luiza Domingos, do Jornalistas Livres
O Jornalistas Livres estreou o Boletim Semanal da Venezuela com o objetivo de informar ao público fatos e análises sobre a Venezuela, que não chegam pela grande mídia, dando voz à lideranças que possam expor os problemas vividos pelos venezuelanos diariamente, em função dos ataques imperialistas por parte dos EUA, que estão se intensificando durante a pandemia do Covid-19. O Boletim Semanal da Venezula é transmitido ao vivo, todas as quintas-feiras, às 16h30 (horário de Brasília).
O convidado recebido pelos jornalistas Bruno Falci e Clara Luiza Domingos para o Programa #1 foi o Secretário Geral do Comitê de Solidariedade Internacional (COSI), Gabriel Aguirre, que apresentou um panorama geral sobre a situação política atual da Venezuela e as ações do governo de Nicolás Maduro para ajudar a população a enfrentar a pandemia.
No fim de Março, enquanto todo os países do mundo tomavam medidas de emergência para combater a Covid-19, o governo dos Estados Unidos anunciou que enviaria forças navais para as proximidades da Venezuela e ofereceu uma recompensa de $15 milhões por informações que levassem à captura do presidente venezuelano Nicolás Maduro. A justificativa é a acusação de que o líder popular teria envolvimento com narcotráfico.
Os argumentos são fortemente rebatidos pelos cidadãos e governo da Venezuela. De acordo com Gabriel Aguirre, “a agressão que tem se desenvolvido contra a Venezuela tem um objetivo central: o controle dos recursos estratégicos que possui nossa nação. Venezuela é a principal reserva de petróleo a nível mundial, quarta reserva de Gás a nível mundial, a segunda maior reserva do minério coltan no mundo, além dos recursos energéticos, minerais e aquífero”, rebate Gabriel.
O histórico de ataques dos Estados Unidos à Venezuela é longo. O país sul-americano tem sido um entrave para as políticas imperialistas dos Estados Unidos na América Latina desde as eleições presidenciais que levaram Hugo Chávez à presidência, em 1998. O presidente militar, socialista, iniciou uma nova página na história da Venezuela, comprometido com a justiça social, soberania nacional e integração dos povos e nações periféricas do mundo e da
América Latina.
“Venezuela, nos últimos anos, com o presidente Chávez, no marco de integração regional, representou um polo de contenção aos planos hegemônicos do imperialismo sobre a América Latina. Todas as iniciativas que se desenvolveram na Venezuela, com o objetivo de impedir a continuidade do financiamento dos Estados Unidos no continente, serviram para a agressão se intensificar”, lembra Aguirre sobre o início da década de ouro da América Latina, quando Chávez inaugura um novo período marcado pela eleição de governos progressistas no Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador, Paraguai, Honduras, Nicaragua e El Salvador.
Gabriel relembra que o processo de tentativa de desestabilização do governo venezuelano também se repetiu em outros desses países do continente que tomaram medidas na disputa continental pela “liberação do povo latino-americano, após o marco iniciado por Chávez”, como ele afirma. “Lembremos de Lula, no Brasil; Nestor Kirchner, na Argentina; Fernando Lugo, no Paraguai; Manuel Zelaya, em Honduras. Isso é o que o imperialismo não tem perdoado por todos esses anos na Venezuela, por isso a ferocidade em níveis muito incrementados da agressão que se expressa em todos os âmbitos: político, econômico, diplomático e militar”, completa.
O Boletim #1 da Venezuela foi transmitido ao vivo pelo Facebook e Youtube do Jornalistas Livres, na última quinta-feira (16/04), e continua disponível para acesso. Acompanhe as notícias de Caracas:
(Ilustração de Bacellar e fotos de Sato do Brasil)
Como posso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela janela, estou a trabalhar? — perguntava-se Joseph Conrad no início do século passado. Eu, em vez disso, pergunto-me: como posso explicar à minha filha que, quando olho pela janela, vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não conhecerá, a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da Humanidade.
Vivo em Milão, até ontem a mais evoluída, rica e brilhante cidade de Itália, uma das mais desejadas do mundo. A cidade da moda, do design, da Expo. A cidade do aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e a happy hour e que hoje é a capital mundial do Covid-19, a capital da região que, sozinha, soma trinta mil contágios confirmados e três mil mortos. Uma taxa de mortalidade de 10 por cento, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas. As sirenes das ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias; as nossas noites são atormentadas por homens adultos que choramingam no sono: “O que é, sentes-te bem?”; “Nada, não é nada, volta a dormir”. Milhares de amigos, parentes e conhecidos seus tossem até cuspir sangue, sozinhos, fora de todas as estatísticas e sem qualquer assistência, nas camas dos seus estúdios decorados por arquitetos de renome.
Se, neste momento, olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida com admirável diligência por imigrantes cingaleses. Até ontem, era uma singular anomalia neste bairro semi-central e, ao seu modo elegante, uma nota dissonante. Hoje é um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrinas despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter a sua marca preferida de farelo. Ficam, apoiados pela disciplina do desânimo, a um metro de distância uns dos outros, ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados, com máscaras improvisadas, feitas de pedaços de tecido com os quais, até ontem, protegiam as plantas exóticas do seu roof garden, gazes desfiadas penduradas nos seus rostos com a melancolia mole dos restos de uma era acabada.
“Uma taxa de mortalidade de 10 por cento, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas. As sirenes das ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias”
Vejo estes homens e estas mulheres tristes, incongruentes consigo mesmos. Olho-os. Não tenho nenhuma intenção de os diminuir ou de troçar deles. São homens e mulheres adultos, contudo por cima das máscaras mostram o olhar assustado das crianças carenciadas. Chegaram totalmente impreparados ao seu encontro com a história e, no entanto, precisamente por este motivo, são homens e mulheres corajosos. Fizeram parte do pedaço mais abastado, protegido, longevo, bem vestido, nutrido e cuidado da Humanidade a pisar a face da Terra e, agora, na casa dos cinquenta, estão na fila do pão.
A sua aprendizagem na vida foi uma longa aprendizagem da irrealidade televisiva. Tinham vinte anos quando assistiram, a partir das suas salas de estar, à primeira guerra da história humana em direto na televisão, trinta quando foram alvejados através dos televisores pelo terror mediático, quarenta quando a odisseia dos condenados da terra aterrou nas praias das suas férias. Todos encontros fatídicos que não poderiam perder. As grandes cenas da sua existência foram consumidas em eventos mediáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas praias dos migrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à televisão. E agora estão na fila do pão.
A sua infância foi uma manga japonesa, a sua juventude uma festa de piscina — lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa —, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesim do trabalho, os verões no outlet, o sublime do spa. Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca uma questão sobre o seu lugar no universo. E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já brancos, o abdómen prolapso e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na fila do pão. Turistas compulsivos, correram o mundo sem nunca sair de casa e agora a sua casa marca para eles os limites do mundo; sofreram quase só dramas interiores e agora o drama da história catapulta-os para a linha de fogo de uma pandemia global; têm uma casa na praia e um telemóvel de última geração, mas agora estão na fila do pão; tiveram mais cães do que filhos e agora arriscam as suas vidas para levar o seu caniche a mijar.
Olho-os da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os enquanto o número de mortes sobe para quatro mil, enquanto a abcissa do contágio cresce exponencialmente, enquanto sustenho a respiração para não inalar o ar do tempo. Olho-os e compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da história humana, mas, depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente quando começaram a ficar demasiado velhos para esperar um mundo vindouro. Porém, terão de o fazer, fá-lo-ão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo que têm sido obrigados a experienciar nestes dias: um mundo que se questiona sobre como educar os próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável, sobre como cuidar de si e dos outros. Uma era acabou, outra começará. Amanhã. Hoje estamos na fila para o pão. Hoje os jornais titulam: resiste, Milão! E Milão resiste.
Lanço um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos dos cinquenta anos, os meus concidadãos milaneses, os meus rapazes repentinamente envelhecidos: como são grandes e patéticos com os seus ténis de corrida e as suas máscaras cirúrgicas. Tenho piedade, compreendo-os, compadeço-me deles. Dentro de alguns segundos estarei na fila junto deles.
Antonio Scurati é um escritor e académico italiano, autor de livros como a biografia de Mussolini “M, o Filho do Século” e “A Criança que Sonhava com o Fim do Mundo”, traduzido para português. Vive em Milão.
Este artigo faz parte da coleção “Janelas para o Mundo”, organizada pelo jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung. Vários escritores e filósofos de todo o mundo escrevem sobre o que veem das suas janelas durante o período de isolamento motivado pela pandemia da Covid-19. Antonio Scurati foi um deles. Como sinal de proximidade cultural em tempos de distância política e social, artigos desta coleção são publicados também noutros jornais internacionais, como o Corriere della Sera (Itália), o Politiken (Dinamarca), o Observador (Portugal) e o Die Presse (Áustria).
O medo e a desolação no Brasil e no mundo aumentam com a intensidade do espraiamento viral. Ainda que, infelizmente, muitos brasileiros não tenham se apercebido da dimensão do problema, parte considerável da população encontra-se temerosa. Ontem (7/4), pela primeira vez, morreram mais de cem pessoas em um único dia no país e as perspectivas são de incremento neste número. Entretanto, em meio ao desespero, abrem-se possibilidades concretas na direção de um futuro certamente melhor do que o presente, mas também superior ao passado. Pode não parecer, mas há o que comemorar!
John Maynard Keynes, um dos maiores pensadores do século XX escreveu, em 1930, no auge da depressão mundial decorrente da Crise de 1929, um ensaio brilhante denominado “Possibilidades econômicas dos nossos netos”. Nele afirmava que, apesar do pessimismo generalizado de então aniquilar qualquer esperança, as perspectivas em relação ao futuro eram alvissareiras. Dali a 100 anos (portanto em 2030), a vida da humanidade mudaria por completo. O problema econômico fundamental, a escassez material, desapareceria.
Em virtude do avanço tecnológico, as pessoas não precisariam trabalhar 8 horas diárias para sobreviver. O corolário dessas mudanças seria uma humanidade livre das privações básicas concernentes ao acesso à saúde, educação, moradia e cultura e com tempo abundante para se dedicar aos sentimentos e atividades realmente enriquecedoras: o amor, a arte, o momento.
A maioria dos críticos afirma que Keynes estava errado. Acredito que não; os fatos comprovam isso. Segundo a FAO (2018), o mundo produz 2,5 bilhões de toneladas de grãos por ano, suficiente para atender a demanda mundial, ainda que quase um bilhão de pessoas passem fome; a estrutura produtiva do planeta é capaz de construir hospitais, moradias e rede de esgotos para o conjunto da população, apesar de o WRI (World Resource Institute, 2019) afirmar que 1,2 bilhão de citadinos “não têm acesso a habitação segura e de qualidade”; de acordo com o relatório do FMI (Fundo Monetário Internacional
– World Economic Outlook, 2019), o PIB mundial per capita é de US$ 11.860, ou seja, praticamente US$ 1.000,00 por mês, o que permitiria uma vida razoável para todos os terráqueos. Keynes, portanto, não estava errado. Existem hoje condições materiais para atender às necessidades básicas da humanidade; o problema reside na iniquidade de sua distribuição. Entretanto, neste e outros quesitos, a crise atual demostrou que outro mundo é possível. E não precisamos esperar décadas para sua concretização.
O avanço da base material profetizado por Keynes foi acompanhado por uma expansão brutal das políticas públicas de proteção social ligadas à saúde, educação, moradia e infraestrutura urbana em virtude da elevação da participação do Estado na economia. Como afirma John Kenneth Galbraith, um dos maiores economistas estadunidenses do século XX, “os serviços federais, estaduais e municipais representam (em 1970) 1/4 de toda a atividade econômica. Em 1929, perfaziam apenas 8%”. Tais números eram ainda maiores na Europa.
A combinação entre crescimento do investimento produtivo (estatal e privado) e ampliação das políticas públicas conferiu aos cidadãos dos países desenvolvidos um bem-estar generalizado. Tamanho incremento na qualidade de vida não ocorreu por acaso. Ele foi fruto da desolação tanto da Crise de 1929 quanto das I e II Guerra Mundiais, que revelaram ao mundo a incapacidade do liberalismo econômico em proporcionar condições dignas de vida ao conjunto da população. A desgraça desses eventos levou ao reconhecimento de que a ordem liberal vigente até então era inadequada ao bem-estar coletivo. A partir daí embates sociais e políticos profundos acarretaram o desenvolvimento dos denominados “Estados de Bem-Estar Social” —provavelmente o que houve de mais sofisticado nas democracias ocidentais desenvolvidas. O caos econômico e social que prevaleceu até 1945 propiciou o advento de uma sociedade solidária que alçou o bem-estar coletivo como objetivo supremo a ser alcançado. Reconheceu-se que a liberdade individual só poderia existir em meio à abundância coletiva e que a prosperidade de poucos levava à exclusão de muitos. As sociedades arrasadas de então tomaram decisões políticas em prol da solidariedade econômica e social, mudando por completo seu destino. Foi, portanto, uma oportunidade histórica aproveitada. Nos defrontamos hoje, novamente, com tal oportunidade. E não podemos desperdiçá-la.
Infelizmente, à exceção dos Anos Dourados (os Trinta Gloriosos, entre 1945-75), os pilares ideológicos da economia capitalista sempre sustentaram o imaginário ocidental. A busca incessante pelo lucro, a primazia do setor privado sobre o Estado, do particular sobre o coletivo, do livre-mercado, da concorrência e da meritocracia constituem valores defendidos com unhas e dentes pelos indivíduos supostamente livres que se digladiam ordinariamente nas sociedades capitalistas desreguladas em busca da sobrevivência. Na
crise atual, tais valores vêm sendo peremptoriamente negados, demonstrando sua insignificância no combate às mazelas que ora nos assolam. A farsa desses conceitos foi desmascarada pela atual crise econômica —desenhada muito antes do advento do Covid-19, mas sem dúvida nenhuma aprofundada pelo mesmo.
Novamente, ficou evidente que os mercados não se auto-regulam e que a primazia do Setor Público sobre o setor privado é incontestável, principalmente (mas não só) em períodos emergenciais.
Sem a ajuda econômica estatal, sem o sistema de seguridade social e sem os hospitais públicos, o caos imperaria. Os países que no passado avançaram nas privatizações estão pagando um alto preço agora. Aqueles que não possuem um sistema de saúde universal, mesmo que ricos, sofrem arduamente; os Estados Unidos são um exemplo claro de que a prosperidade privada de poucos não garante o bem-estar da maioria. O país mais rico do mundo comprova que não há a mínima possibilidade dessa subjetividade denominada mercado ou a filantropia dos bilionários, bastante comedida atualmente, resolverem os problemas econômicos e sociais em curso. No caso do Brasil, os hotéis-hospitais destinados à diminuta parcela da população jamais substituirão a capilaridade e solidariedade do Sistema Único de Saúde. Parafraseando aquele médico daquela emissora: “Ainda bem que temos o SUS”.
A atual crise evidenciou que o mercado só sabe jogar quando a economia vai bem; mesmo assim, contribui à piora gradativa da partida durante o jogo e, cedo ou tarde, demanda a mão visível do Estado.
Os interesses econômicos parecem ter perdido seu protagonismo em meio ao combate ao Covid-19. A quase totalidade dos governos optou por desacelerar a economia para salvar vidas. Isso tem um significado profundo: a busca incessante pelo lucro perdeu seu reinado e deixou de comandar a sociabilidade nas economias capitalistas, abrindo espaço para a preocupação com o próximo —seja ele quem for. A vida do outro, a vida de todos, é o balizador da racionalidade que ora impera. O amor ao dinheiro foi substituído pelo amor ao próximo. A crise demonstrou que os Estados podem sim socorrer os necessitados através das transferências diretas de recursos. Ficou provado que há dinheiro para todos! Basta distribuí-lo melhor! As pessoas, e não somente os bancos como de costume, podem e devem receber recursos monetários caso precisem. E essa “ajuda” não levará nenhum país à bancarrota tampouco quebrará alguma economia, senão o contrário: a ausência dessas transferências varreria nações inteiras do mapa. “De repente” explicitou-se que caso as pessoas percam seus empregos e/ou suas rendas o mundo colapsará; evidenciou-se que as reformas trabalhistas direcionadas à precarização das relações de trabalho e ao achatamento dos salários ou as reformas previdenciárias que buscam a retirada de direitos, conclamadas pelos neoliberais como a panaceia ao desenvolvimento econômico, na verdade são contraproducentes e caminham na direção contrária à estabilidade social e prosperidade econômica das nações. Ficou claro que quanto mais nos aprofundarmos nessas reformas, menores serão nossos mecanismos de defesa contra as intempéries inerentes ao livre-mercado.
Precisamos admitir que trilhamos nos últimos 40 anos um caminho errado. Necessitamos reconhecer que os problemas ora enfrentados não são apenas oriundos do Covid-19, mas sim intrínsecos ao sistema capitalista desregulado.
Independentemente da pandemia, o desemprego, a desigualdade e a exclusão vinham aumentando na maioria dos países. A concentração brutal da renda é um dado; a marginalização crescente das pessoas, um fato. Um mundo no qual as 8 pessoas mais ricas do planeta detêm a mesma quantidade de recursos que a metade mais pobre da população (3,6 bilhões de pessoas, segundo a Oxfam – 2018) não pode parar em pé por muito tempo. Cedo ou tarde teremos, como sociedade, como humanidade, que enfrentar esse dilema: ou transferimos recursos aos mais necessitados ou a economia e a sociedade se dilacerarão. Sem políticas públicas de distribuição de renda, consubstanciadas tanto na forma monetária quanto nos serviços essenciais, a barbárie reinará em algum momento.
A pandemia nos deu a oportunidade de repensarmos os valores e comportamentos que regem nossas sociedades. O individualismo, a concorrência exacerbada, a correria cotidiana comandada pelo dinheiro e o consumo desenfreado perderam sentido. Nos demos conta de que tais valores são antagônicos ao bem-estar coletivo e, portanto, devemos e podemos nos livrar deles. A queda acentuada da poluição nas grandes metrópoles nas últimas semanas nos obriga a perguntar até que ponto aguentaríamos a emissão transloucada de CO2 na atmosfera. Qual o sentido de insistirmos numa produção assentada na queima de combustíveis fósseis e na produção de carros particulares e bens de consumo supérfluos, se podemos investir em energia limpa, transporte público e baixar nosso ímpeto consumista? A recuperação econômica pode e deve originar-se desses novos questionamentos e paradigmas, a exemplo do que propõe as iniciativas de renda mínima ou o “New Green Deal”. Abriu-se novamente, como no pós-guerra, uma “janela de oportunidade” para enfrentarmos os problemas da desigualdade, da exclusão, da pobreza e do meio-ambiente que são, insistindo, estruturais do sistema capitalista. Não decorreram do Covid-19; foram por ele explicitados. A pandemia nos mostrou que podemos enfrentá-los. Isso é motivo para comemorarmos! Outro mundo, melhor, é possível! No entanto, caso não incorporemos as lições que a pandemia nos ensinou, o futuro, ainda mais que o presente, poderá ser catastrófico.
Entrevista de Claudia Korol a pesquisadora Silvia Ribeiro publicada no jornal argentino Pagina 12 em 03 de abril de 2020
Tradução Leila Monségur
Silvia Ribeiro, pesquisadora nascida no Uruguai que mora no México há mais de três décadas, é diretora para a América Latina do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), com status consultivo perante o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. A soberania alimentar e o impacto dos desenvolvimentos biotecnológicos na saúde e no meio ambiente são alguns dos tópicos sobre os quais ela investiga e que a levaram a questionar, desde o início da pandemia, a ausência, não apenas da descrição das causas mas também das propostas para modificá-las. Nesta entrevista, ela se refere a esse ponto nodal, ao sistema de produção capitalista e ao que podemos vislumbrar, a partir do isolamento obrigatório, como o futuro.
A pesquisadora Silvia Ribeiro. Foto: Francis Dejon
Embora estejamos falando há meses sobre este vírus, vale a pena perguntar: O que é o Covid -19?
– É uma cepa ou linhagem – a que dá origem à declaração atual de pandemia – da família dos coronavírus, que geralmente causa doenças respiratórias leves, mas que pode ser grave para uma porcentagem das pessoas afetadas, devido à sua vulnerabilidade. Faz parte de uma ampla família de vírus, que como todos, sofre mutações muito rapidamente. É o mesmo tipo de vírus que deu origem à síndrome respiratória aguda severa (SARS) na Ásia e à síndrome respiratória aguda no Oriente Médio (MERS).
De onde provém?
Embora exista um amplo consenso científico, sobre sua origem animal, e sua origem seja atribuída aos morcegos, não está claro de onde vem, porque a mutação dos vírus é muito rápida e há muitos lugares onde poderia ter sido originado. Com a intercomunicação que existe atualmente a nivel global, ele poderia ter sido levado de um local para outro muito rapidamente.
O que se sabe é que começa a ser uma infecção significativa em uma cidade da China. No entanto, essa não é a origem, mas o lugar onde ela se manifesta primeiro.
Rob Wallace, um biólogo que estuda um século de pandemias há 25 anos e que também é filo-geógrafo, e como tal tem seguido o caminho de pandemias e vírus, diz que todos os vírus infecciosos nas últimas décadas estão intimamente relacionados a criação industrial de animais. Nós – do grupo ETC e do GRAIN – já vimos com o surgimento da gripe aviária na Ásia e da gripe suína (que mais tarde eles chamaram de H1N1 para torná-lo um nome mais asséptico), também da SARS, que é relacionada à gripe aviária, que são vírus que surgem em uma situação em que existe um tipo de fábrica de replicação e mutação de vírus que é a criação industrial de animais.
É porque existem muitos animais que estão juntos, amontoados. Isto se repete tanto com frangos como com porcos, que não podem se mover e, portanto, tendem a criar muitas doenças. Existem diferentes cepas de vírus, de bactérias, que se transladam entre muitos indivíduos em um espaço reduzido. Os animais são submetidos a aplicações regulares de pesticidas, para eliminar outra série de coisas que estão dentro do próprio criadouro. Também existem venenos nos alimentos – em geral, é milho transgênico que lhes é administrado -. Tudo está intimamente relacionado ao negócio de venda de transgênicos para forragens. Dão a eles uma quantidade de antibióticos e antivirais, para prevenir doenças, o que está criando uma resistência cada vez mais forte.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) chamou as indústrias de criação de animais, especialmente frango, porcos, mas também piscícola e de perus, para parar de aplicar tantos antibióticos, porque entre 70 e 80% dos antibióticos do mundo, são usados na cria industrial de animais. Por serem animais que têm um sistema imunológico deprimido, estão expostos a doenças o tempo todo e também lhes aplicam antivirais. Lhes dão antibióticos não tanto para prevenir doenças, mas para torná-los mais gordos mais rapidamente. Estes centros industriais de criação, desde o confinamento até à criação de porcos, galinhas e perus, muito apinhados, criam uma situação patológica de reprodução de vírus e bactérias resistentes. Mas também, estão em contato com seres humanos que os levam para as cidades.
Mas vem de morcegos ou não?
– Há quem se pergunte: “se se diz que foi encontrado em um mercado e provém de morcegos, como chega aos animais que estão sendo criados? O que acontece é que os morcegos, os civetas e outros que supostamente deram origem a vários vírus – até uma das teorias é que o vírus da Aids provém da mutação de um vírus presente nos macacos – os expandem devido à destruição dos habitats naturais dessas espécies, que se deslocam para outros lugares. Os animais selvagens podem ter um reservatório de vírus, que, dentro de sua própria espécie, estão controlados, existem mas não estão deixando os animais doentes, mas de repente se mudam para um meio onde se tornam uma máquina de produção de vírus, porque encontram-se com muitas outras cepas e vírus.
Eles alcançam esses lugares deslocados de seus habitats naturais. Isso tem a ver principalmente com o desmatamento, que paradoxalmente também se deve à expansão da fronteira agrícola. A FAO reconhece que 70% do desmatamento tem a ver com a expansão da fronteira agropecuaria. Até a FAO diz que em países como o Brasil, onde acabamos de ver tudo o que aconteceu com os incêndios, devido ao desmatamento para a pecuaria, a causa do desmatamento é a expansão da indústria agropecuaria em mais de 80%.
Existem vários fatores que se conjugam. Os animais que saem de seus habitats naturais, sejam morcegos ou outros tipos de animais, inclusive podem ser até muitos tipos de mosquitos que são criados e se tornam resistentes pelo uso de pesticidas. Todo o sistema de agricultura industrial tóxica e química também cria outros vírus que causam doenças. Existem vários vetores de doenças que atingem sistemas de superlotação nas cidades, especialmente em áreas marginais, de pessoas que foram deslocadas e não têm condições adequadas de moradia e higiene. Se cria um círculo vicioso de circulação entre os vírus.
Qual é sua opinião sobre o modo como se esta enfrentando a pandemia no mundo?
– Nada do que está acontecendo agora está prevenindo a próxima pandemia. O que está sendo discutido é como enfrentar esta pandemia em particular, até que, tomara, em algum momento, o próprio vírus encontre um teto, porque há resistência adquirida em uma quantidade significativa da população. Portanto, esse vírus em particular pode desaparecer, como o SARS e o MERS desapareceram. Não afetará mais, mas outros aparecerão, ou o mesmo Covid 19 será transformado no Covid 20 ou Covid 21, por outra mutação, porque todas as condições permanecem as mesmas. É um mecanismo perverso. O sistema agroindustrial de alimentos teria que ser discutido, desde a forma de cultivo até a forma de processamento. Todo esse círculo vicioso que não está sendo considerado faz com que outra pandemia esteja sendo preparada.
É possível identificar os responsáveis por esta pandemia?
– É o mecanismo típico do sistema capitalista, que cria enormes problemas que vão das mudanças climáticas à contaminação das águas, dos mares, a enorme crise de saúde que existe nos países devido à má alimentação, mas também devido aos tóxicos aos quais estámos expostos, causando uma crise de saúde em humanos. É claro que o sistema capitalista não vai revê-lo, porque para isso teria que afetar os interesses das empresas transnacionais que são as que acumulam, as que concentram tanto na criação industrial de animais, como nas monoculturas, e inclusive nas empresas florestais e o desmatamento feito comercialmente.
Em cada um dos degraus da cadeia do sistema agroalimentar industrial, encontraremos algumas empresas. Estamos falando de três, quatro, cinco, que dominam a maior parte dessa área, como acontece com os transgênicos que são Bayer, Monsanto, Singenta, Basf e Corteva. O mesmo vale para aquelas que produzem forragem para animais. Por exemplo, Cargill, Bunge, ADM. Todas têm interesse na criação industrial de animais, porque são seu principal cliente. Muitas vezes são co-proprietárias dessas fábricas de vírus.
Além de questionar as causas, … elas teriam que ser modificadas. E mudá-las questiona os próprios fundamentos do sistema capitalista. É necessário questionar os sistemas de produção, especialmente o sistema agroalimentar, imediatamente. Mas também está relacionado a muitas coisas. Por exemplo: quem é o mais afetado pela pandemia no momento? As pessoas mais vulneráveis: quem não tem casa, quem não tem água. São os mesmos deslocados por esse sistema e que não podem acessar aos sistemas de saúde.
Como é a resposta dos sistemas de saúde?
– Nestas décadas de neoliberalismo não se atendeu a necessidade de sistemas de atenção primária à saúde, que é fundamental; mas também não há sistemas de saúde para cuidar agora de todas as pessoas que estão ficando doentes em muitos países. Os países em que houve menos mortes em relação à população são países que já tinham sistemas de saúde relativamente capazes de atender sua população. Aqueles que os desmontaram foram os que ficaram pior diante da pandemia. O sistema é injusto não apenas na produção. É injusto no consumo, porque nem todos podem consumir o mesmo. É injusto nos impactos que causa nas pessoas mais afetadas, que são as mais vulneráveis.
Em alguns casos, será devido à idade, mas em muitos outros, devido a doenças causadas pelo próprio sistema agroalimentar industrial, como diabetes, obesidade, hipertensão, doenças cardiovasculares, todos os cânceres do sistema digestivo. Tudo isso está relacionado ao mesmo sistema que produz os vírus. No meio disso, vêm os sistemas de “resgate” dos governos, e em todos os países do mundo, por mais que digam que primeiro atenderão aos pobres embora possa haver essa intenção – em outros nem sequer isso tem, como nos Estados Unidos – na realidade, o que estão tentando salvar são as empresas, porque dizem que são os motores da economia. Então se repete o mesmo esquema. Se volta a salvar as empresas que criaram o problema.
Qual é o papel das indústrias farmacêuticas diante da pandemia?
Mesmo diante da pandemia, as causas não são discutidas, mas se procuram novos negócios, como por exemplo, com a vacina. Todo o negócio das vacinas está acontecendo agora, para ver quem chega primeiro, quem a patenteia. As farmacêuticas estão procurando o negócio. Também é um negócio para todas as empresas de informática, com as comunicações virtuais. Pouco antes da pandemia, as famosas empresas GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft) já eram as empresas mais valorizadas no nível de valor de mercado de suas ações. E são as empresas que estão obtendo lucros enormes, porque houve uma substituição da comunicação direta, ainda mais, pela comunicação virtual. Os projetos de resgate da economia apoiarão esse tipo de empresa, as farmacêuticas que vão monopolizar as vacinas, as empresas de agricultura industrial que produzem estes vírus. É como uma repetição permanente desse tipo de sistema capitalista injusto, classista, que afeta muito mais a aqueles que já estavam mal.
Também é preciso dizer que 72% das causas de morte no mundo são devidas a doenças não transmissíveis: diabetes, doenças cardiovasculares, cânceres, hipertensão. São doenças respiratórias, não por contágio infeccioso, mas por contaminação nas cidades, com o transporte. Tudo o que está sendo feito agora em relação ao coronavírus é porque ele dá a ilusão no sistema capitalista, que pode ser atacado. Que se houver uma pandemia é um problema tecnológico, e a resposta é criar situações reguladas em cada país, o que é uma resolução do tipo tecnológica.
Mas existe outra possibilidade de enfrentar esta crise a não ser com o isolamento social?
– Quero esclarecer que concordo com que sejam tomadas medidas de distanciamento físico, e não social, mas devem ser acompanhadas por medidas que possam apoiar aqueles que não conseguem fazê-lo por causa de sua vulnerabilidade. O fato de selecionar uma doença específica, como neste caso é uma doença infecciosa, para liberar toda a bateria do que seria um ataque global à situação de pandemia, por um lado, não questiona as causas, mas, por outro, instala uma série de medidas repressivas inclusive, muito autoritarias, de cima para baixo pra dizer ao povo: “Faça isso, faça o outro, porque nos sabemos o que você deve fazer e o que não”.
Tudo isso está relacionado a não ver o fundo do problema, as causas e, ao mesmo tempo, dizer que os únicos que podem lidar com a situação em que vivemos hoje globalmente são os de cima, desde governos, empresas, que são os que forneceriam a solução e, portanto, devemos aceitar todas as condições que nos impõem. Diante disso, acredito que é fundamental resgatar e fortalecer respostas coletivas e desde a base.
Por exemplo?
– Por um lado, precisamos entender que existe um sistema alimentar que acessa o 70% da população mundial. Existem trabalhos muito serios de pesquisa do ETC e GRAIN, mostrando que 70% da população mundial se mantém pela produção em pequena escala de camponeses, pequenos agricultores, também hortas urbanas e outras formas de troca e coleta de alimentos que são pequenas, descentralizadas, locais. É isto que alimenta a maior parte da humanidade. E não é apenas uma comida mais saudável, como também a que chega a maioria das pessoas.
Estas alternativas deveriam ser apoiadas e fortalecidas. É como um paradigma para pensar soluções desde a base, descentralizadas, coletivas, de solidariedade, para ver como cuidar de nós mesmos, diante de uma ameaça que pode nos infectar, mas também cuidar um do outro, e continuar trabalhando na criação de culturas completamente questionadoras e contrárias ao sistema capitalista, porque é o que está deixando doente toda a humanidade, a natureza, aos ecossistemas e ao planeta.
A pandemia traz consigo uma mutação não apenas biológica, mas societal.
Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da aids e resistido até a invenção da triterapia [coquetel], ele estaria hoje com 93 anos: teria aceitado de bom grado ter se trancado em seu apartamento na rua Vaugirard? O primeiro filósofo da história a morrer pelas complicações geradas pelo vírus da imunodeficiência adquirida nos deixou algumas das noções mais eficazes para pensar sobre a gestão política da epidemia que, em meio ao pânico e à desinformação, se torna tão útil como uma boa máscara cognitiva.
A coisa mais importante que aprendemos com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objeto central de toda política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps (não existe uma política que não seja uma política dos órgãos). Mas o corpo não é para Foucault um organismo biológico dado no qual o poder age. A própria tarefa da ação política é fabricar um corpo, colocá-lo em funcionamento, definir seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades de discurso através das quais esse corpo se torna ficcionalizado até poder dizer “eu”. Todo o trabalho de Foucault poderia ser entendido como uma análise histórica das diferentes técnicas através das quais o poder gerencia a vida e a morte das populações.
Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou “Vigiar e Punir” e o primeiro volume da “História da Sexualidade”, Foucault usou a noção de “biopolítica” para falar de uma relação que o poder estabeleceu com o corpo social na modernidade. Ele descreveu a transição do que chamou de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinar” como o passo de uma sociedade que define a soberania em termos de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gerencia e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas se estendiam como uma rede de poder que transbordava a esfera legal ou a esfera punitiva, tornando-se uma força “somatopolítica”, uma forma de poder espacializado que se estendia por todo o território até penetrar no corpo individual.
Durante e após a crise da Aids, vários autores expandiram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e suas relações com as políticas imunológicas. O filósofo italiano Roberto Espósito analisou as relações entre a noção política de “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”. Comunidade e imunidade compartilham a mesma raiz, munus, em latim o munus era o tributo que alguém tinha que pagar para viver ou fazer parte da comunidade. A comunidade é cum(con)munus (dever, lei, obrigação, mas também oferece): um grupo humano religado por uma lei e uma obrigação comuns, mas também por um presente e por uma oferta. O substantivo immunitas é uma palavra proprietária derivada da negação do munus. Na lei romana, a immunitas era uma dispensação ou um privilégio que exonera alguém dos deveres corporativos comuns a todos. Aquele que foi exonerado estava imune. Enquanto quem estava com fome era aquele que tinha todos os privilégios da vida comunitária removidos.
Roberto Espósito nos ensina que toda biopolítica é imunológica: supõe uma definição de comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre os órgãos isentos de impostos (aqueles que são considerados imunes) e aqueles que a comunidade considera potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos em um ato de proteção imunológica. Esse é o paradoxo da biopolítica: todo ato de proteção implica uma definição de imunização da comunidade, segundo a qual a comunidade se dará a autoridade para sacrificar outras vidas, em benefício da idéia de sua própria soberania. O estado de exceção é a normalização desse paradoxo insuportável.
O vírus atua à nossa imagem e semelhança, apenas reproduz e estende a toda a população as formas dominantes de manejo biopolítico e necropolítico que já estavam trabalhando no território nacional.
A partir do século 19, com a descoberta da primeira vacina contra varíola e os experimentos de Pasteur e Koch, a noção de imunidade migrou do campo do direito e adquiriu significado médico. As democracias liberais e patriarcais-coloniais européias do século XIX constroem o ideal do indivíduo moderno não apenas como um agente econômico econômico livre (masculino, branco, heterossexual), mas também como um corpo imune radicalmente separado que não deve nada à comunidade. Para Espósito, a maneira pela qual a Alemanha nazista caracterizou parte de sua própria população (os judeus, mas também os ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência) como corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos do manejo imunológico. Essa compreensão imunológica da sociedade não acabou com o nazismo, mas, pelo contrário, sobreviveu na Europa legitimando políticas neoliberais para administrar suas minorias racializadas e populações migrantes. É esse entendimento imunológico que forjou a comunidade econômica europeia, o mito de Shengen e as técnicas da Frontex nos últimos anos.
Em 1994, no livro “Flexible Bodies”, a antropóloga Emily Martin, da Universidade de Princeton, analisou a relação entre imunidade e política na cultura americana durante as crises de poliomielite e AIDS. Martin chegou a algumas conclusões relevantes para analisar a crise atual. A autora afirma que a imunidade corporal não é apenas um mero fato biológico, independente de variáveis culturais e políticas. Pelo contrário, o que entendemos por imunidade é construído coletivamente através de critérios sociais e políticos que alternadamente produzem soberania ou exclusão, proteção ou estigma, vida ou morte.
Se repensarmos a história de algumas das epidemias globais dos últimos cinco séculos sob o prisma oferecido por Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin, é possível elaborar uma hipótese capaz de assumir a forma de uma equação: diga-me como sua comunidade constrói sua soberania política e eu lhe direi quais serão as formas de suas epidemias e como você as enfrentará.
Covid 19. Proteção e isolamento.
As diferentes epidemias materializam na esfera do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações em um determinado período. Para colocar nos termos de Foucault, uma epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas aplicadas ao território nacional até o nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma epidemia permite estender a toda a população as medidas de “imunização” política que foram aplicadas até agora de maneira violenta contra aqueles que eram considerados “estrangeiros” tanto dentro como nos limites do território nacional.
A gestão política das epidemias encena a utopia da comunidade e as fantasias imunes de uma sociedade, exteriorizando seus sonhos de onipotência (e os fracassos retumbantes) de sua soberania política. A hipótese de Michel Foucault, Roberto Espósito e Emily Martin não tem nada a ver com uma teoria do complô. Não é a ideia ridícula de que o vírus seja uma invenção de laboratório ou um plano maquiavélico para estender ainda mais políticas autoritárias. Pelo contrário, o vírus atua à nossa imagem e semelhança, nada mais é do que replicar, materializar, intensificar e estender à toda a população, as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já estavam trabalhando no território nacional e em seus limites. Portanto, cada sociedade pode ser definida pela epidemia que a ameaça e pela forma como se organiza frente a ela.
Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu a cidade de Nápoles pela primeira vez em 1494. O empreendimento colonial europeu havia acabado de começar. A sífilis era como a arma de partida para a destruição colonial e as políticas raciais que viriam com eles. Os ingleses chamavam de “a doença francesa”, os franceses diziam que era “o mal napolitano” e os napolitanos que vinham da América: diziam ter sido trazido pelos colonizadores que haviam sido infectados pelos indígenas…
O vírus, como Derrida nos ensinou, é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estrangeiro. Infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI a XIX as formas de repressão e exclusão social que dominavam a modernidade patriarcal-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição dos chamados “casamentos mistos” entre pessoas de diferentes classe e “raça”, bem como as múltiplas restrições que pesavam nas relações sexuais e extraconjugais. O que estará no centro do debate durante e após esta crise é quais serão as vidas que estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas.
A utopia da comunidade e o modelo de imunidade da sífilis é o do corpo branco burguês sexualmente confinado na vida conjugal como núcleo da reprodução do corpo nacional. Portanto, a prostituta tornou-se o corpo vivo que condensou todos os significantes políticos abjetos durante a epidemia: uma mulher trabalhadora e muitas vezes racializada, um corpo fora das normas domésticas e matrimoniais que fez da sexualidade sua forma de produção, a trabalhadora sexual foi visibilizada, controlada e estigmatizada como o principal vetor da disseminação do vírus. Mas não foi a repressão da prostituição ou o confinamento de prostitutas em bordéis nacionais (como Restif de la Bretonne imaginou) que curou a sífilis. Muito pelo contrário. O isolamento das prostitutas apenas as tornou mais vulneráveis à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta de antibióticos e especialmente da penicilina em 1928, precisamente um momento de profundas transformações da política sexual na Europa com os primeiros movimentos de descolonização, o acesso das mulheres brancas ao voto, as primeiras descriminalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética do casamento heterossexual.
Meio século depois, a AIDS era para a sociedade neoliberal heteronormativa do século XX o que a sífilis havia sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos surgiram em 1981, precisamente no momento em que a homossexualidade não era mais considerada uma doença psiquiátrica, depois de décadas de perseguição e discriminação social. A primeira fase da epidemia afetou, prioritariamente, o chamado 4 H: homossexuais, prostitutas (hookers) — profissionais do sexo, hemofílicos e heroinomâmos (heroin users).
A AIDS remasterizou e atualizou a rede de controle sobre o corpo e a sexualidade que a sífilis tecera e que a penicilina e a descolonização, movimentos feministas e gays haviam desarticulado e transformado nas décadas de 1960 e 1970. Como no caso das prostitutas na crise da sífilis, a repressão à homossexualidade causou apenas mais mortes. O que está transformando progressivamente a AIDS em uma doença crônica tem sido a despatologização da homossexualidade, a autonomia farmacológica do Sul, a emancipação sexual das mulheres, o direito de dizer não às práticas sem preservativo e o acesso da população afetada, independentemente de sua classe social ou grau de racialização e a triterapia. O modelo de comunidade/imunidade da Aids tem a ver com a fantasia da soberania sexual masculina, entendida como um direito de penetração inegociável, enquanto qualquer corpo sexualmente penetrado (homossexual, feminino, todas as formas de analidade) é percebido como desprovido de soberania.
Voltemos agora à nossa situação atual. Muito antes do surgimento do Covid-19, já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Antes do vírus, já estávamos passando por uma mudança social e política tão profunda quanto a que afetou as sociedades que desenvolveram sífilis. No século XV, com a invenção da imprensa e a expansão do capitalismo colonial, passou-se de uma sociedade oral para uma sociedade escrita, de uma forma de produção feudal para uma forma de produção industrial-escrava e de uma sociedade teocrática para uma sociedade regida por acordos científicos em que as noções de sexo, raça e sexualidade se tornariam dispositivos de controle necro-biopolítico da população.
Hoje, estamos passando de uma sociedade escrita para uma cibersociedade, de uma sociedade orgânica para uma sociedade digital, de uma economia industrial para uma economia imaterial, de uma forma de controle disciplinar e arquitetônico, para formas de controle microprotético e mídia-cibernético. Em outros textos, chamei de farmacopornográfico o tipo de gerenciamento e produção do corpo e a subjetividade sexual dentro dessa nova configuração política. O corpo e a subjetividade contemporâneos não são mais regulados apenas pela passagem por instituições disciplinares (escola, fábrica, casa, hospital etc.), mas, e acima de tudo, por um conjunto de tecnologias biomoleculares, microprotéticas, digitais e de transmissão. e informação.
A vida no cyberespaço. Foto: Engin Akyurt para Unsplash
No campo da sexualidade, a modificação farmacológica da consciência e do comportamento, a globalização da pílula contraceptiva para todas as “mulheres”, bem como a produção de triterapias, terapias preventivas para a AIDS ou viagra são alguns dos índices de gestão da biotecnologia. A extensão planetária da Internet, o uso generalizado de tecnologias de computação móvel, o uso de inteligência artificial e algoritmos na análise de big data, o intercâmbio de informações em alta velocidade e o desenvolvimento de dispositivos globais de vigilância computacional por meio de satélites são índices dessa nova gestão semiotécnica digital. Se eu os chamei de pornográficos, é porque, em primeiro lugar, essas técnicas de biovigilância entram no corpo, penetram na pele, nos penetram; e segundo, porque os dispositivos de biocontrole não funcionam mais pela repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas pelo estímulo ao consumo e à produção constante de um prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e mais saudáveis somos, melhor somos controlados.
A mutação que está ocorrendo também pode ser a passagem de um regime patriarcal-colonial e extrativista, de uma sociedade antropocêntrica e de uma política em que uma parte muito pequena da comunidade do planeta humano se autoriza a praticar práticas de predação universal a uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. De uma sociedade de energia fóssil a uma sociedade de energia renovável. Também está em questão a transição de um modelo binário de diferença sexual para um paradigma mais aberto, no qual a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva de um corpo não definem sua posição social a partir do momento do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal a formas não hierárquicas de reprodução da vida. O que estará no centro do debate durante e após esta crise é que vidas estaremos dispostos a salvar e quais serão sacrificadas. É no contexto dessa mutação, da transformação das formas de entender a comunidade (uma comunidade que hoje é o planeta inteiro) e da imunidade onde o vírus opera e se torna uma estratégia política.
Imunidade e política nas fronteiras
O que caracterizou as políticas governamentais dos últimos 20 anos, desde pelo menos a queda das Torres Gêmeas, em face das ideias aparentes de liberdade de movimento que dominavam o neoliberalismo da era Thatcher, foi a redefinição de estados-nação em termos neocoloniais e de identidade e um retorno à ideia de uma fronteira física como condição para a restauração da identidade nacional e da soberania política. Israel, Estados Unidos, Rússia, Turquia e Comunidade Econômica Europeia lideraram o projeto de novas fronteiras que, pela primeira vez em décadas, foram não apenas vigiadas ou protegidas, mas foram reinscritas novamente por meio da decisão de erguer muros e construir diques, e defendido com medidas não biopolíticas, mas necropolíticas, com técnicas de morte.
Como sociedade europeia, decidimos nos construir coletivamente como uma comunidade totalmente imune, fechada ao Oriente e ao Sul, enquanto o Oriente e o Sul, do ponto de vista dos recursos energéticos e da produção de bens de consumo, são o nosso armazém. Fechamos a fronteira na Grécia, construímos os maiores centros de detenção ao ar livre da história nas ilhas que fazem fronteira com a Turquia e o Mediterrâneo, e imaginamos que assim conseguiríamos uma forma de imunidade. A destruição da Europa começou paradoxalmente com essa construção de uma comunidade europeia imune, aberta dentro dela e totalmente fechada para estrangeiros e migrantes.
O que está sendo testado em escala planetária por meio do gerenciamento de vírus é uma nova maneira de entender a soberania em um contexto em que a identidade sexual e racial (eixos da segmentação política do mundo colonial patriarcal até agora) está sendo desarticulado. O Covid-19 deslocou as políticas de fronteira que estavam ocorrendo no território nacional ou no super-território europeu para o nível de cada órgão. O corpo, seu corpo individual, como espaço de vida e estrutura de poder, como centro de produção e consumo de energia, tornou-se o novo território no qual as políticas de fronteira agressivas que projetamos e testamos há anos são expressas agora sob a forma de uma barreira na guerra contra o vírus.
ManifestantesRepressão policial
A nova fronteira necropolítica mudou das costas da Grécia para a porta da casa particular. Lesbos começa agora na sua porta da frente. E a borda não para de fechar, ela empurra até ficar cada vez mais perto do seu corpo. Calais explode na sua cara agora. A nova fronteira é a máscara. O ar que você respira deve ser apenas seu. A nova fronteira é a sua epiderme. O novo Lampedusa é a sua pele.
As políticas da fronteira e as rigorosas medidas de confinamento e imobilização que nós, como comunidade, aplicamos nos últimos anos a migrantes e refugiados — até deixá-los fora de qualquer comunidade — agora são reproduzidos nos corpos individuais. Durante anos, nós os tivemos no limbo dos centros de detenção. Agora somos nós que moramos no limbo do centro de retenção de nossas próprias casas.
Biopolítica na era ‘farmacopornográfica’
As epidemias, devido ao seu apelo a um estado de emergência e à imposição inflexível de medidas extremas, também são grandes laboratórios de inovação social, ocasião para uma reconfiguração em larga escala das técnicas corporais e das tecnologias de energia. Foucault analisou a mudança do gerenciamento da hanseníase para o controle da praga como o processo pelo qual as técnicas disciplinares de especializar o poder da modernidade foram implantadas. Se a hanseníase foi confrontada por medidas estritamente necropolíticas que excluíram o leproso e o condenaram à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a reação à epidemia de peste inventou o gerenciamento disciplinar e suas formas de inclusão exclusivo: segmentação rigorosa da cidade, confinamento de cada corpo em cada casa.
Nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta.
As diferentes estratégias adotadas por diferentes países diante da extensão do Covid-19 mostram dois tipos totalmente diferentes de tecnologias biopolíticas. O primeiro, operando principalmente na Itália, Espanha e França, aplica medidas estritamente disciplinares que não são, em muitos aspectos, muito diferentes daquelas usadas contra a praga. Este é o confinamento doméstico de toda a população. Vale a pena reler o capítulo sobre Gestão de Peste na Europa de “Vigiar e Punir” para perceber que as políticas de gestão da Covid-19 da França não mudaram muito desde então. Aqui, funcionam a lógica da fronteira arquitetônica e o tratamento de casos de infecção em ambientes hospitalares clássicos. Essa técnica ainda não mostrou evidências de eficácia total.
Centro de São Paulo às moscas. Foto: Sato do BrasilRuas de São Paulo completamente vazias. Foto: Sato do Brasil
A segunda estratégia, lançada pela Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura, Hong Kong, Japão e Israel, envolve a mudança de controle arquitetônico moderno e técnicas disciplinares para técnicas de bio-vigilância farmacopornográfica: aqui a ênfase está na detecção individual do vírus através da multiplicação de testes e vigilância digital constante e rigorosa dos pacientes através de seus dispositivos móveis de computação. Telefones celulares e cartões de crédito se tornam instrumentos de monitoramento que permitem rastrear os movimentos do corpo individual. Não precisamos de pulseiras biométricas: o celular se tornou o melhor bracelete, ninguém está separado dele ou para dormir. Um aplicativo de GPS informa a polícia dos movimentos de qualquer corpo suspeito. A temperatura e o movimento de um corpo individual são monitorados por meio de tecnologias móveis e observados em tempo real pelo olho digital de um Estado ciber-autoritário para o qual a comunidade é uma comunidade de usuários cibernéticos e a soberania é acima de tudo transparência digital e gerenciamento de big data.
Mas essas políticas de imunização política não são novas e não foram implantadas antes para a busca e captura dos chamados terroristas: desde o início da década de 2010, por exemplo, Taiwan legalizou o acesso a todos os contatos telefônicos telefones em aplicações de encontros sexuais com o objetivo de “impedir” a disseminação da AIDS e prostituição na Internet. O Covid-19 legitimou e ampliou essas práticas estaduais de biovigilância e controle digital, normalizando-as e tornando-as “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No entanto, os mesmos Estados que implementam medidas extremas de vigilância digital ainda não consideram a proibição do tráfico e consumo de animais selvagens ou a produção industrial de aves e mamíferos ou a redução das emissões de CO2. O que aumentou não é a imunidade do corpo social, mas a tolerância cidadã frente o controle cibernético estatal e corporativo.
A gestão política do Covid-19 como forma de gerenciar a vida e a morte desenha os contornos de uma nova subjetividade. O que será inventado após a crise é uma nova utopia da comunidade imunológica e uma nova forma de controle do corpo. O sujeito do tecnopatriarcado neoliberal que o Covid-19 fabrica não tem pele, é intocável, não tem mãos. Ele não troca bens físicos ou toca moedas, ele paga com cartão de crédito. Não tem lábios, não tem língua. Ele não fala ao vivo, ele deixa uma mensagem de voz. Não se reúne ou coletiviza. Ele é radicalmente individual. Não tem rosto, tem uma máscara. Seu corpo orgânico está oculto para existir após uma série indefinida de mediações semi-técnicas, uma série de próteses cibernéticas que servem como máscara: a máscara do endereço de email, a máscara da conta do Facebook, a máscara do Instagram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um teleprodutor, é um código, um pixel, uma conta bancária, uma porta com um nome, um endereço para o qual a Amazon pode enviar seus pedidos.
Linha de Frente no combate ao Covid 19. Foto: Tedward Quinn para Unsplash
A prisão branda: bem-vindo à telerepública da sua casa
Uma das mudanças centrais nas técnicas farmacopornográficas biopolíticas que caracterizam a crise do Covid-19 é que o lar pessoal — e não as instituições tradicionais de confinamento e padronização (hospital, fábrica, prisão, escola) — agora aparece como o novo centro de produção, consumo e controle biopolítico. Já não se trata apenas de a casa ser o local de confinamento do corpo, como foi o caso da administração de pragas. A casa pessoal tornou-se agora o centro da economia de teleconsumo e teleprodução. O espaço doméstico agora existe como um ponto em um espaço controlado por ciber, um local identificável em um mapa do google, uma caixa reconhecível por um drone.
Se eu me interessei pela Mansão Playboy em determinada época, era porque ela funcionava na Guerra Fria como um laboratório onde os novos dispositivos para o controle farmacopornográfico do corpo e da sexualidade estavam sendo inventados. Eles foram estendidos a partir do século 21 e agora estão se expandindo para toda a população mundial com a crise do Covid-19. Quando fiz minha pesquisa sobre a Playboy, fiquei impressionado com o fato de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter passado quase 40 anos sem sair da Mansão, vestido apenas de pijama, roupão e chinelos, bebendo coca-cola e comendo Butterfingers e que ele pode comandar e produzir a revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de casa ou mesmo da cama. Complementada com uma câmera de vídeo, uma linha telefônica direta, rádio e música ambiente, a cama Hefner era uma verdadeira plataforma de produção multimídia para a vida de seus habitantes.
Seu biógrafo Steven Watts chamou Hefner de “um recluso voluntário em seu próprio paraíso”. Adaptado a todos os tipos de dispositivos de arquivamento audiovisual e muito antes da existência do telefone celular, Facebook ou WhatsApp, o fundador da Playboy enviou mais de vinte fitas de áudio e vídeo com mensagens e mensagens, desde entrevistas ao vivo até diretrizes de publicação.
Além disso, Hefner instalou um circuito fechado de câmeras na mansão, onde uma dúzia de playmates também moravam, e podia acessar todas as salas em tempo real a partir de seu centro de controle. Coberto com painéis de madeira e cortinas grossas, mas penetrado por milhares de cabos e cheio daquilo que na época era considerado as mais avançadas tecnologias de telecomunicações (e que hoje parece tão arcaico quanto um tantã), era, ao mesmo tempo, totalmente opaco e totalmente transparente. Os materiais filmados pelas câmeras de vigilância também foram parar nas páginas da revista.
A silenciosa revolução biopolítica que a Playboy liderou envolveu, além da transformação da pornografia heterossexual em cultura de massa, o questionamento da divisão que havia fundado a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a diferença entre a fábrica e o lar e, com ela, a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade. A Playboy aceitou essa diferença ao propor a criação de um novo enclave de vida: o apartamento de solteiro totalmente conectado às novas tecnologias de comunicação das quais o novo produtor semiótico não precisa sair para trabalhar ou fazer sexo — atividades que, além disso, haviam se tornado indistinguíveis. Sua cama giratória era ao mesmo tempo sua mesa de trabalho, um escritório de direção, uma cena fotográfica e um local de encontro sexual, além de uma televisão de onde foi filmado o famoso programa Playboy After Dark.
A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre teletrabalho e a produção imaterial que o gerenciamento de crises do Covid-19 transformou em dever do cidadão. Hefner chamou esse novo produtor social de “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a Playboy lançou foi a erosão (para não dizer a destruição) da distância entre trabalho e lazer, entre produção e sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e transmitida pela mídia da revista e da televisão, era completamente pública, mesmo que o playboy não saísse de casa ou mesmo da cama. Nesse sentido, a Playboy também questionou a diferença entre as esferas masculina e feminina, tornando o novo operador de multimídia o que parecia um oxímoro na época, um homem doméstico.
O biógrafo de Hefner nos lembra que esse isolamento produtivo precisava de apoio químico: Hefner era um consumidor pesado de Dexedrine, uma anfetamina que eliminava a fadiga e o sono. Tão paradoxalmente, o homem que nunca saiu da cama nunca dormiu. A cama como um novo centro de operações multimídia era uma célula farmacopornográfica: só podia funcionar com a pílula contraceptiva, medicamentos que mantinham o nível produtivo em alta e um fluxo constante de códigos semióticos que se tornaram o único alimento verdadeiro que nutria o playboy.
Tudo isso lhe parece familiar agora? Isso tudo parece muito estranho para suas próprias vidas confinadas? Lembremos agora os slogans do presidente francês Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saímos de casa nem do teletrabalho. As medidas biopolíticas de gerenciamento de contágio impostas contra o coronavírus fizeram com que cada um de nós se transformasse em um trabalhador horizontal mais ou menos playboynesco. Hoje, o espaço doméstico de qualquer um de nós é dez mil vezes mais técnico do que a cama giratória de Hefner em 1968. Os dispositivos de teletrabalho e controle remoto estão agora na palma da nossa mão.
Em “Vigiar e Punir”, Michel Foucault analisou as células religiosas do confinamento individual como vetores autênticos que serviram para modelar a passagem das técnicas sangrentas e soberanas de controle do corpo e da subjetividade anteriores ao século XVIII para arquiteturas disciplinares e dispositivos de confinamento como novas técnicas de gestão para toda a população. As arquiteturas disciplinares eram versões secularizadas de células monásticas nas quais o indivíduo moderno nasce pela primeira vez como uma alma trancada em um corpo, um espírito de leitura capaz de ler os slogans do Estado. Quando o escritor Tom Wolfe visitou Hefner, ele disse que morava em uma prisão tão mole quanto o coração de uma alcachofra. Poderíamos dizer que a mansão da Playboy e a cama giratória de Hefner, convertidas em objetos de consumo pop, funcionaram durante a Guerra Fria como espaços de transição nos quais se inventa o novo sujeito protético, ultraconectado, bem como as novas formas de consumo e controle da farmacopornografia e biovigilância que domina a sociedade contemporânea. Essa mutação foi ampliada e ampliada ainda mais durante o gerenciamento de crises do Covid-19: nossas máquinas de telecomunicações portáteis são nossos novos carcereiros e nosso interior de casa tornou-se a prisão branda e ultraconectada do futuro.
Dentro de casa. Cuidado com o vão. Arte: Ocupeacidade. Foto: Sato do Brasil
Mutação ou submissão
Mas tudo isso pode ser uma má notícia ou uma grande oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são os novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as novas células da biovigilância é que se torna mais urgente do que nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e resistência e lançar novos processos antagônicos.
Ao contrário do que se possa imaginar, nossa saúde não virá da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo entendimento da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta. Precisamos de um parlamento do corpo planetário, um parlamento não definido em termos de identidade ou política de nacionalidade, um parlamento dos corpos vivos (vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O evento Covid-19 e suas consequências nos chamam a nos libertar de uma vez por todas da violênciacom a qual definimos nossa imunidade social.
A cura e a recuperação não podem ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social, de fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem emergir de um processo de transformação política. Curarmos a nós mesmos como sociedade significaria inventar uma nova comunidade além das políticas de identidade e fronteira com as quais até agora produzimos soberania, mas também além da redução da vida à sua biovigilância cibernética. Seguir vivo, permanecer vivo como um planeta, contra o vírus, mas também contra o que pode acontecer, significa implementar formas estruturais de cooperação planetária. Como o vírus sofre mutação, se queremos resistir à submissão, também devemos sofrer mutações.
É necessário passar de uma mutação forçada para uma mutação deliberada. Devemos nos reapropriar criticamente das técnicas biopolíticas e de seus dispositivos farmacopornográficos. Antes de tudo, é imperativo mudar a relação de nossos corpos com as máquinas de biovigilância e biocontrole: elas não são apenas dispositivos de comunicação. Temos que aprender coletivamente a alterá-las. Mas também é necessário nos desalinhar. Os governos chamam ao confinamento e ao teletrabalho. Sabemos que, na verdade, eles nos chamam à descoletivização e ao telecontrole. Vamos usar o tempo e a força do confinamento para estudar as tradições de luta e de resistência das minorias que nos ajudaram a sobreviver até agora. Vamos desligar os celulares, desconectar a Internet. Façamos o grande blecaute diante dos satélites que nos observam e imaginemos juntos a revolução que virá.
Educação é liberdade. Arte: BijaRi. Foto: Sato do BrasilNuvens ornamentais. Foto: Sato do BrasilPor do sol em Salvador – BA. Foto: Sato do Brasil
Enquanto contabiliza o maior número de mortos quanto ao novo coronavírus e o colapso do sistema de saúde americano, o presidente Donald Trump investe pesadamente em uma ofensiva contra a Venezuela, e anunciou o envio de forças militares para a região costeira daquele país. Entre os recursos a serem enviados estão destroieres, navios de combate costeiro, embarcações da Guarda Costeira americana, aviões-espiões e helicópteros da Força Aérea.
O anúncio foi feito pelo presidente americano durante uma coletiva de imprensa convocada para tratar de medidas contra a pandemia da covid-19 no país.
Na semana passada, os EUA acusaram Nicolás Maduro e outros líderes do governo venezuelano de comandarem um regime narcoterrorista e ofereceram recompensa por informações que levem à captura do presidente e das lideranças chavistas.
Logo depois, o vice-presidente da Venezuela, Jorge Rodríguez, chamou o anúncio de “uma tentativa de desviar a atenção” do que está acontecendo nos Estados Unidos com a crise de saúde causada pela covid-19.
Jorge Rodríguez, vice-presidente da Venezuela,
repudia o anúncio do Governo Trump
Bolsonaro
O Brasil que enfrenta sérios problemas pela pandemia da covid-19 e a possibilidade de estrangulamento do sistema de saúde nos próximos dias, acaba por demonstrar a sua submissão e alinhamento ideológico ao governo americano, ao lançar, via Itamaraty, uma nota de apoio à ofensiva militar estadunidense. No texto, o governo de Jair Bolsonaro se coloca à disposição para um enfrentamento militar contra um país vizinho que nunca ofendeu ou criou problema diplomático com o Brasil.
É bom lembrar que Bolsonaro e uma ala considerada mais ideológica e alinhada aos grandes empresários, menosprezam constantemente a pandemia chamando-a de “gripezinha”. Ignoram as ações de isolamento social e mitigação, propostas por especialistas, e adotadas por praticamente todos os países atingidos pela covid-19. Nesse momento, qualquer apoio militar a uma ofensiva americana contra o governo venezuelano deixaria o Brasil ainda mais fragilizado perante a eminência do avanço na epidemia no país. Desviaria recursos financeiros que deveriam ser aplicados na saúde, na proteção dos trabalhadores e trabalhadores e da população mais vulnerável. Além do mais, as forças militares deveriam estar somando e ajudando o país nesse momento do combate a pandemia.
Conversa
Antes do anúncio sobre mobilização de uma força militar em direção ao Caribe e ao leste do Pacífico realizado na Casa Branca, Trump e Bolsonaro conversaram pelo telefone. O Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, também participou da conversa ao lado do presidente brasileiro. Segundo relato de Bolsonaro, o assunto era a pandemia causada pelo coronavírus e a solidariedade mútua entre os dois países..
O governo brasileiro, após tomar conhecimento da proposta de uma Moldura Institucional para a Transição Democrática na Venezuela, apresentada em 31/3, pelo governo dos Estados Unidos da América, expressa sua coincidência com os objetivos da proposta e a apoia como instrumento capaz de contribuir para o restabelecimento da democracia na Venezuela.
2.De maneira convergente com a proposta, o governo brasileiro considera que somente a realização de eleições presidenciais livres, justas e transparentes poderá pôr fim à grave crise política, econômica e humanitária por que passa a Venezuela. Considera, igualmente, que a saída de Nicolás Maduro é condição inicial para o processo, uma vez que ele carece de qualquer legitimidade para ser parte numa transição autêntica.
3.Vários dos elementos presentes na proposta têm sido defendidos pelo Brasil individualmente e também pelo Grupo de Lima, de que o país faz parte.
4.A renúncia concomitante do ditador Nicolás Maduro e do Presidente Encarregado Juan Guaidó e o estabelecimento de um Conselho de Estado, eleito pela legítima Assembleia Nacional, com o mandato de organizar eleições livres e justas, sob observação internacional, constituiria importante passo em direção a uma solução definitiva para a crise na Venezuela. No entendimento brasileiro, a garantia de participação no processo de transição de todas as forças políticas comprometidas com a democracia, o repúdio ao crime organizado, a libertação de presos políticos, a restauração das imunidades parlamentares, a restruturação do Conselho Nacional Eleitoral e o restabelecimento de uma Corte Suprema de Justiça legítima são indispensáveis para a reconstrução do Estado de Direito e de um ambiente democrático na Venezuela.
5.O Governo brasileiro está pronto a trabalhar com a comunidade internacional de modo a apoiar o processo de transição democrática na Venezuela, pelo qual tanto anseiam os próprios venezuelanos e os amantes da liberdade em toda a região.