O país socialista que víamos como uma espécie de respiro da Europa, em relação ao crescimento da extrema direita, está sofrendo uma tensão entre as três deputadas negras que foram eleitas – sendo uma delas “cabeça de lista” do partido Livre, Joacine Katar Moreira – e o primeiro representante da extrema direita a ser eleito em Portugal (não reproduzo aqui o seu nome porque já vimos como a publicidade e exploração midiática pode contribuir para a volta e consolidação de ideias fascistas).
Joacine está sofrendo ataques de ódio. Após tantos e tantas terem menosprezado suas convicções e sua capacidade, ao mencionarem como fator preponderante a sua gagueira, ela agora está sendo acusada de não priorizar o país que a naturalizou, Portugal, onde vive desde os 8 anos de idade, pelo fato de não ter se oposto a erguer uma bandeira da Guiné-Bissau, seu país de nascimento (o que fez também com a de Portugal e a da União Europeia). Este foi o ponto de partida tomado como base para uma petição que objetiva o impedimento de sua tomada de posse.
Assistimos incrédulos a estas manifestações e um tanto confusos, afinal não estávamos num “oásis de acolhimento”? “terra pacífica e generosa”, este nosso “país irmão”?
Apesar de Portugal ter sido o inventor do chamado tráfico negreiro e responsável pela morte, tortura e escravização de seres humanos por quase quatro séculos (oficialmente vetado da atividade no final do século XIX), sempre escolheu apostar no marketing da benevolência dando o nome de Descobrimentos às Invasões, que deram início ao perverso processo de anulação e proibição de toda a cultura que não fosse branca europeia, chamado colonização. E assim prosseguiu difundindo a ideia de países irmãos e camuflando o seu racismo e xenofobia aos brasileiros, africanos, ciganos e portugueses com estas origens.
Como o Brasil, que custa a reconhecer seu racismo, por aqui negam que a causa de tanta rejeição seja a cor e origem de Joacine. Os motivos são tão frágeis que fica nos rondando a pergunta: Por que, então, afinal, tanto ataque à primeira deputada negra a encabeçar uma chapa?
Esta pergunta me fez refletir sobre os pilares desta reação e me vem à cabeça dois vídeos bastante representativos do pensamento colonial português, um vídeo antigo de um dos maiores humoristas portugueses, Ricardo Araújo Pereira, e um bem recente, uma reportagem especial da Sic tv.
No primeiro vídeo, de Ricardo Araújo Pereira (que acredito e espero não ter chance de ser reproduzido por ele nos tempos atuais), o humorista reforça esteriótipos negativos como referir um bairro de maioria pobre e negra como bairro de bandidos e pessoas perigosas e o faz utilizando o recurso da black face, que nasce justamente com este fim, de ridicularizar e incutir periculosidade nos negros com o fim de entreter uma plateia de brancos.
O segundo, já distante do ambiente do riso, podemos ver uma reportagem de uma grande rede de televisão portuguesa tratando de um tema extremamente grave, que foi a tragédia ambiental sofrida este ano por Moçambique (também sua ex-colônia) e, enquanto o faz, tem o cuidado de preservar e alimentar também esteriótipos racistas. Em poucas palavras, as escolhas da reportagem traçam uma narrativa clara de manutenção da nostalgia colonial, onde os corpos nus das mulheres negras preparam o nascimento dos bebês feitos por uma parteira portuguesa. A repórter pergunta (e muitas vezes responde pelos entrevistados) sobre os detalhes da miséria em que viviam antes da tragédia, ressalta as diferenças marcando o alto nível de natalidade mesmo em situação de calamidade, não fala com médicos ou autoridades locais, com exceção do responsável por gerir as doações feitas por países europeus, a quem questiona o destino das ajudas. E, com grande apelo imagético, mostra mulheres brancas a colocarem tijolos na construção de casas subsidiadas por elas, representando a emissora (com a ressalva de que o material para os tijolos é recolhido no local e a obra feita pelos próprios moradores como forma de incluir a comunidade). Ainda há uma parte onde um padre católico reza uma missa nos escombros de uma igreja.
Como é que continuamos corroborando sem questionamento com essas narrativas que revelam um país cujo racismo estrutural reforça os feitos heróicos da época áurea nacional sem sequer pensar em fazer um museu da escravatura? É motivo de graça falarmos de um bairro cuja maioria das pessoas, por um processo histórico iniciado por Portugal, tem em comum serem negras e pobres, trabalhadores como nas nossas favelas, é engraçado dizer que são todos bandidos? Não se percebe que é essa a mesma premissa que permite atos de violência nestes locais sem comoção social? Não é perceptível o porquê de tanto ódio à Joacine?
* Caeli da Silva Gobbato nasceu no inverno carioca de 1985, foi atriz, é produtora cultural com ênfase na escrita de projetos e também jornalista. Cursou Estudos Comparatistas na Universidade de Lisboa e estuda o pós-colonialismo.
Por Fernanda Paixão, do Coletivo Passarinho, em Buenos Aires
Com fotos de Vivian Ribeiro e Nuria Alvarez
O que não se nomeia, não existe.
Essa máxima atravessou os debates do 34ª Encontro Nacional de Mulheres, evento anual em que se encontram mulheres e dissidências em uma cidade diferente da Argentina a cada edição. Cerca de 200 mil participantes conformaram o Encontro e habitaram a cidade de La Plata neste último fim de semana, durante os dias 12 a 14 de outubro. E se a questão da linguagem e a importância de nomear como um ato político foi uma constante nesse Encontro, o desfecho desta 34ª edição pode ser considerado exitoso: a partir de agora, o grito uníssono é por um Encontro Plurinacional de Mulheres, Lésbicas, Trans, Travestis, Bissexuais e Não-Bináries.
O que melhor caracteriza os encontros são a coletividade organizada e afetiva e a participação popular, tanto nas inúmeras atividades e marchas nas ruas e nas praças quanto nas dezenas de grupos de discussão nas universidades e escolas sobre temáticas que interpelam às diversidades. Não é à toa que conta, em grande parte, com cobertura colaborativa: o encontro massivo de mulheres e dissidências de diversas nacionalidades debatendo para construir perspectivas e repensar propostas políticas e combater o patriarcado capitalista heteronormativo parece não ser fato noticioso para as grandes mídias argentinas.
Das divergências
Apesar de ser organizado horizontalmente, há uma forte divisão na comissão organizadora entre as que querem manter o nome original, desde sua primeira edição, em 1986, e entre quem segue a campanha “Somos Plurinacional”, que defende a mudança oficial por um nome mais inclusivo e democrático. Dessa forma, estariam nomeadas, devidamente representadas e com suas existências reivindicadas xs migrantes, os povos originários e as dissidências sexuais.
Portanto, um evento tão abrangente em seu conteúdo é permeado por embates partidários e posturas obsoletas que reproduzem as práticas patriarcais que são denunciadas pelas próprias diversidades que participam e compõem os encontros. As grandes divergências que geram os conflitos centrais do Encontro são derivados de uma lógica que a maioria que os conforma quer combater: o conservadorismo, o pensamento colonizador, a opressão do capitalismo e do patriarcado. Em diversos grupos de debate e nos discursos nas praças foi enfatizado categoricamente que o que não se nomeia, não existe. Nomear –ou escolher não nomear– é um ato político.
A cada Encontro fica mais claro que as concepções de “mulher” e “nacional” ficaram no tempo, e não correspondem ao que se dá a cada ano. A comissão organizadora liberou comunicados que deixavam clara a divergência, fincando a bandeira do “Encontro Nacional de Mulheres” como um “nome histórico” referente ao evento. A campanha Somos Plurinacional defende, por sua vez, que a ideia de “nacional” exclui xs migrantes e povos originários e a palavra “mulher” reforça o binarismo patriarcal que não dá conta das diversidades que conformam o encontro. Ainda assim, há um segundo nível de debate, já que os povos originários não seguem a ideia de Estado e, portanto, não se veem unanimemente representados no termo “nação” e, por outro lado, as chamadas dissidências também rechaçam a invisibilização de sua autenticidade ao serem agrupados em um termo tão abrangente e que acaba se esvaziando.
Xs silenciadxs tomam a palavra
Muito ainda há que se debater. Nesse aspecto, o Encontro é um espaço extremamente fértil: foram 114 grupos de discussão com temáticas urgentes, essenciais para construir novas maneiras de pensar, de descolonizar os corpos e as mentes, de relacionar-se unxs com xs outrxs a partir de um lugar novo. Em 2019 deu-se o primeiro grupo temático sobre pessoas não-binárias que, como muitos outros, teve que de desdobrar em dois, três ou quatro salas. Nos encontros também é onde se percebe a demanda que existe por certos temas. Na abertura do segundo dia de discussão, x mediadorx abriu a sessão esclarecendo a importância da mudança oficial do nome do Encontro, porque “o que não se nomeia, não existe”, e que ficava determinado uso da linguagem inclusiva em todo o âmbito da discussão. “Se alguém errar, tudo bem, estamos em desconstrução. É só se corrigir e seguir”, pontuou.
A palavra tem peso e um enorme valor nesse contexto de encontro. Todxs estão em desconstrução e em constante reflexão ao mesmo tempo que promovendo mudanças sociais, seja em um âmbito macro ou micro. A palavra é política, o pessoal é político. Os relatos pessoais compartilhados, gatilhos de lágrimas, sorrisos de cumplicidade e abraços de contenção e por identificação se unem aos questionamentos de falta de representatividade institucional, de amparo legal, de políticas públicas, de direitos sobre o próprio corpo e poder de decisão.
No ato político de tomar a palavra e reivindicar existências, há um movimento de descolonização do pensamento também em relação às próprias formas de relacionar-se afetivamente. Os grupos de discussão desta temática se desdobraram em pelo menos seis grupos, em salas lotadas. Predominaram reflexões sobre formatos de relacionamento, sobre o próprio desejo, o autoconhecimento, sem as amarras e etiquetas sociais, vinculados à responsabilidade afetiva.
Através da fala e da escuta, em um grande e coletivo processo de empatia e compartilhamento, se constroem sentidos e se geram novos pontos de vista. Em um depoimento emocionado no grupo de não-bináries, umx jovem profundamente tocadx por ter em volta a tantas outras pessoas com quem se podia identificar, enfatizou: “Só conheço a uma pessoa não-binária, e na minha cidade é muito difícil, são muito conservadores. Criem laços de confiança, se apoiem, conversem com essas pessoas. É muito importante.”
Apesar dos desencontros
Superando as censuras e os inúmeros problemas logísticos do evento em La Plata, entre dias de chuva e frio, a atmosfera de encontro e coletividade encheu as ruas. Nesses dias de encontro, predomina a realidade de uma vida possível, as ruas repletas de cânticos no lugar do medo, com debates construtivos e a potente vontade de construir um mundo igualitário.
No sábado, primeiro dia do 34º Encontro, a abertura dos grupos de discussão foi seguida de uma marcha contra os travesticídios, que já expressava a notável quantidade de participantes reunidxs para esta edição. Diversas atividades culturais fecharam a primeira noite e, no domingo, deu-se continuidade aos grupos de discussão para, depois, fechar as conclusões que seriam lidas no palco do Estádio Ciudad, no dia seguinte. A tarde de domingo foi reflexo do poder da coletividade, em rádios abertas, apresentações artísticas e assembleias nas praças, banhadas pela luz do sol inesperado em um fim de semana inteiro previsto com chuvas torrenciais.
O Encontro foi, e continua sendo, um grande transformador da história do movimento feminista argentino há 34 anos, com poucas iniciativas comparáveis em outros territórios. Dele, nasceu a campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, de grandes proporções e visibilidade internacional – que quase culminou na aprovação da lei no ano passado, em 2018.
O desfecho foi igualmente uma mistura de tensão e comemoração. Os portões abriram uma hora mais tarde, o que provocou um alvoroço de uma multidão correndo para ocupar o espaço de audiência do estádio. Os agrupamentos políticos levavam enormes bandeiras e lutavam por posicionar-se o mais próximo possível do palco. A confusão resultou em pessoas machucadas, algumas caíram com os empurrões, e, outra vez, um clima anti-sororidade contradisse o propósito do Encontro.
Mas o ponto alto do conflito no evento de fechamento foi a tentativa de impedir o inevitável: o grito em uníssono pela mudança oficial do nome do evento. O público cantava em coro, enquanto integrantes da campanha Somos Plurinacional eram impedidas de falar a respeito no microfone do palco, dedicado, naquele momento, à leitura das conclusões de cada grupo de discussão.
Ao passarem com dificuldade por uma barreira de algumas integrantes da comissão organizadora contrárias à mudança do nome, as jornalistas Claudia Vasquez Haro, professora e militante trans, e Zulema Enríquez, quechua e também docente, anunciaram o caráter inclusivo do evento e a mudança do nome, apoiadas por uma multidão que não deixava de soar o cântico “plurinacional e com as dissidências”. Por aplausômetro, ficou decidido que o encontro era plurinacional e das dissidências, da mesma forma que assim se decidiu a próxima sede do Encontro: na província de San Luis.
“Estamos muito felizes de poder abarcar todos os corpos que habitam esse espaço”, disse Claudia, em entrevista após o anúncio do novo nome. “Isso mostra que temos um feminismo potente, que reúne todas as diversidades, a pluriculturalidade e expressões de forma horizontal. Todas as particularidades que temos, de diferentes mulheres, feminidades e corpos dissidentes, faz o movimento feminista na Argentina ser o mais potente da região latino-americana e caribenha. Estamos felizes que essas questões foram discutidas em todos os grupos de debate, pelas redes sociais, na mídia, e que esse 34º Encontro termina sendo plurinacional.” No palco, Zulema enfatizou: “O feminismo não é mais branco e europeizado, os feminismos são favelados, indígenas, comunitários, trans e travestis, são afro, são do povo.”
A mensagem final deste encontro pode ser lida como um chamado a seguir discutindo, questionando e transformando, até encontrar palavras que correspondam, para dar sentido e linguagem ao movimento das bases e dos pensamentos que, na prática, já está acontecendo. A linguagem é construção e um preciso reflexo da nossa expressão.
A corda acabou arrebentando para o lado mais fraco nestes tempos de retrocesso e absurdos. No caso, o lado mais fraco é a jornalista Etiene Pereira Martins, ex-gerente de Prevenção à Violência da Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção da Prefeitura de Belo Horizonte. No dia 31 de julho ela denunciou em redes sociais ter ouvido de um guarda municipal a frase “Preto bom é preto morto” e publicou mensagem em que sua chefe afirma: “Lugar de negra é limpando chão”. “Pois é, depois de tudo quem o Prefeito Alexandre Kalil exonera? Eu, a mulher negra que não abaixa a cabeça e consciente dos seus direitos e de sua competência afronta o racismo”, afirmou hoje, 18, Etiene, na sua página no Facebook, após tomar conhecimento da publicação de sua exoneração no diário oficial do município. “E quem ele mantém em seu quadro trabalhando armado? O guarda Luzardo Damasceno, que diz pra quem quiser ouvir que ‘preto bom é preto morto’” completou a jornalista. “Quem o Prefeito mantém recebendo 10 mil reais por mês como cargo de sua inteira confiança? A diretora Márcia, racista que escreve e-mail dizendo que mulher preta tem mesmo é que limpar chão. E o que tem de novo nisso? Nada. São quinhentos anos contando uma história repetida. E na Prefeitura de Belo Horizonte o racismo é institucional e oficial assinado pelo Alexandre Kalil”, prosseguiu Etiene. “E o que tem de bom nisso? Passei por tudo isso sem me curvar, sem me vender e sem me submeter. É muito bom andar de cabeça erguida e honrar todas que vieram antes de mim. Vergonha na cara é pra quem tem! As acusações são graves, especialmente em se tratando de dois servidores públicos, um dos quais trabalha armado, e a outra dirige o programa municipal de Prevenção Social ao Crime e à Violência”, observou a jornalista. “Injúria racial e racismo são crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Servidores públicos que os praticarem estão sujeitos à perda do cargo ou função pública, segundo Artigo 16 da Lei 7.716/89”, lembrou Etiene ao encerrar o texto em sua pagina no Facebook. Na época em que Etiene Martins fez a denúncia, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais manifestou sua solidariedade à jornalista e seu repúdio às manifestações de racismo que ela denunciou, esperando que as autoridades municipais apurassem rapidamente os fatos e punissem exemplarmente os criminosos, mas, infelizmente, deu no que deu, a demissão da profissional.
Por Denise Ribeiro, especial para os Jornalistas Livres
Thádia Justino de Oliveira Marques, 30 anos, acordou feliz na segunda-feira, 19 de agosto, pronta pra exercitar seu talento como gerontóloga num novo trabalho. Salário um pouco melhor, carga horário um pouco menor do que no emprego anterior, era o que lhe havia sido prometido. Na Home Angels, maior franquia de cuidadores da América Latina, ela atuaria na unidade do Jabaquara, supervisionando o trabalho dos cuidadores e interagindo com 20 famílias-clientes. O entusiasmo durou pouco. Cinco dias depois ela havia sido demitida pelo gestor da unidade, Sergio Koh. O motivo? Ele achou por bem acobertar um caso escancarado de racismo, que Thádia, uma profissional negra, preferia enfrentar.
Prontuário de idosos “preconceituosos com pessoas negras”
No caso dela, enfrentar seria deixar de visitar clientes que pediam para Sergio não enviar cuidadores negros para suas casas. Ao ler a restrição, anotada no prontuário de um idoso, Thádia sentiu o estômago revirar. O pedido, apesar de absurdo –e criminoso– foi atendido pela Home Angels com a maior naturalidade. Como se fosse a coisa mais normal do mundo escolher um prestador de serviços pela cor e etnia.
“Como pode uma empresa aceitar esse tipo de condição? Não sabem que racismo é crime inafiançável, punido com 2 a 5 anos de prisão?”, pergunta estarrecida.
No início, ela pensou que aquele fosse um caso isolado. Mas depois leu a mesma observação num outro prontuário e, ao comentar sua estranheza com a gerontóloga Juliana, a quem substituiria, ficou sabendo que eram três as famílias com esse tipo de ‘restrição’. “Conversei com o Sergio, expliquei que meu objetivo não era atrapalhar o negócio dele, mas disse que não me sentiria à vontade para visitar aquelas três famílias. Eu faria meu trabalho com prazer nas outras 17 residências, mas, naturalmente, me sentiria constrangida naquelas três casas”, conta.
Mensagem enviada por Thádia a Sergio Koh: “Não será bom para mim.”
Sergio tentou amenizar o problema, dizendo que os moradores iriam respeitá-la, por sua condição de “supervisora e gerontóloga” – ou seja, mais uma discriminação, agora em função do cargo e da profissão. Ela contra-argumentou, reiterando que preferia não ter de passar por nenhum tipo de constrangimento:
“Já sofri com tantas situações de racismo, por que vou correr o risco de ser humilhada, indo a um local onde não somos aceitos?”
O gestor insistia para que ela fizesse as visitas: “Assim você me quebra as pernas”, teria dito Sergio a Thádia, que repetiu a expressão de desagrado do gestor no depoimento prestado a Eduardo Valério, promotor de Justiça e Direitos Humanos, do Ministério Público do Estado de São Paulo.
O imbróglio estava formado. O patrão dizia que a acompanharia naquelas três visitas e que ela não teria com o que se preocupar, porque teria pouco contato com as famílias. Thádia não se sentiu confortável com a proposta. Sugeriu que a gerontóloga responsável pela área administrativa se incumbisse daquela tarefa, sob a supervisão remota dela. Em todo o processo, Thádia deixou Sergio ciente de que, ao acatar a “restrição” imposta pelos clientes, ele havia sido conivente com a discriminação.
Descartar o problema, a solução mais fácil
Inconformado com a situação criada por ele mesmo, Sergio pediu um tempo pra pensar e, na sexta-feira, 23 de agosto, mandou para ela a seguinte mensagem de whattsApp demitindo-a:
“Boa noite Thádia. Pensei ontem e hoje e teremos de abortar nossa negociação infelizmente. Muito obrigado. Por favor, me encaminhe os seus dados bancários para eu depositar esses dias em que me ajudou”.
Mensagem enviada por Sergio Koh para Thádia, dispensando-a: “Teremos de abortar nossa negociação”
Trata-se de uma clara mensagem de dispensa, embora Sergio sustente, por intermédio da advogada Ivone José, que foi Thádia quem pediu demissão. “Saí muito desamparada, muito machucada. Disse a ele que, se eu não houvesse passado pela empresa, eles nem iriam perceber o quanto é grave uma família impor esse tipo de condição. Ele pediu desculpas. Em seguida passamos a negociar os valores que eu tinha a receber”, recorda.
Começou, então, o que o promotor Eduardo Valério chama de “leilão de direitos”. Sergio queria pagar apenas os cinco dias em que Thádia “o ajudou” na empresa. Thádia, no entanto, soube pelo grupo do facebook, Garotas no Poder, onde postou sua história, que o correto seria receber ao menos 15 dias, porque, além de não fazer o contrato provisório de trabalho, conforme a legislação trabalhista exige, ele rescindiu o acordo.
Ao perceber que Thádia estava a par dos seus direitos, Sergio teria perguntado a ela: “Não dá pra melhorar esse valor pra mim?”. Ela argumentou que não, porque estava sem perspectiva de arrumar outro emprego a curto prazo e havia sido bastante prejudicada com a demissão. “Eu disse que, além da perda financeira, sentia que a cor da minha pele havia influenciado na decisão dele de me dispensar”, conta. Sergio insistia em negociar, para menos, o valor devido mas, diante da firmeza de Thádia em não ceder, acabou lhe pagando os 1.100 reais equivalentes a 15 dias de trabalho.
A versão do outro lado
Procurado pela reportagem, Sergio Koh, a princípio, se recusou a falar. Uma semana depois, pediu para a advogada Ivone José divulgar sua versão da história. Segundo ele, a restrição que incomodou Thádia é um caso isolado “de um idoso senil, que sofre de Alzheimer” e que foi aceita pela empresa “para proteger seus cuidadores de eventuais constrangimentos”. Afirmou, ainda, que foi Thádia quem “manifestou o desejo de sair da empresa”, porque se sentiu desconfortável com a situação.
Já a Home Angels enviou uma nota protocolar, via assessoria de imprensa, lamentando o ocorrido. A franqueadora afirma condenar “qualquer prática de preconceito e discriminação seja por raça, cor e/ou religião na rede”, diz que defende o “respeito às pessoas” e trabalha para que todos os franqueados “atuem da melhor forma possível em suas unidades”. A empresa também pede “sinceras desculpas para a colaboradora que se sentiu ofendida”e reitera que “não apoia ou incentiva esse tipo de prática”.
No entanto, ao visitar a página no facebook do sócio-diretor da Home Angels, Marco Imperador, fica claro que ele, assim como a maioria dos eleitores do Bolsonaro, acha que o racismo perdura por culpa da esquerda. Num vídeo postado por ele, um homem negro elegante e bem articulado afirma que “a esquerda não quer resolver o racismo”. Só falta dizer que a situação de pobreza e martírio a que a população negra vem sendo submetida desde os tempos da escravidão é um delírio da esquerda.
Culpa da esquerda?
Desigualdade ignorada pelos brancos
Apenas para ilustrar a precariedade em que vivem os negros brasileiros, relatório da Oxfam revelou alguns dos aspectos da desigualdade salarial que os afeta. A Oxfam Brasil faz parte de uma confederação global de 19 organizações que atuam em 93 países. Seu objetivo é combater a pobreza, as desigualdades e as injustiças em todo o mundo.
Usando como base a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a Oxfam demonstrou que, em média, os negros ganhavam, em 2016, 57% dos salários dos brancos (R$ 1.458 contra R$ 2.567). A desigualdade aumentou em 2017 (essa proporção caiu para 53%), quando o salário médio de um negro (R$ 1.545) era praticamente a metade do de um homem branco, que recebia R$ 2.924.
Entre os mais ricos, a diferença é maior que o dobro: R$ 13.754 de salário dos brancos contra R$ 6.186 dos negros. Até entre os mais pobres, os negros ficam em desvantagem: o salário de um branco é, na média, 46% maior do que o rendimento de um negro pobre: R$ 965 contra R$ 658.
O que diz a legislação
Ao tomar conhecimento da história de Thádia, a OAB-SP se manifestou em nota assinada pela advogada Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, presidente da Comissão de Igualdade Racial da entidade. A OAB entende que, “caso os fatos imputados sejam comprovados” todos os envolvidos praticaram discriminação racial, nos termos do Estatuto da Igualdade Racial.
Na visão da entidade, o tipo de conduta adotada pela Home Angels “atinge todos os funcionários da empresa que se autodeclaram negros, pois eles estão sendo discriminadas em razão de sua cor”. Caso sejam comprovados os fatos narrados, o empregador deverá responder por crime de racismo, conforme previsto no art. 4º, §1º, III da Lei 7716/89 – mais conhecida como Lei Caó, em homenagem ao autor da proposta, o ex-vereador, jornalista e advogado Carlos Alberto Caó Oliveira dos Santos.
Não enviar cuidadores negros para as casas dos clientes, por motivo de discriminação de raça ou cor caracteriza “tratamento diferenciado no ambiente de trabalho” e incita o preconceito étnico-racial, que por sua vez é vedado pelo art. 20 da Lei Caó. Importante notar, se comprovados os fatos, que a empresa está sujeita aos termos da Lei nº 14187/2010, que proíbe atos de coação direta ou indireta sobre o empregado em razão de discriminação étnico-racial em seu art. 2º, VI. E, pela CLT, a empresa é expressamente proibida de conduzir as relações de trabalho desta forma, nos termos do art. 373. A Home Angels poderá ter de responder por todos estes crimes. Já o gestor Sergio Koh, que reforçou tudo isso contra Thádia e ainda a dispensou em razão da situação, se condenado, pode vir a ser preso.
No entanto, parece muito distante a probabilidade de qualquer um dos envolvidos ser punido, em razão da dificuldade de se comprovar a prática de racismo no Brasil. Em 2017, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) reuniu no livro Acusações de racismo na capital da República estatísticas dos crimes raciais no DF. Entre 2010 e 2016, o número de denúncias subiu 1.190%, chegando a 129. Destas, apenas sete foram de racismo. As outras 122 eram de injúria racial.
No entender da OAB, o Brasil protege ativamente o sistema que torna essa estrutura discriminatória possível. “É difícil mudar um sistema fundado e desenvolvido na necropolítica, ou seja, a gestão da morte como modelo de governança”, afirma a nota. Em 2006, o Brasil, inclusive, foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a indenizar uma mulher vítima de racismo. Dentre outras medidas de reparação, o país teria de realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para o combate ao racismo e se comprometer a educar funcionários de justiça e da polícia para evitar discriminação nas investigações.
Segundo a OAB, houve muito pouco avanço no que diz respeito a essas recomendações, a vítima naquele caso não foi indenizada e a falta de esclarecimento entre os agentes da justiça e da segurança pública é gritante. “A violência policial só aumenta contra pessoas negras, advogadas negras são algemadas no exercício de suas funções. Chegamos ao cúmulo de ter uma juíza registrando o racismo em sentença, afirmando que o réu branco não podia ser facilmente confundido porque não tinha o estereótipo de bandido”, exemplifica a nota.
O Ministério Público acompanha de perto o caso de Thádia, até porque a denúncia independe da vontade da vítima de prestar queixa. É o que se chama no jargão jurídico de “ação penal pública incondicionada”, por afetar não apenas um indivíduo, mas toda a coletividade. Nos crimes de injúria racial, em que o agressor utiliza aspectos raciais para ofender a vítima, a intervenção do Ministério Público depende da manifestação expressa da vítima.
Um caminhão de provas
Para que um caso de racismo no trabalho se transforme em ação, é necessário que a vítima colete o maior número de evidências possível: emails corporativos contendo ofensas, prints de telas, mensagens de whatsApp, gravações, fotos de documentos em que apareçam anotações discriminatórias. No caso de Thádia, as provas apresentadas parecem não ser suficientes para abrir um processo contra a Home Angels.
O promotor Eduardo Valério, que está há 10 anos à frente da Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo, admite que as provas apresentadas por Thádia são frágeis. “O documento mais contundente que ela tem é a cópia do prontuário em que consta o pedido de restrição aos cuidadores negros. No entanto, não posso usar essa prova para não prejudicá-la profissionalmente. Prontuários de pacientes são sigilosos”, explica.
Antes de ir prestar depoimento no Ministério Público, Thádia tentou fazer um boletim de ocorrência na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI), no centro de São Paulo. Ali também foi informada de que as provas coletadas eram insuficientes.
O Ministério Público está analisando os fatos e espera que Thádia consiga convencer ao menos uma gerontóloga ex-funcionária da Home Angels a depor em seu favor. “Seria um avanço significativo ter o depoimento de mais uma pessoa reiterando a versão dos fatos narrados por ela”, argumenta Eduardo Valério.
Enquanto isso não acontece, Thádia aguarda uma luz no seu caminho. Um novo emprego já seria de bom tamanho para tirá-la do desânimo e da desesperança.
A disputa pelo comando do Palácio Thomé de Souza, sede da Prefeitura de Salvador, acontecerá apenas em outubro de 2020, daqui um ano e dois meses, mas pelo menos oito pré-candidatos negros já se lançaram como alternativas para ocupar o cargo mais importante da capital baiana.
A ebulição de pré-candidaturas de lideranças do movimento negro acontece no bojo de mobilizações e debates públicos promovidos na capital baiana, como o lançamento de campanhas públicas para incentivar o lançamento de postulações ao Executivo e ao Legislativo municipal.
As mobilizações são uma resposta ao fato de que a cidade, que possui 85% de população negra e é a mais negra fora do Continente Africano, nunca conseguiu eleger pelo voto popular um prefeito negro.
Apenas o jurista Edvaldo Brito, hoje vereador da cidade, foi prefeito de Salvador, mas biônico (ou seja, indicado pelo então governador Roberto Santos, durante a ditadura militar) e por um período de apenas oito meses.
Além do movimento ‘Eu Quero Ela – Salvador Cidade Negra’, que acabou ganhando o protagonismo das ações, também promoveram debates as articulações de movimentos ‘Agora é ela, Bicão na Diagonal’, que se reúne em torno do Fórum Marielles, e ‘Plataforma Salvador Negra 2020’.
Após as movimentações, que incluíram um seminário com possíveis postulantes, pré-candidatos dos principais partidos da base do governo Rui Costa (PT) lançaram pré-candidaturas. Só no PT, três nomes estão colocados na disputa oficialmente. A socióloga e militante do movimento de mulheres negras Vilma Reis, o vereador Moisés Rocha e o deputado federal Valmir Assunção são postulantes ao cargo de prefeito.
Silvio Humberto (PSOL)
Raimundo Calixto (PSOL)
Moisés Rocha (PT)
Hilton Coelho (PSOL)
Vilma Reis (PT)
Olívia Santana (PCdoB)
Valmir Assunção (PT)
Vovô do Ilê (PDT)
Além deles, também colocaram seus nomes o presidente e fundador do bloco afro Ilê Aiyê Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê (PDT), o vereador de Salvador e presidente municipal do PSB Silvio Humberto, a deputada estadual Olívia Santana (PCdoB), e dois quadros do PSOL (o deputado estadual Hilton Coelho e o sindicalista Raimundo Calixto).
O vereador Edvaldo Brito (PSD) também pode ser candidato, de acordo com comentários de bastidores, mas a reportagem do Mídia 4P não conseguiu confirmar com ele nem com sua assessoria se a informação procede. Caso haja a confirmação, o número de pré-candidatos negros sobe para nove.
Também está fora da conta das pré-candidaturas negras o deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante), que, apesar de ser da base do governo Rui Costa, não tem identificação com o movimento negro.
Se seu nome fosse contado e o de Edvaldo Brito for confirmado, o número de pré-candidatos considerados negros chegaria a 10, um recorde histórico. Nunca antes Salvador teve tantas pré-candidaturas com essa característica.
O assunto foi superado, para a base ‘netista’, com a eleição de Célia Sacramento (à época no PV, hoje na Rede Sustentabilidade) na posição de vice-prefeita em 2012 – o que depois terminou em brigas públicas, acusação de corrupção e um rompimento político traumático.
Tia Eron e Márcio Marinho, dupla do PRB da Igreja Universal / Foto: O Globo
Dentro do próprio PRB, na melhor das hipóteses, pode sobrar para Marcio Marinho, que é presidente estadual do partido, ocupar o posto de vice na chapa encabeçada pelo deputado federal João Roma, que é branco.
A candidatura, contudo, teria a função apenas de ‘cumprir tabela’ no xadrez eleitoral, diante da extinção das coligações – isso se a postulação existir de fato.
Marinho inclusive já foi candidato a vice na chapa de ACM Neto em 2008, quando foram derrotados pelo prefeito João Henrique, que se reelegeu.
2012 foi melhor ano para negros na disputa pelo Executivo, até então
Foi justamente em 2012, ano em que Célia Sacramento foi eleita vice-prefeita de Salvador, o melhor desempenho de lideranças negras nas eleições municipais da capital baiana para o Executivo.
Naquela época, além da própria Célia, praticamente todos os candidatos a vice-prefeito/a foram negros ou negras. Foi o caso da própria Olívia Santana, que na época concorreu como vice na chapa do candidato do PT Nelson Pelegrino, sendo derrotados no segundo turno para ACM Neto.
Márcio Marinho também foi candidato à época, pelo PRB. O candidato Mário Kertész (à época no PDMB) também teve um negro, Nestor Neto, como candidato a vice em sua chapa. Além da candidatura negra do PSOL à Prefeitura, com a figura de Hamiton Assis.
Ainda faltam dar entrevista os deputados estaduais Hilton Coelho e Olívia Santana, o deputado federal Valmir Assunção, o sindicalista Raimundo Calixto e o vereador e ex-prefeito de Salvador Edvaldo Brito.
Hilton Coelho marcou para falar com a reportagem nesta quinta-feira, dia 22. Os demais ainda não confirmaram suas agendas para a entrevista.
Na última sexta-feira, dia 11 de julho, o promotor de justiça criminal Cassio Roberto Conserino, do Ministério Público do Estado de São Paulo, denunciou à Justiça que 19 diferentes lideranças ou membros de movimentos de luta por moradia, entre os quais Carmen Silva Ferreira e Preta Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), fazem parte de uma suposta “organização criminosa”, inclusive com ligações com a facção PCC. Não dava para esperar nada diferente de Conserino.
Em documento sigiloso a que os Jornalistas Livres tiveram acesso, o promotor afirma que os membros das diversas ocupações da cidade “associaram-se entre si” de maneira ordenada, em vários grupos, com divisão de tarefas, ainda que informalmente, “com o objetivo de obter direta e indiretamente vantagens de cunho econômico, mediante a prática de incontáveis extorsões”.
Cassio Roberto Conserino, autor da denúncia, foi um dos promotores que apresentaram a denúncia criminal sobre o tríplex atribuído ao ex-presidente Lula, transformando-o em réu. Anticomunista militante, em março desse ano, Conserino foi condenado a pagar indenização de R$ 60 mil por danos morais a Lula por causa de um post no Facebook em que se referia ao ex-presidente como “encantador de burros”, expressão que o juiz Anderson Fabrício da Cruz, da 3ª Vara Cível de São Bernardo do Campo, em São Paulo, disse tratar-se “de conteúdo ofensivo, pejorativo e injuriante”, conforme “deveria ser do conhecimento de um experiente integrante do sistema de Justiça”.
No caso dos movimentos de moradia, o promotor Conserino baseou a denúncia no inquérito policial que tinha como propósito investigar responsabilidades pelo incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por pessoas sem casa, no dia 1º de maio de 2018. Na tragédia, sete pessoas perderam a vida. O Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), dirigido por Ananias Pereira dos Santos, era quem coordenava aquela ocupação.
O problema é que o inquérito policial e depois a denúncia do promotor Conserino, em vez de apurar as irregularidades que por ventura existissem no prédio sinistrado, resolveram mover uma cruzada contra todos os movimentos de moradia que atuam no centro da cidade de São Paulo.
Estariam a serviço da especulação imobiliária? Dos proprietários de imóveis vazios que ficam anos e anos sem pagar IPTU, cheios de lixo, focos da criminalidade, de ratos e doenças?
Conserino denuncia várias lideranças, entre as quais, como dito acima, as lideranças do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), por supostamente extorquir, mediante violência, moradores pobres das ocupações. Se pelo menos tivesse se dado ao trabalho de andar alguns quarteirões entre o Fórum e a Ocupação 9 de Julho, dirigida por Carmen Silva Ferreira, o Promotor Anticomunista Militante Conserino teria se surpreendido com a organização, a limpeza, a habitabilidade de um prédio que até três anos atrás era apenas um depósito de lixo, doenças e ratos (fora os dependentes químicos que utilizavam o local para consumir drogas).
O prédio já foi inspecionado pela Prefeitura e até premiado internacionalmente por sua atuação na solução do problema de moradia em São Paulo. Mas, para o Promotor Anticomunista Militante Conserino, todos os gestores e movimentos seriam, como diz o povo, “farinha do mesmo saco”.
Depoimento de Chucre sobre Carmen
Ocorre que os movimentos populares por moradia são diversos. O secretário de habitação de São Paulo, Fernando Chucre, sabe disso. À época do incêndio do Wilton Paes, por exemplo, declarou que aquele grupo que o coordenava “não participa da política habitacional, como os demais movimentos que, inclusive, são parte da solução desse problema”. E na semana passada, em depoimento aos Jornalistas Livres, afirmou sobre Carmen Silva: “Ela é uma mulher extremamente segura e envolvida com o movimento que administra. Eu tenho muito respeito por ela.” E não só.
Chucre apontou que “o movimento de Carmen conseguiu o retrofit [reforma de imóvel antigo] para o Hotel Cambridge”. De fato, agora renomeado como Residencial Cambridge, o imóvel ganhou edital para financiamento da Caixa Econômica Federal, dentro do programa Minha Casa Minha Vida-Entidades. A obra segue sob severas e constantes fiscalizações do poder público. Importante dizer: ao contrário do que imaginam os críticos dos movimentos sociais por moradia, nada vem de graça. Todos os futuros moradores vão pagar pelo financiamento que, por sinal, já colabora com os impostos da cidade ao arcar com custos de IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano.
DEPOIMENTOS ANÔNIMOS
A denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino é baseada em depoimentos anônimos e interceptações telefônicas que, coisa gravíssima, provam que havia discussões entre vizinhos! É isso o que o promotor cita à guisa de provar que todos os dirigentes dos movimentos de moradia extorquem dinheiro dos moradores “mediante grave ameaça e com o intuito de obter para si indevida vantagem econômica, a fazer alguma coisa, ou seja, pagar alugueres e outras verbas para entrar e permanecer em edifícios invadidos pelos grupos criminosos”. Carmen Silva Ferreira já foi acusada desse mesmo crime e foi inocentada em 2018, porque ficou comprovado que as pequenas contribuições pagas pelos moradores das ocupações que ela dirige (R$ 200 por mês de cada família) são revertidas em melhorias nos imóveis ocupados.
Além disso, a denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino padece do vício de ser in-in (incompetente e inventiva). Por exemplo, diz que as ocupações são habitadas por “estrangeiros em sua maioria”, um erro crasso, sanável com meia hora de trabalho sério. Acusa o movimento de Carmen Silva Ferreira, o MSTC, de estar por detrás da ocupação do Cine Marrocos, fechada em 2016 depois de se terem encontrado armas e drogas no poço do elevador. Ali quem atuava era o Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS), mas a letrinha dissonante não incomodou o Promotor Anticomunista Militante Conserino. Carmen nunca nem sequer pôs os pés no Cine Marrocos. Se tivesse conversado com o delegado de polícia que atuou no Cine Marrocos e assina o inquérito sobre a moradia, o Promotor Anticomunista Militante Conserino teria evitado o vexame de confundir movimentos tão diferentes (ou será que esse é mesmo o propósito?). E há várias mentiras como essa na acusação, revelando, mais uma vez, o caráter persecutório das denúncias do Promotor Anticomunista Militante Cassio Conserino.
Entre as 19 prisões pedidas pelo promotor, quatro já estão sendo cumpridas: a da cantora, atriz e produtora cultural Preta Ferreira, formada em publicidade, do educador Sidney Ferreira, ambos do MSTC, e de Ednalva Silva Franco Pereira e Angélica dos Santos Lima, do Movimento de Moradia para Todos (MMPT). Todos negros e pobres.
Para comentar a denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino, Jornalistas Livres entrevistaram Lúcio França, advogado que representa Carmen Silva, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro.
💡 💡 💡 💡 💡 💡
Jornalistas Livres — O senhor poderia comentar a denúncia contra Carmen Silva Ferreira e seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), apresentada no dia 3 de julho na segunda promotoria de Justiça Criminal Ministério Público pelo promotor Cassio Conserino?
Doutor Lúcio França — É muito importante ir um pouquinho mais atrás, onde começou tudo isso. Houve um processo com as mesmas acusações contra Carmem Silva Ferreira em 2017. Nesse processo, houve uma investigação sobre esses mesmos fatos agora descritos na atual denúncia do promotor Cassio Conserino. Ou seja, investigou-se se Carmem Silva Ferreira cometeu atos de extorsão, cobranças indevidas, se ameaçou ou coagiu moradores das ocupações. Ficou comprovado que isso nunca existiu. Quando uma pessoa entra no movimento dirigido por Carmen, ela é orientada sobre as regras de conduta, os regulamentos e os procedimentos internos das ocupações dirigidas pelo MSTC. Por exemplo: não se admite violência doméstica de nenhuma forma; mães não podem deixar seus filhos trancados no apartamento e sair para trabalhar ou se divertir; todas as crianças são obrigadas a frequentar escolas; não se pode consumir drogas na ocupação; tráfico, nem pensar. As contribuições para a manutenção do prédio são decididas em assembléias e todas as famílias devem colaborar ou justificar eventuais faltas; há uma escala de limpeza dos andares e todas as famílias precisam contribuir com a higiene do espaço comum, e por aí vai. No processo que se iniciou em 2017, tudo isso foi juntado, e Carmen Silva Ferreira foi inocentada. Estamos assistindo agora a uma reedição daquele processo que ocorreu em 2017 e a denúncia atual do promotor de justiça Cassio Conserino cita “coincidentemente” contra a Carmen as mesmas testemunhas acusadoras que foram desqualificadas no processo que resultou na absolvição da liderança do MSTC.
Jornalistas Livres — Quem são essas pessoas que acusam Carmen?
Doutor Lúcio França — São dissidentes do MSTC, o movimento dos sem-teto do centro. São pessoas que queriam ocupar o lugar da principal dirigente do movimento, que nutriam por ela uma profunda inveja da liderança que ela conquistou com o movimento, e que se ligaram a pessoas inidôneas para acusá-la. É importante falar que Carmen é a liderança principal da Ocupação que se instalou no antigo Hotel Cambridge e que agora se encontra em fase de reforma para ser transformado moradia de interesse social, isso tudo com o financiamento da Caixa Econômica Federal. A história desse movimento de moradia acabou transformada no filme da premiadíssima diretora Eliane Caffé, “Era o Hotel Cambridge”, de 2016.
Jornalistas Livres — Como o senhor avalia a prisão temporária pedida para Carmen Silva Ferreira e a prisão preventiva de seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira Silva?
Doutor Lúcio França — É importante ressaltar que o promotor que atuou no primeiro processo chegou a pedir a prisão de Carmen por três vezes na primeira instância e foi recusado. Ele então foi à segunda instância e os desembargadores por unanimidade recusaram-se a prendê-la. Ao final, viu-se que a prisão não cabia mesmo, já que ficou comprovada a inocência de Carmen e ela foi absolvida. Quanto aos demais acusados do MSTC, os filhos de Carmen —Preta Ferreira e Sidney Ferreira—, é preciso dizer que Sidney nem mora mais em ocupações, tendo fixado residência em outra cidade na região metropolitana de São Paulo. Quanto a Preta Ferreira, ela nunca fez qualquer ameaça contra qualquer pessoa, morador de ocupação ou não. As pessoas que disseram terem sido ameaçadas por Preta estão mentindo e sabem disso. Aliás, na verdade, é bem o contrário o que se passou. Foi Preta Ferreira quem foi ameaçada, bem como toda a família de Carmen, por essa denunciante.
Jornalistas Livres — Como se chegou, então, a essas prisões?
Doutor Lúcio França — A nossa leitura é a seguinte: no meio desse primeiro processo contra a Carmen ocorreu a tragédia com o edifício Wilton Paes de Almeida (1º de maio de 2018), no Largo do Paissandu, centro de São Paulo. Trata-se de um antigo prédio da Polícia Federal que ficou abandonado por anos e acabou ocupado. Essa ocupação, entretanto, nunca fez parte do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), mas sim de um tal Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), coordenado e dirigido por uma pessoa de nome Ananias Pereira dos Santos. São movimentos absolutamente distintos. Mas, a partir do desabamento e da tragédia Wilton Paes de Almeida, onde morreram sete pessoas, foi instaurado inquérito para apurar as responsabilidades. Era isso mesmo o que deveria ser feito. O problema foi aproveitarem-se da tragédia para prejudicar Carmem e outras lideranças idôneas e honestas do movimento de moradia. A polícia em primeiro lugar e o promotor, logo depois, colocaram todos os movimentos que atuam no centro na mesma vala comum da criminalidade. Trata-se de uma clara manipulação, já que Carmen Silva Ferreira é uma liderança reconhecida nacional e internacionalmente. Agora mesmo, é uma das convidadas da Bienal de Arquitetura de Chicago (EUA), o que mostra seu prestígio internacional. No ano passado, a Bienal de Veneza instalou-se na Ocupação Nove de Julho, dirigida por Carmen, exatamente por tê-la como modelo de intervenção urbana levada a cabo com o movimento social. Carmem dá palestras no Brasil e no mundo inteiro sobre direitos humanos e o Direito à Cidade. Enfim este é o trabalho dela, que foi muito bem explicado no primeiro processo, aquele do qual ela saiu absolvida. O juiz que decidiu pela absolvição desqualificou assim as testemunhas mentirosas que visavam colar na pessoa de Carmem a pecha de alguém que extorque, ameaça e constrange pessoas. Uma mentira completa.
Jornalistas Livres — Fiquemos no caso de Carmen Silva Ferreira: como é possível que ela esteja sendo acusada novamente de cometer delitos pelos quais ela já foi processada e julgada inocente?
Doutor Lúcio França — Quanto ao fato de Carmen estar sendo acusada pelos mesmos crimes pelos quais já foi absolvida do primeiro processo, isso configura-se uma clara ilegalidade. O princípio non bis in idem (não repetir sobre o mesmo) estabelece que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato delituoso. O bis in idem no direito penal seria a não observância desse princípio, acusando e julgando uma pessoa pelo mesmo crime.
Jornalistas Livres — E por que isso está ocorrendo?
Doutor Lúcio França — Isso se deve ao fato de que as acusações contra Carmem e filhos são acusações políticas, típicas de ditaduras. Por exemplo, isso ocorreu no Brasil durante a ditadura militar entre 1964 e 1985. Caetano Veloso e Gilberto Gil, para ficar em dois casos apenas, foram presos em São Paulo aqui na região da Praça da República pelo pessoal do Segundo Exército. Eles perguntaram por que estavam sendo presos, mas só ficaram sabendo anos depois que contra eles pesava a acusação de terem pego uma bandeira do Brasil e escrito, no lugar do Ordem e Progresso, a frase do [pintor, escultor, artista plástico e performático] Hélio Oiticica “Seja marginal, seja herói”. A acusação, portanto, seria eles terem “ultrajado a bandeira nacional”. Um mero pretexto. Foi esse o motivo alegado para a prisão de oito meses incomunicáveis, ao fim dos quais Gil e Caetano foram obrigados a se exilarem em Londres. Então, é assim que nós temos hoje gente disposta a criar fatos ficcionais para acusar pessoas honestas, abrir um processo, destruindo vidas e reputações. Carmen teve a sorte de encontrar um juiz justo na primeira vez, alguém que analisou as provas e decidiu pela sua absolvição.
Jornalistas Livres — Como o senhor avalia o fato de terem sido decretadas as prisões de várias lideranças de moradia, entre os quais Sidney e Preta? Como é possível que a prisão de Carmen tenha sido pedida e concedida por um juiz se antes, mediante as mesmas provas e as mesmas testemunhas, a prisão dela foi recusada por três vezes e depois também recusada na segunda instância?
Doutor Lúcio França — Agora, chegaram de repente e decretaram a prisão de Carmen. Não poderia ser assim. Por que não houve flagrante, nenhuma acusação grave envolvendo a figura dela. Quando houve a queda do Wilton Paes de Almeida, todas as lideranças do movimento de moradia começaram a ser chamadas à polícia para serem ouvidas. Eu mesmo fui com a Carmen e ela deu todas as explicações pedidas a respeito de seu movimento, o MSTC. Ou seja, ela já foi ouvida. Preta, também. Então, não houve obstrução da Justiça não houve fuga. Carmen e seus filhos, que têm endereço domiciliar e trabalho conhecido, se apresentaram com a cabeça erguida para fornecer todas as explicações pedidas pela autoridade policial. Tudo estava correndo em segredo de Justiça, mas –estranhamente— há três meses essas prisões foram anunciadas no programa “Fantástico” da TV Globo. Como é que é um canal de televisão, num programa de domingo, uma das maiores audiências, anuncia que haverá prisões dois meses depois? Trata-se de uma coisa montada. Trata-se de uma questão política porque querem criminalizar as lideranças da luta por moradia digna na cidade de São Paulo. O objetivo é depois acabar com os próprios movimentos de moradia.
Jornalistas Livres — Isso não se configura numa terrível forma de violência do Estado contra pessoas pretas pobres?
Doutor Lúcio França — Sim é uma violência de Estado. A filha de Carmem, Preta Ferreira, estava iniciando uma carreira como cantora, atuava como atriz e produtora cultural. Ela, de repente, foi arrancada de seu trabalho e de sua vida e colocada atrás das grades por uma denúncia absolutamente vazia. Isso é uma violação de direitos. O mesmo ocorre com Sidney. Mas não podemos generalizar. O próprio judiciário de São Paulo já absolveu Carmen uma vez antes. Hoje, estamos vivendo retrocesso muito grande em todo o país e sabemos que judiciário é muito conservador em sua maioria. Mas, “nem todas as mães são Marias e nem todos os juízes são iguais”.
Jornalistas Livres — O movimento por moradia começou a se organizar na época do ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, um homem de direita. Mas nem mesmo Maluf pedia a prisão das lideranças que lutavam por moradia digna. Maluf era contra a luta por moradia e pedia a reintegração de posse, mas nunca ousou prender lideranças por serem lideranças…
Doutor Lúcio França — É por isso que nós consideramos as prisões de Carmen, Preta e Sidney como prisões políticas. São prisões de pessoas primárias, sem antecedentes criminais, com endereços e trabalhos conhecidos, que não têm envolvimento criminal algum, muito menos com crime organizado, como eles querem fazer crer. São prisões totalmente políticas. Nós acreditamos na inocência de Carmen Silva Ferreira, de Preta Ferreira e de Sidney Ferreira. Pela vida que eles têm, por tudo que eles fazem pela população mais pobre da cidade de São Paulo, até sacrificando suas vidas pessoais em função de uma causa.
Jornalistas Livres — Cassio Conserino, o promotor que denuncia agora as lideranças de moradia é o mesmo promotor que, em 2016, queria denunciar Lula na investigação do tríplex do Guarujá, que usou as redes sociais para chamar o ex-presidente de ‘encantador de burros’ e que acabou condenado a a pagar indenização de R$ 60 mil a Lula por danos morais. É coincidência o fato de, de repente, um promotor anticomunista militante seja alçado à condição de promotor de Justiça em um caso como este?
Doutor Lúcio França — Não só ele fez isso como convocou alguns promotores fazer uma manifestação contra Lula e Dilma dentro do Fórum. O promotor de justiça tem que ser isento. Por isso, ele é “promotor de justiça”. Este é o nome do cargo dele. Ele não é um “promotor de acusação”. Ele tem que ser isento assim como o juiz. Tem que ser técnico. Mas, aqui, estamos vendo que a questão política está acima da técnica. Isso é gravíssimo. É uma usurpação do estado de direito.
Jornalistas Livres — O senhor esteve hoje com a Preta Ferreira no presídio feminino de Santana. Como está a Preta?
Doutor Lúcio França — Ao contrário do que imaginávamos, ela não está abatida. Está muito firme, com a serenidade de quem sabe da sua inocência. Preta nos disse que agora está muito mais consciente da luta que terá de travar quando sair da prisão. Da sua luta como negra, mulher e artista ligada ao movimento social. Está lendo muito e ficou bastante emocionada quando soube que o ex-presidente Lula lhe enviou uma carta de solidariedade. Ela não sabia disso ainda.