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Categoria: mulheres negras

  • MULHERES E SOCIEDADE: A DESIGUALDADE DE GÊNERO NA CIÊNCIA E FORA DELA

    MULHERES E SOCIEDADE: A DESIGUALDADE DE GÊNERO NA CIÊNCIA E FORA DELA

    “É o tal do empoderamento: criar condições de acesso a oportunidades que transformem as mulheres em cidadãs, cidadãs de direito”, disse a ex-Ministra Chefe da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres do Brasil, professora e socióloga Eleonora Menicucci de Oliveira

    Foto: Isabela Abalen / Jornalistas Livres

    Mesmo sendo a maioria nas escolas e universidades – em todos os níveis -, é comprovado que a partir do mestrado e o mercado de trabalho há uma queda brusca na presença feminina. Essa queda não depende, na grande maioria das vezes, do interesse e esforço delas – segundo levantamentos de She Figures e SAGA (STEM and Gender Advancement), UNESCO -, mas sim de processos de seleção que as excluem, da dificuldade de conciliar trabalho fora e doméstico, do machismo que as enxuta diariamente e da falta de estrutura e preparo institucional para receber a mulher. Além disso, de acordo com pesquisa do Datafolha divulgada em 2017, 503 mulheres brasileiras são vítimas de violência a cada hora.

    Tendo em vista esses problemas e muitos outros, as professoras, pesquisadoras e militantes do feminismo Alice Rangel de Paiva Abreu (UFRJ), Márcia Cristina Bernardes Barbosa (UFRGS) e Eleonora Menicucci de Oliveira (UNIFESP) discutiram, na última quarta feira, os diários desafios das mulheres e suas recentes conquistas em uma mesa de debate na 69ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.

    Alice Rangel. Foto: Isabela Abalen / Jornalistas Livres

    Alice Rangel iniciou a conversa apresentando um panorama da participação da mulher na ciência, avaliando os estudos de gênero como importantes para a primeira percepção concreta da desigualdade no setor e para a implantação de mudanças na área. Já são duas décadas pensando gênero e ciência que, segundo a professora, querem fazer jus aos direitos e à justiça social, que prometem igualdade de oportunidades. “Quem tem que se reformar são as instituições, globalmente” disse ela com relação aos moldes institucionais de promoção de cargos e possibilidades.

    Se analisadas as bolsas de pesquisa do CNPq nacionais, as mulheres só aparecem com maior frequência quando se tratam das bolsas institucionais que são escolhidas internamente por cada grupo de estudo. Quando se tratando de cargos maiores, a escolha da vaga é concebida ao Comitê Nacional Centralizado no Órgão, de enorme presença masculina.

    Sendo assim, as mulheres são raríssimas. Mulheres negras,  mais ainda.

    De toda forma, o Brasil é – segundo o levantamento do Gender in the Global Research Landscape -, junto à Portugal, o país com maior número de publicações femininas, com 49% do total. O reconhecimento, porém, é menosprezado. Alice Rangel convida a usarmos de uma “lente de gênero que busque a equidade”, reivindicando processos de seleção mais equânimes, horários adequados de trabalho e atendimento melhor às necessidades das grávidas. Alice participa do projeto GenderInSite e promove a inserção das mulheres e seus direitos na ciência.

    Márcia Cristina. Foto: Isabela Abalen / Jornalistas Livres

    Depois dela, Márcia Cristina – premiada internacionalmente pelo Prêmio L’Oréal-UNESCO para mulheres em ciência – tomou a palavra já com uma inquietação: uma foto do seu grupo de trabalho. Pelo menos treze homens e ela. “Tem algo errado nessa imagem”, iniciou. “Uma ciência com participação efetiva da mulher é uma melhor ciência”; as maiores empresas do mundo são justamente as com mais mulheres; há mais elas que eles se educando, profissionalizando e idealizando projetos. Então por que os números são tão diferentes? De acordo com a cientista, toda a sociedade está estruturada para favorecer o homem. “Estamos condenando a sociedade a acreditar ter mulheres simpáticas e homens inteligentes”, disse. Como argumento, um estudo feito pela revista Science perguntou a crianças de 5 e 7 anos se um exemplo de pessoa inteligente teria o sexo feminino ou masculino. Aos 5, meninos responderam masculino e meninas responderam feminino. Aos 7, a maioria optou pelo masculino.

    Sendo assim, a professora defende as ações afirmativas como capacitadoras de mudanças no cenário da mulher na ciência e nas áreas em geral, como a política. Essas ações se valendo de maiores artifícios além das cotas. Citando o caso de Hipátia de Alexandria, matemática em 415 a.C. que definiu que as órbitas eram elípticas e, ao não retirar o dito, foi assassinada pelo governo, Márcia acredita que há potencial o suficiente nas mulheres e muita luta à frente. Elogia iniciativas como Tem Menina no Circuito e finaliza: “A gente tem que trabalhar juntos e juntas, homens e mulheres, e é já”.

    “Eu fui uma resistente, guerrilheira, lutei contra a ditadura civil-militar e fiquei presa 3 anos. (…) E existiam 14 lideranças sempre procuradas, eram 13 homens e uma mulher. Quem era a mulher? Eu”. Eleonora Menicucci se apresentou depois de Márcia com um discurso mais geral da questão mulher e sociedade, apresentando políticas públicas a favor delas. “Muita gente me pergunta quando eu descobri o feminismo. Eu descobri o feminismo na tortura. (…) Eu tinha uma filha de 1 ano. Estávamos presos eu e meu então marido e ela só foi torturada e ameaçada na minha frente, na dele não. Alguma coisa estava errada. Não que eu quisesse que ele também sofresse, mas por que em mim? Porque a mulher é o sexo frágil”.

    Eleonora Menicucci. Foto: Isabela Abalen / Jornalistas Livres

    Eleonora afirmou que passamos por uma difícil conjuntura brasileira e que as mulheres devem se analisar dentro dessa. Segundo ela, passamos por uma vigência de golpe parlamentar, midiático, fundamentalista, patriarcal, sexista e judiciário. O sexista do golpe vem do fato de que tiraram a primeira mulher eleita e reeleita no Brasil, com 54 milhões de votos. E se fosse um homem no poder, seja Fernando Henrique ou Lula, não se teria chegado a esse ponto. Parafraseando Simone de Beauvoir, Menicucci lembrou que, em tempos de crise, as mulheres são as que mais perdem. Além delas, os jovens. Se considerarmos a etnia: mulheres e jovens negros.

    Eleonora concluiu admitindo a perda de “tudo”, “desde a Secretaria de Políticas para as Mulheres até todos esses direitos conquistados”. Ela disse não acreditar em democracia sem voto, nem em equidade de gênero sem democracia. Incitando a busca por Diretas, juntou-se às outras palestrantes e a esperança e a próxima luta das mulheres e sociedade foram discutidas. Alice Rangel lembrou: “todo mundo fala em gênero, a gente introduziu esse tema” e, já em acordo que há esperança, definiu: “há necessidade de uma equidade de gênero, e isso tá tomando consciência. Há muitos projetos novos com esse objetivo”.

    Antes do fim, Eleonora pôde convidar: “precisamos de um pacto com os movimentos sociais, os partidos, a comunidade científica, as instituições de conhecimento, o povo. Todos temos que sentar na mesa, e a grande mesa são as ruas”.

  • Cidinha da Silva: A cadeira de Miss Davis

    Cidinha da Silva: A cadeira de Miss Davis

    Eu sou uma mulher de sorte. Esta afirmação tem a força de atrair cada vez mais os bons augúrios e afastar a desinsorte, já que aquele nomezinho de quatro letras nem pronuncio.

    Acontece que fui a Cachoeira turistar com familiares e à noite resolvi tietar amigas que participavam de um curso sobre feminismo negro decolonial nas Américas, promovido pelo Coletivo Ângela Davis. Encontros daqui e dali, papos rápidos, beijos e abraços e um restaurante escolhido para jantar. De repente as vozes sussurradas e emocionadas dão conta de uma presença em movimento: “Olha ela, é Ângela. É Ângela. Ela saiu de casa. Ela está vindo.”

    E quem é que vem para a mesma calçada onde estou e senta-se à mesma mesa, a três cadeiras de distância da locutora que vos fala? Ela, a Pantera, como o pessoal a estava chamando por lá. A que chamaram de Ângela, sem sobrenome, porque passou a ser da família. Tá bom, tá bom. Era a mesa da diretoria e da amada, por isso ela se sentou na “minha mesa”. Não tem problema, pessoal, isso não embaralha minha sorte.

    Conversa vai, conversa vem, uma filha do Rei de Oyó postada à cabeceira da mesa iniciou, com Ângela, um papo sobre política brasileira. Eu me mordi de vontade de participar com meu inglesinho de boa base gramatical e pronúncia imperfeita, só que não fui mencionada, convidada, e me resignei ao silêncio observador. Cada qual reinando no seu reino.

    Alguém, creio que a própria Ângela, resolveu rearranjar os lugares da mesa para que os casais separados ficassem próximos. Uma vizinha de cadeira moveu-se para o lugar de Ângela Davis, a primeira a se levantar. E ela, a Pantera, sentou-se onde? Adivinhem. Quem responder “ao lado de Cidinha da Silva”, ganha um doce.

    A primeira sensação quando isso acontece, vou contar para você que nunca se sentou ao lado de um ícone, é: O que posso falar que não vá incomodá-la? A pessoa está ali no bar para relaxar. As anfitriãs já haviam montado um forte esquema espacial para blindá-la das cansativas selfies, não queria ser eu a incomodá-la. Optei por ficar calada e, se surgisse alguma oportunidade falaria algo.

    Angela Davis no Brasil. foto: Forum Anarquista Especifista em: https://www.facebook.com/faebahia/photos/a.684794088222670.1073741828.684778788224200/1393549037347168/?type=3

    Ângela sorriu para mim e me cumprimentou, perguntou como estava? Respondi ao cumprimento e aproveitando a deixa disse-lhe que diria minha frase clichê desde 1997, quando a encontrei em sua primeira vinda ao Brasil: “A primeira vez que te vi foi em Atlanta, em 1994, e você tinha longuíssimos dreadlocks”. Muito simpática, ela disse que se lembrava, que meu rosto lhe era familiar nessas duas décadas que vinha ao Brasil. Calma, gente! É óbvio que ela não se lembrou de mim, principalmente no evento em Atlanta, onde havia centenas de mulheres negras. Talvez se lembrasse que tinha mesmo dreads àquela época, e a lembrança de dreads cortados sempre traz uma nostalgia, ou talvez (sou otimista) se lembrasse da minha frazezinha-clichê, que, vamos combinar, já era a terceira-vez que eu dizia a ela.

    Ainda na linha simpatia total, ela me perguntou o que havia sido o evento de Atlanta e o que eu fazia por lá. Respondi que se tratava de uma edição da Black Women’s Health Conference, e eu, que estudava e morava em Illinois à época, havia ido lá encontrar uma companheira de Geledés, participante do encontro. Depois ela me perguntou como se dizia ketchup em português. Respondi que era daquele jeito mesmo e que a gente só acentuava a letra u. Rimos. Pedimos ketchup ao garçom que nunca o trouxe e como as batatas fritas de Ângela já estavam pela metade, fui ao balcão buscar o molho vermelho. Conversamos ainda sobre a tradição africana de deixar o sal em cima da mesa, ao invés de entregá-lo a alguém que o solicita. Sobre banhos de sal grosso e sobre jogar sal para trás como táticas de proteção espiritual e ainda, sobre não entregar uma faca com a ponta voltada para a pessoa que a recebe.

    Bem, essa prosopopéia toda foi para justificar porque sou uma mulher se sorte, uma legítima filha do Rei. Mas, o mais importante da noite ainda não contei. É que ao mudar-se de lugar, Ângela Davis que é muito alta, sentou-se numa cadeira maior do que as outras ou que estava num ponto mais alto da calçada. Fato é que a junção das duas coisas deixou-a em destaque na mesa. Ninguém reparou porque ela já era a grande estrela e era natural que a víssemos como a maior de todas. Mas ela, muito incomodada, falava como que para si mesma, que estava mais alta do que todo mundo e olhava para o chão e para os lados, buscando solução para o problema. Eu, pensando se tratar da própria altura dela, disse que ela era mesmo a mais alta da mesa e ela respondeu: “Eu sei, mas tem alguma coisa errada aqui”.

    Então, mais uma vez, Ângela se levantou e trocou de lugar, sentando-se na cadeira ao lado, mais baixa ou que não estava num ponto alto da calçada, ficando assim na mesma altura das demais pessoas. E disse aliviada: “Agora, sim! Agora eu estou confortável!”