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Categoria: Ministério Público

  • Certidão de óbito de Merlino reconhece crime do Estado

    Certidão de óbito de Merlino reconhece crime do Estado

    Na próxima quarta-feira, em cerimônia solene na sede do Ministério Público Federal, em São Paulo, os familiares de Luiz Eduardo Merlino vão receber a certidão de óbito do jornalista corrigida, que vai constar a verdadeira razão da sua morte:

    “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985″

    A decisão foi do Corregedor Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, e foi divulgada, 24 horas depois de o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, não receber denúncia do Ministério Público Federal contra os agentes do responsáveis pelo morte de Merlino (ver mais abaixo o caso). Esta denúncia compreendia também a acusação do médico Abeylard de Queiroz Orsini, à época legista, acusado pelo crime de falsidade ideológica, decorrente da falsificação do laudo necroscópico do jornalista, emitido em 1976, onde constava que Merlino morreu de “anemia aguda traumática”.

    A cerimônia vai acontecer, na quarta-feira (18.11.2019) às 11h da manhã, e deve contar com a presença de Gianpaolo Poggio Smanio, Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, e com os familiares e amigos de Luiz Eduardo Merlino.

    Um longo caminho para obter a certidão de óbito

    A família de Merlino luta por justiça desde de sua morte em 1971. Sua mãe dona Iracema, conseguiu enterrar o filho por que um tio de Merlino Delegado de Polícia, conseguiu recuperar o corpo. Não fosse por isso, sua família não teria nem a certeza da sua morte, e ele estaria entre os desaparecidos. 

    São quase 50 anos de luta, mas a partir de 1995 o Estado Brasileiro passou a reconhecer pela a LEI Nº 9.140 que:

    dezenas de pessoas que, em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, encontravam-se desaparecidas ou mortas. A mesma Lei previu a criação de uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos que, entre outras atribuições, tinha as competências para proceder ao reconhecimento de outras pessoas desaparecidas; proceder ao reconhecimento de pessoas que, por terem participado ou terem sido acusadas de participação em atividades políticas, faleceram, por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas; localizar os corpos de pessoas desaparecidas no caso da existência de indícios quanto ao local de ocultação ou sepultamento.
    Texto do site do: MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS 

    Nos anos seguintes, depois de muita luta dos familiares, da assinatura de tratados internacionais, da instauração das Comissões Nacionais e Estaduais da Verdade e dos trabalhos da Comissão da Anistia, pode-se dizer que o Brasil passou a adotar uma política de reparação e ações que são configuradas como justiça de transição:

    Os direitos da Justiça de Transição – direito à Memória e à Verdade, à Justiça, à Reparação e à Reforma Institucional – promovem o reconhecimento lidam com o legado de atrocidades de um passado violento ao qual não se quer regressar e de um presente e futuro que precisam ser diferentes para que realmente se possa dizer: “nunca mais!”.

    A mudança na certidão foi requerida à CEMDP (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) durante a gestão da procuradora regional da República Eugênia Augusta Gonzaga, demitida do cargo em julho deste ano pelo presidente Jair Bolsonaro.

    Uma resolução de 2017 da CEMDP é que permitiu criar um mecanismo para a modificação de atestados de óbito com base nas apurações da comissão ou da CNV (Comissão Nacional da Verdade).

    A burocracia pra chegar à certidão

    Quando o atestado da CEMDP (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) foi emitido para a família Merlino, reconhecendo a morte do jornalista, o cartório onde havia sido registrado o documento foi oficiado para providenciar um novo assento (registro no livro do cartório) e a nova certidão de óbito, mas a Oficial do Registro Civil recusou as alterações, alegando que a questão era subjetiva, decisão mantida pela juíza corregedora permanente. 

    A família Merlino recorreu e o corregedor encaminhou o caso para a análise da juíza assistente Stefânia Costa Amorim Requena, que reconheceu o pleito da família Merlino. 

    Segundo o parecer da juíza, a Corregedoria Nacional de Justiça já havia reconhecido que os atestados emitidos pela CEMDP são “títulos hábeis para a retificação administrativa dos assentos de óbito”, ou seja, quando os cartórios recebem esses atestados, devem providenciar a mudança do assento de óbito e emitir nova certidão (com informações de Marcelo Oliveira do Uol).


    A BUSCA POR JUSTIÇA NO CASO MERLINO

    O crime ocorreu em 1971, nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), centro de tortura comandado pelo Coronel Brilhante Ustra entre outubro de 1969 e dezembro de 1973. 

    O coronel foi condenado em primeira instância mas recorreu. Em 2008, em outro processo, Ustra foi declarado torturador pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em ação movida pela família Teles. 

    Em 2010 o STF (Supremo Tribunal Federal), julgou constitucional a Lei de Anistia de 1979 e isso tem sido usado como justificativa para que os torturadores não sejam culpados. 

    Em 2012, no caso de Merlino, a Justiça negou o recurso de Ustra e manteve a decisão de condenação, mas como o coronel morreu em 2015 a ação contra ele foi extinta.

    MAIS SOBRE O CASO EM:
    https://jornalistaslivres.org/luiz-eduardo-merlino-morre-mais-uma-vez/

    https://jornalistaslivres.org/assassinato-de-luiz-eduardo-merlino-volta-a-justica-na-proxima-quinta-10-10/

    coletivomerlino.org

    A família de Merlino, moveu ações contra o Coronel Alberto Brilhante Ustra, comprovadamente mandante do assassinato do Luiz Eduardo Merlino e também contra os outros agentes responsáveis diretamente à morte do jornalista:  o delegado aposentado Aparecido Laertes Calandra e o delegado da Polícia Civil de São Paulo Dirceu Gravina, acusados de homicídio doloso qualificado (com intenção de matar), por motivo torpe e com emprego de tortura que impossibilitou a defesa da vítima. O médico Abeylard de Queiroz Orsini, à época, legista, é acusado pelo crime de falsidade ideológica, decorrente da falsificação do laudo.

    MAIS SOBRE AS DECISÕES JUDICIAIS MAIS RECENTES
    https://jornalistaslivres.org/tribunal-de-sp-tortura-e-mata-novamente-o-jornalista-luiz-eduardo-merlino/

    https://jornalistaslivres.org/assassinato-de-luiz-eduardo-merlino-pela-ditadura-tem-novo-julgamento/

    A NOVA GESTÃO DA CEMDP 

    A atual gestão da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) provavelmente não deverá prosseguir com a política de retificação dos atestados de óbito iniciada pela gestão anterior. 

    Em ação recente os representantes atuais da CEMDP tentaram transferir a pesquisa forense das ossadas da Vala de Perus, do Caaf/Unifesp de São Paulo para Brasília, mas não obtiveram êxito.

    MAIS EM:

    https://jornalistaslivres.org/ditadura-nunca-mais-aberta-a-ultima-caixa-da-vala-clandestina-de-perus/

    https://jornalistaslivres.org/luiz-eduardo-merlino-morre-mais-uma-vez/

    Em reportagem para Marcelo Oliveira, Angela Mendes de Almeida, viúva de Merlino  afirmou:


    “A luta vai continuar, independente de mim, porque o passado sempre volta, como está acontecendo hoje na Espanha, onde os restos mortais do ditador Francisco Franco estão retirados do Vale dos Caídos (memorial em homenagem aos heróis da Guerra Civil Espanhola), que terminou em 1939”.

  • Tortura foi excluída da sentença do caso Ricoy

    Tortura foi excluída da sentença do caso Ricoy

    Na última quarta-feira, 11, o juiz Carlos Alberto Corrêa Almeida Oliveira, da 25ª Vara Criminal de São Paulo, condenou a mais de três anos de prisão, os dois seguranças que torturam o jovem E.M.O, no supermercado Ricoy, da Avenida Yervant Kissajikian, zona sul de São Paulo.

    Embora a condenação seja certa agora, na sentença não foi considerado que o crime de tortura foi praticado, somente, os crimes de cárcere privado, lesão corporal simples e “filmagem e divulgação de um adolescente pelado”. A pena total dos três crimes citados é de três anos e dez meses de reclusão, três meses e vinte dois dias de detenção e doze dias de multa.

    Ao fundo o anexo do supermercado, onde o jovem foi torturado
    Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres

    O caso

    Os dois seguranças, Valdir Bispo dos Santos e David de Oliveira Fernandes, foram denunciados após um vídeo que eles mesmos gravaram, enquanto torturavam E.M.O e que depois passou a circular na internet.

    Depois da repercussão do vídeo, o jovem denunciou o ato que teria sido motivado pelo furto de uma barra de chocolate. Após o furto o jovem foi levado para um cubículo nos fundos do mercado, que era uma espécie de “sala de segurança”. Lá foi amordaçado e amarrado e passou mais de 30 minutos sendo chicoteado nu.

    De acordo com o primeiro testemunho no inquérito policial, de autoria do segurança David ele “confessou que estava na sala de segurança” e que “ele filmava a as agressões sofridas pelo adolescente e aplicadas pelo corréu Valdir”. Já Valdir escolheu não se pronunciar. Ainda durante o inquérito, David mudou sua versão alegando que tinha pego o jovem roubando barras de chocolate e o levado para uma sala do mercado, momento em que o deixou no local com o supervisor de segurança e não viu o que aconteceu, negou, inclusive, que tivesse gravado a sessão de tortura. Depois Valdir assumiu que despiram o menino na revista e deram chicotadas para reprimilo por ter pego a barra de chocolate sem pagar. David o acompanhava.

    A sentença

    O juiz Carlos Alberto Corrêa Almeida Oliveira reconheceu que “não há dúvidas quanto à veracidade dos fatos imputados contra os acusados e a coautoria dos dois”, mas não os condenou por tortura como pedia o Ministério Público Estadual.

    Para o magistrado, a lei que tipifica o ato de tortura não poderia ser utilizada no caso, uma vez que ela “ visava não atingir qualquer pessoa física que pratique um sofrimento físico e metal ao semelhante, como forma de castigo ou como de medida de caráter preventivo” e “teria uma intepretação vertical com base em uma ideia de autoridade, deixando de considerar a conduta horizontal, ou seja, de pessoas sem autoridade sobre a vítima”. A lei 9.445 de 1997 é a que regula o que se considera tortura no Brasil e deixa clara que:

    “Constitui crime de tortura: I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa;” e no ainda destaca, no parágrafo quarto que “Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I – se o crime é cometido por agente público”

    Mais adiante na sentença Carlos Alberto menciona que “a inércia do Estado pode levar à violência, em face do abandono de pessoas que se tornam criminosas, como pela reação das vítimas que não acreditam no Estado e reagem, desproporcionalmente, contra os criminosos passando a se tornarem criminosos também” e considera que “não ocorreu crime de tortura, uma vez que as agressões infringidas ao menos não foram com a finalidade de obter informações e também não forma aplicadas por que estava na condição de autoridade, guarda ou poder”.

    O Ministério Publico já recorreu, na última sexta, 13.

    Reações

    Luana Vieira, do coletivo Uneafro, entende que a sentença está incorreta

    “a tortura é a imposição de dor física, psicológica por prazer, crueldade, é um delito imprescritível e Inafiançável, como trás o Artigo 5º inciso XLIII da Constituição Federal, é um delito equiparado a crime hediondo. A Tortura independente de seu resultado existe apenas pelo ato de se causar sofrimento a alguém. O menino estava, sim, sob poder e autoridade desses agressores, sob responsabilidade do mercado e essa agressão foi utilizada como castigo em razão dos acontecimentos que o jovem estava sendo acusado” e aponta que “esses agressores deveriam estar sendo condenados a uma pena extremante severa e rígida, e seu cumprimento em regime fechado. O processo tem que retornar ao Ministério Público , para que se tenha uma nova definição jurídica e uma interpretação sobre o desfecho criminoso que ocorreu no supermercado Ricoy , não podemos aceitar essa decisão , não podemos naturalizar o genocídio e extermínio da população preta e pobre, matar , hostilizar e torturar corpos negros está cada dia mais legitimado pelo estado, na periferia a ação da polícia sempre foi truculenta e racista , a periferia , em especial os jovens que vivem dentro dela, são diariamente criminalizados e reduzidos a um estereótipo de criminosos, que, por sua vez resultam em ações violentas e repressivas por parte de um Estado que sua função seria de garantir a sua proteção, e não de extermina-los”

    “Ele estava sim, sob o poder e autoridade dos agressores. Então devemos lamentar que o judiciário não considere ou não interprete adequadamente a lei para crimes de tortura, que não se aplica apenas em casos de agentes públicos, mas também em casos de agente privados. Principalmente aqueles que tem algum tipo de relação de poder, como no caso desses seguranças”. Opinião do advogado Constitucionalista, especializado na defesa de direitos da criança e do adolescente, Ariel de Castro

    Numa das manifestações realizadas no bairro, em protesto ao fato, a rede Jornalistas Livres conversou com moradores do entorno da unidade do Ricoy, naAv.  Yervant Kissajikian e ouviu de muitos a revolta com a violência sofrida pelo garoto, misturada com o medo das organizações criminosas que comandam o tráfico de drogas na região. Segundo moradores, esse tipo de ação de tortura acontece há muitos anos no mercado, mesmo antes de ser chamado de Ricoy. Há notícias que a rede se chamava Baratani e que há muitos anos atrás, registrou no bairro ocorrência muito parecida com a de E. M. O e que por isso, teve que mudar de nome, passando a se chamar Ricoy.

    Fizemos diversas tentativas de conversa com o proprietário da rede Ricoy, que possui cerca de 49 lojas, mas não obtivemos sucesso. O protesto citado nesta reportagem, contou com cerca de 10 mil manifestantes.

     

     

     

  • Promotor Conserino pede prisão de dirigentes do movimento de moradia de SP

    Promotor Conserino pede prisão de dirigentes do movimento de moradia de SP

    Na última sexta-feira, dia 11 de julho, o promotor de justiça criminal Cassio Roberto Conserino, do Ministério Público do Estado de São Paulo, denunciou à Justiça que 19 diferentes lideranças ou membros de movimentos de luta por moradia, entre os quais Carmen Silva Ferreira e Preta Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), fazem parte de uma suposta “organização criminosa”, inclusive com ligações com a facção PCC. Não dava para esperar nada diferente de Conserino.

    Em documento sigiloso a que os Jornalistas Livres tiveram acesso, o promotor afirma que os membros das diversas ocupações da cidade “associaram-se entre si” de maneira ordenada, em vários grupos, com divisão de tarefas, ainda que informalmente, “com o objetivo de obter direta e indiretamente vantagens de cunho econômico, mediante a prática de incontáveis extorsões”.

    Cassio Roberto Conserino, autor da denúncia, foi um dos promotores que apresentaram a denúncia criminal sobre o tríplex atribuído ao ex-presidente Lula, transformando-o em réu. Anticomunista militante, em março desse ano, Conserino foi condenado a pagar indenização de R$ 60 mil por danos morais a Lula por causa de um post no Facebook em que se referia ao ex-presidente como “encantador de burros”, expressão que o juiz Anderson Fabrício da Cruz, da 3ª Vara Cível de São Bernardo do Campo, em São Paulo, disse tratar-se “de conteúdo ofensivo, pejorativo e injuriante”, conforme “deveria ser do conhecimento de um experiente integrante do sistema de Justiça”.

    No caso dos movimentos de moradia, o promotor Conserino baseou a denúncia no inquérito policial que tinha como propósito investigar responsabilidades pelo incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por pessoas sem casa, no dia 1º de maio de 2018. Na tragédia, sete pessoas perderam a vida. O Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), dirigido por Ananias Pereira dos Santos, era quem coordenava aquela ocupação.

    O problema é que o inquérito policial e depois a denúncia do promotor Conserino, em vez de apurar as irregularidades que por ventura existissem no prédio sinistrado, resolveram mover uma cruzada contra todos os movimentos de moradia que atuam no centro da cidade de São Paulo.

    Estariam a serviço da especulação imobiliária? Dos proprietários de imóveis vazios que ficam anos e anos sem pagar IPTU, cheios de lixo, focos da criminalidade, de ratos e doenças?

    Conserino denuncia várias lideranças, entre as quais, como dito acima, as lideranças do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro), por supostamente extorquir, mediante violência, moradores pobres das ocupações. Se pelo menos tivesse se dado ao trabalho de andar alguns quarteirões entre o Fórum e a Ocupação 9 de Julho, dirigida por Carmen Silva Ferreira, o Promotor Anticomunista Militante Conserino teria se surpreendido com a organização, a limpeza, a habitabilidade de um prédio que até três anos atrás era apenas um depósito de lixo, doenças e ratos (fora os dependentes químicos que utilizavam o local para consumir drogas).

    O prédio já foi inspecionado pela Prefeitura e até premiado internacionalmente por sua atuação na solução do problema de moradia em São Paulo. Mas, para o Promotor Anticomunista Militante Conserino, todos os gestores e movimentos seriam, como diz o povo, “farinha do mesmo saco”.

    Depoimento de Chucre sobre Carmen
    Depoimento de Chucre sobre Carmen

    Ocorre que os movimentos populares por moradia são diversos. O secretário de habitação de São Paulo, Fernando Chucre, sabe disso. À época do incêndio do Wilton Paes, por exemplo, declarou que aquele grupo que o coordenava “não participa da política habitacional, como os demais movimentos que, inclusive, são parte da solução desse problema”. E na semana passada, em depoimento aos Jornalistas Livres, afirmou sobre Carmen Silva: “Ela é uma mulher extremamente segura e envolvida com o movimento que administra. Eu tenho muito respeito por ela.” E não só.

    Chucre apontou que “o movimento de Carmen conseguiu o retrofit [reforma de imóvel antigo] para o Hotel Cambridge”. De fato, agora renomeado como Residencial Cambridge, o imóvel ganhou edital para financiamento da Caixa Econômica Federal, dentro do programa Minha Casa Minha Vida-Entidades. A obra segue sob severas e constantes fiscalizações do poder público. Importante dizer: ao contrário do que imaginam os críticos dos movimentos sociais por moradia, nada vem de graça. Todos os futuros moradores vão pagar pelo financiamento que, por sinal, já colabora com os impostos da cidade ao arcar com custos de IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano.

    DEPOIMENTOS ANÔNIMOS

    A denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino é baseada em depoimentos anônimos e interceptações telefônicas que, coisa gravíssima, provam que havia discussões entre vizinhos! É isso o que o promotor cita à guisa de provar que todos os dirigentes dos movimentos de moradia extorquem dinheiro dos moradores “mediante grave ameaça e com o intuito de obter para si indevida vantagem econômica, a fazer alguma coisa, ou seja, pagar alugueres e outras verbas para entrar e permanecer em edifícios invadidos pelos grupos criminosos”. Carmen Silva Ferreira já foi acusada desse mesmo crime e foi inocentada em 2018, porque ficou comprovado que as pequenas contribuições pagas pelos moradores das ocupações que ela dirige (R$ 200 por mês de cada família) são revertidas em melhorias nos imóveis ocupados.

    Além disso, a denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino padece do vício de ser in-in (incompetente e inventiva). Por exemplo, diz que as ocupações são habitadas por “estrangeiros em sua maioria”, um erro crasso, sanável com meia hora de trabalho sério. Acusa o movimento de Carmen Silva Ferreira, o MSTC, de estar por detrás da ocupação do Cine Marrocos, fechada em 2016 depois de se terem encontrado armas e drogas no poço do elevador. Ali quem atuava era o Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS), mas a letrinha dissonante não incomodou o Promotor Anticomunista Militante Conserino. Carmen nunca nem sequer pôs os pés no Cine Marrocos. Se tivesse conversado com o delegado de polícia que atuou no Cine Marrocos e assina o inquérito sobre a moradia, o Promotor Anticomunista Militante Conserino teria evitado o vexame de confundir movimentos tão diferentes (ou será que esse é mesmo o propósito?). E há várias mentiras como essa na acusação, revelando, mais uma vez, o caráter persecutório das denúncias do Promotor Anticomunista Militante Cassio Conserino.

    Entre as 19 prisões pedidas pelo promotor, quatro já estão sendo cumpridas: a da  cantora, atriz e produtora cultural Preta Ferreira, formada em publicidade, do educador Sidney Ferreira, ambos do MSTC, e de Ednalva Silva Franco Pereira e Angélica dos Santos Lima, do Movimento de Moradia para Todos (MMPT). Todos negros e pobres.

    Para comentar a denúncia do Promotor Anticomunista Militante Conserino, Jornalistas Livres entrevistaram Lúcio França, advogado que representa Carmen Silva, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do Movimento dos Sem-Teto do Centro.

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    Jornalistas Livres — O senhor poderia comentar a denúncia contra Carmen Silva Ferreira e seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), apresentada no dia 3 de julho na segunda promotoria de Justiça Criminal Ministério Público pelo promotor Cassio Conserino?

    Doutor Lúcio França — É muito importante ir um pouquinho mais atrás, onde começou tudo isso. Houve um processo com as mesmas acusações contra Carmem Silva Ferreira em 2017. Nesse processo, houve uma investigação sobre esses mesmos fatos agora descritos na atual denúncia do promotor Cassio Conserino. Ou seja, investigou-se se Carmem Silva Ferreira cometeu atos de extorsão, cobranças indevidas, se ameaçou ou coagiu moradores das ocupações. Ficou comprovado que isso nunca existiu. Quando uma pessoa entra no movimento dirigido por Carmen, ela é orientada sobre as regras de conduta, os regulamentos e os procedimentos internos das ocupações dirigidas pelo MSTC. Por exemplo: não se admite violência doméstica de nenhuma forma; mães não podem deixar seus filhos trancados no apartamento e sair para trabalhar ou se divertir; todas as crianças são obrigadas a frequentar escolas; não se pode consumir drogas na ocupação; tráfico, nem pensar. As contribuições para a manutenção do prédio são decididas em assembléias e todas as famílias devem colaborar ou justificar eventuais faltas; há uma escala de limpeza dos andares e todas as famílias precisam contribuir com a higiene do espaço comum, e por aí vai. No processo que se iniciou em 2017, tudo isso foi juntado, e Carmen Silva Ferreira foi inocentada. Estamos assistindo agora a uma reedição daquele processo que ocorreu em 2017 e a denúncia atual do promotor de justiça Cassio Conserino cita “coincidentemente” contra a Carmen as mesmas testemunhas acusadoras que foram desqualificadas no processo que resultou na absolvição da liderança do MSTC.

    Jornalistas Livres — Quem são essas pessoas que acusam Carmen?

    Doutor Lúcio França — São dissidentes do MSTC, o movimento dos sem-teto do centro. São pessoas que queriam ocupar o lugar da principal dirigente do movimento, que nutriam por ela uma profunda inveja da liderança que ela conquistou com o movimento, e que se ligaram a pessoas inidôneas para acusá-la. É importante falar que Carmen é a liderança principal da Ocupação que se instalou no antigo Hotel Cambridge e que agora se encontra em fase de reforma para ser transformado moradia de interesse social, isso tudo com o financiamento da Caixa Econômica Federal. A história desse movimento de moradia acabou transformada no filme da premiadíssima diretora Eliane Caffé, “Era o Hotel Cambridge”, de 2016.

    Jornalistas Livres — Como o senhor avalia a prisão temporária pedida para Carmen Silva Ferreira e a prisão preventiva de seus filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira Silva?

    Doutor Lúcio França — É importante ressaltar que o promotor que atuou no primeiro processo chegou a pedir a prisão de Carmen por três vezes na primeira instância e foi recusado. Ele então foi à segunda instância e os desembargadores por unanimidade recusaram-se a prendê-la. Ao final, viu-se que a prisão não cabia mesmo, já que ficou comprovada a inocência de Carmen e ela foi absolvida. Quanto aos demais acusados do MSTC, os filhos de Carmen —Preta Ferreira e Sidney Ferreira—, é preciso dizer que Sidney nem mora mais em ocupações, tendo fixado residência em outra cidade na região metropolitana de São Paulo. Quanto a Preta Ferreira, ela nunca fez qualquer ameaça contra qualquer pessoa, morador de ocupação ou não. As pessoas que disseram terem sido ameaçadas por Preta estão mentindo e sabem disso. Aliás, na verdade, é bem o contrário o que se passou. Foi Preta Ferreira quem foi ameaçada, bem como toda a família de Carmen, por essa denunciante.

    Jornalistas Livres — Como se chegou, então, a essas prisões?

     Doutor Lúcio França — A nossa leitura é a seguinte: no meio desse primeiro processo contra a Carmen ocorreu a tragédia com o edifício Wilton Paes de Almeida (1º de maio de 2018), no Largo do Paissandu, centro de São Paulo. Trata-se de um antigo prédio da Polícia Federal que ficou abandonado por anos e acabou ocupado. Essa ocupação, entretanto, nunca fez parte do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro), mas sim de um tal Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), coordenado e dirigido por uma pessoa de nome Ananias Pereira dos Santos. São movimentos absolutamente distintos. Mas, a partir do desabamento e da tragédia Wilton Paes de Almeida, onde morreram sete pessoas, foi instaurado inquérito para apurar as responsabilidades. Era isso mesmo o que deveria ser feito. O problema foi aproveitarem-se da tragédia para prejudicar Carmem e outras lideranças idôneas e honestas do movimento de moradia. A polícia em primeiro lugar e o promotor, logo depois, colocaram todos os movimentos que atuam no centro na mesma vala comum da criminalidade. Trata-se de uma clara manipulação, já que Carmen Silva Ferreira é uma liderança reconhecida nacional e internacionalmente. Agora mesmo, é uma das convidadas da Bienal de Arquitetura de Chicago (EUA), o que mostra seu prestígio internacional. No ano passado, a Bienal de Veneza instalou-se na Ocupação Nove de Julho, dirigida por Carmen, exatamente por tê-la como modelo de intervenção urbana levada a cabo com o movimento social. Carmem dá palestras no Brasil e no mundo inteiro sobre direitos humanos e o Direito à Cidade. Enfim este é o trabalho dela, que foi muito bem explicado no primeiro processo, aquele do qual ela saiu absolvida. O juiz que decidiu pela absolvição desqualificou assim as testemunhas mentirosas que visavam colar na pessoa de Carmem a pecha de alguém que extorque, ameaça e constrange pessoas. Uma mentira completa.

    Jornalistas Livres — Fiquemos no caso de Carmen Silva Ferreira: como é possível que ela esteja sendo acusada novamente de cometer delitos pelos quais ela já foi processada e julgada inocente?

     Doutor Lúcio França — Quanto ao fato de Carmen estar sendo acusada pelos mesmos crimes pelos quais já foi absolvida do primeiro processo, isso configura-se uma clara ilegalidade. O princípio non bis in idem (não repetir sobre o mesmo) estabelece que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato delituoso. O bis in idem no direito penal seria a não observância desse princípio, acusando e julgando uma pessoa pelo mesmo crime.

    Jornalistas Livres — E por que isso está ocorrendo?

     Doutor Lúcio França — Isso se deve ao fato de que as acusações contra Carmem e filhos são acusações políticas, típicas de ditaduras. Por exemplo, isso ocorreu no Brasil durante a ditadura militar entre 1964 e 1985. Caetano Veloso e Gilberto Gil, para ficar em dois casos apenas, foram presos em São Paulo aqui na região da Praça da República pelo pessoal do Segundo Exército. Eles perguntaram por que estavam sendo presos, mas só ficaram sabendo anos depois que contra eles pesava a acusação de terem pego uma bandeira do Brasil e escrito, no lugar do Ordem e Progresso, a frase do [pintor, escultor, artista plástico e performático] Hélio Oiticica “Seja marginal, seja herói”. A acusação, portanto, seria eles terem “ultrajado a bandeira nacional”. Um mero pretexto. Foi esse o motivo alegado para a prisão de oito meses incomunicáveis, ao fim dos quais Gil e Caetano foram obrigados a se exilarem em Londres. Então, é assim que nós temos hoje gente disposta a criar fatos ficcionais para acusar pessoas honestas, abrir um processo, destruindo vidas e reputações. Carmen teve a sorte de encontrar um juiz justo na primeira vez, alguém que analisou as provas e decidiu pela sua absolvição.

    Jornalistas Livres — Como o senhor avalia o fato de terem sido decretadas as prisões de várias lideranças de moradia, entre os quais Sidney e Preta? Como é possível que a prisão de Carmen tenha sido pedida e concedida por um juiz se antes, mediante as mesmas provas e as mesmas testemunhas, a prisão dela foi recusada por três vezes e depois também recusada na segunda instância?

     Doutor Lúcio França — Agora, chegaram de repente e decretaram a prisão de Carmen. Não poderia ser assim. Por que não houve flagrante, nenhuma acusação grave envolvendo a figura dela. Quando houve a queda do Wilton Paes de Almeida, todas as lideranças do movimento de moradia começaram a ser chamadas à polícia para serem ouvidas. Eu mesmo fui com a Carmen e ela deu todas as explicações pedidas a respeito de seu movimento, o MSTC. Ou seja, ela já foi ouvida. Preta, também. Então, não houve obstrução da Justiça não houve fuga. Carmen e seus filhos, que têm endereço domiciliar e trabalho conhecido, se apresentaram com a cabeça erguida para fornecer todas as explicações pedidas pela autoridade policial. Tudo estava correndo em segredo de Justiça, mas –estranhamente— há três meses essas prisões foram anunciadas no programa “Fantástico” da TV Globo. Como é que é um canal de televisão, num programa de domingo, uma das maiores audiências, anuncia que haverá prisões dois meses depois? Trata-se de uma coisa montada. Trata-se de uma questão política porque querem criminalizar as lideranças da luta por moradia digna na cidade de São Paulo. O objetivo é depois acabar com os próprios movimentos de moradia.

    Jornalistas Livres — Isso não se configura numa terrível forma de violência do Estado contra pessoas pretas pobres?

    Doutor Lúcio França — Sim é uma violência de Estado. A filha de Carmem, Preta Ferreira, estava iniciando uma carreira como cantora, atuava como atriz e produtora cultural. Ela, de repente, foi arrancada de seu trabalho e de sua vida e colocada atrás das grades por uma denúncia absolutamente vazia. Isso é uma violação de direitos. O mesmo ocorre com Sidney. Mas não podemos generalizar. O próprio judiciário de São Paulo já absolveu Carmen uma vez antes. Hoje, estamos vivendo retrocesso muito grande em todo o país e sabemos que judiciário é muito conservador em sua maioria. Mas, “nem todas as mães são Marias e nem todos os juízes são iguais”.

    Jornalistas Livres — O movimento por moradia começou a se organizar na época do ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, um homem de direita. Mas nem mesmo Maluf pedia a prisão das lideranças que lutavam por moradia digna. Maluf era contra a luta por moradia e pedia a reintegração de posse, mas nunca ousou prender lideranças por serem lideranças…

    Doutor Lúcio França — É por isso que nós consideramos as prisões de Carmen, Preta e Sidney como prisões políticas. São prisões de pessoas primárias, sem antecedentes criminais, com endereços e trabalhos conhecidos, que não têm envolvimento criminal algum, muito menos com crime organizado, como eles querem fazer crer. São prisões totalmente políticas. Nós acreditamos na inocência de Carmen Silva Ferreira, de Preta Ferreira e de Sidney Ferreira. Pela vida que eles têm, por tudo que eles fazem pela população mais pobre da cidade de São Paulo, até sacrificando suas vidas pessoais em função de uma causa.

    Jornalistas Livres — Cassio Conserino, o promotor que denuncia agora as lideranças de moradia é o mesmo promotor que, em 2016, queria denunciar Lula na investigação do tríplex do Guarujá, que usou as redes sociais para chamar o ex-presidente de ‘encantador de burros’ e que acabou condenado a a pagar indenização de R$ 60 mil a Lula por danos morais. É coincidência o fato de, de repente, um promotor anticomunista militante seja alçado à condição de promotor de Justiça em um caso como este?

    Doutor Lúcio França — Não só ele fez isso como convocou alguns promotores fazer uma manifestação contra Lula e Dilma dentro do Fórum. O promotor de justiça tem que ser isento. Por isso, ele é “promotor de justiça”. Este é o nome do cargo dele. Ele não é um “promotor de acusação”. Ele tem que ser isento assim como o juiz. Tem que ser técnico. Mas, aqui, estamos vendo que a questão política está acima da técnica. Isso é gravíssimo. É uma usurpação do estado de direito.

    Jornalistas Livres — O senhor esteve hoje com a Preta Ferreira no presídio feminino de Santana. Como está a Preta?

    Doutor Lúcio França — Ao contrário do que imaginávamos, ela não está abatida. Está muito firme, com a serenidade de quem sabe da sua inocência. Preta nos disse que agora está muito mais consciente da luta que terá de travar quando sair da prisão. Da sua luta como negra, mulher e artista ligada ao movimento social. Está lendo muito e ficou bastante emocionada quando soube que o ex-presidente Lula lhe enviou uma carta de solidariedade. Ela não sabia disso ainda.

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  • É PRECISO PARECER HONESTO

    É PRECISO PARECER HONESTO

    ARTIGO

     

    Alexandre Santos de Moraes, professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense

     

     

    Suetônio e Plutarco foram famosos biógrafos da Antiguidade que escreveram sobre a vida do ainda mais famoso Caio Júlio César. Narraram seus feitos políticos, suas conquistas e sua morte, quando foi atacado por conspiradores que encetaram 23 punhaladas em seu corpo. Dentre eles estava Décimo Bruto, por quem o ditador nutria particular estima. Diz-se que suas últimas palavras, dirigindo-se a ele, foram: “Até tu, meu filho?”.

    Mas essa não foi a única traição de que César foi vítima. Anos antes, conta-se que Pompeia, sua esposa, manteve relações extra-conjugais com um sujeito chamado Públio Clódio, um de seus muitos aliados políticos. A descoberta do adultério foi bastante insólita. Celebrava-se na casa de César uma festa religiosa exclusivamente feminina. Não era permitido que homens estivessem presentes ou se aproximassem do local. Clódio, tomado pelo desejo, travestiu-se e entrou nos festejos para se encontrar com Pompeia. A princípio, ninguém percebeu, mas sua voz o denunciou. Após alguns berros diante do flagrante, as portas foram trancadas para que Clódio não saísse. Diante da descoberta, César repudiou sua esposa, ainda que alegasse desconhecer a veracidade das denúncias. Era uma estratégia para não se opor politicamente contra Clódio. Parecia uma contradição: se duvidava do adultério, por que repudiar Pompeia? César respondeu: “Julguei conveniente não estar minha esposa nem mesmo sob suspeita”. Esse episódio gerou o conhecido provérbio: “A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.

    No fim das contas, menos importante do que a efetiva traição de Pompeia, foram os rumores. César era um homem público e cuidava com extremo cuidado de sua imagem. Nessa época, a República romana enfrentava uma crise sem precedentes e se tornou particularmente suscetível à ascensão de homens poderosos, que conseguiam acumular mais poderes pessoais do que era costume em períodos menos turbulentos. Não era suficiente ter um grande sucesso militar: era preciso celebrar o triunfo em Roma e receber as glórias pela conquista diante do povo. Mas ainda que se pensasse em alguma “essência”, era preciso cuidar da “aparência”. E se, por ventura, a aparência se impusesse a despeito do que era essencial, às favas com a verdade. Pompeia pode ou não ter traído César, mas os rumores precisam ser considerados. A honestidade só era um valor se fosse publicamente reconhecida. Parecer era, de alguma forma, mais importante do que ser.

    Não há como saber se o ministro Sérgio Moro conhece essa história de César. Ele diz ser leitor ávido de biografias, mas se não lembra nem mesmo da última que leu, o que não inspira fé na eventual lembrança que teria de Plutarco ou Suetônio, caso tivesse passado por eles em algum momento da vida. No entanto, ainda que afogado na mais absoluta ignorância, teve a astúcia de reconhecer a bela oportunidade que as crises republicanas oferecem para a construção de poderes pessoais. Mais do que isso, contra toda a desejada discrição que o cargo de juiz exigia, moveu as pedras do tabuleiro com perícia para tornar a turbulência na República ainda maior.

    Sérgio Moro é uma espécie de parasita que toma a democracia como hospedeiro: engorda à medida que ela emagrece. Afinal, se a rotina democrática não estivesse abalada, não seria representado como Superman, não receberia aquele esdrúxulo troféu de um deputado governista e não teria seu rosto estampado na camisa de seus devotos seguidores. Como César, Moro viu na crise a oportunidade de ascensão e de ganhos pessoais, usando a magistratura em seu favor.

    Mas nesse caso, Moro está mais para Pompeia do que para César: é possível que ele tenha se esbaldado nos lençóis de Clódio, mas precisa parecer honesto. Ele percebeu também que a magistratura era o espaço mais adequado para manter a aparência de honestidade. Afinal, a partir de 2014, quando surgiu a Lava Jato, o povo brasileiro se mostrou particularmente carente de pão e ainda mais desejoso por circo.

    O Tribunal de Moro se tornou a arena em que gladiadores escravizados pelas sentenças disputavam a liberdade por meio do espetáculo das delações. Do alto, o polegar subia ou descia em função do conteúdo da delação: se fosse a favor de Lula, perdia-se os bens e a liberdade; se ajudasse a condenar o ex-presidente, liberdade e restituição do patrimônio. Foi assim com Léo Pinheiro e diversos outros que receberam do juiz os prêmios por delatarem seus desafetos. Também na imprensa, com as divulgações ilegais de escutas telefônicas, Moro logrou diversos sucessos. Muitos juízes criticaram suas ações, mas não importava ser honesto: dizia que tinha um objetivo para a ação penal e a aparência o redimia.

    A última divulgação de áudio que fez como juiz foi o da delação de Palocci, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro. Até hoje, há imensa dificuldade para entender essa publicidade para fora do jogo eleitoreiro. Quando confrontado, Moro evitava os holofotes e fazia uso da necessária sobriedade do cargo que ocupava, esquivando-se de explicações públicas e contando com a conivência do sistema de Justiça que, mesmo reconhecendo a desmedida, trabalhou para manter sua aparência ilibada. Vaidoso, escolheu e ainda escolhe meticulosamente onde vai se expor e, quando convocado a prestar esclarecimentos, responde apenas o que lhe convém.

    O observador atento, pouco suscetível ou sabedor dos riscos associados aos poderes pessoais, percebeu há muito tempo sua artimanha. No entanto, Moro se viu tão confortável nesse jogo de aparências que não se melindrou em assumir um cargo importantíssimo no governo que ajudou a eleger. O pudor teria ido às favas, mas ele soube jogar: quando era juiz, portava-se como político; agora, político, comporta-se como juiz. Alega que seu cargo é técnico para, mais uma vez, parecer honesto, ainda que não seja. Moro tem pavor de parecer a mulher de César.

    Porém, as denúncias do The Intercept Brasil mudaram o jogo. O feitiço virou contra o feiticeiro e a quebra do sigilo, que garantiu sua ascensão, aproxima-o cada vez mais da ruína. A lógica parasitária, no entanto, permanece, e o sistema de Justiça sabe que precisa se livrar de Moro para garantir a sobrevivência da instituição. Os dois não podem coexistir. A República Federativa do Brasil está de joelhos diante de Moro e Bolsonaro como a República romana ficou diante de César. Há indícios claros de que promotores começam a se movimentar, seja para salvar a própria pele, seja para resguardar o mínimo de credibilidade no seu ambiente trabalho. À medida que as reportagens vão sendo publicadas, Moro se aproxima da reunião fatídica em que receberá as punhaladas. Parecer honesto já não parece simples. Resta saber quem será o Bruto a quem dirigirá seu olhar derradeiro.

     

     

  • MAIS UM DOMINGO DE CRISE

    MAIS UM DOMINGO DE CRISE

    ARTIGO 

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

     

    9 de junho. Novamente, o noticiário político brasileiro foi sacudido. Em pleno domingo, no final da tarde, quando os brasileiros e brasileiras, preguiçosamente, se preparavam para a segunda-feira. Os que estão empregados, é claro. Pros 13 milhões de desempregados não faz muita diferença se é domingo, segunda ou quinta-feira.

    Não foi a primeira vez. Quem aqui não lembra do 8 de julho de 2018, outro domingo, quando todos acordamos com a notícia de que Lula seria solto, sob ordem de Rogério Favreto, desembargador plantonista do TRF 4?

    E o 26 de maio de 2019, quando a base orgânica de Jair Bolsonaro foi às ruas defendê-lo, se mostrando nada desprezível em termos quantitativos e apresentando relevante capacidade de mobilização e engajamento?

    Talvez no futuro alguém escreva a história dos domingos de crise. Seria algo interessante de se ler.

    Domingo, 9 de junho de 2019. É esse domingo que interessa aqui.

    O jornalista norte-americano Glenn Edward Greenwald, editor-chefe do “Intercept”, publicou material recebido de “fonte anônima”, reunindo comunicação privada entre operadores da Lava Jato, com destaque para o procurador Deltan Dallagnol e para o ministro, e ex-juiz, Sérgio Moro.

    Greenwald diz ter nas mãos arquivo gigantesco, algo maior e mais revelador que as fontes publicadas por Edward Snowden no mais que conhecido escândalo do Wikileaks.

    O material é mesmo tão bombástico a ponto de alterar substancialmente a correlação de forças e dar início a uma nova fase na cronologia da crise brasileira? Ou tudo não passa de um blefe lançado estrategicamente para mobilizar a militância de esquerda, já excitada pelas mobilizações recentes e envolvida na construção da greve geral agendada para 14 de junho?

    Só o tempo dirá. Fato mesmo é que a simples divulgação do conteúdo das supostas conversas entre Moro e Dallagol foi o bastante para mexer com o mundo político.

    A classe política acompanha com atenção. A mídia corporativa correu para defender a Lava Jato, denunciando a ilegalidade do vazamento e da publicação.

    Mas o que temos de concreto até aqui?

    O material traz a público a conspiração envolvendo Dallagnol, Moro e outros integrantes da Operação Lava Jato, com o objetivo claro de interferir nas eleições presidenciais de 2018, impedindo a candidatura de Lula e boicotando a campanha do PT.

    Dallagnol demonstra dúvidas em relação às provas disponíveis, sugerindo serem insuficientes para condenar Lula. Sérgio Moro orienta o trabalho do Ministério Público, apontando onde estariam provas mais robustas.

    Os envolvidos não negaram o conteúdo do material divulgado, o que sugere que o Intercept, de fato, tem o controle de um arquivo de grande importância jurídica e política.

    O conteúdo revelado é grave? Gravíssimo!

    O Estado democrático de direito não admite a inviolabilidade do processo legal. A coisa funciona mais ou menos assim: o MP, atuando como advogado da sociedade, identifica um indivíduo como suspeito de ter lesado os interesses públicos. O advogado de defesa, por sua vez, defende seu cliente. Todos têm direito à defesa, até mesmo os réus confessos.

    O juiz deve ouvir as duas partes com atenção, de forma imparcial, e assim julgar. Se o processo for inconclusivo, cabe ao juiz absolver o réu, pois mais vale um culpado impune do que um inocente indevidamente condenado. O marco civilizatório está fundado nestes valores.

    Quando o juiz conspira com o Ministério Público, o jogo é desequilibrado. É como se o árbitro vestisse a camisa de um dos times. O processo legal foi fraudado e o réu passa a ser vítima.

    Cá entre nós, leitor e leitora, é possível que alguém minimamente atento à cronica política brasileira não soubesse que essa conspiração estava acontecendo? É importante ter a comprovação, sem dúvida, mas não temos aqui nenhuma novidade.

    E vou além: quem no Brasil se importa com o devido processo legal?

    A crise é, exatamente, a crise das instituições. Dilma foi golpeada mesmo depois que o áudio de Romero Jucá e Sérgio Machado foi divulgado. Ali, falava-se abertamente que o impedimento era motivado pelo corporativismo dos parlamentares, que viam em Michel Temer a possibilidade de controlar da Operação Lava Jato.

    “A solução é botar o Michel, pra estancar a sangria.”

    O áudio foi divulgado, ficamos todos escandalizados e a processo de impedimento continuou, como se nada tivesse acontecido.

    O áudio foi divulgado em maio de 2016. Dilma foi afastada definitivamente no final de agosto. Três meses do áudio revelador, da impressão digital do golpe parlamentar, ressonando nos quatro cantos do país. A farsa continuou, soberbamente.

    Nada sugere que com a divulgação do dossiê da Lava Jato será diferente, pelo menos não com o que foi publicado até aqui, até o momento em que escrevo este texto.

    O conteúdo tem pouco poder de desestabilização.

    Os nichos ideológicos já formados na opinião pública não vão se movimentar porque agora temos a comprovação de que Moro e Dallagnol conspiraram para que Lula fosse preso e retirado da corrida eleitoral.

    Aqueles que estão convencidos de que Lula é corrupto, toleram sem nenhuma dificuldade o desvio ético de Moro e Dallagnol. Pelo contrário: estão ainda mais convictos de que os dois são super-heróis, o Batman e Robin que vão regenerar a República. Os fins justificam os meios.

    Os que estão convencidos de que Lula é inocente e sua prisão faz parte de um golpe de Estado em curso desde o impeachment de Dilma, agora têm provas cabais pra compartilhar nas redes sociais e nos grupos de família, gritando o desopilador “Eu avisei!”.

    A maioria da população, que mesmo tendo dúvidas a respeito da inocência de Lula seria capaz de votar nele numa eventual eleição, ficará onde está, observando com relativo desinteresse o desenrolar dos acontecimentos. Tá faltando comida no prato. As pessoas estão ocupadas.

    Porém, os desdobramentos institucionais do dossiê podem ser bastante relevantes, a depender do que venha por aí. Não creio que Lula será solto, pois os generais sabem que isso significaria desestabilizar ainda mais o já frágil governo de Bolsonaro. Mas não podemos esquecer que há juristas e políticos que só precisam de motivos para passarem como trator por cima dos menudos de Curitiba.

    Tem gente muito poderosa em Brasília babando de vontade para pegar os operadores da Lava Jato na ilegalidade. O que não falta no material já divulgado pelo Intercept é prova de que a Lava Jato feriu a legalidade. A OAB já se manifestou, solicitando que Moro e Dallagnol se licenciem de seus cargos, até que os possíveis desvios legais sejam investigados.

    Gilmar Mendes liberou para apreciação da segunda turma do STF o pedido de habeas corpus apresentado pela defesa de Lula, que estava retido desde janeiro, quando Moro assumiu o Ministério da Justiça. A segunda turma é formada por Carmen Lúcia, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandovsky e Celso de Mello. Duvido muito que se forme maioria a favor do ex-presidente, mas a abertura da discussão, em si, sinaliza que os antilavajistas passam a ter trunfo importante na manga.

    Tem também o constrangimento político, que não é pequeno.

    E se nos próximos dias vazarem declarações de Moro ofendendo outras autoridades,como parlamentares e ministros da Suprema Corte? A vaga no STF, a aprovação do pacote anticrime e sua própria atuação como ministro da Justiça ficariam bastante dificultadas, talvez inviabilizadas.

    O cargo de ministro da Justiça é essencialmente político. Um ministro bloqueado pelo Congresso Nacional, que tem suas ações questionados pelo STF, não serve pra nada, não faz nada.

    Enfim, o conteúdo divulgado até aqui ainda é tímido, surpreende pouco, apesar de todo o barulho. A ver o que vai acontecer nos próximos dias. Ao que parece, o 9 de junho, outro domingo de crise, está longe de terminar.

     

  • Governo Bolsonaro que reduzir em 90% ás normas de segurança e saúde no trabalho

    Governo Bolsonaro que reduzir em 90% ás normas de segurança e saúde no trabalho

    Do site da ANPT

    Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) divulgaram nesta quarta-feira, 15/05, nota pública na qual apontam diversos fatores pelos quais não concordam com a redução de 90% das Normas Regulamentadoras (NRs) de segurança e saúde no trabalho vigentes no país, conforme declaração do presidente da República, Jair Bolsonaro.

     

    Segundo as entidades, constitui retrocesso inadmissível qualquer esforço de revogação dessas NRs, a bem da redução dos custos de produção. “Propor o enxugamento dos custos previdenciários – como o Governo tem proposto ao Congresso Nacional, a reboque da PEC n.6/2019 –  e ao mesmo tempo sugerir relaxamento das normas de saúde e segurança do trabalho significa, ao cabo e fim, entoar um discurso essencialmente incoerente, potencialmente inconsequente e economicamente perigoso”, afirma trecho do documento.

     

    Confira abaixo a íntegra da nota.

     

    NOTA PÚBLICA – Normas Regulamentadoras

    As entidades abaixo subscritas, representativas dos membros do Ministério Público do Trabalho e da Magistratura do Trabalho de todo o Brasil, tendo em vista as declarações proferidas em redes sociais, no último dia 13 de maio de 2019, pelo Exmo. Senhor Presidente da República Jair Bolsonaro, de que o governo promoverá redução de 90% nas Normas Regulamentadoras (NRs) de segurança e saúde no trabalho vigentes no país, vêm a público externar o seguinte:

    1. Decorridos menos de quatro meses do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho – MG, estimado o maior acidente de trabalho da história brasileira, dando causa à morte de mais de 300 (trezentos) trabalhadores, constitui retrocesso inadmissível qualquer esforço de revogação das normas de prevenção de acidentes e adoecimentos no trabalho, a bem da redução dos custos de produção.

     

    1. O Brasil figura no cenário internacional como o 4º país do mundo em números de acidentes de trabalho. Segundo dados do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho do Ministério Público do Trabalho, entre 2012 e 2018 ocorreram no país cerca de 4.738.886 acidentes de trabalhos notificados – sendo 17.315 com óbito -, o que corresponde à média de um acidente de trabalho a cada 49 segundos. Isto significou, entre 2012 e 2018, 370.174.000 dias de afastamento previdenciário, impondo à Previdência Social custos na ordem de R$ 83 bilhões de reais em benefícios acidentários. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os acidentes e doenças de trabalho resultam na perda anual de 4% do Produto Interno Bruto, percentual que, no Brasil, corresponde a R$ 264 bilhões, considerando o PIB de 2017. Logo, propor o enxugamento dos custos previdenciários – como o Governo tem proposto ao Congresso Nacional, a reboque da PEC n.6/2019 – e ao mesmo tempo sugerir relaxamento das normas de saúde e segurança do trabalho significa, ao cabo e fim, entoar um discurso essencialmente incoerente, potencialmente inconsequente e economicamente perigoso.

     

    1. As normas regulamentadoras do extinto Ministério do Trabalho cumprem, no campo laboral, a função constitucional de tutela da pessoa humana, no marco dos arts. 4º, II, e 5º, caput, CF, e também do meio ambiente equilibrado, na esteira dos arts. 225 e 200, VIII, CF, como já destacado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4066/DF. Daí porque a flexibilização da legislação ambiental trabalhista – necessariamente precaucional e preventiva , aliada à tarifação do dano moral introduzida nas relações de trabalho (art. 223-G da CLT), banaliza a vida humana e a instrumentaliza para a produção de baixíssimo custo, além de representar injustificável restrição na independência técnica de magistrados e membros do Ministério Público que, sob o pálio do Estado Democrático de Direito, devem ter mínimo respaldo para agir preventiva e repressivamente de acordo com a gravidade e a circunstância de cada caso concreto, a salvo de tarifações ou desregulamentações não dialogadas com a sociedade civil organizada.

     

    Brasília/DF, 14 de maio de 2019.

     

    Ângelo Fabiano Farias da Costa

    Presidente da ANPT

     

    Guilherme Guimarães Feliciano

    Presidente da ANAMATRA