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Categoria: memória e Justiça

  • Sargentos gays vão ao CNJ contra desembargadora que caluniou Marielle

    Sargentos gays vão ao CNJ contra desembargadora que caluniou Marielle

     

     

    Os sargentos gays FERNANDO ALCÂNTARA DE FIGUEIREDO e LACÍ MARINHO DE ARAUJO ganharam fama em junho de 2008, quando denunciaram a homofobia institucional no Exército do Brasil. Primeiro casal homossexual assumido na ativa das Forças Armadas no Brasil, os dois foram matéria de capa da revista Época, o que lhes custou uma série de retaliações envolvendo ordem de prisão, atentados e até mesmo tortura física. O caso de ambos os sargentos já foi admitido pela Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acolheu a denúncia deles e transformou o Estado brasileiro em RÉU, acusado do crime de ódio; no caso, homofobia.

    Desde então, Fernando e Lací lutam pelo reconhecimento de seus direitos e de todos aqueles que sofrem com o preconceito. Assim, em 1º de dezembro de 2010, fundaram o Instituto SER de Direitos Humanos e da Natureza, organização sem fins lucrativos que atua em direitos sociais e ambientais.

    A desembargadora MARÍLIA CASTRO NEVES, em foto no seu perfil do facebook

    Dessa forma, entre outras frentes de luta, eles ingressaram nesta terça-feira (20/3) com uma Reclamação Disciplinar junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), contra a flagrante atuação degradante por parte da desembargadora MARÍLIA CASTRO NEVES, que escreveu um post nas redes sociais, em que caluniou a vereadora assassinada Marielle Franco, dizendo que ela “estava engajada com bandidos” e “não era apenas uma lutadora”.

    Fernando e Lací requisitaram ao CNJ a “urgência” e a “punição” que o caso requer. Abaixo, a reclamação deles, entregue ontem ao CNJ.

  • RESISTÊNCIA AO GOLPE

    RESISTÊNCIA AO GOLPE

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Resistência, temos aí aquele tipo de palavrinha bonita, que não tem como ter conotação negativa. A resistência é sempre bem-vinda, cercada de certo romantismo. É na resistência que nascem os heróis. “Estar na resistência” é sempre visto como algo positivo, seja a “resistência” comandada pela princesa Leia, a resistência francesa de De Gaulle, ou a resistência de Mandela e Malcom X.

    É sobre a tal resistência que escrevo, com interesse específico na resistência à brasileira em tempos de golpe. Temos aqui aquele tipo de assunto meio casca de banana, que faz muita gente boa escorregar.

    Os intelectuais progressistas costumam cometer dois erros graves sempre que falam sobre “resistência”. Os erros apontam para duas interpretações opostas do fenômeno que possuem a mesma origem: a colonização intelectual, o que na prática nada mais é do que a tentativa de interpretar a realidade brasileira com ideias que foram produzidas em função de outras realidades.

    Em síntese os erros são:

    1) Diante da ausência de resistência direta, alguns endossam a velha tese da apatia popular. O povo brasileiro seria passivo, indolente, preguiçoso e pouco dado ao ativismo político. Temos aqui um caso patológico de colonização intelectual, pois o modelo de “resistência” é dado pela história das sociedades europeias, pela organização da sociedade civil em partidos políticos, sindicatos, pela ação direta do “povo” nas ruas, pressionando o poder público.

    Como o povo não atende ao chamado, a tese da apatia popular surge quase como a consequência lógica de uma expectativa frustrada. Ah, as expectativas, sempre inimigas da análise.

    2) Do outro lado, estão aqueles que negando a tese da apatia popular acabam idealizando as ruas, estando sempre à espera da ‘acontecença’ da revolução. Qualquer movimentação popular nas ruas se torna a antecipação do futuro revolucionário, ainda que seja carnaval ou jogo do Flamengo. Também aqui há colonização intelectual, mas pelo caminho inverso: como o modelo de resistência popular ainda é o europeu, a tentativa, por vezes desesperada, é aplicá-lo ao Brasil, forçando a realidade a se enquadrar na categoria que já está dada.

    Pra escapar dos dois escorregões, meu objetivo aqui é pensar a resistência nos termos que me parecem adequados à experiência brasileira e pra isso lanço mão de uma categoria fundamental: “imaginário”.

    Vários estudiosos da sociedade já utilizaram o conceito imaginário nas suas reflexões. Entre todos esses usos, a definição proposta pelo filósofo grego Cornelius Castoriadis (1922-1997) é que mais me inspira no esforço de interpretar o Brasil contemporâneo. É claro que Castoriadis não estava estudando a realidade brasileira e por isso a reflexão que ele propõe serve como inspiração e não como um modelo rígido a ser aplicado no Brasil.

    Em resumo, Castoriadis define o imaginário como uma forma de pensar distribuída socialmente e formada por ideias que “já estão aí há muito tempo”. Essas ideias, por diversos motivos, “funcionaram e funcionam na sociedade”, ganharam adesão popular e passaram a configurar o pensamento das pessoas.

    Ao menos na minha avaliação, a resistência à brasileira nestes tempos de golpe está no plano do imaginário e vem se mostrando a única força capaz de retardar o desmonte do Estado brasileiro. Não é porque o povo não está nas ruas, participando dos atos que organizamos com todo amor e carinho, que ele está apático.

    E não, não adianta dizer que MTST, MST, CUT, UNE que estavam nas ruas defendendo Dilma e que estão nas ruas defendendo Lula, dão conta daquilo que é o “povo brasileiro”. São movimentos sociais organizados importantes, fundamentais para o nosso experimento democrático, mas possuem capacidade de mobilização bastante reduzida. Isso não é culpa dos dirigentes desses movimentos.

    Vivemos hoje, no Brasil e no mundo, tempos de desmobilização. As agendas coletivas não mobilizam mais. As pessoas olham umas para as outras e enxergam mais diferenças que semelhanças. Mas isso é assunto para outra reflexão.

    Retomando o fio…

    Fato, fato mesmo é que o “o povo brasileiro”, o povão mesmo, ainda não foi às ruas tomar partido nos conflitos que desde 2013 desestabilizam a cena política nacional. Nem os movimentos “coxinhas”, impulsionados pela mídia hegemônica e por movimentos sociais como o MBL, e nem os atos convocados pelos movimentos sociais tradicionais de esquerda foram capazes de mobilizar o “povão”, aquela camada da sociedade que vive com salário mínimo. Até aqui, nas ruas, o conflito foi travado entre frações da classe média.

    O povão, povão mesmo, até fez-se presente na cena dos conflitos, nas ruas, vendendo cerveja, bandeiras vermelhas e bandeiras do Brasil, dependendo da ocasião. De bobo, o povão não tem nada. E vejam que não se trata aqui de apatia. Essas pessoas estão ocupadas sobrevivendo, plantando no almoço pra colher na janta. Elas já apanham da polícia todos os dias. A galera não tá a fim de levar bala de borracha no lombo e gás de pimenta na cara.

    Mas isso não significa que o povão não esteja participando do jogo, pois o jogo não é jogado apenas nas ruas, na ação política direta. O jogo é jogado também no imaginário, e aqui o campo progressista está vencendo, vencendo de lavada, e não é uma vitória pouco importante. Dois fatores apontam para essa vitória.

    Fator 1 – A sobrevivência política de Lula.

    Lula é alvo da maior perseguição midiática da história do Brasil. Os ataques da mídia hegemônica às lideranças populares não é nenhuma novidade. Se nos debruçarmos sobre o Brasil moderno, de 1930 pra cá, veremos a artilharia da mídia hegemônica mirando em Getúlio, Jango, Arraes, Brizola, Dilma e no jovem Lula. Quem não lembra daquele fatídico debate manipulado pela Globo em 1989?

    Mas o que está acontecendo com Lula desde 2013 é de uma intensidade singular. Os operadores da grande mídia foram para o tudo ou nada e tomaram a destruição da figura pública de Lula como grande objetivo. Mas Lula não morreu e todas as pesquisas mostram que sua popularidade cresce a cada dia. Hoje, Lula partiria pra corrida eleitoral com 30% das intenções de voto, assim, sem campanha. É muita coisa.

    É que a manipulação midiática tem limites, meus amigos. Ao se tornar o alvo predileto do golpe de Estado levado a cabo pela aliança entre a mídia hegemônica e o judiciário, Lula tornou-se também o principal antagonista do golpe. E como o golpe é neoliberal, tendo como objetivo o desmonte do Estado, Lula encarnou a imagem do Estado provedor de direitos, que é o valor mais importante no imaginário político brasileiro.

    Desde os anos 1930 que o Estado brasileiro tem essa função: prover direitos sociais aos mais pobres, ainda que de forma autoritária, ainda que às custas dos direitos civis e dos direitos políticos. Intuitivamente, a população mais vulnerável entendeu que Michel Temer representa a desregulamentação, o ataque ao Estado e que Lula personifica a função social do Estado.

    Juntemos isto à memória recente de que na “Era Lula” a vida estava melhor e entenderemos a sobrevivência política de Lula, mesmo que muitos de seus potenciais eleitores não estejam plenamente convencidos de sua inocência. Tem muita gente que vota em Lula mesmo achando que ele seja corrupto.

    Fator 2 – A derrota do projeto da Reforma da Previdência.

    A Reforma da Previdência é projeto natimorto pela mesma razão que explica a sobrevivência de Lula. Os parlamentares estão com medo de colocar sua assinatura em um projeto que violenta aquele que é o princípio basilar do imaginário político brasileiro: a definição do Estado como agente provedor de direitos sociais.

    O povão pode até não tá montando as charmosas barricada nas ruas que tanto embalam os devaneios revolucionários da esquerda brasileira, mas ainda tem título de eleitor, ainda vota e, ao que parece, o golpe não ousou (ou não foi capaz) de alterar o calendário eleitoral.

    O que tentei fazer neste texto foi dizer algo simples, talvez até mesmo óbvio: a resistência popular já está acontecendo, mas não na receita das sociedades europeias. A resistência está acontecendo no plano do imaginário, nesse “já está aí há muito tempo”. A resistência é conservadora, no sentido mais básico do termo.

    É claro que o imaginário se transforma historicamente, não é fácil e não é rápido, mas se transforma. É isso que a mídia hegemônica, representando os interesses do neoliberalismo nacional e internacional, está tentando fazer.

    Cada vez que Gerson Camarotti tenta convencer os garçons brasileiros que a reforma trabalhista irá lhes permitir fazer “trabalho intermitente” em mais de um restaurante, é o imaginário quem está sendo atacado.

    Sempre que Fátima Bernardes traz no seu programa uma empreendedora negra que se “libertou da opressão do patrão” abrindo seu próprio negócio, é a imagem da cidadania se definindo pelo trabalho formal que está sendo atacada.

    Cada vez que, no Fantástico, Lima Duarte e Fernanda Montenegro são representados como símbolos da saúde laboral na terceira idade é a imagem da previdência social pública que está sendo atacada.

    Sim, meus amigos, o imaginário também se transforma e as forças motoras do golpe estão apostando todas as suas fichas nisso. Porém, as pesquisas sobre opinião pública sugerem que esse esforço não está sendo eficaz. É que tá tendo resistência. O povo brasileiro já está resistindo ao golpe, do seu jeito, nas suas possibilidades. Se a resistência está aquém da expectativa é porque problema está nas expectativas.

    (*) Com ilustração de Paulo Stocker
  • A intervenção militar no Rio: dos juízes aos generais

    A intervenção militar no Rio: dos juízes aos generais

    Artigo de Luiz Eduardo Soares*

    A situação da segurança pública no Rio é gravíssima e, portanto, não há mais lugar para discursos oficiais defensivos e auto-indulgentes. O crime organizado se espalhou como por metástase, mas note bem: só há crime organizado quando estão envolvidos agentes do Estado. Segmentos numerosos e importantes das instituições policiais não apenas se associaram ao crime, mas o promoveram – e aqui se fala sobretudo no mais relevante: tráfico de armas, crime federal. O que fez a Polícia Federal ? O que fez o Exército, responsável com a PF pelo controle das armas? O que fez a Marinha para bloquear o tráfico de armas na Baía de Guanabara? O Estado do Rio está falido, suas instituições profundamente atingidas, mas o que dizer do governo federal e dos organismos federais? De que modo uma ocupação militar resolveria questões cujo enfrentamento exige investigação profunda e atuação nas fronteiras do estado, além de reformas institucionais radicais e grandes investimentos sociais?

    Os próprios militares sabem que não podem nem lhes cabe resolver o problema da insegurança pública. Sua presença transmitirá uma sensação temporária de que o Rio se acalmou, porque os sintomas estarão abafados, mas nada será solucionado e a solução sequer será encaminhada. Basta analisar o que se passou na Maré: o Exército ocupou as favelas por um ano, desgastou-se na relação com as comunidades, a um custo de R$ 600 milhões, e tão logo as tropas se retiraram, os problemas retornaram com mais força.
    Já que não se trata de enfrentar os verdadeiros e permanentes desafios da segurança pública, muito menos resolvê-los, a que serve a intervenção: são três, a meu ver, suas funções, todas de natureza eminentemente política – é lamentável que os militares se prestem a esse papel, deixando-se manipular, politicamente, como peões em um jogo de cartas marcadas.

    1 – Muda-se a narrativa sobre a realidade do Rio, investindo-se na expectativa sebastianista da redenção, que se realizaria, nesse caso, pelas Forças Armadas, em especial o Exército, e pelo governo federal. Um projeto dessa magnitude não seria implantado sem um acordo com a grande mídia, porque sua descrição dos fatos e sua escolha de focos serão decisivas para o êxito político da operação. Ela consistirá essencialmente no deslocamento de Bolsonaro, abrindo-se um espaço para que uma candidatura de centro-direita, em nome da lei e da ordem, mas legalista, capture o eleitorado de direita: ter-se-ia, assim, uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro. Sai o capitão aventureiro e desorienatdo e entram generais formalmente legalistas, embora “duros”. Abre-se novo espaço para candidaturas no Rio e no país, e para a emergência de lideranças “de fora da política” e “impolutas”. Parece que está em curso uma transição: aos poucos, deixamos de ser o país dos juízes para nos tornarmos a nação dos generais – de novo, ainda que, dessa vez, com cobertura legal, uma vez que, depois do impeachment, qualquer atropelo às leis poderá ser tolerado desde que os fins justifiquem, para seus operadores, os meios.

    As denúncias relativas ao auxílio moradia contra Moro e Bretas, poucos dias depois da condenação de Lula em segunda instância, deixa claro que, para a mídia e as elites que mandam no país, em particular o capital financeiro e seus sócios internacionais, o papel dos magistrados já foi cumprido e agora é tempo de “cortar suas asinhas” para evitar que acreditem no próprio personagem e avancem sobre o PSDB, os bancos e as corporações midiáticas. Como se vê, a intervenção militar no Rio complementa a exclusão de Lula da disputa eleitoral, uma vez que não seria suficiente exclui-lo e prosseguir na sistemática marginalização da candidatura Ciro Gomes, se a direita e o centro não se entendessem e criassem uma alternativa viável.

    2 – Atuando-se reativamente na emergência, impede-se mais uma vez que alcancem a agenda pública temas fundamentais: (a) a política de drogas; (b) a reforma do modelo policial e a refundação das polícias, com a mudança do artigo 144 da Constituição (por exemplo, com a aprovação da PEC-51 que o senador Lindbergh Faria apresentou em 2013); (c) a repactuação entre o Estado e as comunidades que vivem em territórios vulneráveis, em especial a juventude, de modo a que as instituições policiais deixem de ser parte do problema e se transformem em parte da solução. Hoje, as execuções extra-judiciais são a regra, o que leva analistas a declarar que essas áreas estão sob a regência de um Estado de exceção. Infelizmente, isso ocorre com a anuência, por cumplicidade ou omissão, do Ministério Público e as bençãos do poder Judiciário; (d) o investimento em infraestrutura, educação e cultura, e a abertura de novas oportunidades para a juventude mais vulnerável, respeitando-se as camadas populares e, assim, bloqueando o aprofundamento do racismo estrutural. Os recursos, aos bilhões, viriam do corte no pagamento de juros aos rentistas.

    3 – Um efeito lateral nada desprezível seria a suspensão das votações no Congresso da reforma da previdência, salvando o governo de uma derrota, no item que supostamente justificaria sua ascensão ao poder. Por mais que, hoje, o governo negue essa possibilidade, está aberta a temporada de caça a brechas judiciais para obstar o processo de votação.

    Não posso concluir sem chamar atenção para os riscos que a intervenção militar representa para os moradores das comunidades e para os próprios militares, que são jovens e não foram treinados senão para o enfrentamento de tipo bélico. A primeira morte provocada por um militar, em decorrência da nova legislação, será julgada pela Justiça militar, o que poderá transferir para a arena jurídico-política internacional a problemática da ocupação do Exército, tornando a operação política um desastre, a médio prazo, a despeito do provável apoio ufanista da grande mídia. Por outro lado, se um militar for atingido mortalmente, as consequências serão imprevisíveis, fazendo girar mais rápida e intensamente o círculo, ou a espiral da violência.
    Além de tudo, não nos esqueçamos do exemplo mexicano: quando as Forças Armadas se envolvem na segurança pública, abrem-se as portas para sua degradação institucional.

     (*) Antropólogo, cientista político e escritor, é um dos maiores especialistas em segurança pública do país. Foi secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro durante o governo Anthony  Garotinho e ocupou a Secretaria Nacional de Segurança Pública no governo Lula, tendo sido afastado dos dois cargos por pressões políticas. Na carreira de escritor, Soares foi co-autor dos best-sellers Elite da Tropa e Elite da Tropa 2.
  • Há um curto-circuito no coração do golpe

    Há um curto-circuito no coração do golpe

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Acho que poucos de nós duvidam que a palavra “corrupção” é o termo chave da crise brasileira contemporânea. Uma crise que começou em junho de 2013, mas que deita suas raízes mais profundas lá em 2005, na ocasião do que já na época ficou conhecido como o “julgamento do mensalão”.

    Aqui neste ensaio, quero mostrar como essa palavrinha mágica pode ser entendida de várias maneiras e como a história da crise brasileira contemporânea pode ser contada a partir do privilégio de um desses sentidos: o sentido “liberal”, segundo o qual a “corrupção” está diretamente vinculada ao Estado, a tudo que é público. É como se o Estado fosse naturalmente corrupto e corruptor e o combate à corrupção passasse, necessariamente, pelo combate ao Estado, pelo desmonte do Estado.

    O privilégio dessa leitura liberal do fenômeno da corrupção diz muito sobre a crise, especialmente sobre os seus movimentos mais recentes. De uns dias pra cá, os veículos mais poderosos da imprensa hegemônica brasileira (Folha de São Paulo, o departamento de jornalismo da Rede Globo, Estadão) vêm abrindo fogo contra os privilégios dos juízes, que já são conhecidos por todos nós há muito tempo. Por que somente agora a imprensa hegemônica denuncia os privilégios nababescos dos juízes brasileiros? Penso que estamos entrando num novo momento da cronologia da crise, em que a aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até então sólida como pedra, começa a fazer água. Também aqui a leitura liberal do conceito “corrupção” tem uma importante função política a cumprir.

    Bom, pra começar a conversa é importante esclarecer melhor o que estou querendo dizer quando afirmo que o conceito “corrupção” é polissêmico, que possui vários sentidos. Pra isso, cito, bem rápido, alguns autores que ao longo da história da cultura política ocidental usaram a palavra “corrupção”, fazendo-o de diferentes formas.

    Para Aristóteles, que que no IV século antes de Cristo escreveu o tratado da “Política”, a “corrupção” era o efeito natural do tempo sobre os organismos políticos. Maquiavel, escrevendo no século XVI da era cristã, seguiu a trilha aberta por Aristóteles e definiu a “corrupção” como a perda da capacidade da República em institucionalizar os conflitos travados entre seus cidadãos. Chamo de “republicana” essa forma de tratar a corrupção.

    Karl Marx, escrevendo no século XIX, enfrentou o tema da corrupção em um livro pouco conhecido, cujo título é “A luta de classes na França entre 1848 e 1850”. Basicamente, Marx argumenta que falar em “corrupção política” no sistema capitalista é uma redundância, pois o próprio capitalismo já é corrupto, na medida em que se fundamenta na exploração de uma classe pela outra. Essa é a definição marxista.

    Nenhuma dessas formas de pensar associou a “corrupção” ao roubo do dinheiro público. Vamos encontrar essa associação sendo feita de forma mais clara nos textos que Friedrick Hayek escreveu ao longo do século XX. Preocupado em discutir o tema da “ética na política”, Hayek definiu a corrupção como a apropriação para fins particulares dos recursos públicos. Como o objeto da corrupção seria o dinheiro público, a definição proposta por Hayek sugere que o terreno da “coisa pública”, do “Estado”, é solo fértil para a corrupção. Podemos chamar essa definição de “liberal”.

    Bom, o conceito “corrupção” tem, pelo menos, três significados distintos: o republicano, o marxista e o liberal. Nem carece de gastar muito papel e tinta pra mostrar que na crise brasileira contemporânea um desses significados foi privilegiado: o liberal. Ao menos na minha avaliação, isso não aconteceu à toa, sendo um projeto planejado deliberadamente por segmentos poderosíssimos das elites brasileiras para realizar um antigo sonho, para viabilizar um projeto que vem sendo frustrado desde a década de 1940.

    Que projeto é esse? Que sonho é esse que animou durante esse tempo todo o sono da direita brasileira, mas que jamais foi plenamente realizado?

    Pra responder, apresento uma breve síntese da história contemporânea do Brasil. Síntese histórica é igual prudência e canja de galinha: é sempre bem-vinda. O conhecimento histórico é útil à vida.

    Trata-se do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, projeto que começou a ser defendido no final dos anos 1940 pela UDN, partido político que na época foi o portador da narrativa da redemocratização que marcou a transição da Ditadura do Estado Novo para a ordem democrática que se consolidaria em 1945. Não era, ainda, o “Estado Mínimo” neoliberal, mas sim um projeto desenvolvimentista internacionalista que priorizava o mercado e o capital, considerando o Estado um obstáculo para a prosperidade nacional.

    Esse projeto desenvolvimentista jamais foi aprovado nas urnas, o que explica em parte o transformismo golpista da UDN. Em algum momento da década de 1950, a UDN cansou de brincar de eleição e passou a recorrer ao expediente golpista. Já que o povo não colaborava, a UDN resolveu caminhar sem o povo mesmo. A aproximação com os militares foi uma consequência quase natural.

    A aliança entre a UDN e os militares viabilizou o golpe civil-militar de 1964. Mas como os militares não são seres acéfalos, não serviram como simples instrumento para a realização do projeto udenista. Acabou mesmo que a UDN deu com os burros n’água, pois os milicos sentaram na cadeira do poder e ali ficaram por mais de 20 anos, perseguindo até mesmo os aliados de véspera, como o líder udenista Carlos Lacerda.

    E o pior para o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” vou contar agora: os militares não efetivaram o projeto udenista, pelo contrário, já que em vários aspectos os governos militares podem ser definidos como estatais-desenvolvimentistas. Isso não significa um elogio aos militares, bem longe disso, pois a ditadura foi fundada em um golpe que destituiu um governo democraticamente eleito. Diante desse vício de origem, nenhum ato da ditadura militar pode ser considerado legítimo.

    Enfim, não foi com a UDN e não foi com os militares que o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” se tornou realidade.

    O projeto voltou com força no final dos anos 1980 e pautou as eleições presidenciais de 1989. Sob a batuta do “Consenso de Washington”, um jovem político alagoano, bonitinho mas ordinário, prometeu “caçar os marajás”. Ou em outras palavras, combater a “corrupção”. Adivinhem como? Enxugando o Estado.

    Sabemos bem o que aconteceu com esse jovem e charmoso político alagoano. Collor também não conseguiu realizar o velho sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”.

    Com um discurso de propaganda em muitos aspectos parecidos com o de Collor, só que acrescido da narrativa da “estabilidade econômica resultante do plano real”, Fernando Henrique Cardoso se submeteu às urnas em 1994. E venceu. Havia chegado a vez do príncipe da sociologia uspiana tentar realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, dessa vez com a legitimidade de uma vitória eleitoral.

    O sucesso foi relativo. Sem dúvidas, FHC avançou mais que seus antecessores, mas no final dos seus oito anos de governo ficou a sensação de que foi pouco, de que dava pra entregar mais. O neoliberalismo é um lobo faminto.

    Por mais que o governo de Lula tenha negociado com a agenda neoliberal, apenas com muita desonestidade intelectual seria possível dizer que o desmonte iniciado pelos tucanos foi mantido pelos governos petistas. Com a eleição de Lula, o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” sofreu um duro revés. Mas o lobo não é só faminto. É insistente e teimoso também.

    O que estou querendo dizer é: A crise brasileira contemporânea representa uma nova ofensiva desse lobo neoliberal contra o Estado brasileiro e pra isso é necessário algo a mais do que o simples argumento macroeconômico. É que esse negócio de economia, de números, não convence muito, tem pouca eficiência retórica.

    É aqui que o tratamento da “corrupção” na perspectiva liberal vai cumprir sua função discursiva, ao definir o Estado como o antro da corrupção, como o cabaré da imoralidade. A diferença é que a experiência mostrou que o marketing político não basta, que é necessário algo mais forte: a judicialização da política. Nasce assim, lá em 2005, a aliança que até a semana passada era a força política mais poderosa da República: o concubinato entre a mídia hegemônica e setores do poder judiciário.

    Quem não lembra de Joaquim Barbosa, o homem da capa preta que prometia colocar todos os políticos corruptos na cadeia?

    O tal combate à corrupção foi seletivo e serviu apenas para desestabilizar os governos petistas, que estavam fortalecendo o Estado como grande agente de regulação estratégica do desenvolvimento nacional. Lideranças petistas foram perseguidas judicialmente, como foi o caso de José Dirceu e José Genoíno, e isso sob os aplausos de uma opinião pública raivosa, com fome de vísceras.

    Pouco importava o devido processo legal, desde que os “corruptos” fossem punidos e os “corruptos”, é claro, eram as lideranças petistas. Pronto! A matriz da crise está aqui. Só que do outro lado tinha um certo Luiz Inácio, cabra esperto, inteligente, que conseguiu sobreviver à primeira ofensiva do conglomerado “judiciário/imprensa hegemônica”.

    Nos anos seguintes, com a prosperidade econômica resultante do boom das commodities, os ânimos foram pacificados. Tava entrando dinheiro no bolso de todo mundo e a opção lulista em não tensionar as contradições estruturais fez com que o lobo faminto e temporariamente saciado pudesse dormir.

    O jogo mudou a partir de 2013, em virtude da combinação da crise econômica com algumas escolhas políticas da presidenta Dilma. Pois sim, em muitos aspectos o “dilmismo” é diferente do “lulismo”. Ainda precisamos avançar na conceituação do “dilmismo”. Não é isso que faço aqui.

    O lobo acordou, mais faminto que nunca e viu naquele momento uma chance de ouro para realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”. Outra vez foi evocada a narrativa liberal do combate à corrupção. Foi assim que o governo da presidenta Dilma foi desestabilizado, foi com essa semântica que o golpe de 2016 se efetivou, novamente sob os aplausos dos “brasileiros de bem”, indignados com a corrupção.

    Mal sabiam os “brasileiros de bem” que eles estavam sendo bombardeados por uma narrativa que deu ao conceito “corrupção” um sentido específico, que de forma alguma é o único. Assim, com essa narrativa, Dilma foi derrubada e Lula condenado, em processos jurídicos profundamente politizados e questionados pela comunidade jurídica nacional e internacional.

    Acontece que a crise é um processo em movimento que ainda não acabou. Ao que parece, acabamos de entrar num outro momento da cronologia da crise: com Lula condenado e virtualmente preso, chegou a hora do lobo neoliberal devorar todo o banquete. O lobo é insaciável.

    E pra matar a fome do lobo, nada melhor do que servir, numa bandeja de prata, os privilégios do judiciário. Não é possível a realização do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” com um judiciário tão caro, cheio dos privilégios, cheio das pensões vitalícias.

    Bastaram menos de 72 horas após a condenação de Lula para aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até aqui marcada por lealdade recíproca, se dissolver. Moro, Dallagnol, Bretas, até então representados como heróis nas páginas dos principais jornais da imprensa brasileira, se tornaram aproveitadores da coisa pública, se tornaram corruptos.

    Justo agora, os privilégios tão conhecidos por todos nós começaram a incomodar a imprensa hegemônica. De forma alguma, quero defender os juízes, mas precisamos entender que os ataques midiáticos ao judiciário fazem parte do mesmo projeto neoliberal que desestabilizou o reformismo petista. O lobo é faminto, teimoso e criativo. Tomara que as esquerdas brasileiras não se deixem seduzir pelo uivo do lobo, travestido de canto de sereia. Tem sereia não, meus amigos. É lobo mesmo, com os dentes enormes, mais perigoso que aquele jantou a chapeuzinho vermelho. Ou almoçou? Não sei.

    Escrever no olho do furacão é sempre um desafio e aquele que se arrisca acaba botando a língua na guilhotina. Não tem jeito. Por isso, arrisco a integridade da minha língua dizendo que temos um elemento novo na cronologia da crise brasileira.

    As duas forças que juntas foram as responsáveis pela aplicação do golpe têm projetos distintos e até mesmo rivais para o futuro da nação: de um lado, o judiciário querendo uma República dos bacharéis, onde os magistrados serão os guardiões da moral pública, com a devida recompensa, sob a forma de privilégios que não estão disponíveis a nenhum outro setor do funcionalismo público. Do outro lado, a imprensa hegemônica, que representando os interesses do neoliberalismo vê na atual conjuntura de crise a chance para tornar realidade, de uma vez por todas, o antigo sonho do “Estado Mínimo” brasileiro.

    Há um curto-circuito no coração do golpe! Em tempos tão difíceis, com tantas notícias ruins, talvez exista aqui algo a se comemorar.

    (*) Com ilustração de Cau Gomez

     

  • NOTA DE REPÚDIO

    NOTA DE REPÚDIO

     

    Bloco fascista celebra o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra

    O Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça, que reúne ex-presos políticos e ativistas de direitos humanos, repudia veementemente a decisão da juíza Daniela Pazzeto Meneghine Conceição, que permite o desfile neste Carnaval de um grupo fascista, auto denominado Porão do Dops, que faz apologia à tortura e enaltece reconhecidos torturadores, que atuaram na ditadura militar.

    Consideramos que a decisão da juíza Daniela, além de desrespeitar a memória das vítimas que tombaram dentro das masmorras da ditadura e os ex-presos que sobreviveram às sevícias de torturadores, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e o delegado Sérgio Paranhos Fleury, ídolos desse grupelho fascista, ainda contribui para a agressão ao estado democrático de direito, possibilitando a disseminação de ódio nas ruas da capital paulista.

    Não bastasse tudo isso, a juíza em seu veredito, ao conceder a liminar que autoriza o desfile, ainda demonstrou ignorância ou má-fé. Diz ela que as pessoas enaltecidas pelo bloco Porão do Dops “sequer foram reconhecidas judicialmente como autores de crimes perpetrados durante o regime ditatorial”. Como pode a juíza Daniela desconhecer a decisão da Primeira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que confirmou, por unanimidade, a sentença de primeira instância, que reconheceu o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra como notório torturador?

    Com sua decisão, a magistrada revela, também, que se manteve alheia ao relatório da Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes da ditadura e apontou tanto Ustra quanto Fleury, como reconhecidos torturadores de ativistas que lutaram contra a ditadura militar.

    Em tempos de condenação sem provas e indulgência a criminosos, o Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça reitera sua luta pela punição dos torturadores e sua posição de nenhuma concessão a apologistas da tortura e dos agentes de Estado que perpetraram violações aos direitos humanos.

    Por tudo isso, nos somamos a todos aqueles que estão unidos para impedir esse desfile macabro, numa festa popular, que nasceu como resistência aos do andar de cima.

    Fora Porão do Dops!

  • Concurseiros decidem os destinos da Nação

    Concurseiros decidem os destinos da Nação

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia

    Durante cinco anos, trabalhei em uma das maiores universidades particulares do Brasil. Aquela onda operário, professor horista, salário dependendo da quantidade de turmas.

    Lecionei para tudo quanto foi curso: moda, administração, pedagogia, história, direito.

    O curso de direito é o grande filão de mercado desse tipo de empresa. Duas coisas sempre me impressionaram, desde a primeira vez em que atuei no curso de direito: as expectativas dos alunos e o perfil dos professores.

    A grande maioria dos alunos não buscava os estudos jurídicos movida pela ideia de vocação ou pela vontade de estudar as leis como um exercício de compreensão da realidade. Quase todos viam a universidade como um tipo de curso preparatório para concursos públicos.

    O concurso público era visto como um fim em si, e não como uma forma de ter acesso ao emprego público e colaborar com a sociedade. O objetivo era o emprego público, pouco importando qual fosse o cargo ou a natureza do trabalho.

    Não havia muito interesse em discutir, em ler nenhum assunto que não fosse considerado algo absolutamente necessário para o sucesso no concurso público. O curso de direito naquela universidade particular era pouco mais que isso: fábrica de concurseiros.

    O pior é que a mentalidade dos professores, dos meus colegas, não era muito diferente. Não era mesmo.

    Convivi com Delegados, Juízes, Advogados, Procuradores, Desembargadores. Uma gente bem vestida, os homens trajando terno e gravata, as mulheres com saia social, saltão.

    Alguns eram um tanto cafonas: relógios grandes e dourados, bolsa com estampa de vaquinha, de oncinha. Confesso que de vez em quando eu debochava mentalmente. Ora ou outra nem tão mentalmente assim. Acho que por isso a galera não gostava muito de mim.

    Enfim.

    Fato é que a convivência sempre foi tensa, agônica, conflituosa, principalmente depois de 2014, quando a crise institucional ficou mais aguda. A sala dos professores se tornou um verdadeiro círco de horrores.

    Colegas, professores, que não cultivavam hábitos intelectuais, que não tinham interesse em nada que não tivesse diretamente relacionado ao seu cotidiano de trabalho: não liam literatura, não visitavam exposições de museus, não consumiam cinema, não frequentavam teatros.

    Sempre aqueles códigos criminais pesadíssimos na mão, só os códigos. Nenhum Gabriel Garcia Marques, nada de Clarice ou Guimarães Rosa. De Machado de Assis só ouviram falar.

    Vivem nomalmente sem conhecer os filmes de Woddy Allen, Almodóvar, Scorsese, sem ter quase contato com os grandes empreendimentos da inteligêngia humana.

    Os profissionais mais importantes para a manutenção do contrato social não têm formação humanista, nenhuma formação humanista.

    A maior parte dos meus colegas, que tem a função de arbitrar o conflito social, de zelar pelo bem comum, trata a lei como um manual, como uma receita de bolo.

    E aí vocês podem imaginar, né? O círculo vicioso se completa: os alunos chegam com mentalidade de concurseiro e isso é alimentado pelos professores.

    Resultado: todo semestre a universidade não diploma operadores do direito, pessoas sensíveis às questões sociais, capazes de tratar a lei como aquilo que ela é: um complexo experimento sociológico. A universidade forma concurseiros.

    Concurseiros formando concurseiros. Todos preocupados em marcar o “X” no lugar certo e assim garantir um emprego estável e os privilégios que o Poder Judiciário entrega numa bandeja aos seus servidores.

    São essas pessoas que estão decidindo os destinos da nação. Somos a República dos Concurseiros.