Um belo dia, o finado político Abraham Weintraub saiu-se mais ou menos assim ao ser perguntado se haveria adiamento do ENEM. A transcrição é livre: “Não há motivo. Quem não assiste aulas presenciais pode recorrer ao celular e ao computador. Todos estão nas mesmas condições”.Só um pré-símio, um escroque de carteirinha poderia falar algo parecido.
O resto da história (mas não o fim) diz tudo. O disparate era tamanho que Weintraub virou o “Vaitarde”. À moda Bolsonaro, claro.
Usando dos poderes presidenciais, o capitão deu um jeito de manipular datas de demissão em documentos oficiais para blindar o envio do entulho para a matriz em Miami a salvo das leis de imigração americanas.
Logo depois, o “Vaitarde” posa comendo franguinho empanado num fast-food americano. Como se estivesse se deliciando com a carne do povo brasileiro, dos jovens que ralam tentando combinar o sustento de suas famílias com o desejo de conquistar melhores condições de vida.
Vale reproduzir alguns depoimentos:
“No cursinho Florestan Fernandes, em São Paulo, havia 800 alunos no início de 2020 – três meses depois, restam apenas 40. “A evasão é normal, mas não nessa proporção. Nossos estudantes não têm um acesso de qualidade à internet. Mais de 60% deles só usam celular, com pacote de dados bem limitado”, afirma o coordenador Bruno Sampaio, de 23 anos.
“Essa situação gera também uma fragilidade emocional. Os alunos têm demonstrado ansiedade e preocupação. Eles são da periferia, precisam ajudar em casa, cuidam dos irmãos, vão trabalhar. Não conseguem mais estudar”, completa.
O cursinho é gratuito e funciona aos sábados, em parceria com a faculdade de história da Universidade de São Paulo (USP). Como a instituição está fechada, as aulas passaram a ocorrer de forma virtual – os 50 professores, todos voluntários, montam slides com a matéria, organizam encontros por uma plataforma on-line e dão aulas gravadas ou ao vivo.
Aqueles que estão conseguindo participar das atividades remotas enfrentam dificuldades. Lucas Fernandes, de 20 anos, aluno do Florestan, divide o notebook com seus cinco irmãos em casa – todos eles têm aulas virtuais e precisam do equipamento. “Não consigo dedicar muito tempo aos estudos. Tento usar o celular, mas a tela é pequena e os aplicativos de atividade são muito instáveis. Preciso ficar em um ponto específico da casa, para ter sinal de internet”, diz.
“Mas não sou só eu: a maioria dos jovens periféricos convive com esses problemas. Meus amigos precisam trabalhar, é isso ou passam fome. Nossa esperança de conseguir uma vaga na universidade pública fica menor. A gente já matava um leão por dia, agora são dez”, afirma Lucas.
Ou então:
“Gleicy Souza, de 18 anos, está no ensino médio de uma escola pública em São Paulo (SP) e, aos sábados, estuda no cursinho popular Mafalda. Ela usava apenas o celular para se preparar para o Enem.
“A conexão do wifi caía a todo momento, era impossível ter um dia normal de aula. A tela é pequena, então fico com os olhos cansados, e não dá para ler os slides dos professores. Também não consigo usar algumas funções que eu teria no computador, como editar um arquivo”, conta.
Ou ainda:
“Naomi Neves, de 17 anos, procurou o cursinho popular Mafalda para compensar a baixa qualidade de ensino da escola pública onde estuda, em São Paulo. “A gente não aprende muita coisa, ainda mais para o vestibular. Eu não teria condições de passar em um vestibular assim. Queria me dedicar ao cursinho, mas estou sem cabeça. Meu pai é pintor e está desempregado; estamos sem o Bolsa Família. Eu trabalho, mas nossa renda é baixa”, diz.
A preocupação com a crise financeira levou Roberta Martins, de 36 anos, a desistir do Enem. Ela é uma mulher transexual, que sonha, desde 2003, em entrar na faculdade. Neste ano, descobriu um cursinho popular gratuito – o Conceição Evaristo, em Belo Horizonte (MG).”
Por esses depoimentos e outros tantos que lotam a internet percebe-se o tamanho da destruição que está em curso no Brasil. A falácia de que “todo mundo tem acesso aos meios digitais” não passa disso. Uma falácia. Boa parte dos celulares espalhados país afora não passa de “chinglings”, vendidos a preços ao alcance do bolso dos mais pobres.
Tente estudar por um celular desses e vc verá o que é. Depois, a qualidade de sua rede e download de dados custam dinheiro. Quantos podem custear uma conexão razoável num momento como esse, devastado pelo desemprego das famílias? Quantos podem dispor de um desktop ou notebook que permitam um mínimo de visibilidade ao que está sendo dito do outro lado?
Assim como a saúde, a educação no Brasil foi jogada às traças. A coisa está tão feia que até um direitista como Renato Feder, privatista de ofício, sentiu o cheiro (sem trocadilho) de desastre, optou por esnobar Bolsonaro e continuar fazendo o trabalho sujo como secretário no Paraná.
A juventude sempre foi a esperança do futuro. Dos jovens emerge a energia para mudanças, muitas vezes independentemente da classe social. Sempre foi assim na história.
Não à toa esse governo fraudulento, “eleito” a bordo de trapaças expostas a olho nu, ataca estudantes, escolas, universidades, entregadores e suas famílias. Quer ter a certeza de matar o “mal pela raiz”. Literalmente. Trata-se de um governo representativo dos genocidas do Planalto e do Leblon e de uma milícia internacional, que une Trump, Bolsonaro, FBI, Moro e seus procuradores, um Judiciário castrado, militares comprados com privilégios salariais e um Legislativo sedento de prebendas para manter as coisas como estão.
Enquanto isso, “Vaitarde” ri à toa em Miami com direito a um salário de R$ 100 mil por mês.
*Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.
“Nóis não tá nisso pra ficar rico. Nóis tá nisso pra mudar o mundo.”
(Paulo Lima, o Galo)
Logotipo dos Entregadores Antifascistas
A manifestação dos entregadores de aplicativos, que aconteceu na quarta (1/7), foi linda de se ver. Jovens pobres, negros, moradores das franjas da cidade, super-explorados pelos aplicativos, reconhecendo-se como trabalhadores. Reconhecendo a força da União.
Em São Paulo, a manifestação incluiu um desfile de milhares de motocicletas e bicicletas pelas principais vias da cidade, encerrando na Ponte Estaiada, que fica bem defronte aos estúdios da TV Globo. Os entregadores queriam ser flagrados pelas câmeras do SP TV, queriam ser vistos!
Trata-se de uma categoria profissional profundamente ofendida pela invisibilidade em que é cotidianamente confinada. Os usuários dos aplicativos normalmente não conversam com eles, não querem saber de papo. O olhar sai da pizza e vai para a maquininha do cartão de crédito. Zero empatia. E os entregadores vão para a próxima entrega.
A denúncia mais concreta da invisibilidade: motoboys esfomeados entregam as pizzas
Na manifestação do dia 1º, foram muitos sorrisos, o ruído agudo dos motores gritando a cada acelerada, as demonstrações de perícia e equilíbrio na pilotagem da motocicleta, a visibilidade enfim alcançada, a solidariedade entre todos — a cena mais bonita de se ver eram os pilotos de motos andando pelo asfalto abraçados aos de bicicletas, como forma de poupá-los do esforço físico de pedalar.
E o protesto alastrou-se por todo o País, tendo como principais reivindicações o aumento das taxas de remuneração dos entregadores, que têm caído vertiginosamente, e o fim dos bloqueios impostos pelos aplicativos, que na prática representam uma suspensão do entregador. Por fim, os profissionais insurgiram-se contra o sistema de pontuação de ranking, que é o que define os dias e a área em que o entregador pode atuar.
Se os aplicativos querem a todo custo convencer os entregadores de que eles são “empreendedores”, um tipo de “parceiro” dos donos das plataformas de entregas, ou até “micro-empresários”, o que se viu nas ruas do País foi daqueles momentos singulares, a categoria dos moto e cicloboys iluminada pela tomada de consciência coletiva de sua força política nas modernas economias capitalistas, em que ocorre a máxima exploração da força de trabalho.
Mas de onde vêm a inteligência coletiva deste movimento? Jornalistas Livres acompanharam a preparação da greve do dia 1º de julho de dentro de um grupo de whatsapp composto por Entregadores Antifascistas. Há centenas de outros grupos espalhados por todo o Brasil, e mesmo em outros países, como Argentina, Equador, Itália, Espanha.
Para chegar a uma mobilização como a que ocorreu no dia 1º, esses coletivos estão trabalhando com tenacidade. Os camaradas dos Entregadores Antifascistas, por exemplo, se consideram uma família — um tem de cuidar do outro. A solidariedade entre jovens pobres, que sofrem acidentes, que estão expostos à violência urbana, que são assaltados e subtraídos de seus instrumentos de trabalho (motos, bicicletas e celulares) é condição de sobrevivência no caos das ruas. Eles aprendem juntos, um fazendo para o outro indicações de filmes para assistir, de textos para ler. Eles elaboram planos para construir um aplicativo justo, que remunere os entregadores sem lhes aplicar taxas abusivas. Eles querem ser reconhecidos como empregados dos APPs, de modo que tenham assegurados seus direitos trabalhistas —por isso pensam em projetos de lei.
Anarquistas, comunistas, militantes de todas as extrações da esquerda disputam a atenção dos Entregadores Antifascistas. Mas o fazem de maneira respeitosa, cada um sugerindo seus conteúdos mais legais para tentar conquistar os corações e mentes dos novos atores políticos. E, assim, motoboys aprendem, por exemplo, o que foi a Associação Internacional dos Trabalhadores, a AIT, a primeira organização criada para reunir diversas correntes do movimento operário do mundo industrializado, na segunda metade do século 19. A AIT, que teve em sua liderança figuras como Karl Marx e Mikhail Bakunin, existiu entre 1864 e 1876, tendo sido fundamental na construção das utopias Socialista e Anarquista, gestadas a partir da Comuna de Paris, de 1871.
Entre os vários eixos da intervenção da AIT constavam: solidariedade com todos os trabalhadores e suas lutas, promoção do trabalho cooperativo, redução da jornada de trabalho de mulheres e crianças, redução da jornada de trabalho para 10 horas em todos os países. Impossível os entregadores não se identificarem com essa pauta, antiga em mais de 150 anos. (!!!) Eles, que são explorados pelos aplicativos, que os obrigam a trabalhar mais de 14 horas por dia. Eles, que recebem o equivalente a pouco mais de um salário mínimo por todo esse trabalho. Eles, que sonham com a construção de uma cooperativa para fugir das correntes de escravidão do IFood, Uber, Rappi e outras.
O aprendizado revolucionário e a experiência da 1ª Internacional: identificação
Cinema, livros, vídeos, textos entram nesse verdadeiro curso de formação express de militantes. As mensagens de whatsapp colocadas acima e o que se verá a seguir constituem parte da troca de informações entre os membros do grupo dos Entregadores Antifascistas, entre os dias 1º de junho e 5 de julho de 2020. Não identificaremos os autores das mensagens, a fim de não expô-los à possível retaliação dos aplicativos, que bloqueiam sem qualquer justificativa um entregador, privando-o do pão de cada dia durante a aplicação da pena. Os APPs dizem que esse bloqueio só ocorre quando “não há o cumprimento dos Termos & Condições”, mas vários motoboys acusam as empresas de perseguição. As datas em que as postagens foram feitas também não serão mencionadas, já que várias dessas postagens repetem-se durante o período, como um Vale a Pena ver de Novo, para quem perdeu a primeira postagem. Os posts no grupo foram organizados por temas:
Solidariedade
Reprodução de Vakinha virtual, publicada no grupo dos Entregadores Antifascistas, para ajudar motociclista que sofreu acidente: os APPs não ajudam
SOS para ajudar entregador ciclista cujo pneu estourou quando ele estava no centro de SP: todos ajudam
Roubaram a moto do meu irmão!
Ver-se como classe trabalhadora e aprender juntos
Entregadores em busca de conhecimentos para fortalecer a classe trabalhadora
Construir a biblioteca dos Entregadores Antifascistas: para que todos possam aprenderA luta antifascista como resposta ao ódio à política: empatia
O hip-hop como grande formador político e GoG como referência
Futuro promissor é anticapitalista
A experiência internacional mostra os caminhos para a vitória
Enquanto a biblioteca física não existe, os entregadores consomem a biblioteca virtual, com 23 títulos, e autores tão diversos como Angela Davis, Frantz Fanon, Carlos Marighella ou Clovis Moura
Luta contra o racismo
Violência policial, necropolítica e consciência: Nóis tá indo no ato
Um motoboy colocou no grupo um vídeo mostrando o linchamento de um jovem negro que havia tentado roubar um celular: “Isso é ação de fascistas!”, condenaram os demais
Tudo isso porque esses meninos e meninas estão levando muito a sério o desafio de responder às seguintes questões, conforme síntese feita por uma entregadora:
Quem? O quê? Por quê?
Quanto à pergunta “Quando?”, eles respondem com a sabedoria de um oriental:
A luta não é Miojo
LONGA VIDA À LUTA DOS ENTREGADORES ANTIFASCISTAS!
Veja aqui outras referências culturais e políticas apresentadas no grupo dos Entregadores Antifascistas. Para pensar:
Junto ao embaixador dos EUA, Bolsonaro e alguns de seus comparsas festejam o 4 de julho, a data da independência… americana!
Todos sem máscaras, sorridentes, como se estivéssemos no melhor dos mundos. Lembra aquelas fotos de Pablo Escobar e asseclas comemorando mais uma venda gigante do narcotráfico.
É muita provocação. EUA e BraZil hoje encabeçam o ranking de desgraças provocadas pela pandemia. Donald Trump despenca nas pesquisas para as eleições americanas. Sob sua orientação, os Estados que resolveram lançar seus cidadãos ao abate experimentam um salto geométrico nos infectados e mortes. Basta consultar o New York Times. A Flórida, por exemplo, virou o oásis da covid-19.
Aqui no BraZil, os números também não deixam mentir. Os casos aumentam nas cidades e invadem o interior. O mais lamentável é ver e ouvir supostas autoridades dizer que atingimos o tal do “plateau”: mais de 1.200 mortes por dia!Gente morrendo como moscas em lâmpadas de açougue. “E daí”?
As fotos dando conta da orgia em bares do Leblon no Rio deveriam envergonhar qualquer ser humano digno desse nome. Mas não. Neofascistas, patricinhas, mauricinhos e desmiolados em geral festejavam a liberdade de disseminar o coronavírus. Eles podem. Têm a bufunfa subtraída da maioria pobre para recorrer a um Copa d’Or da vida e outros hospitais de elite, caso algo dê errado. Já o povo padece em filas do SUS sem respiradores, quando não morre em casa e nas filas de atendimento.
Outros tantos arriscam a vida em motocicletas e bicicletas sem nenhuma proteção para ganhar uma ninharia entregando comida para os “bacanas”. E as pretensas autoridades ainda têm dúvidas sobre como legislar para interromper essa exploração criminosa da força de trabalho. “Ora, são empreendedores”, dizem os acadêmicos a serviço do genocídio oficial.Como alguém pode ouvir e ler isto e ficar calado?
O BraZil está às vésperas de uma explosão social. As manifestações dos entregadores são apenas um sinal. Aos poucos, os desvalidos percebem que enfrentar o vírus nas ruas é a única saída para derrubar a gangue de bandoleiros que assaltou as instâncias de poder oficial. Assim como fizeram os milhões de americanos que arriscaram a vida e enfrentaram os perigos sanitários para combater os supremacistas de Trump.
Por aqui, Bolsonaro continua o mesmo. Sua pele de cordeiro é tão frágil quanto sua trajetória e seu caráter. Basta ver os vetos que decidiu sobre o uso de máscaras. Governadores e prefeitos, com raras exceções, estão mais interessados em fundos eleitorais do que nas milhares de vidas perdidas. A maioria deles não têm plano ou estratégia que não seja as próximas eleições. Cadê os recursos para os microempresários, para os informais, para quem não tem dinheiro sequer para o café da manhã?
O momento é difícil. Mas o povo, como sempre, saberá vencer esta avalanche de crueldades. Quem viver, verá.
*Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.
“Aqui tudo parece Que era ainda construção E já é ruína Tudo é menino, menina No olho da rua O asfalto, a ponte, o viaduto Ganindo pra lua Nada continua” (Caetano Veloso)
O prédio localizado no número 103 da rua do Carmo, a poucos passos do marco zero da cidade de São Paulo, contém hoje 100 moradores equilibristas. São idosos, portadores de deficiências físicas e mentais, mulheres, algumas grávidas, e crianças, muitas crianças, vivendo em um prédio-símbolo da Arquitetura da Especulação de que a cidade de São Paulo está repleta. Monstro urbano à espera de valorização imobiliária, o edifício recebeu o apelido de “Caveirão” porque é praticamente um esqueleto de prédio: vigas de concreto recheadas de vergalhões de ferro e 23 lajes, imensas lajes, que foram construídas para abrigar automóveis. No projeto, o Caveirão seria um edifício-garagem.
Dançarinos no vácuo, equilibristas sem rede de proteção, os moradores do Caveirão se situam no último elo da cadeia alimentar que define quem come e quem é comido na cidade. Eles são os comidos. Todo o prédio ecoa a música evangélica que sai aos berros de um dos barracos –sim, dentro do esqueleto, os moradores construíram uma favela com os restos mortais de São Paulo (tapumes de obras, portas descartadas, caibros comidos por cupim). A música evangélica parece que fala com cada um dos equilibristas: “O Deus do Impossível não desistiu de mim. Sua [mão] destra me sustenta e me faz prevalecer…”
O prédio tem lixo espalhado por todo lado. São toneladas de dejetos, que os moradores tentam agora limpar. E está condenado. Em março de 2012 o engenheiro Merinio C. Salles Jr. atestou que “a estrutura vem sofrendo deterioração com o tempo, podendo vir a ruir, tendo em vista que sua estrutura de concreto armado já apresenta sua armadura exposta e sem condições de reparação, podendo assim vir a entrar em colapso causando grave acidente na região”. Mas o ruim tem ficado pior porque, nos últimos sete meses, o Caveirão está assombrado por 18 homens, soldados da PM, que aparecem todos os dias para esculachar os moradores, ameaçá-los e exigir que saiam do lugar. “Vai, sua puta, vagabunda, encosta na parede!” É pé na porta, humilhação das mulheres, destruição dos barracos, pontapés nas televisões e celulares esmigalhados sob os coturnos (para os moradores não filmarem a violência). Em um dos ataques, uma moradora com um bebê no colo e um cadeirante foram jogados no chão. Sofreram ainda com os efeitos do spray de pimenta. Os militares aparecem fardados, mas sem a identificação colada no uniforme.
Caveirão: policiais militares ameaçam moradores
Há relatos de tortura contra os homens, que são obrigados a deitar no chão, de bruços, mãos nas cabeças. Os soldados chutam os corpos e pisam neles. Uma moradora tomou choques elétricos no pescoço e nos bicos dos seios, a energia vinda dos varais de fios elétricos que percorrem a ocupação. Na terça-feira passada (23), os policiais chegaram pouco antes das 19h. Entraram de novo no prédio, sem mandado nem nada e, usando os métodos de milicianos, disseram que ou os moradores do Caveirão saíam por bem ou haveria mortes. Para reforçar a ameaça, rasgaram um colchão a facada, o talhe em forma de cruz. E deixaram o bilhete: “O prazo é hoje”. O Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos está oferecendo auxílio jurídico para as famílias ameaçadas.
O incrível em toda essa história do Caveirão da rua do Carmo é que o proprietário atual, Rivaldo Sant’anna, também chamado de “Rico”, que afirma ter comprado o prédio em 2009 por R$ 800 mil (cerca de 1,5 milhão de reais em valores de hoje), nem sequer possui decisão judicial apoiando sua pretensão de despejar as pessoas que lá residem.
Sofrimento demais
Caveirão abriga vítimas de violência doméstica, como Elisângela (à esq.), que foi arremessada pelo ex-marido do 1º andar, quando estava grávida de 8 meses
Miseráveis, os moradores têm um histórico de dor e sofrimento bíblicos. Elisângela Neves David, 37 anos, sempre foi espancada pelo marido. Grávida de oito meses, ele a arremessou da varanda do apartamento em que viviam. Elisângela foi recolhida pelo SAMU. Vergada de dor, ouviu uma agente de saúde lhe perguntar:
–Você quer fugir?
Ela nem ouviu. Ela sentiu:
–Meu filho ainda está comigo? Minha filha está aqui?
–Sim!
–Quero!
“Era tudo o que eu precisava. Dali, eu fui levada para uma Casa-Abrigo, onde fiquei escondida.” Benjamim, o menino que Elisângela carregava no útero quando foi atacada pelo marido, sobreviveu. “Eu desapareci do mundo e, quando vi, estava aqui.”
Elisângela é auxiliar de enfermagem. Como há três anos não consegue pagar a taxa de anuidade do Conselho Regional de Enfermagem (R$ 172,45 em 2020), não pode exercer sua profissão. Ela vende, então, balas nos semáforos, trufas na porta da escola das filhas, o que der. Agora, em época de pandemia, está impossível trabalhar. As pessoas nem abrem o vidro dos carros, por medo de assalto e do contágio. “Da pobreza eu caí na degradação ”, diz Elisângela.
Valéria da Silva Nascimento, 43 anos, mãe de cinco, vive para o filho portador de deficiência, João Gabriel Henrique da Silva Dias, de 20 anos. Hoje músico e compositor, o jovem toca violão, guitarra, baixo, ukulele. Paraplégico, isso não o impediu de jogar basquete e tornar-se dançarino de hip hop. Na escola, escutou pela primeira vez Geraldo Vandré: “Pra Não Dizer que não falei das Flores”. Um professor tocava ao violão. “Eu me apaixonei e pedi para o professor me ensinar. Um dia ele me deu um violão. Eu chorei de alegria. Não parei mais de tocar.” Gabriel é um sujeito doce, com uma auto-estima de gigante. A mãe sempre o cumulou de amores, de olhares e cuidados. Para sobreviverem, ela cata reciclagem, compra e vende na feira do rolo, costura, lava roupa para fora, às vezes até para pessoas que moram em albergue.
Infância no Caveirão: O menino Samuel David, de 3 anos, é autista e sofre com problemas respiratórios. A mãe, Cristiana, já mora no prédio há 18 anos
Cristiana Alessandra Moreira, de 40 anos, tem dois filhos atualmente: Cauê, de 21 anos, e Samuel Davi, de três anos. Mas Cristiana pariu sete, dos quais cinco morreram logo. Mora no Caveirão há 18 anos, interrompidos quatro vezes por despejos. Voltou sempre. Ela precisa estar todo o tempo com o filho Samuel Davi, que é autista e sofre com problemas respiratórios. Da última vez que foi despejada, a Prefeitura pagou auxílio-aluguel para as famílias que viviam no Caveirão (R$ 400 por mês), mas o benefício foi cortado e Cristiana voltou para o prédio.
Cristiana sai de seu barraco por volta das 11h, com um vasilhame usado de margarina. Está repleto de urina. Samuel Davi, agitado, não deixou que ela dormisse a noite toda. O menino só se acalmou por volta das 5h, quando ela, enfim, descansou. A urina terá de ser despejada no térreo do prédio, porque o Caveirão não tem banheiros funcionando. Aquele que Cristiana construiu com as próprias mãos foi destruído pelos usuários de crack que ocuparam o prédio depois do despejo dos moradores e pela Polícia Militar.
Moradia de carros
Anúncio publicado na “Folha”, em 1964: compre sua garagem automática, por 50.000 cruzeiros
O drama do Caveirão vem de longe. Em 1964, a Folha de S.Paulo publicou anúncio da construção de um edifício-garagem a poucos metros da praça da Sé. Era ele, o espigão da rua do Carmo, ainda em fase de vendas. Nessa época não existia nem o metrô. Mas havia edificações espetaculares e reluzentes de novas. Como a própria Catedral da Sé, inaugurada havia apenas 10 anos (a construção só seria finalizada em 1967). Ou o Fórum João Mendes Júnior, março histórico da cidade de São Paulo e símbolo da Justiça paulista. Pois o Fórum foi inaugurado em 1958, apenas seis anos antes do anúncio da Folha.
O novo empreendimento representava a crença inabalável daquele período de que as cidades do futuro seriam as cidades dos automóveis. Portanto, era preciso construir apartamentos, escritórios e edifícios-garagem, para armazenar gente e dezenas de milhares de veículos. No anúncio da Folha, lê-se que era possível tornar-se o feliz proprietário de uma vaga de carro a poucos metros da praça da Sé, com uma entrada de 50 mil cruzeiros, hoje equivalentes a 2 mil reais.
O fato é que as tais garagens jamais foram entregues e, inconclusas, resultaram em um dos retratos mais obscenamente explícitos da cupidez materialista na megalópole.
Casa sem banheiro, sem teto, sem nada
O Caveirão não tem telhado. Quando chove, chove dentro. Instalações sanitárias existem apenas no térreo. Porque carros não precisam delas. A polícia também fez questão de arrancar e destruir escadas e degraus que ligavam as lajes dos andares. Os moradores sobem e descem escalando escadas imaginárias ou banguelas, com degraus quebrados ou simplesmente faltando. Cristiana sobe e desce essas escadas surreais carregando os cilindros de oxigênio de que o filho Samuel Davi precisa para sobreviver.
Amor de mãe no Caveirão: Valéria e João Gabriel, paraplégico: o jovem está morando no prédio há um mês; para ele, é um “lugar maravilhoso”
João Gabriel, o filho paraplégico de Valéria, mudou-se para o Caveirão há um mês, depois que a mãe pavimentou o chão e construiu rampas para o trânsito da cadeira de rodas. “Pra mim, aqui é um lugar maravilhoso. Eu sinto uma alegria, uma união, um prazer. Aqui tenho amigos para conversar. Sei que posso contar com muitas pessoas aqui dentro e elas sabem que podem contar comigo também.”
“Eu sou muito feliz aqui dentro. E eu sofro por ver que o prédio está se acabando sem cuidado nenhum, o proprietário não o usa para nada, e a gente tem milhares de pessoas vivendo nas ruas”, diz Cristiana.
O drama das famílias do Caveirão é a condição de existência de milhares de pessoas na cidade de São Paulo. A Prefeitura de São Paulo calcula que, em 2019, havia 24.344 pessoas vivendo em situação de rua. Mas o Movimento Pop Rua calcula que o número correto seja superior a 32 mil pessoas. E segue crescendo à medida em que a inadimplência gera despejos por falta de pagamento de aluguel. E a rua é um terror, principalmente para as mulheres, conforme depoimento de Valéria:
“Eu sou uma ex-moradora de rua. Passei sete anos vivendo na rua. Você não pode fazer sua comida, você não pode trazer os seus filhos para a rua, você fica vulnerável, você é mal vista, você é apontada, as mulheres não têm valor nenhum. Se você arrumar um homem, ele vai te espancar, ele vai te estuprar, ele vai te usar. E se você não tiver força, você vai virar uma usuária de droga ou vai se prostituir. A rua é o último lugar. Não tem mais para onde cair quando você chega na rua. Por outro lado, ninguém quer viver em albergue. Porque no albergue você é maltratada, você é pisada, você é humilhada. Os funcionários dos albergues te tratam como lixo. A casa de parentes também não dá. O parente joga na tua cara, quando você tem filhos, maltrata os seus filhos. Vivendo na rua, a gente tem medo do Conselho Tutelar, a gente tem medo de tocarem fogo na gente, de estuprarem minhas filhas. Minha filha foi estuprada num abrigo. Eu achei que ela estava num lugar seguro e ela não estava. Eu sou costureira, sempre trabalhei. Já aluguei um cantinho, mas dali a pouco você é mandada embora do emprego e é despejada. Ninguém mora numa ocupação porque quer. Você mora ao lado de pessoas que não conhece, tem muito barulho, a luz cai, a polícia invade. Você tem mais medo do que qualquer outra coisa.
Mas é infinitamente melhor do que a rua.”
“A minha luta só termina quando eu tiver a minha moradia. Porque para a rua eu e meus filhos não vamos. A PM tem a arma, mas eu tenho o direito legítimo. Eu ofereço o meu peito para a a bala. E, se me matarem, meus filhos lutarão por mim” (Elisângela)
A mídia golpista festeja. FHC pede tolerância diante do capitão. Fernando Haddad e Guilherme Boulos aceitam o papel de vallets numa live pela “democracia”. Tudo isso porque Jair Bolsonaro baixou o tom ao sentir a água subindo acima do pescoço. Como se o problema do militar expulso do Exército fossem seus rompantes verbais.
Nada disso. Bolsonaro virou refém de seus crimes e de sua famiglia. A prisão de Fabricio Queiroz desferiu um golpe quase mortal nos planos do mito. Queiroz sabe de tudo e um pouco mais. Se abrir a boca, Bolsonaro “já era” de direito, como já é de fato.
À beira do precipício, Bolsonaro distribui afagos ao Judiciário e ao Legislativo. São tão sinceros quanto a negativa de assumir os croquis mostrando seus planos de explodir quartéis e uma adutora no Rio de Janeiro. Sua preocupação maior é barrar as investigações e o julgamento dele e sua famiglia no roubo de dinheiro público. Flavio Bolsonaro é um criminoso exposto à luz do sol. Basta examinar seus recursos quanto ao inquérito das rachadinhas. Seus advogados nunca discutem o mérito; apenas filigranas judiciais.
Para isso contam com a complacência pérfida da “Justiça”. O desembargador carioca que decidiu o voto a favor da postergação do inquérito das rachadinhas é velho amigo da nova advogada do filho que é igual ao pai. No Superior Tribunal de Justiça, o presidente em exercício está acostumado a “matar no peito” as denúncias contra o presidente genocida. 85% de suas decisões têm sido favoráveis ao clã de milicianos.
A operação em curso, porém, envolve mais coisa. Depois de fulminar a aposentadoria e os direitos trabalhistas, na surdina das “sessões virtuais”, o Senado há pouco aprovou a proposta de privatizar a água. Pra variar, o bolsoguedismo está pouco se lixando para os interesses do povo, desde que encha os bolsos do capital financeiro. Tentou passar a boiada da previdência privada. Não conseguiu (ainda). Mas água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
Furou. Em poucas palavras: se o monstrengo for sancionado, só terá direito a água e saneamento quem puder satisfazer a ganância dos tubarões. Como sempre, o bolsoguedismo vai na contramão do que ocorre no mundo civilizado. É o que nos informa o noticiário. “Nos últimos 15 anos, houve pelo menos 180 casos de reestatizações em 35 países, como Alemanha, Argentina, Hungria, Bolívia, Moçambique e França. Em contraposição, neste mesmo período, muitos poucos casos de privatizações de água ocorreram. Este fenômeno de reestatizações vem se mostrando como uma tendência mundial. O número de reestatizações nas cidades duplicou nos últimos cinco anos, o que demonstra a aceleração desta tendência.”
A essa altura, nem precisa se estender sobre o MEC. A cada dia, o terceiro ministro nomeado é pilhado em mentiras. O militar da reserva ( mais um) dizia que fez doutorado. Foi desmentido na lata pelo reitor da universidade argentina onde se gabava de ter conquistado o diploma. Sua tese de mestrado também subiu ao telhado pela denúncia de plágio escancarado. Pior: foi sob sua gestão no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) que aconteceu uma licitação de R$ 3 bilhões (já cancelada) para comprar computadores para as escolas públicas. Em algumas delas, por exemplo, cada aluno receberia cerca de…100 computadores por cabeça.
O novo ministro correu para editar o currículo. Emenda pior que o soneto. No currículo lattes, agora admite nas entrelinhas que não tem o diploma de doutor. Mas não fala nada sobre o fato de que foi reprovado em três bancas diferentes. Tampouco explica como um não-doutor pode ser pós-doutorado numa universidade alemã. Sobre a licitação bilionária, tudo é silêncio. Abafa o caso.
Não, não há saída enquanto Bolsonaro e sua gangue de milicianos permanecerem no poder. O Brasil continuará contabilizando milhares de mortos a cada dia, desempregados sem proteção e gente vivendo do nada e ainda menos. Só FHC mesmo para dizer que é preciso tolerar o militar genocida por mais dois anos.
A pandemia limita a resposta do povo. Entre se aglomerar em manifestações e resguardar a vida, a maioria defende seu direito de viver. Mais do que justo. Mas a hora de ajustar as contas está cada vez mais perto. Com ou sem pandemia.
*Ricardo Melo, jornalista, foi editor-executivo do Diário de S. Paulo, chefe de redação do Jornal da Tarde (quando ganhou o Prêmio Esso de criação gráfica) e editor da revista Brasil Investe do jornal Valor Econômico, além de repórter especial da Revista Exame e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Na televisão, trabalhou como chefe de redação do SBT e como diretor-executivo do Jornal da Band (Rede Bandeirantes) e editor-chefe do Jornal da Globo (Rede Globo). Presidiu a EBC por indicação da presidenta Dilma Rousseff.
Por Eliane Brum, em texto originalmente publicado no El País Brasil
Fotos: Sílvia Guimarães / Arquivo Pessoal
Três mulheres vivem um horror para o qual será preciso inventar um nome. Elas são Sanöma, um grupo da etnia Yanomami, e sua aldeia, Auaris, fica no que os brancos chamam de Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Elas não compreendem a ideia de fronteira, para elas a terra é uma só —e não tem cercas. Elas não falam português, elas falam a sua língua. Em maio, essas mulheres e seus bebês foram levados para Boa Vista, capital de Roraima, com suspeitas de pneumonia. Nos hospitais, as crianças teriam sido contaminadas por covid-19. E lá morreram. E então seus pequenos corpos desapareceram, possivelmente enterrados no cemitério da cidade. Duas das mães estão com covid-19, amontoadas na Casa de Saúde Indígena (CASAI), abarrotada de doentes. Lá, corroídas pelo vírus, elas imploram pelos seus bebês.
Com a ajuda de várias pessoas, uma delas conseguiu me enviar uma mensagem, gravada, em Sanöma. Ela conta o que vive. E diz: “Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”. Eu escuto a mensagem antes da tradução. Não entendo as palavras. Mas compreendo o horror. A linguagem universal daquela que está sendo arrancada do mundo dos humanos.
Ser arrancada de uma aldeia no interior da floresta amazônica porque seu filho tem sintomas de uma doença, a pneumonia, transmitida pelos primeiros brancos que dizimaram parte da população Yanomami, no século passado, é uma violência. Passar deste mundo para o espaço de um hospital, e de um hospital superlotado por conta da covid-19, é outra violência. Ter seu bebê contaminado por uma segunda doença, quando estava ali para ser curado da primeira, que ainda era uma hipótese, é mais uma violência.
E então ela perde o filho. Cada uma delas perde o filho.
As mães Sanöma não entendem o português. Apesar de Roraima ser o Estado mais indígena do Brasil e quase duas centenas de Yanomami já terem sido contaminadas pelo novo coronavírus, não há tradutor para essa população. Ninguém explica nada a elas. As mulheres não entendem o que os brancos falam. E os corpos de seus filhos desaparecem. Uma das lideranças da comunidade, que entende português, explica que os três bebês podem ter sido enterrados no cemitério. Mas não há certeza. Ninguém dá certeza nem a elas nem às lideranças.
O procurador da República em Boa Vista Alisson Marugal enviou um ofício ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) para obter informações sobre o paradeiro dos corpos dos bebês. “A situação é muito complicada, especialmente com relação à população Yanomami. Tivemos quatro óbitos oficiais e, em todos eles, tivemos problemas. O primeiro foi o caso do adolescente de 15 anos. Tivemos problemas de atendimento, tivemos falta e desencontro de informações e estamos também apurando se houve falta de assistência médica”, afirma. “O caso dos bebês Sanöma só começamos a apurar agora. Não sabemos se houve o diagnóstico de covid-19 e, se houve, qual protocolo foi aplicado e qual foi o local de enterro.”
Marugal assumiu o posto em plena pandemia, conta estar trabalhando de segunda a segunda para enfrentar um cenário com grandes desafios. “Não descarto a possibilidade de, futuramente, ingressar com uma ação civil pública pedindo danos morais não só para os pais, mas para toda a etnia yanomami”, afirma.
Enterrar o corpo de um Yanomami é arrancá-lo do mundo dos humanos
A quantidade de violência contida nessa série de atos infligidos às mulheres Sanöma é enorme até mesmo para os padrões do Estado brasileiro, um histórico agente de agressões contra os povos indígenas. Mas a violência avança para muito mais, porque se, para um branco, a dor é a que tantas famílias estão vivendo, nesta pandemia, sem poderem se despedir daqueles que amam, sem poderem sepultá-los devidamente, devido ao protocolo de biossegurança, para uma mulher Yanomami, para um homem Yanomami, enterrar um dos seus é incompreensível —e inaceitável.
Os Yanomami não são enterrados. Nunca, sob nenhuma hipótese se enterra um corpo. Os corpos são cremados e há um longo ritual para que o morto possa morrer para si e para a comunidade. Os Yanomami não são indivíduos, como um branco que vive no Brasil ou na Espanha ou nos Estados Unidos é. Um Yanomami se compreende como parte de uma comunidade e se entrelaça com várias dimensões de mundos visíveis e invisíveis em relações mediadas pelos xamãs. Os rituais de morte devem ser seguidos em todos os detalhes e levam meses e até anos para se concluírem. Várias aldeias vão até a comunidade do morto para participar da cremação, num primeiro momento. As cinzas então são guardadas.
Meses depois haverá a segunda parte, quando os visitantes mais uma vez retornam para as celebrações. O morto então será lembrado em seus feitos, em suas desavenças, em todas as marcas importantes de sua trajetória. Será lembrado para então poder ser esquecido, suas marcas serem apagadas e a comunidade seguir adiante. No último ato, as cinzas dos mortos são diluídas em mingau de banana para que aquele que morreu se dissipe no corpo de todos.
O ritual faz o morto morrer também como memória, para que os vivos possam viver. Se o ritual não for realizado, o morto não poderá ser esquecido nem se deixará esquecer, o que provoca muito mal a seus parentes e a toda a comunidade. O ritual de morte dos Yanomami é de uma extrema complexidade e sabedoria em sua simbologia. O rito é coletivo e é também momento de estabelecer relações sociopolíticas e até amorosas. Ao final, há apenas um morto, o que morreu —e não vivos que seguem mortos por não terem sido capazes de fazer o luto, como acontece tantas vezes no mundo dos brancos, que já não têm tempo nem espaço para fazer a transmutação da falta em ausência de que falava Carlos Drummond de Andrade.
Enterrar o corpo de um morto é um horror absoluto para o povo Yanomami. É arrancá-lo do mundo dos humanos. “Para essas mães, saber que seus filhos estão enterrados no cemitério da cidade é equivalente a uma mulher branca ter que conviver com a ideia de que o corpo de seu filho está jogado e exposto em praça pública”, diz Sílvia Guimarães, professora de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), que faz pesquisa junto ao povo Sanöma há muitos anos. Ela é uma das 40 pesquisadoras e apoiadores da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, formada para enfrentar a invisibilidade dada ao sofrimento dos Yanomami, durante a pandemia, a partir da divulgação de análises qualificadas.
Sem um plano emergencial, 40 % do povo Yanomami pode ser contaminado
A Terra Indígena Yanomami abarca uma área de cerca de 9,6 milhões de hectares na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, nos Estados do Amazonas e de Roraima. Mais de 26.000 indígenas se distribuem em mais de 300 aldeias. O subgrupo Sanöma é composto por 3.164 pessoas, segundo dados de 2018 do Instituto Socioambiental. Alguns grupos vivem em isolamento voluntário, o que significa que preferem não conviver com os brancos. Desde que os Yanomami tiveram os primeiros contatos, a partir de 1910, eles vêm sendo dizimados por doenças, que chamam de xawara, e também a tiros, pelos garimpeiros que invadem suas áreas em busca de ouro.
Davi Kopenawa, o grande intelectual e líder Yanomami, tem denunciado ao mundo que seu povo corre o risco de genocídio. Ele chama os brancos de ” povo da mercadoria”. Seu filho, Dario Kopenawa, da Hutukara Associação Yanomami, lidera a campanha “Fora Garimpo! Fora Covid!”. Em plena pandemia, há mais de 20.000 garimpeiros na terra Yanomami, considerada a mais vulnerável ao novo coronavírus na Amazônia. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais, pelo Instituto Socioambiental e pela Fundação Oswaldo Cruz mostrou que, caso não exista um plano de contingência emergencial para a transmissão entre os Yanomami, 40% da população que vive em aldeias próximas ao garimpo poderão ser contaminados.
Segundo o boletim mais recente da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, de 21 de junho, há 168 contaminados e cinco mortos. A Casa de Saúde Indígena (Casai), onde ficam os Yanomami levados à cidade, tornou-se um dos principais focos de contaminação. Segundo a rede de pesquisadores, mais de 80 indígenas já foram infectados ali, 48% dos casos de covid-19 entre os Yanomami e Ye’kwana. Há casos de pacientes Yanomami que tiveram alta de outras doenças e aguardavam há mais de dois meses seu retorno à Terra Indígena. Acabaram sendo infectados por covid-19 na Casai.
Desde que o primeiro adolescente Yanomami, de 15 anos, morreu de covid-19, em 9 de abril, o desespero se multiplicou. Vítimas de massacres de todos os tipos perpetrados pelos brancos, parecia impossível que houvesse alguma forma de violência ainda desconhecida. Mas sempre há. E então os Yanomami começaram a ver os corpos desaparecerem, seguidos de explicações vagas de enterros por parte de autoridades que mal conseguem entender. “É um enorme desrespeito com a nossa cultura. Os corpos são enterrados sem que ninguém explique nada, sem que as famílias sejam consultadas, sem que peçam autorizações para as mães. Elas não sabem onde seus filhos estão enterrados, eu, que sou representante, não tenho nenhuma ideia de onde estão enterrados”, diz Dario Kopenawa. “Queremos saber onde estão e quando poderemos desenterrar os corpos para levá-los para a aldeia, onde nasceram e cresceram, onde seus pais, seus tios, seus primos estão morando, onde a alma das crianças pode ser feliz. Entendemos a necessidade dos protocolos [de biossegurança], mas precisamos ter informação e compreender o que vai acontecer. Precisamos saber quando os corpos serão devolvidos. Queremos saber quanto tempo o vírus sobrevive no corpo. Se os infectologistas nos explicam, a gente entende e pode respeitar. E podemos transmitir essa informação para a comunidade.”
O protocolo de biossegurança, segundo a Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, determinaria três anos para a exumação do corpo, mas até agora não há nem mesmo comprovação de que as crianças tinham a doença. “Por que três anos? Por que não mais? Por que não menos? Quem explica às mulheres Yanomami?”, questiona Sílvia Guimarães, em entrevista ao EL PAÍS.
Braulina Baniwa é uma das mulheres indígenas que, apesar de pertencer à outra etnia, se solidarizou com as mães Sanöma: “Essas mulheres estão sofrendo uma violência sem tamanho. É uma parte de cada uma delas que vai ficar fora do território”, diz. “Além de tudo o que estão vivendo, elas não falam português e não há sensibilidade para entendê-las.” Antropóloga, ela faz parte do Laboratório Matula, criado a partir do grupo de pesquisa do CNPq “Sociabilidades, diferenças e desigualdades”.
Em carta pública, o Matula afirmou: “No caso das mulheres Sanöma, sobressai aqui a dor da indígena mulher nesta pandemia, que deixa os corpos de seus filhos sem a possibilidade de negociar os termos das cerimônias de encerramento desta vida, o que viola seus direitos enquanto povo. Essa cena se repete em vários locais do Brasil, mas, qual é o peso desta dor para uma indígena mulher, que não domina o português, encontra-se distante de sua rede de apoio e aguarda para saber se está contaminada? Qual é a possibilidade de ter sua fala ouvida, de ter sua experiência sobre a morte compartilhada e decidida? Concordamos que as formas de contágio são múltiplas e de grandes riscos, mas há ainda algumas perguntas a serem feitas: é possível ser transparente, se abrir para o diálogo, compartilhar conhecimento e decisões? Que critérios éticos iremos viver nesta pandemia? Essa pandemia escancara a desigualdade social e o que era normalizado. A infraestrutura dos serviços públicos se omitiu para essa parcela da população, os riscos das mortes dos filhos e suas mães indígenas se agudizam. E vigora a paralisia para a ação. As mulheres Sanöma são a força dessa mulher indígena, do território, da floresta, da roça, do alimento, dos rios, que manejam para cuidar da vida e merecem respeito, cuidado e admiração por parte do Estado”.
Mulher Sanöma, na região do rio Auaris, se preparando para ir para a roça.SÍLVIA GUIMARÃES / ARQUIVO PESSOAL
As lideranças Yanomami reivindicam um protocolo indígena para os mortos por covid-19. “Queremos que possa haver uma higienização dos corpos ou, se isso não for possível, que eles sejam cremados. Então poderemos levar as cinzas para as aldeias”, diz Dario Kopenawa. Não há crematório em Boa Vista. E parece também não haver vontade de compreender o drama dos indígenas numa sociedade em que impera o racismo contra os povos originários —896.917 pessoas, o equivalente a 0,47% da população total do Brasil, segundo o Censo do IBGE de 2010. A riqueza cultural que representam é expressada por 256 povos que falam mais de 150 línguas diferentes. Dizimados por vírus e por balas há cinco séculos, eles resistiram até hoje. E então chegou a covid-19. O Governo Bolsonaro, que tem como um dos principais projetos abrir as terras indígenas para exploração privada, nada faz de efetivo para barrar a doença que já atravessa a floresta amazônica produzindo um novo massacre.
Segundo Dario Kopenawa, os Yanomami foram contaminados de covid-19 pelos garimpeiros. Em Boa Vista, os garimpeiros não só circulam e entranham-se no setor público, por vários portas, como também viram monumento em praça pública. Essa realidade cotidiana expressa a tensão entre os povos originários e os brancos que lá chegaram levados por projetos de Estado, no início, depois pelos próprios pés. “Antes da pandemia nós já tínhamos a doença do garimpo, nossos rios estavam sendo contaminados por mercúrio, nosso povo morria de tuberculose e de pneumonia. Agora eles nos trouxeram também a covid-19”, diz ele. Com os garimpeiros, a malária também está se alastrando e fazendo vítimas entre os indígenas por todo o território. “E depois de tudo isso, eles nos enterram”, diz Dario Kopenawa. “Nunca houve um Yanomami enterrado antes. Nunca. Penso que é, sim uma violência. Mas penso que não nos consultarem nem pedirem nossa autorização é também um crime.”
Ao saber qual era o tema da reportagem, o coordenador interino do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami, Antonio Pereira, alegou ao EL PAÍS, por telefone, que não poderia responder às perguntas porque estava em reunião. Comprometeu-se a procurar a reportagem ao final de seus compromissos. Diante da insistência para marcar um horário, passou o telefone a um assessor, que afirmou que ligariam. Até a publicação desta reportagem, não foi possível restabelecer contato com o responsável pelo DSEI Yanomami.
O bebê que nasceu, morreu e desapareceu
Há ainda uma quarta mulher Yanomami, doente de coronavírus, que foi levada para ter o parto no hospital e nunca mais viu o corpo do bebê. O recém-nascido, segundo o procurador Alisson Marugal, teria morrido de complicações não conectadas com a covid-19, mas um servidor do hospital teria colocado no documento, indevidamente, uma suspeita por coronavírus. Segundo informações obtidas pelo EL PAÍS, a família pertence a um outro grupo Yanomami, que vive na região chamada Missão Catrimani, na aldeia Nara Uhi. Nascido prematuro de sete meses, o menino nasceu e morreu em 28 de abril. E também desapareceu.
O relato do pai deste bebê à Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana mostra como o vírus começou a dizimar os Yanomami —e também como o Estado se tornou um perpetuador de violência ao produzir novos sofrimentos. Este Yanomami é conhecido entre os brancos como Remo:
“Foi assim que aconteceu. Primeiro, o xamã André apresentou os sintomas de covid. Ele é mais velho, foi o primeiro a adoecer. Então, Miguel fez xamanismo para curar o pai e também adoeceu. Um dia depois que Miguel começou a se sentir mal, ele foi caminhando até o posto de saúde na Missão Catrimani. A terceira pessoa a adoecer na nossa comunidade foi minha mulher, Zita Rosinete, que estava grávida. Teve tosse, diarreia, febre, dor de cabeça, dor no peito e muita dor na barriga. Os xamãs não fizeram trabalho pra ela, porque ficaram com medo de adoecer, já que essa doença é muito forte.
No dia seguinte, depois que a Zita Rosinete teve febre, caminhamos até o posto da Missão. Eu fiquei muito triste lá. A Rosinete desmaiou três vezes. Estava muito fraca e com muita febre. No dia 27 de abril, fomos removidos de avião da Missão Catrimani para a maternidade em Boa Vista. Quando chegamos no hospital, ela desmaiou de novo e eu fiquei segurando ela… Então, talvez eu tenha Covid dentro de mim. Mas eu fiz o exame pelo nariz e pela boca, deu negativo. [Mais tarde Remo infectou-se na Casa de Saúde Indígena e teve um teste positivo para covid-19].
Minha mulher estava com muita dificuldade de respirar, estava muito fraca e quase morreu! E eu perguntei para o médico: ‘Será que ela vai morrer?’. ‘Não. Ela está um pouco forte por dentro ainda’, disse. Na maternidade, nos colocaram para dormir separados de outras pessoas.
Meu filho morreu. No dia 28 [de abril] mesmo, no dia em que nasceu, ele morreu. Nasceu de manhã e à tarde morreu. Zita Rosinete estava muito fraca, mas estava um pouquinho forte ainda, porque ela não queria morrer. Se tivesse pensado em morrer, ela morreria.
Eu não vi meu filho. A Zita Rosinete fez nascer o bebê, os médicos pegaram e disseram: ‘Levem para o hospital, para a UTI’. Então, ele morreu. Eu fiquei muito triste. Eu estou triste ainda. O médico não disse por que ele morreu. Só me perguntou: ‘Ei, você é papai?’. ‘Sim, eu sou papai’. ‘Desculpa aí, seu filho morreu. Ele estava com muita dificuldade de respirar e por isso morreu’.
Ele morreu acho que às 14h, mas não sei… Só tem no documento. Eu disse para o enfermeiro: ‘Eu quero visitar meu filho!’. Mas ele disse: ‘Espera, só depois. Os médicos estão examinando ainda’. Aí eu esperei, esperei, esperei e depois chegou informação: ‘Seu filho morreu de dia’. O corpo, acho que está lá ainda na UTI, eu não sei onde está. Na Casai [Casa de Saúde Indígena], eles também não disseram onde está o corpo do meu filho. Eles não dão informação sobre onde está o corpo. Eu tenho um papel que fala sobre o meu filho [declaração de nascido vivo] e aqui na Casai a enfermeira perguntou: ‘Onde é que está o seu filho?’. Eu disse: ‘Morreu!’. ‘Onde está o documento falando que ele morreu no hospital maternidade no dia 28?’. ‘Não sei! Os médicos não me deram!’”.
Remo e Rosinete só conseguiram voltar em 19 de junho para a sua aldeia. Sem o corpo do filho. E assim se abriu mais um rasgo de violência no povo Yanomami. O Ministério Público Federal está investigando o caso e também o de outras mortes de adultos cujo corpo é reclamado pelos Yanomami.
“Roubar os mortos alheios é o estágio supremo da barbárie”
O antropólogo francês Bruce Albert compara “o enterro secreto e compulsório (‘biosseguro’!)” das vítimas Yanomami da covid-19″ com o “‘desaparecimento” dos corpos das vítimas dos torturadores na ditadura militar (1964-1985). “Roubar os mortos alheios e negar o seu luto sempre foi o estágio supremo da barbárie, no desprezo e na negação do Outro (étnico e/ou político”, afirma em entrevista ao EL PAÍS. Albert escreveu, junto com Davi Kopenawa, um livro que é um marco na história da Antropologia: A queda do céu (em português, publicado pela Companhia das Letras).
Em 1993, o episódio conhecido como “Massacre de Haximu”, em que 16 indígenas foram assassinados por garimpeiros, mostra a importância inegociável que o povo Yanomami dá aos seus rituais funerários. “Mesmo com o terror de estarem sendo caçados pelos garimpeiros, eles não hesitaram em colocar sua vida em risco para recuperar seus mortos, chorá-los e queimá-los devidamente em seu caminho de fuga”, lembra Albert. “Para os Yanomami, mais vale a pena morrer do que deixar seus mortos sem sepultura.”
Nas guerras antigas, os Yanomami sempre davam uma trégua para que as mulheres dos seus inimigos pudessem recuperar seus mortos na floresta e chorá-los devidamente. Fazer “desaparecer” os inimigos mortos, segundo o antropólogo, era considerado “uma desonra e uma manifestação de hostilidade literalmente inumana: digna dos animais ferozes ou dos espíritos maléficos da floresta”.
Ao final da entrevista, Bruce Albert ainda diz: “Espero que seja útil para que seus leitores entendam: não há pior afronta e sofrimento para os Yanomami do que fazer ‘desaparecer’ seus mortos”.
O caso dos bebês Sanöma expressa a abertura de um novo capítulo de violência de Estado contra os povos originários. O desrespeito e a indignidade com que a morte é tratada pelas autoridades públicas são os mesmos da vida. Não basta matar pela contaminação por vírus, há ainda que torturar mulheres e também homens. Este capítulo está só começando, mas as vítimas já deram a ele um título: genocídio.