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  • Como provar que Lula é inocente para quem não quer acreditar

    Como provar que Lula é inocente para quem não quer acreditar

    Por Maria Júlia Morenno

    Por que Lula foi condenado?

    Porque atribuíram a ele um tríplex que nunca o pertenceu. O juiz Sérgio Moro e o TRF-4 consideraram que o apartamento seria pagamento por corrupção e uma forma de lavar dinheiro.

    Os juízes estão errados?

    Sim. Estão errados.

    A condenação é injusta?

    Sim. Lula é 100% inocente. Ele não cometeu nenhum crime.

     

    Mas vi por aí que tem recibo, vídeo de visita ao prédio e tudo o mais…

    Não há nenhuma prova. Vamos discutir cada uma dessas alegações.

    Tá bom, vou começar. Qual a relação do Lula com o apartamento no Guarujá?

    Em 2005, dona Marisa comprou uma cota para adquirir um apartamento no edifício Solaris, o ap. 141. E ela pagou as prestações normais até 2009, quando a construtora original, a Bancoop, faliu.

    E aí?

    Aí a OAS assumiu a construção.

    OAS, aquela enrolada na Lava-Jato por causa da roubalheira na Petrobrás?

    Não. A OAS da Petrobrás é a Construtora OAS. A do prédio é a OAS Empreendimentos. São caixas separados de um mesmo grupo.

    Hum. E o que aconteceu?

    A OAS propôs para ele e para a Marisa um apartamento maior, o número 164-A. O tal tríplex.

    Taí: corrupção!

    De jeito nenhum. Ficou combinado entre Lula e Leo Pinheiro – então presidente da empresa – que a OAS poderia fazer a reforma sem compromisso. Se Lula e Marisa gostassem, comprariam pelo preço de mercado.

    Ahá! Então o Lula visitou mesmo o prédio?

    Visitou, sim. Com o Leo Pinheiro. Ele nunca negou isso. Tem vídeo e tudo.

    Mas como o presidente da construtora se presta ao papel de corretor?

    O cliente potencial era um ex-presidente da República. É praxe no mercado colocar o executivo mais graúdo no trato com autoridades e ex-autoridades.

    E a Marisa foi mais de uma vez?

    Sim. Ela foi duas vezes.

    Por quê?

    Porque ela não havia gostado do apartamento. O Leo Pinheiro perguntou como ela acharia que ficaria melhor. Ela deu palpites, sempre sem compromisso.

    Mas a OAS não estava fazendo isso a troco de nada.

    Claro que não. A construtora queria influenciar o presidente, manter boas relações. Novamente, esse tipo de assédio é comum no mundo dos negócios.

    Assédio, não! É corrupção!

    Não. Primeiro porque não havia obrigação de compra, mas se o casal Lula quisesse comprar, pagaria o preço de mercado. Segundo – e principal: quem se corrompe tem de dar algo em troca.

    Aposto que o Lula deu.

    Não deu, não. Quem diz isso não sou eu, é o próprio Sérgio Moro. Ele reconhece que um eventual dinheiro da OAS não foi usado no tríplex.

    Como assim? O Moro reconhece que não houve corrupção?

    Está lá na sentença dele: “Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-presidente”.

    Peraí, não pode ser! Tem várias provas de que ele o Lula recebeu o tríplex por corrupção.

    Vamos examinar essas “provas”. Mas podemos concordar numa coisa pelo menos? O Lula nunca foi o dono de fato do imóvel.

    Certo, mas geralmente os corruptos usam laranjas.

    Mas no caso a dona era a própria OAS. E o imóvel foi usado como garantia da construtora numa outra operação. Você não faz isso com um imóvel que não é seu ou que está reservado para outra pessoa.

    Qual o número do tríplex?

    Ap. 164-A.

    E do apartamento em que eles tinham cotas?

    Ap. 141.

    Agora eu te peguei! Tem uma prova que é o recibo rasurado de um pagamento da Marisa para a construtora que faliu, a Bancoop.

    O recibo não está assinado.

    Não importa! Estava escrito “164-A” e alguém escreveu por cima “141”. Como você explica isso?

    O funcionário da Bancoop preencheu errado, o que invalidou o recibo.

     

    Mentira!

    É verdade. De novo, não sou eu quem está dizendo. É a Polícia Federal. A perícia da PF comprova que a rasura foi feita quando as três vias estavam no mesmo documento.

    Mas se o recibo estava incorreto, o funcionário precisa ter feito outro! A Marisa tinha esse recibo?

    Sim.

     

    Sério?

    Sério. Está nos autos do processo para quem quiser consultar.

     

    Só que tem uma outra prova: a declaração no imposto de renda do Lula das cotas do ap. 141. Isso é lavagem de dinheiro!

    Lavagem como?

    Ué, se ofereceram o tríplex, que era o ap. 164-A, não podiam ter declarado o ap. 141!

    Ele nunca tive o ap. 164-A. Como poderia declarar o que nunca teve? Não custa lembrar: o tríplex foi uma oferta do Leo Pinheiro sem garantia de compra. Lula e Marisa decidiram não comprar.

    Mas se o ap. 141 era da Marisa e do Lula, porque a OAS o vendeu em 2014? Te deixei sem saída, hein!

    Porque quando a Bancoop faliu, a Marisa perdeu o prazo para confirmar a possa e pagar o resto para a OAS. O apartamento ficou disponível e a grana dela e do Lula ficou com a construtora. Em 2016, como te falei, eles pediram o dinheiro de volta.

    Cara, não é possível que o Lula seja inocente… Tem o depoimento do Leo Pinheiro!

    É uma delação premiada. Muitos juristas concordam que é muito, muito complicado considerar uma delação premiada como prova. O delator tem interesse direto em contar algo que o ajude a se safar. Mesmo que seja uma invenção. Ainda mais no caso do Leo Pinheiro, que mudou de opinião enquanto estava preso.

    Como assim?

    Mesmo quando foi preso pela primeira vez, em novembro de 2014, ele reconheceu que não havia qualquer envolvimento do ex-presidente. Cinco meses depois ele foi solto por decisão do STF e no ano seguinte sua delação foi recusada. Ele foi preso novamente e, sem Lula na delação, a pena de Leo Pinheiro foi aumentada em 10 anos. Foi só depois de sete meses na prisão, condenado a cumprir mais 26 anos que Leo Pinheiro se dobrou e resolveu incriminar Lula para obter uma redução de pena.

    E obteve?

    Sim. E muito: inacreditáveis 23 anos de redução e foi imediatamente colocado em regime aberto. Um grande negócio, hein! Com Moro, diminuiu de 16 anos (de 26 anos e 7 meses para 10 anos e 8 meses). No TRF-4, a segunda instância do processo, caiu mais 7 anos: para apenas 3 anos e seis meses, o que o levou automaticamente para o regime semi-aberto.

    Disso eu não sabia… Mas como terminou a história do apartamento?

    A reforma ficou pronta e o Leo Pinheiro avisou o casal Lula e Marisa. Eles não gostaram e não ficaram com o apartamento. Em 2016, eles pediram o dinheiro de volta para a OAS.

    E quem é o dono do apartamento hoje?

    A OAS sempre foi a dona, mas empenhou o apartamento como garantia de dívidas. Os credores cobraram e Moro decidiu leiloar. Ainda assim, destacou na decisão:

    “O imóvel será vendido em leilão público e o produto da venda será depositado em conta judicial, com os valores sendo destinados, após o trânsito em julgado, à vitima no caso de confirmação do confisco ou devolvidos à OAS Empreendimentos ou ao ex-Presidente no caso de não ser confirmado o confisco.” 

    Ou seja, pra você ver a bizarrice, o dinheiro do leilão ou vai para o Lula ou para o Leo Pinheiro. Seria cômico se não fosse trágico. É absurdamente injusto.

    Só isso?

    Só.

     

     

  • RESISTÊNCIA AO GOLPE

    RESISTÊNCIA AO GOLPE

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Resistência, temos aí aquele tipo de palavrinha bonita, que não tem como ter conotação negativa. A resistência é sempre bem-vinda, cercada de certo romantismo. É na resistência que nascem os heróis. “Estar na resistência” é sempre visto como algo positivo, seja a “resistência” comandada pela princesa Leia, a resistência francesa de De Gaulle, ou a resistência de Mandela e Malcom X.

    É sobre a tal resistência que escrevo, com interesse específico na resistência à brasileira em tempos de golpe. Temos aqui aquele tipo de assunto meio casca de banana, que faz muita gente boa escorregar.

    Os intelectuais progressistas costumam cometer dois erros graves sempre que falam sobre “resistência”. Os erros apontam para duas interpretações opostas do fenômeno que possuem a mesma origem: a colonização intelectual, o que na prática nada mais é do que a tentativa de interpretar a realidade brasileira com ideias que foram produzidas em função de outras realidades.

    Em síntese os erros são:

    1) Diante da ausência de resistência direta, alguns endossam a velha tese da apatia popular. O povo brasileiro seria passivo, indolente, preguiçoso e pouco dado ao ativismo político. Temos aqui um caso patológico de colonização intelectual, pois o modelo de “resistência” é dado pela história das sociedades europeias, pela organização da sociedade civil em partidos políticos, sindicatos, pela ação direta do “povo” nas ruas, pressionando o poder público.

    Como o povo não atende ao chamado, a tese da apatia popular surge quase como a consequência lógica de uma expectativa frustrada. Ah, as expectativas, sempre inimigas da análise.

    2) Do outro lado, estão aqueles que negando a tese da apatia popular acabam idealizando as ruas, estando sempre à espera da ‘acontecença’ da revolução. Qualquer movimentação popular nas ruas se torna a antecipação do futuro revolucionário, ainda que seja carnaval ou jogo do Flamengo. Também aqui há colonização intelectual, mas pelo caminho inverso: como o modelo de resistência popular ainda é o europeu, a tentativa, por vezes desesperada, é aplicá-lo ao Brasil, forçando a realidade a se enquadrar na categoria que já está dada.

    Pra escapar dos dois escorregões, meu objetivo aqui é pensar a resistência nos termos que me parecem adequados à experiência brasileira e pra isso lanço mão de uma categoria fundamental: “imaginário”.

    Vários estudiosos da sociedade já utilizaram o conceito imaginário nas suas reflexões. Entre todos esses usos, a definição proposta pelo filósofo grego Cornelius Castoriadis (1922-1997) é que mais me inspira no esforço de interpretar o Brasil contemporâneo. É claro que Castoriadis não estava estudando a realidade brasileira e por isso a reflexão que ele propõe serve como inspiração e não como um modelo rígido a ser aplicado no Brasil.

    Em resumo, Castoriadis define o imaginário como uma forma de pensar distribuída socialmente e formada por ideias que “já estão aí há muito tempo”. Essas ideias, por diversos motivos, “funcionaram e funcionam na sociedade”, ganharam adesão popular e passaram a configurar o pensamento das pessoas.

    Ao menos na minha avaliação, a resistência à brasileira nestes tempos de golpe está no plano do imaginário e vem se mostrando a única força capaz de retardar o desmonte do Estado brasileiro. Não é porque o povo não está nas ruas, participando dos atos que organizamos com todo amor e carinho, que ele está apático.

    E não, não adianta dizer que MTST, MST, CUT, UNE que estavam nas ruas defendendo Dilma e que estão nas ruas defendendo Lula, dão conta daquilo que é o “povo brasileiro”. São movimentos sociais organizados importantes, fundamentais para o nosso experimento democrático, mas possuem capacidade de mobilização bastante reduzida. Isso não é culpa dos dirigentes desses movimentos.

    Vivemos hoje, no Brasil e no mundo, tempos de desmobilização. As agendas coletivas não mobilizam mais. As pessoas olham umas para as outras e enxergam mais diferenças que semelhanças. Mas isso é assunto para outra reflexão.

    Retomando o fio…

    Fato, fato mesmo é que o “o povo brasileiro”, o povão mesmo, ainda não foi às ruas tomar partido nos conflitos que desde 2013 desestabilizam a cena política nacional. Nem os movimentos “coxinhas”, impulsionados pela mídia hegemônica e por movimentos sociais como o MBL, e nem os atos convocados pelos movimentos sociais tradicionais de esquerda foram capazes de mobilizar o “povão”, aquela camada da sociedade que vive com salário mínimo. Até aqui, nas ruas, o conflito foi travado entre frações da classe média.

    O povão, povão mesmo, até fez-se presente na cena dos conflitos, nas ruas, vendendo cerveja, bandeiras vermelhas e bandeiras do Brasil, dependendo da ocasião. De bobo, o povão não tem nada. E vejam que não se trata aqui de apatia. Essas pessoas estão ocupadas sobrevivendo, plantando no almoço pra colher na janta. Elas já apanham da polícia todos os dias. A galera não tá a fim de levar bala de borracha no lombo e gás de pimenta na cara.

    Mas isso não significa que o povão não esteja participando do jogo, pois o jogo não é jogado apenas nas ruas, na ação política direta. O jogo é jogado também no imaginário, e aqui o campo progressista está vencendo, vencendo de lavada, e não é uma vitória pouco importante. Dois fatores apontam para essa vitória.

    Fator 1 – A sobrevivência política de Lula.

    Lula é alvo da maior perseguição midiática da história do Brasil. Os ataques da mídia hegemônica às lideranças populares não é nenhuma novidade. Se nos debruçarmos sobre o Brasil moderno, de 1930 pra cá, veremos a artilharia da mídia hegemônica mirando em Getúlio, Jango, Arraes, Brizola, Dilma e no jovem Lula. Quem não lembra daquele fatídico debate manipulado pela Globo em 1989?

    Mas o que está acontecendo com Lula desde 2013 é de uma intensidade singular. Os operadores da grande mídia foram para o tudo ou nada e tomaram a destruição da figura pública de Lula como grande objetivo. Mas Lula não morreu e todas as pesquisas mostram que sua popularidade cresce a cada dia. Hoje, Lula partiria pra corrida eleitoral com 30% das intenções de voto, assim, sem campanha. É muita coisa.

    É que a manipulação midiática tem limites, meus amigos. Ao se tornar o alvo predileto do golpe de Estado levado a cabo pela aliança entre a mídia hegemônica e o judiciário, Lula tornou-se também o principal antagonista do golpe. E como o golpe é neoliberal, tendo como objetivo o desmonte do Estado, Lula encarnou a imagem do Estado provedor de direitos, que é o valor mais importante no imaginário político brasileiro.

    Desde os anos 1930 que o Estado brasileiro tem essa função: prover direitos sociais aos mais pobres, ainda que de forma autoritária, ainda que às custas dos direitos civis e dos direitos políticos. Intuitivamente, a população mais vulnerável entendeu que Michel Temer representa a desregulamentação, o ataque ao Estado e que Lula personifica a função social do Estado.

    Juntemos isto à memória recente de que na “Era Lula” a vida estava melhor e entenderemos a sobrevivência política de Lula, mesmo que muitos de seus potenciais eleitores não estejam plenamente convencidos de sua inocência. Tem muita gente que vota em Lula mesmo achando que ele seja corrupto.

    Fator 2 – A derrota do projeto da Reforma da Previdência.

    A Reforma da Previdência é projeto natimorto pela mesma razão que explica a sobrevivência de Lula. Os parlamentares estão com medo de colocar sua assinatura em um projeto que violenta aquele que é o princípio basilar do imaginário político brasileiro: a definição do Estado como agente provedor de direitos sociais.

    O povão pode até não tá montando as charmosas barricada nas ruas que tanto embalam os devaneios revolucionários da esquerda brasileira, mas ainda tem título de eleitor, ainda vota e, ao que parece, o golpe não ousou (ou não foi capaz) de alterar o calendário eleitoral.

    O que tentei fazer neste texto foi dizer algo simples, talvez até mesmo óbvio: a resistência popular já está acontecendo, mas não na receita das sociedades europeias. A resistência está acontecendo no plano do imaginário, nesse “já está aí há muito tempo”. A resistência é conservadora, no sentido mais básico do termo.

    É claro que o imaginário se transforma historicamente, não é fácil e não é rápido, mas se transforma. É isso que a mídia hegemônica, representando os interesses do neoliberalismo nacional e internacional, está tentando fazer.

    Cada vez que Gerson Camarotti tenta convencer os garçons brasileiros que a reforma trabalhista irá lhes permitir fazer “trabalho intermitente” em mais de um restaurante, é o imaginário quem está sendo atacado.

    Sempre que Fátima Bernardes traz no seu programa uma empreendedora negra que se “libertou da opressão do patrão” abrindo seu próprio negócio, é a imagem da cidadania se definindo pelo trabalho formal que está sendo atacada.

    Cada vez que, no Fantástico, Lima Duarte e Fernanda Montenegro são representados como símbolos da saúde laboral na terceira idade é a imagem da previdência social pública que está sendo atacada.

    Sim, meus amigos, o imaginário também se transforma e as forças motoras do golpe estão apostando todas as suas fichas nisso. Porém, as pesquisas sobre opinião pública sugerem que esse esforço não está sendo eficaz. É que tá tendo resistência. O povo brasileiro já está resistindo ao golpe, do seu jeito, nas suas possibilidades. Se a resistência está aquém da expectativa é porque problema está nas expectativas.

    (*) Com ilustração de Paulo Stocker
  • A intervenção militar no Rio: dos juízes aos generais

    A intervenção militar no Rio: dos juízes aos generais

    Artigo de Luiz Eduardo Soares*

    A situação da segurança pública no Rio é gravíssima e, portanto, não há mais lugar para discursos oficiais defensivos e auto-indulgentes. O crime organizado se espalhou como por metástase, mas note bem: só há crime organizado quando estão envolvidos agentes do Estado. Segmentos numerosos e importantes das instituições policiais não apenas se associaram ao crime, mas o promoveram – e aqui se fala sobretudo no mais relevante: tráfico de armas, crime federal. O que fez a Polícia Federal ? O que fez o Exército, responsável com a PF pelo controle das armas? O que fez a Marinha para bloquear o tráfico de armas na Baía de Guanabara? O Estado do Rio está falido, suas instituições profundamente atingidas, mas o que dizer do governo federal e dos organismos federais? De que modo uma ocupação militar resolveria questões cujo enfrentamento exige investigação profunda e atuação nas fronteiras do estado, além de reformas institucionais radicais e grandes investimentos sociais?

    Os próprios militares sabem que não podem nem lhes cabe resolver o problema da insegurança pública. Sua presença transmitirá uma sensação temporária de que o Rio se acalmou, porque os sintomas estarão abafados, mas nada será solucionado e a solução sequer será encaminhada. Basta analisar o que se passou na Maré: o Exército ocupou as favelas por um ano, desgastou-se na relação com as comunidades, a um custo de R$ 600 milhões, e tão logo as tropas se retiraram, os problemas retornaram com mais força.
    Já que não se trata de enfrentar os verdadeiros e permanentes desafios da segurança pública, muito menos resolvê-los, a que serve a intervenção: são três, a meu ver, suas funções, todas de natureza eminentemente política – é lamentável que os militares se prestem a esse papel, deixando-se manipular, politicamente, como peões em um jogo de cartas marcadas.

    1 – Muda-se a narrativa sobre a realidade do Rio, investindo-se na expectativa sebastianista da redenção, que se realizaria, nesse caso, pelas Forças Armadas, em especial o Exército, e pelo governo federal. Um projeto dessa magnitude não seria implantado sem um acordo com a grande mídia, porque sua descrição dos fatos e sua escolha de focos serão decisivas para o êxito político da operação. Ela consistirá essencialmente no deslocamento de Bolsonaro, abrindo-se um espaço para que uma candidatura de centro-direita, em nome da lei e da ordem, mas legalista, capture o eleitorado de direita: ter-se-ia, assim, uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro. Sai o capitão aventureiro e desorienatdo e entram generais formalmente legalistas, embora “duros”. Abre-se novo espaço para candidaturas no Rio e no país, e para a emergência de lideranças “de fora da política” e “impolutas”. Parece que está em curso uma transição: aos poucos, deixamos de ser o país dos juízes para nos tornarmos a nação dos generais – de novo, ainda que, dessa vez, com cobertura legal, uma vez que, depois do impeachment, qualquer atropelo às leis poderá ser tolerado desde que os fins justifiquem, para seus operadores, os meios.

    As denúncias relativas ao auxílio moradia contra Moro e Bretas, poucos dias depois da condenação de Lula em segunda instância, deixa claro que, para a mídia e as elites que mandam no país, em particular o capital financeiro e seus sócios internacionais, o papel dos magistrados já foi cumprido e agora é tempo de “cortar suas asinhas” para evitar que acreditem no próprio personagem e avancem sobre o PSDB, os bancos e as corporações midiáticas. Como se vê, a intervenção militar no Rio complementa a exclusão de Lula da disputa eleitoral, uma vez que não seria suficiente exclui-lo e prosseguir na sistemática marginalização da candidatura Ciro Gomes, se a direita e o centro não se entendessem e criassem uma alternativa viável.

    2 – Atuando-se reativamente na emergência, impede-se mais uma vez que alcancem a agenda pública temas fundamentais: (a) a política de drogas; (b) a reforma do modelo policial e a refundação das polícias, com a mudança do artigo 144 da Constituição (por exemplo, com a aprovação da PEC-51 que o senador Lindbergh Faria apresentou em 2013); (c) a repactuação entre o Estado e as comunidades que vivem em territórios vulneráveis, em especial a juventude, de modo a que as instituições policiais deixem de ser parte do problema e se transformem em parte da solução. Hoje, as execuções extra-judiciais são a regra, o que leva analistas a declarar que essas áreas estão sob a regência de um Estado de exceção. Infelizmente, isso ocorre com a anuência, por cumplicidade ou omissão, do Ministério Público e as bençãos do poder Judiciário; (d) o investimento em infraestrutura, educação e cultura, e a abertura de novas oportunidades para a juventude mais vulnerável, respeitando-se as camadas populares e, assim, bloqueando o aprofundamento do racismo estrutural. Os recursos, aos bilhões, viriam do corte no pagamento de juros aos rentistas.

    3 – Um efeito lateral nada desprezível seria a suspensão das votações no Congresso da reforma da previdência, salvando o governo de uma derrota, no item que supostamente justificaria sua ascensão ao poder. Por mais que, hoje, o governo negue essa possibilidade, está aberta a temporada de caça a brechas judiciais para obstar o processo de votação.

    Não posso concluir sem chamar atenção para os riscos que a intervenção militar representa para os moradores das comunidades e para os próprios militares, que são jovens e não foram treinados senão para o enfrentamento de tipo bélico. A primeira morte provocada por um militar, em decorrência da nova legislação, será julgada pela Justiça militar, o que poderá transferir para a arena jurídico-política internacional a problemática da ocupação do Exército, tornando a operação política um desastre, a médio prazo, a despeito do provável apoio ufanista da grande mídia. Por outro lado, se um militar for atingido mortalmente, as consequências serão imprevisíveis, fazendo girar mais rápida e intensamente o círculo, ou a espiral da violência.
    Além de tudo, não nos esqueçamos do exemplo mexicano: quando as Forças Armadas se envolvem na segurança pública, abrem-se as portas para sua degradação institucional.

     (*) Antropólogo, cientista político e escritor, é um dos maiores especialistas em segurança pública do país. Foi secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro durante o governo Anthony  Garotinho e ocupou a Secretaria Nacional de Segurança Pública no governo Lula, tendo sido afastado dos dois cargos por pressões políticas. Na carreira de escritor, Soares foi co-autor dos best-sellers Elite da Tropa e Elite da Tropa 2.
  • Há um curto-circuito no coração do golpe

    Há um curto-circuito no coração do golpe

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*

    Acho que poucos de nós duvidam que a palavra “corrupção” é o termo chave da crise brasileira contemporânea. Uma crise que começou em junho de 2013, mas que deita suas raízes mais profundas lá em 2005, na ocasião do que já na época ficou conhecido como o “julgamento do mensalão”.

    Aqui neste ensaio, quero mostrar como essa palavrinha mágica pode ser entendida de várias maneiras e como a história da crise brasileira contemporânea pode ser contada a partir do privilégio de um desses sentidos: o sentido “liberal”, segundo o qual a “corrupção” está diretamente vinculada ao Estado, a tudo que é público. É como se o Estado fosse naturalmente corrupto e corruptor e o combate à corrupção passasse, necessariamente, pelo combate ao Estado, pelo desmonte do Estado.

    O privilégio dessa leitura liberal do fenômeno da corrupção diz muito sobre a crise, especialmente sobre os seus movimentos mais recentes. De uns dias pra cá, os veículos mais poderosos da imprensa hegemônica brasileira (Folha de São Paulo, o departamento de jornalismo da Rede Globo, Estadão) vêm abrindo fogo contra os privilégios dos juízes, que já são conhecidos por todos nós há muito tempo. Por que somente agora a imprensa hegemônica denuncia os privilégios nababescos dos juízes brasileiros? Penso que estamos entrando num novo momento da cronologia da crise, em que a aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até então sólida como pedra, começa a fazer água. Também aqui a leitura liberal do conceito “corrupção” tem uma importante função política a cumprir.

    Bom, pra começar a conversa é importante esclarecer melhor o que estou querendo dizer quando afirmo que o conceito “corrupção” é polissêmico, que possui vários sentidos. Pra isso, cito, bem rápido, alguns autores que ao longo da história da cultura política ocidental usaram a palavra “corrupção”, fazendo-o de diferentes formas.

    Para Aristóteles, que que no IV século antes de Cristo escreveu o tratado da “Política”, a “corrupção” era o efeito natural do tempo sobre os organismos políticos. Maquiavel, escrevendo no século XVI da era cristã, seguiu a trilha aberta por Aristóteles e definiu a “corrupção” como a perda da capacidade da República em institucionalizar os conflitos travados entre seus cidadãos. Chamo de “republicana” essa forma de tratar a corrupção.

    Karl Marx, escrevendo no século XIX, enfrentou o tema da corrupção em um livro pouco conhecido, cujo título é “A luta de classes na França entre 1848 e 1850”. Basicamente, Marx argumenta que falar em “corrupção política” no sistema capitalista é uma redundância, pois o próprio capitalismo já é corrupto, na medida em que se fundamenta na exploração de uma classe pela outra. Essa é a definição marxista.

    Nenhuma dessas formas de pensar associou a “corrupção” ao roubo do dinheiro público. Vamos encontrar essa associação sendo feita de forma mais clara nos textos que Friedrick Hayek escreveu ao longo do século XX. Preocupado em discutir o tema da “ética na política”, Hayek definiu a corrupção como a apropriação para fins particulares dos recursos públicos. Como o objeto da corrupção seria o dinheiro público, a definição proposta por Hayek sugere que o terreno da “coisa pública”, do “Estado”, é solo fértil para a corrupção. Podemos chamar essa definição de “liberal”.

    Bom, o conceito “corrupção” tem, pelo menos, três significados distintos: o republicano, o marxista e o liberal. Nem carece de gastar muito papel e tinta pra mostrar que na crise brasileira contemporânea um desses significados foi privilegiado: o liberal. Ao menos na minha avaliação, isso não aconteceu à toa, sendo um projeto planejado deliberadamente por segmentos poderosíssimos das elites brasileiras para realizar um antigo sonho, para viabilizar um projeto que vem sendo frustrado desde a década de 1940.

    Que projeto é esse? Que sonho é esse que animou durante esse tempo todo o sono da direita brasileira, mas que jamais foi plenamente realizado?

    Pra responder, apresento uma breve síntese da história contemporânea do Brasil. Síntese histórica é igual prudência e canja de galinha: é sempre bem-vinda. O conhecimento histórico é útil à vida.

    Trata-se do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, projeto que começou a ser defendido no final dos anos 1940 pela UDN, partido político que na época foi o portador da narrativa da redemocratização que marcou a transição da Ditadura do Estado Novo para a ordem democrática que se consolidaria em 1945. Não era, ainda, o “Estado Mínimo” neoliberal, mas sim um projeto desenvolvimentista internacionalista que priorizava o mercado e o capital, considerando o Estado um obstáculo para a prosperidade nacional.

    Esse projeto desenvolvimentista jamais foi aprovado nas urnas, o que explica em parte o transformismo golpista da UDN. Em algum momento da década de 1950, a UDN cansou de brincar de eleição e passou a recorrer ao expediente golpista. Já que o povo não colaborava, a UDN resolveu caminhar sem o povo mesmo. A aproximação com os militares foi uma consequência quase natural.

    A aliança entre a UDN e os militares viabilizou o golpe civil-militar de 1964. Mas como os militares não são seres acéfalos, não serviram como simples instrumento para a realização do projeto udenista. Acabou mesmo que a UDN deu com os burros n’água, pois os milicos sentaram na cadeira do poder e ali ficaram por mais de 20 anos, perseguindo até mesmo os aliados de véspera, como o líder udenista Carlos Lacerda.

    E o pior para o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” vou contar agora: os militares não efetivaram o projeto udenista, pelo contrário, já que em vários aspectos os governos militares podem ser definidos como estatais-desenvolvimentistas. Isso não significa um elogio aos militares, bem longe disso, pois a ditadura foi fundada em um golpe que destituiu um governo democraticamente eleito. Diante desse vício de origem, nenhum ato da ditadura militar pode ser considerado legítimo.

    Enfim, não foi com a UDN e não foi com os militares que o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” se tornou realidade.

    O projeto voltou com força no final dos anos 1980 e pautou as eleições presidenciais de 1989. Sob a batuta do “Consenso de Washington”, um jovem político alagoano, bonitinho mas ordinário, prometeu “caçar os marajás”. Ou em outras palavras, combater a “corrupção”. Adivinhem como? Enxugando o Estado.

    Sabemos bem o que aconteceu com esse jovem e charmoso político alagoano. Collor também não conseguiu realizar o velho sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”.

    Com um discurso de propaganda em muitos aspectos parecidos com o de Collor, só que acrescido da narrativa da “estabilidade econômica resultante do plano real”, Fernando Henrique Cardoso se submeteu às urnas em 1994. E venceu. Havia chegado a vez do príncipe da sociologia uspiana tentar realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”, dessa vez com a legitimidade de uma vitória eleitoral.

    O sucesso foi relativo. Sem dúvidas, FHC avançou mais que seus antecessores, mas no final dos seus oito anos de governo ficou a sensação de que foi pouco, de que dava pra entregar mais. O neoliberalismo é um lobo faminto.

    Por mais que o governo de Lula tenha negociado com a agenda neoliberal, apenas com muita desonestidade intelectual seria possível dizer que o desmonte iniciado pelos tucanos foi mantido pelos governos petistas. Com a eleição de Lula, o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” sofreu um duro revés. Mas o lobo não é só faminto. É insistente e teimoso também.

    O que estou querendo dizer é: A crise brasileira contemporânea representa uma nova ofensiva desse lobo neoliberal contra o Estado brasileiro e pra isso é necessário algo a mais do que o simples argumento macroeconômico. É que esse negócio de economia, de números, não convence muito, tem pouca eficiência retórica.

    É aqui que o tratamento da “corrupção” na perspectiva liberal vai cumprir sua função discursiva, ao definir o Estado como o antro da corrupção, como o cabaré da imoralidade. A diferença é que a experiência mostrou que o marketing político não basta, que é necessário algo mais forte: a judicialização da política. Nasce assim, lá em 2005, a aliança que até a semana passada era a força política mais poderosa da República: o concubinato entre a mídia hegemônica e setores do poder judiciário.

    Quem não lembra de Joaquim Barbosa, o homem da capa preta que prometia colocar todos os políticos corruptos na cadeia?

    O tal combate à corrupção foi seletivo e serviu apenas para desestabilizar os governos petistas, que estavam fortalecendo o Estado como grande agente de regulação estratégica do desenvolvimento nacional. Lideranças petistas foram perseguidas judicialmente, como foi o caso de José Dirceu e José Genoíno, e isso sob os aplausos de uma opinião pública raivosa, com fome de vísceras.

    Pouco importava o devido processo legal, desde que os “corruptos” fossem punidos e os “corruptos”, é claro, eram as lideranças petistas. Pronto! A matriz da crise está aqui. Só que do outro lado tinha um certo Luiz Inácio, cabra esperto, inteligente, que conseguiu sobreviver à primeira ofensiva do conglomerado “judiciário/imprensa hegemônica”.

    Nos anos seguintes, com a prosperidade econômica resultante do boom das commodities, os ânimos foram pacificados. Tava entrando dinheiro no bolso de todo mundo e a opção lulista em não tensionar as contradições estruturais fez com que o lobo faminto e temporariamente saciado pudesse dormir.

    O jogo mudou a partir de 2013, em virtude da combinação da crise econômica com algumas escolhas políticas da presidenta Dilma. Pois sim, em muitos aspectos o “dilmismo” é diferente do “lulismo”. Ainda precisamos avançar na conceituação do “dilmismo”. Não é isso que faço aqui.

    O lobo acordou, mais faminto que nunca e viu naquele momento uma chance de ouro para realizar o sonho do “Estado Mínimo Brasileiro”. Outra vez foi evocada a narrativa liberal do combate à corrupção. Foi assim que o governo da presidenta Dilma foi desestabilizado, foi com essa semântica que o golpe de 2016 se efetivou, novamente sob os aplausos dos “brasileiros de bem”, indignados com a corrupção.

    Mal sabiam os “brasileiros de bem” que eles estavam sendo bombardeados por uma narrativa que deu ao conceito “corrupção” um sentido específico, que de forma alguma é o único. Assim, com essa narrativa, Dilma foi derrubada e Lula condenado, em processos jurídicos profundamente politizados e questionados pela comunidade jurídica nacional e internacional.

    Acontece que a crise é um processo em movimento que ainda não acabou. Ao que parece, acabamos de entrar num outro momento da cronologia da crise: com Lula condenado e virtualmente preso, chegou a hora do lobo neoliberal devorar todo o banquete. O lobo é insaciável.

    E pra matar a fome do lobo, nada melhor do que servir, numa bandeja de prata, os privilégios do judiciário. Não é possível a realização do sonho do “Estado Mínimo Brasileiro” com um judiciário tão caro, cheio dos privilégios, cheio das pensões vitalícias.

    Bastaram menos de 72 horas após a condenação de Lula para aliança entre o judiciário e a mídia hegemônica, até aqui marcada por lealdade recíproca, se dissolver. Moro, Dallagnol, Bretas, até então representados como heróis nas páginas dos principais jornais da imprensa brasileira, se tornaram aproveitadores da coisa pública, se tornaram corruptos.

    Justo agora, os privilégios tão conhecidos por todos nós começaram a incomodar a imprensa hegemônica. De forma alguma, quero defender os juízes, mas precisamos entender que os ataques midiáticos ao judiciário fazem parte do mesmo projeto neoliberal que desestabilizou o reformismo petista. O lobo é faminto, teimoso e criativo. Tomara que as esquerdas brasileiras não se deixem seduzir pelo uivo do lobo, travestido de canto de sereia. Tem sereia não, meus amigos. É lobo mesmo, com os dentes enormes, mais perigoso que aquele jantou a chapeuzinho vermelho. Ou almoçou? Não sei.

    Escrever no olho do furacão é sempre um desafio e aquele que se arrisca acaba botando a língua na guilhotina. Não tem jeito. Por isso, arrisco a integridade da minha língua dizendo que temos um elemento novo na cronologia da crise brasileira.

    As duas forças que juntas foram as responsáveis pela aplicação do golpe têm projetos distintos e até mesmo rivais para o futuro da nação: de um lado, o judiciário querendo uma República dos bacharéis, onde os magistrados serão os guardiões da moral pública, com a devida recompensa, sob a forma de privilégios que não estão disponíveis a nenhum outro setor do funcionalismo público. Do outro lado, a imprensa hegemônica, que representando os interesses do neoliberalismo vê na atual conjuntura de crise a chance para tornar realidade, de uma vez por todas, o antigo sonho do “Estado Mínimo” brasileiro.

    Há um curto-circuito no coração do golpe! Em tempos tão difíceis, com tantas notícias ruins, talvez exista aqui algo a se comemorar.

    (*) Com ilustração de Cau Gomez

     

  • “Vou pra Porto Alegre, tchau!”

    “Vou pra Porto Alegre, tchau!”

    Por Lais Vitória Cunha de Aguiar, especial para os Jornalistas Livres

    Três ônibus com cerca de 200 pessoas saíram do ponto de encontro, o Hotel Nacional, para Porto Alegre, em meio a férias de janeiro. Brasília, sendo uma cidade administrativa, torna-se vazia em férias. Que evento poderia reunir 200 pessoas de todo o entorno do Distrito Federal para viajar em pleno janeiro, e, ainda mais para uma viagem com cerca de 36 horas?

    O julgamento de um dos maiores líderes da América Latina é suficiente para tanto: Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente com mais de 33 títulos de doutor honoris causa, e, mais importante do que qualquer título, o homem que retirou milhões de brasileiros da miséria.

    Cada um dos militantes das mais distintas categorias presentes na Caravana sabia o propósito daquele julgamento: retirar o Lula da disputa presidencial de 2018. Por isso, todos gritavam “Eleição sem Lula é Fraude!”

    Todos os ônibus foram pagos pelos próprios militantes: a cada 13 camisetas vendidas, um militante ia a Porto Alegre. Foram tantas vendas que afinal cerca 200 militantes conseguiram ir. Vocês tem ideia de quantas pessoas se mobilizaram para que tal fato ocorresse?

     

    Contando com militantes de diversos movimentos sociais, foi uma caravana repleta de diversidade, mas que no conjunto formava um panorama bem conhecido: a sociedade brasileira, bem ao contrário daqueles que julgaram Lula, em sua maioria homens brancos de classe média alta.

    O começo da viagem não apresentou grandes dificuldades ou diferenças em relação a qualquer outra viagem de ônibus. Teve gente que leu, dormiu, cantou. Eu diria, porém, que a ansiedade para chegar a Porto Alegre no dia 23 e acompanhar o julgamento permitiu que uma aura de tensão se instalasse por toda ida.

    Para piorar a tensão, o nosso ônibus quebrou no meio da estrada, na divisa entre São Paulo e Paraná. Como sempre é possível agravar a situação, não havia sinal de celular. Estávamos incomunicáveis, totalmente sem serviço.

    Um dos outros ônibus foi muito solidário ao nosso infortúnio. Parou também e nos fez companhia, enquanto iam buscar o necessário para consertar a corrente, ou seja, durante as três horas em que permanecemos conversando, estendendo faixas contra a condenação do Lula.

    As reações dos muitos caminhoneiros que passaram por nós foram interessantes. Como disse um colega, “se dependesse dos caminhoneiros o Lula já estava eleito”, o que  me deixou surpresa, afinal foram os caminhoneiros que fizeram uma grande greve contra a Dilma pouco tempo antes do golpe do impeachment. Na maioria das vezes em que passava um caminhoneiro, ele buzinava para nós.

    Os xingamentos foram bem escassos, ainda mais que os militantes ali presentes eram em parte do NDD, Núcleo Pela Democracia que se reúne todas segundas feiras na Praça dos Três Poderes, em Brasília, em frente ao Palácio do Planalto, para denunciar o golpe. Na Praça dos Três Poderes sim, recebemos muitos xingamentos e poucas buzinadas simpáticas. Por isso mesmo, a cada buzinada o povo vibrava.

    A nossa água estava acabando, não havia comida, não havia um posto próximo, havia somente mato ao nosso redor: mesmo assim as faixas de apoio ao Lula permaneceram estendidas, seguradas por militantes, durante as três horas que permanecemos esperando pelo conserto do ônibus.

    Por coincidência a equipe dos Jornalistas Livres passou por nós, filmando em parte a alegria dos militantes que puderam ir a Porto Alegre, defender o Lula com sua presença e energia, a maior arma de quem não encontra sua voz representada nas instâncias do poder. Abaixo o vídeo dos Jornalistas Livres:

    Depois da imprevista parada de três horas, ainda tivemos que enfrentar uma chuva bem forte, o que fez com que fôssemos a uma velocidade bem menor. Ao chegarmos a Porto Alegre fomos tomar banho no clube da Caixa,  depois passamos pelo acampamento formado pelos movimentos sociais especialmente para o evento do dia, com Lula, e um dia depois, no julgamento.

    Assim que chegamos fomos para o evento com Lula,  lá encontramos uma senhora, vendedora de água e guarda-sol, que nos contou que não perdia um evento para defender Lula ou Dilma.

    Nós chegamos cedo, conseguimos acompanhar a marcha da Juventude Revolução até a Esquina Pela Democracia, no centro de Porto Alegre, um local simbólico da luta gaúcha pela Legalidade, durante a tentativa de golpe contra João Goulart, em 1961. Horas antes do discurso de Lula, o local já estava bem cheio. Algumas horas depois, não teria nem como se mover. Nós não conseguimos voltar para onde estávamos antes, por causa da incrível quantidade de pessoas (a Brigada Militar calculou em 70 mil manifestantes e os organizadores do ato, em 100.000. Era gente demais, então ficamos ouvindo todos os discursos na lateral, que também estava cheia, já que o evento não tomou apenas uma rua, mas todas as ruas próximas ao Mercado Municipal de Porto Alegre. Era muita gente.

    Caravana de Brasília no acampamento do MST, em Porto Alegre

    No dia 24, dia do fatídico julgamento, às sete da manhã, já estávamos no acampamento acompanhando as atividades. Sendo manhã bem cedo, pudemos ver gente do Nordeste e do Sul se juntando para cantar suas músicas típicas. Vimos um senhor tocando músicas que compôs na época da ditadura e explicando o significado para uma roda de jovens a sua volta.

    Depois houve uma reunião da juventude Mudança, que me deixou esperançosa e triste ao mesmo tempo: é muito bom ver  uma juventude de esquerda unida, de várias partes do Brasil, pensando em como transformar realidade da política.

    O mais interessante dessa reunião foi, sem dúvida, a fala do Patrick, de Minas, que apontou um problema específico, mas que se apresenta plural:  a política em geral não consegue chamar hoje o jovem da periferia, seja de esquerda ou direita. Esse é um papel que acabou sendo em boa parte assumido pelo crime organizado, que concede ao jovem a esperança de uma vida melhor por meio da venda de drogas. O crime organizado vende uma ideologia de individualismo, a qual o jovem compra com facilidade. Como ele pontuou: ‘A CUT não consegue parar o Brasil hoje, mas o PCC consegue.’

    Nessa reunião, após a fala de todos, como encaminhamento ficou decidido que iríamos fazer uma mesa sobre o assunto no Fórum Social Mundial, que nesse ano ocorrerá em Salvador do dia 13 a 17 de março.

    Apesar da tristeza com relação ao resultado do julgamento, era óbvio que o judiciário iria julgar Lula de forma injusta. Quantos Lulas não são presos todos os dias por roubar um pão, por fome? Imagine o que esses homens que prendem pessoas com fome não iriam fazer com um que defende as pessoas que eles prendem? Aqueles que os ditadores de toga não prendem são justamente os que se identificam com eles: a classe alta com contas na Suíça, os políticos com aviões de droga…

    Ao voltarmos para Brasília, ao menos o ônibus não quebrou. Nós pudemos, todavia, ouvir ao rap de alguns companheiros –Sander, Victor e Emerson– sobre a viagem. Termino aqui com o relato deles, que demonstra que ainda existe uma juventude de esquerda pronta para lutar pelo que acredita:

     

  • LULA ERROU

    LULA ERROU

    Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia

    Não dá mais pra tampar o sol com peneira, negar o óbvio, defender o indefensável: Lula errou, errou feio e vai pagar por isso. Cansei de ficar fazendo malabarismo retórico na internet, defendendo quem tá errado.

    Paciência é aquele tipo de coisa que tem limite. Errou tem que pagar. Simples assim.

    Não é fácil admitir. Conto quase 32 anos. Votei pela primeira vez aos 16, em Lula. É óbvio!

    Durante a metade desses 32 anos de vida, olhei para o governo federal e vi o partido dos trabalhadores lá, tocando o projeto político que me formou.

    É que sou da geração REUNI, entendem? Me formei como professor e intelectual, da graduação ao doutorado, na universidade pública administrada pelos governos petistas. Todo aquele papo que vocês já conhecem: primeiro universitário da família, e blá, blá blá.

    Trabalhei e estudei muito, muito mesmo. Mas tenho certeza, absoluta certeza, de que não chegaria aqui sem as políticas públicas petistas. Sou um entusiasta da ideia de mérito, pois uma sociedade que não se fundamenta no mérito acaba se transformando no império dos privilégios.

    Não podemos entregar a ideia de “mérito” numa bandeja de prata para a direita. Precisamos disputar essa narrativa, e reconhecer que toda a ascensão social da última década se explica pelo encontro virtuoso entre mérito e política pública.

    Não foi só mérito. Não foi só política pública. É o encontro entre os dois.

    Confesso que é muito difícil pensar o governo federal brasileiro sem o Partido dos Trabalhadores, sem as inaugurações das unidades do Minha Casa Minha Vida. É triste.

    Mas o tempo passa, e na medida em que os governos petistas vão cada vez mais se transformando em ausência, vou conseguindo ter uma leitura mais sóbria disso tudo.

    E como a sobriedade é o terreno da crítica, cá está a minha crítica ao PT e a Lula. O grande erro do PT foi o grande erro de Lula, pois já há algum tempo, Lula é maior que o PT.

    Foi um erro conceitual. Foi um erro de percepção de mundo, de compreensão do que é o Brasil. Justo Lula, tão sagaz, tão sensível para o entendimento da realidade brasileira. Ele errou e errou feio.

    Explico.

    É que algumas ideias circulam como o ar, entendem?

    Algumas ideias estão em todos os lugares, configurando nossos sentidos, mediando nossa relação com o mundo. Se quiserem, podem chamar isso de “senso comum”. A gente nem sabe de onde a ideia veio e por que pensa assim. Mas pensa. É algo tão profundo que se torna quase uma natureza.

    O erro de Lula tá aí. Talvez nem dê pra chamar de erro.

    Não! Vou chamar de erro sim! Não vou aliviar o sapo barbudo. Não dessa vez! Tô nem aí. Chega! Perdi a paciência! Lula é culpado!

    Lula naturalizou uma das principais narrativas de fundação do Brasil, exatamente aquela que define nossas elites como “cordiais”, “paternais”.

    Nossos senhores de escravo seriam mais generosos. Por aqui, o racismo teria sido mais brando. Nossos patrões seriam mais bondosos. Nossa Casa Grande seria a morada não apenas da opressão, mas também do cuidado, da proteção.

    O mito da cordialidade senhorial brasileira é tão forte, mas tão forte, que, de alguma forma, ele se faz presente em todos nós, prefigura a forma como olhamos e a realidade e interpretamos o Brasil.

    O mito da cordialidade senhorial estava em Lula, estimulando sua ação política, a sua interpretação do Brasil.

    “Lula gosta de vida boa e cachacinha. Faz tudo pelos pobres, mas nunca quis incomodar os de cima”, disse Marcelo Odebrecht, em delação premiada.

    Essa frase merecia mesmo um prêmio, um Oscar! O aforismo define Lula com perfeição: Lula se convenceu de que seria possível melhorar a vida dos pobres sem incomodar os de cima. Lula comprou mito da cordialidade senhorial.

    Lula, meus amigos, superestimou as elites brasileiras, achou que essas pessoas fossem capazes de serem melhores do que são. Lula não imaginou que essas pessoas pudessem ser tão baixas, tão ruins.

    Lula pensou: “Porra, é só Bolsa Família. Três refeições por dia. O dinheiro vai pro mercadinho, movimenta a economia. Ninguém vai se incomodar com isso”.

    Lula pensou: “Qual o problema do pobre estudando na universidade? Quanto mais gente estudando, melhor pra todo mundo, mais educada fica a sociedade”.

    Lula pensou: “Quanto mais gente andando de avião, mais as passagens ficam baratas. Melhor pra todo mundo”.

    Lula errou, errou feio, errou rude. Lula não imaginava que as elites brasileiras pudessem ser tão mesquinhas.

    Lula estava convencido de que dava pra melhorar a vida dos pobres sem incomodar os de cima. Afinal, uma coisa não necessariamente resulta na outra.

    Certo?

    Não, não e não.

    Não porque o cálculo dessa gente não é objetivo. Nossas elites não são racionais. Nossas elites são de tipo antigo, estão atravessadas pela noção de privilégio.

    A madame de Copacabana, viúva de militar, pensionista, não quer saber se é melhor, racionalmente falando, viver em um país onde as pessoas comam três vezes por dia. O simples fato de o pobre “ganhar” alguma coisa, uma merrequinha que seja, incomoda a rentista, a parasita que não trabalha, que não produz nada pra ninguém.

    O jornalista do Leblon não quer saber se o aquecimento do consumo é algo positivo pra economia do país. O simples fato de descer do prédio e ver as Tvs expostas nas vitrines das Casas Bahia tocando brega, funk e sertanejo lhe enoja. É isso: ele sente nojo, asco daquela estética, daquele tipo de gente.

    A professora universitária não quer saber se a passagem de avião tá mais barata. Ela olha pro lado e vê o mestiço ali, de bermuda e chinelo, quase encostando nela. Tá muito perto, tá igualado pela posição de consumidor.

    É outra lógica da luta de classes, entendem? É a luta de classes materializada na forma de convívio nos espaços de consumo, de gozo.

    Nossa elite não consegue aceitar o gozo do pobre. Para as nossas elites, o pobre só deve gemer de dor. O prazer é monopólio, é privilégio. Nossas elites são sádicas.

    É com esse tipo de gente que Lula achou que dava pra governar. Lula achou que eles seriam capazes de ceder um pouco, só um pouquinho.

    Lula vacilou, vacilou muito.

    Lula achou que não precisava barbarizar, achou que dava pra todo mundo conviver em harmonia.

    Lula não quis ser caudilho. Não quis cultivar um dispositivo militar. Não quis fechar a Globo. Não quis fazer culto à imagem. Não quis botar um busto de bronze em cada buraco desse país. Não quis um terceiro mandato. Não quis rasgar a Constituição.

    Lula não quis aparelhar o Judiciário.

    Em algum momento, Lula achou que o problema do Brasil estava resolvido, e que era hora de sair de cena. Lula chegou a pensar em abandonar a política, e se tornar uma liderança mundial no combate à fome; um líder identificado com uma agenda humanista, suprapartidária.

    Tolo!

    Lula brincou de republicanismo na terra dos coronéis. Lula errou muito.

    Lula achou que nossas elites o perdoariam, o deixariam em paz.

    Lula achou que essa gente perdoaria sua ousadia.

    Lula achou que poderia se sentar à mesma com eles. Beber o mesmo vinho.

    Eles não engolem, eles não aceitam esse peão cachaceiro, insolente. Analfabeto.

    Lula errou em se deixar levar pelo mito da cordialidade senhorial, e pagou caro, muito caro.

    Pagou com a infelicidade dos filhos e netos, com a morte da companheira de uma vida. Lula sofrerá até o último momento de sua vida.

    Lula será odiado por essa gente mesmo depois de morto. O corpo morto de Lula precisará de escolta, de proteção. Eles vão querer mutilar o defunto, arrancar-lhe as vísceras, salgar o terreno onde será cavada a cova, para que nada mais ali brote. Da cova do operário que ousou ser presidente da República fundada pelos bacharéis, do país forjado no escravismo, nada pode brotar.

    Lula errou, e errou feio e por isso foi condenado.

    O julgamento do dia 24 de janeiro nada teve a ver com o Triplex que não foi comprado. Lula foi julgado e condenado porque superestimou o Brasil.

    Lula achou que o Brasil fosse melhor do que é; achou que o Brasil pudesse ser o que jamais foi, o que jamais será. Quanta pretensão, quanta ousadia! Que todos os juízes do Brasil condenem o criminoso!

     

    Foto Ricardo Stuckert