Jornalistas Livres

Categoria: LGBT

  • Mãe, um conceito em mutação

    Mãe, um conceito em mutação

    Mãe é aquela que gerou? Pai é aquele que inoculou o sêmen? Um casal de transexuais argentinos provou ao mundo que não. Alexis Taborna engravidou da esposa, Karen Bruselario, e deu à luz uma menina, que recebeu o nome de Gêneses Angelina. O casal também formalizou a união no civil, e Karen declarou que realizou “o sonho de toda mulher transexual que teve uma vida difícil: casar de branco e ter uma festa celebrada com amor”.

    A advogada e empresária paulista Márcia Rocha, de 49 anos, fez um outro caminho. Antes de fazer a transição para sua atual expressão de gênero, que ela define como “travesti”, teve uma filha do primeiro casamento e nos conta como foi assumir seu desejo de mudança:

    “Minha filha me chama de pai, mas eu sempre fui mãe dela. Quado ela era pequena, minha mulher estudava à noite, e era eu quem trocava fralda e punha pra dormir. Eu sempre joguei limpo com a minha filha e nunca escondi nada dela. Quando contei que ia me hormonizar, minha filha disse: ‘Ah, pai, o senhor sempre foi assim’. Aí eu disse: ‘Mas eu vou ficar mais, vou me hormonizar e colocar próteses’. Nesse tempo eu me separei da minha esposa e a minha filha teve uma crise. Eu mandei ela estudar fora do país, na Nova Zelândia. Pus as próteses e assumi publicamente. Quando minha filha chegou, ela me pediu pra eu parar de me expor, porque ela não queria que o preconceito respingasse nela nem ser motivo de comentários dos amigos. Mas, com o tempo, os amigos foram aceitando, o namorado aceitou, e ela ficou mais calma. Ela não gosta, mas acabou aceitando, porque ela sabe que é importante pra mim”.

    Foi a partir do século XVII, com as novas teorias biológicas da sexualidade e a exigência jurídica de se definir a identidade de cada um, que os conceitos de homem e mulher que conhecemos hoje se consolidou. Ao longo dos séculos, o modelo tradicional da família ocidental cisgênera e heterossexual se constituiu historicamente, se cristalizando em relações sociais bem definidas e tendo como base a matriz binária reprodutora.

    As representações e os valores sociais do que é ser pai e ser mãe foram fundamentados num pensamento essencialista que acredita que o comportamento de homens e mulheres são definidos geneticamente. Mas, depois de Simone de Beauvoir ter revelado ao mundo que “não se nasce mulher, torna-se” e Foucault ter arrematado dizendo que não existe corpo pré-discursivo, a emergência de novos arranjos biológicos e parentais colocam em xeque as “verdades absolutas”, desconstruindo esse modelo maniqueísta de família fundada na cis-hetero-normatividade.

     
    Da esquerda para direita: Letícia Lanz com sua esposa Angela Autran Dourado, o casal argentino Alexis Taborna e Karen Bruselario e a travesti Márcia Rocha.

    Para fechar com chave de ouro, a psicanalista transexual Letícia Lanz, casada há 39 anos com a mesma mulher, com a qual tem um casal de filhos, me concedeu uma entrevista “no meio do corre-corre de cozinheira oficial da casa, no dia das mães”:

    “Que adolescente rebelde não ouviu da mãe a advertência-maldição de ‘quando você for mãe, a sua opinião vai ser outra’? Mãe é um dos papéis mais conservadores e reacionários que existem na sociedade. Uma vez ingressadas nesse papel, a maioria absoluta das mulheres ‘muda de opinião’. Mãe definitivamente não é um papel progressista, inovador, questionador. E as poucas mães que ainda tentam manter uma posição independente e crítica em relação a esse papel vez por outra estão mergulhadas em conflitos existenciais absolutamente insolúveis. Por isso mesmo, é tão difícil ser mãe de pessoas transgêneras, como também é difícil ser uma mãe transgênera”.

    Letícia sintetiza as dificuldades de ser mãe de pessoas transgêneras: “Nesse caso, o fato mais comum é a mãe ficar dividida entre amar e acolher @ filh@ transgêner@ do jeito que el@ é e ‘forçar a barra’, exercendo todas as pressões e técnicas de sedução que o cargo lhe disponibiliza no sentido de ‘recuperar’ @ filh@ transgêner@ para o convívio ‘normal’ dentro da sociedade”.

    E fala, a seguir, dos impasses de ser mãe transgênera: “Nesse caso, o fato também muito comum é a mãe transgênera esmerar-se para reproduzir, com requintes de perfeição, o modelo tradicional de mãe, aquela que busca produzir membros totalmente enquadrados aos dispositivos da sociedade patriarcal-cisgênera”.

    Letícia conclui trazendo à tona, entre outros, o tema da educação: “A resposta a tantos conflitos e contradições é consciência política e evolução social, coisas que só se conseguem, como todo mundo sabe, através de uma educação crítica, sólida e contínua de toda a população”.


    Leo Moreira Sá é ator, ativista transexual e um dos Jornalistas Livres. Mais textos e fotos em facebook.com/jornalistaslivres

     

     

  • Indignação, chantagem e revolta no caso Verônica

    Indignação, chantagem e revolta no caso Verônica

     

    Um sentimento de triste indignação e revolta se espalha pela comunidade LGBT, com a confirmação de que o áudio gravado por Verônica Bolina, dizendo que não foi torturada, foi realmente instruído pela Coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual, Heloisa Alves, uma funcionária do governo Alckmin.

    Em depoimento ontem (17/04) aos promotores do Ministério Público e à Defensoria Pública, Verônica não só confirmou a fraude processual como disse também que recebeu de Heloisa Alves uma oferta de redução de pena, caso concordasse em dar a declaração isentando de responsabilidade os policiais que a torturaram.

    A pergunta que não quer calar é: Por que uma ativista tão querida e comprometida com as questões da Comunidade T, como Heloisa Alves, se envolveu em um ato tão sórdido na tentativa de escamotear informações fundamentais que pudessem apontar os culpados e esclarecer as condições que vitimaram nossa companheira?

    Mas, aos poucos, a verdade está vindo à tona, com a grande repercussão nas redes sociais e na grande mídia, que não pode mais ignorar a gravidade da situação. Em nota na quarta-feira, dia 15/04, o Centro de Cidadania LGBT, vinculado à Prefeitura Municipal de São Paulo, divulgou que Verônica Bolina tinha sido vítima de agressão por parte de policiais militares e de agentes do GOE (Grupo de Operações Estratégicas), da Polícia Civil.

    As agressões teriam ocorrido em três momentos: no ato da prisão, quando Verônica Bolina foi detida sob acusação de agredir uma senhora que vive no mesmo prédio que ela; na troca de cela, quando mordeu a orelha do carcereiro e, pasme, no Hospital Mandaqui, para onde foi levada pelos policiais do GOE.

    O Estado e seus agentes, que deveriam cuidar da integridade física de alguém sob sua responsabilidade, foram seus algozes, e cometeram (ou deixaram cometer) atrocidades e violação de direitos fundamentais, espancando (ou deixando espancar) e expondo (ou deixando expor) um ser humano totalmente impotente.

    Imagens de Verônica totalmente deformada depois dos espancamentos foram postadas em sites policiais e em seguida disseminadas pelas redes sociais, causando comoção não só na comunidade LGBT. Foi um escândalo!

    Preocupados com a repercussão de suas atrocidades, os policiais resolveram promover outro show, pelo qual se tornariam “vítimas” de Verônica, e não seus algozes. E assim teria instrumentalizado Heloisa Alves para que convencesse Verônica a assumir toda a culpa por sua situação, em troca um “alívio” na acusação de tentativa de homicídio contra a idosa.

    E Verônica apareceu em toda a mídia, dizendo o que segue:
    “Todo mundo está achando que eu fui torturada pela polícia, mas eu não fui. Eu simplesmente agi de uma maneira que eu achava que estava possuída, agredi os policiais, eles só agiram com o trabalho deles. Não teve agressão de tortura. Cada ação tem uma reação, eu agredi e fui agredida. Eles tiveram que usar das leis deles para me conter, então não teve de nenhuma forma tortura. Eu só fui contida, não fui torturada”.

    Inclementes, mais uma vez expuseram a vítima em praça pública.
    O que se sabe é que Verônica foi colocada numa primeira cela com 15 homens. Depois, colocaram-na em outra com 10. Foi quando tentaram transferi-la para uma terceira cela que Verônica mordeu e arrancou parte da orelha de seu carcereiro.

    Verônica é uma travesti muito bonita e tudo leva a crer que as sucessivas transferências de cela ocorreram para que ela fosse oferecida aos presos para ser violentada — jogada algemada na cova dos leões, sem dó nem piedade. Outra situação de flagrante ilegalidade foi o desrespeito ao seu nome social, com o delegado chamando Verônica pelo nome masculino. Em todo o inquérito, apenas o nome de registro dela é colocado.

    A foto que consta no processo mostra Verônica de costas, para encobrir os sinais de espancamento. As imagens escancaram a forma com que a polícia brasileira trata pessoas socialmente vulneráveis e é impossível não se estarrecer ao ver tamanha brutalidade e desrespeito ao ser humano.

    A fotografia em que se vê Verônica jogada de bruços no chão da delegacia, com as calças rasgadas, aparecendo uma nádega, com braços algemados e pés acorrentados, representa todas as pessoas vulneráveis que são presas, espancadas e muitas vezes mortas por uma polícia treinada para a guerra e para vencer e subjugar o “inimigo” (nós o povo brasileiro). Na mesma imagem, vê-se um policial apontando um fuzil para Verônica absolutamente imobilizada.

    Não só a comunidade T mas todo o Brasil quer justiça e a responsabilização criminal dos culpados. #‎SomosTod‬@sVerônica.