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  • FLIP INSURGENTE: Minorias políticas rodam a baiana e avisam que não deixam mais o palco literário de Paraty

    FLIP INSURGENTE: Minorias políticas rodam a baiana e avisam que não deixam mais o palco literário de Paraty

    Os leitores de hoje têm mais fome de realidade do que de ficção? Essa pergunta dirigida aos  debatedores estrangeiros da Festa Literária Internacional de Paraty saiu do painel “Trótski e os trópicos” sem uma resposta contundente. Mas tudo o que aconteceu na 15ª edição do evento, encerrado neste domingo (30/07), mostra que escritores e leitores brasileiros tendem a ver a literatura, mais do que nunca, como um espaço privilegiado para a tomada de consciência da realidade do país. Com Lima Barreto, mas não só com ele, se aprende que realidade e ficção não formam uma oposição, mas dois elementos inseparáveis na compreensão do jogo político pelas artes. Esse parece ser o grande recado da quinzenária Festa Literária, que debutou este ano, por força do duríssimo cenário político brasileiro, no mundo das lutas sociais.

    A reverência tardia à obra e à vida do escritor negro, pobre e anarco-comunista Lima Barreto foi o gatilho que faltava para colocar o racismo à frente de qualquer outra tragédia contemporânea, como a mácula vergonhosa deste tempo que a literatura ensina a não mais admitir. E em nome do racismo, todas as formas de exclusão social contra pobres, mulheres, indígenas, quilombolas, jovens das periferias foram tratadas como questões caras e urgentes nessa grande assembleia literária pela qual passaram mais de 50 mil pessoas, segundo os organizadores.

    Do  professor que fazia seu protesto contra o fechamento de escolas públicas no Rio de Janeiro na abertura do FLIP ao mero ouvinte, do pesquisador história e literatura ao leitor curioso; do biógrafo e escritor ao ativista social: todos de alguma forma inscreveram na FLIP seu brado contra a persistência dessa ferida colonial no Brasil moderno. Todos o fizeram com brilhantismo, como Conceição Evaristo, ao denunciar o retardo que a associação do racismo ao machismo produziu no seu ingresso, e no de outras escritoras negras, no campo da literatura.  Ou como o historiador baiano João José Reis, que se manifestou contra a perda das cotas raciais nas universidades como uma tentativa do governo ilegítimo de travar a escalada vitoriosa de acesso de negros à educação superior.

    Público subverteu modelo elitista dos auditórios, concentrando-se no espaço dos não-pagantes, onde as manifestações eram mais efusivas

    No mesmo caminho, a antropóloga Lilia Schwarz chamou a atenção para a espantosa atualidade da literatura de Lima Barreto na denúncia à hipocrisia e à crueldade da sociedade da República velha, representada pela Academia Brasileira de Letras, na figura do pernóstico Coelho Neto, baluarte do pensamento conservador na época. Um Lima Barreto é muito pouco para lutar contra a permanência desse Brasil de ontem. “Para combater esse horror precisamos de muitos mais Limas e menos Coelhos Netos”, lacrou o teórico Antônio Arnoni Prado, um dos primeiros pesquisadores de Lima.

    Nas árvores, os caiçaras protestam contra o roubo das águas de Paraty

    Michel Temer é, para Arnoni, a expressão mais acabada dos personagens do Brasil corrupto e escravagista desenhado pelo autor. Político arrogante e empolado, adepto às mesóclises e avesso às camadas populares, que chegou onde chegou sem outro mérito a não ser pertencer às elites que tomaram o poder. Na mesma linha da historiadora Beatriz Resende, a jornalista e pesquisadora Luciana Hipólito, autora de “Literatura de urgência: Lima Barreto no domínio da loucura”, chegou a afirmar que se tivéssemos ouvido mais essa voz negra da literatura nos primeiros anos do século XX, e aprendido com ela, não teríamos chegado ao horror da realidade de hoje.

    Muitos outros palestrantes fizeram manifestações políticas semelhantes e foram apoiados pela maioria do público em todos os espaços de debate e encenação artística. Mas foi uma professora de escola pública do Paraná que tomou a palavra para fazer a literatura oral mais eloquente e perturbadora dos cinco dias de intensiva assembleia literária. A voz anônima surgiu num corpo negro de cabelos brancos no meio da plateia, como o espasmo de um soluço. Foi essa neta de escravos, filha de uma mãe pobre, que lavava roupa em troca de lápis, caderno ou qualquer material escolar para que os filhas pudessem estudar, a narradora mais potente do maior evento literário do Brasil. Diva Guimarães, como ela se identificaria ao final, a pedido do ator Lázaro Ramos, fez do testemunho político de sua vida a mais literária e sincera narrativa.

    Ao tomar a palavra, desculpando-se pela ousadia e prometendo ser rápida, Diva se disse profundamente tocada e encorajada pelo painel do dia anterior, no qual “as moças contam que escrevem em homenagem as suas mães”. Diva assistiu à mesa “Em nome da mãe”, com  a escritora Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de ruanda, que criou no livro “A mulher de pés descalços”, um sepultamento simbólico de papel para dar um ritual imaginário de morte à mãe. A ruandense compartilhou sua história com a brasileira Noemi Jaffe, autora de “O que os cegos estão sonhando”, obra criada a partir do diário da mãe, uma sobrevivente do holocausto nazista. Ambas disseram que escrevem para suportar a dor.

    Diva se sentiu “profundamente tocada” com o gesto das moças e também achou que tinha o dever de se levantar no meio da multidão, enfrentar a dor e a timidez e ser mais forte do que o próprio pranto para reverenciar a sua mãe preta de pés descalços. “Eu também sobrevivi e sobrevivo como brasileira porque tive uma mãe que fez de tudo, que passou todo tipo de humilhação para que nós estudássemos”. Por isso ela lutava de cabeça baixa para controlar a comoção que o testemunho lhe causava: tinha de ser forte para cumprir até o fim a sua homenagem diante daquela multidão toda de leitores. Com os olhos faiscantes da insurgência dos humildes, contou que ela e outras meninas foram recolhidas no interior do Paraná por uma missão da Igreja a pretexto de ir estudar em Curitiba, e antes de completar cinco anos, se tornou uma escrava das freiras católicas num colégio interno.

    E por que Diva foi capaz de levar às lágrimas e de levantar para aplaudi-la vigorosamente a plateia em peso do auditório da Praça, incluindo o próprio Lázaro Ramos, que falava sobre a própria experiência como negro no painel “A pele que habito”? Por que ela, mais do que qualquer um dos 44 sábios oradores e especialistas mobilizados pela feira, produziu essa tomada venal de consciência que só a literatura é capaz de provocar, segundo Lima Barreto?

    Certamente porque na voz dessa senhora ao mesmo tempo trêmula e destemida, que chegou a ser amparada para prosseguir no seu jorro de fala, a literatura e a vida tenham se reunido novamente. Na sua boca, a literatura, sempre utilizada pelos esnobes para marcar a linha divisória entre as classes, finalmente mostrou sua potência de arrebatar as almas e de promover a solidariedade entre os homens, como propunha Lima Barreto em seu manifesto por uma “literatura militante”. Por que a sua narrativa singela e vigorosa foi tão comovente?

    Talvez porque nela se materialize aquilo que Conceição Evaristo, entrevistada por Ana Conceição Gonçalves no painel “Amadas”, que encerrou a programação na tarde de domingo, chamou de “arte da escrevivência”. Com esse neologismo, a autora de “Um defeito de cor” e “Insubmissas lágrimas de mulheres” quer nomear a literatura brotada e talhada da própria vivência ou da própria sofrência dessas vozes brasileiras escreventes.

    Como se fosse uma das “amadas” saídas dos romances de Conceição, Diva revelou que conheceu a discriminação aos seis anos, quando as freiras do colégio interno contaram a história que explicaria a pele escura de uns e clara de outros. Para quem foi “recolhida no mato”, como ela, as freiras diziam que quando o mundo começou, deus criou um rio e mandou todos tomarem banho, “naquela água abençoada do maldito rio”, diz dona Diva com a autoridade de seus 77 anos de opressão, sem esconder a rebeldia. Então, todas as pessoas inteligentes e trabalhadoras que se esforçaram para chegar ao rio conseguiram se lavar e ficaram brancas. “Mas nós, como negros preguiçosos” – e ela interrompe, bate no peito e bufa de dor e se cala por uns instantes eternos, calma Diva, calma Diva e continua, sob os aplausos que tentam encorajá-la – “nós chegamos no final, quando todos já tinham se banhado e só havia lama”. Então, os negros só tiveram tempo de lavar a palma das mãos e a sola do pés. Por isso, concluiu ela, erguendo para a plateia a palma das mãos, e afirmando o que os olhos arregalados de torpor desmentiam, “porque somos preguiçosos, temos apenas essas duas partes do corpo claras”.

    Diva arrancou essa dolorosa narrativa do fundo de um espasmo, como se no instante mesmo da sua fala, ela e toda a multidão da FLIP, ela e todas as meninas e meninos negros e pobres escravizados pelas igrejas no interior do Paraná vivessem o horror de um segredo revelado.

     

    O testemunho de Diva Guimarães insurgiu na multidão da FLIP, assombrando os leitores como um romance sobre luta e opressão que provoca por dentro um silencioso furacão

    Mas a fábula racista sobre a cor negra, que muitos brasileiros ouviram nas escolas regidas por brancos, não convenceu a menina Diva. “Se fôssemos preguiçosos, não teríamos sobrevivido. Se o Brasil existe é porque os meus antepassados o construíram”. Estimulada pela mãe, ela estudou mais do que era devido a uma menina pobre. Sempre que pensava em desistir da escola por causa do racismo, era vencida pelo argumento da mãe de que se não estudasse teria o mesmo destino dela. Quando se formou em Educação Física e se tornou professora da rede pública de Curitiba, em plena ditadura, ensinou o mesmo aos seus alunos: que deveriam estudar se quisessem ser livres. Por isso foi perseguida e combatida: “Eu era considerada uma subversiva!”.  Ela, que teve o direito à infância roubado, que teve a liberdade usada como moeda de troca para estudar, tornou-se uma defensora ferrenha da educação pública e nunca mais parou de estudar. “Eu sou uma sobrevivente da educação e sou uma sobrevivente da luta”, afirmou Diva, inconformada com o fato de o governo do Paraná ter cortado a bolsa dos cotistas negros, que recebiam R$ 400,00 para se manter nas universidades.

    Ao desnudar a violência do racismo desencantando a lenda da diferença, a professora paranaense aposentada deu a resposta exata à questão inicial. Mostrou que ficção e realidade sempre caminharam juntas, seja para separar a humanidade imiscuindo nas histórias a ideologia da dominação, ou para libertar os povos oprimidos com a narrativa da resistência. Toda literatura digna de ser chamada como tal busca a verdade coletiva de um povo – ou como disse a repórter-escritora argentina Leila Guerriero, não existe literatura que não se refira à realidade. Prenhe de vigor estético e apuro ético, o depoimento da professora negra viralizou na internet e nas redes sociais. E segue impactando muitos mais leitores do que a FLIP teria capacidade de reunir no elitizado auditório da Igreja Matriz ou mesmo na tenda de projeção.

    A COLETIVA DE ENCERRAMENTO

    Curadora Josélia Aguiar, à esquerda, pediu que  coletivos negros e ativistas sociais não deixem a FLIP caso próximo homenageado não seja negro

    Numa entrevista coletiva fria e burocrática, com poucas perguntas e respostas curtas e evasivas, a equipe responsável pela organização da 15ª FLIP fez o balanço de encerramento para cerca de 20 jornalistas. A mais entusiasmada, a curadora Joselia Aguiar, falou rapidamente, se disse feliz com os resultados, destacou os ganhos com a diversidade e se retirou antes do término para participar das mesas de encerramento. Nem ela, nem o diretor presidente da Fundação Casa Azul, Mauro Munhoz, pareceram conscientes da revolução que ocorreu no evento por conta do espaço rasgado pelas minorias políticas, com a acolhida de sua própria direção.

    A primeira pergunta veio questionando se o tom político da feira era determinado pelo momento brasileiro atual e se tenderia a persistir nos próximos eventos. Tanto Joselia quanto Munhoz procuraram neutralizar as manifestações contra Temer, contra o extermínio de jovens negros pela polícia,  o aprofundamento do racismo e o corte das cotas,  o atraso no pagamento dos salários de professores no Rio de Janeiro ou o fechamento de escolas. Ambos argumentaram que era natural os painelistas se posicionarem a partir das demandas do público. Mesmo os estrangeiros se manifestaram contra Trump, no caso do escritor jamaicano Marlon James e do poeta estadunidense Paul Beatty, como lembrou Josélia. Antes de sair, a curadora deixou no ar um pedido que soou ambíguo como uma ameaça velada numa calorosa acolhida: “Quero pedir aos coletivos negros e ativistas sociais que permaneçam para sempre na FLIP, mesmo caso o próximo homenageado não seja uma mulher ou não pertença a uma minoria”.

    O diretor da fundação que patrocina o evento reafirmou que a feira economizou R$ um milhão com o novo formato, eliminando a grande tenda gigante próxima ao canal, as oficinas, a biblioteca na Mangueira e  as iniciativas descentralizadas em municípios mais carentes para concentrar todas as atividades no centro de Paraty. “Antes tínhamos um país que estava se expandindo e a FLIP tinha esse movimento de descentralização da cultura. Agora vivemos em outro país que precisa se concentrar e se fortalecer pra voltar a pensar nesses projetos mais complexos que dependem de mais investimento público”.

    Debates ao vivo dentro do auditório da Igreja Matriz foram muitas vezes preteridos pelo público, que preferiu a projeção na praça

    Com um discurso conformista, defendendo a “adaptação da feira aos novos tempos”, Munhoz insistiu no sucesso do auditório para pagantes na Igreja Matriz, onde se concentraram a maioria dos paineis “ao vivo”. Garantiu que todos os 400 ingressos para cada uma das sessões foram vendidos e utilizados, embora todos tenham testemunhado o esvaziamento progressivo desse espaço privatizado em favor do crescimento da audiência gratuita na tenda de projeção. Em torno dela o público chegou a pelo menos menos duas mil pessoas em vários momentos, ultrapassando em muito a lotação de 700 lugares com cadeiras fixada por ele. Isso significa que o próprio público subverteu o modelo elitista e a separação dos auditórios ao se manifestar de forma muito mais efusiva e espontânea no local de livre acesso. Apesar disso, Munhoz afirmou que o espaço intimista será mantido porque é “mais adequado para determinados tipos de paineis”.

     

     

    Ao final de sua mesa, Conceição Evaristo afirmou que mulheres e negros fizeram a ocupação da FLIP e não pretendem mais sair dela. “Vai ser muito difícil voltar atrás e nos tirar daqui, porque não sairemos mais”. Para outro grande estudioso de Lima, o professor da UFMG Edmilson de Almeida Pereira, poeta e especialista na diáspora africana no Brasil, o espaço foi uma conquista dos movimentos sociais que qualificou o evento. “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, lembra o pesquisador. Muitas vezes os painelistas e artistas referenciaram Rafael Braga, Ricardo Nascimento e Jonathan Bidoia Neres e os jovens negros presos, torturados ou mortos pela polícia de extermínio. “Essa dimensão política da arte sempre esteve presente e tende a se agudizar com o estado de exceção no país”, sustenta Edmilson.

     

    “Quando a literatura não dá visibilidade às tragédias sociais que recaem sobre um povo, ela se torna cúmplice delas”, afirma o pesquisador Edmilson de Almeida Pereira

    O melhor emblema de tudo isso talvez seja a performance multimidiática “Fruto estranho”, apresentada pelo ator e poeta Ricardo Aleixo, na abertura do evento, a partir da mistura de fragmentos de textos de Lima Barreto e de sua própria lavra. A imagem de um artista como um livro vivo onde a pele é a própria escritura do mundo evoca esse movimento de hibridização com as lutas sociais. Se o negro é uma invenção do branco, como diz o poema, cabe a literatura reinventá-lo como uma fabulação de si e por si.

     

    TROPEÇANDO NAS RUAS DA LITERATURA

    Pelas ruas de Paraty, a literatura que todos os anos enche a cidade da algazarra dos diferentes acentos e línguas, de poesia, dança, música, teatro e livros, tropeça na escravidão em cada pedra do calçamento antigo, em cada construção que presentifica suor e sangue negros derramados. Ainda que queira, os olhos da escritura não podem se desviar do trabalho infantil em torno da presença dos turistas. A literatura do testemunho, que arrebatou o público nesta edição da FLIP, não pode mais ignorar os sobreviventes contemporâneos dos extermínios que desfilam diante dos olhos dos turistas.

    Não basta abrir um painel na programação para reconhecer a presença exótica de caiçaras, negros, quilombolas, indígenas: é preciso dedicar a eles toda a produção intelectual e artística brasileira. Eles não formam uma parte ou uma “aldeia” da literatura, mas são os verdadeiros anfitriões da festa como protagonistas da cultura nacional. E isso vale também para as centenas de coletivos de jovens artistas das tribos urbanas de todo o país que, atraídos todos os anos para o evento, fazem seu trabalho nas ruas de Paraty. São eles que trazem as artes para a plenitude da vida, promovendo saraus de literatura periférica, rodas de batuque, manifestos de poesia marginal, varais literários que aproximam a arte do povo, como fez Paulo Leminski ou Lindolf Bell. Eles continuam totalmente à margem da programação da feira.

     

     

    Depois de atingir 15 anos, a FLIP não pode mais ignorar a literatura dos Guarani Mbya sobreviventes da dizimação, que expõem seus artesanatos nas calçadas, sob pena de construir um evento tão fake quanto uma cidade onde tudo gira em torno do turismo. Os milhares de forasteiros que se esbaldam todos os anos nos restaurantes e hoteis de Paraty não podem continuar esquecendo que os primeiros habitantes desse paraíso estão em plena luta por território. E ainda são acusados de serem “índios falsificados do Paraguai” numa cidade onde tudo – praias, moradores, pratos típicos, danças, ritmos musicais – carrega nomes como Janaína, Catimbau, Cajaíba, Cachadaço, Saco do Mamanguá e cateretê.

    Antes tarde do que nunca, os amantes das letras se depararam também com as manifestações políticas e culturais dos quilombolas do Campinho da Independência, que estão em luta por seus direitos. Viram os estudantes cotistas protestando contra o prefeito de Paraty, Carlos José Miranda (PMDB), que suspendeu o transporte público para a universidade dos municípios vizinhos.  E os caiçaras denunciando o roubo da água natural para engarrafamento e comercialização a preço de ouro. Ao mesmo tempo que reconhece a conquista de um espaço cultural e intelectual dominando pela identidade masculina e branca, a jornalista Tatiana Carvalho Costa, integrante do coletivo Elas Pretas, de São Paulo, que está em Paraty fazendo um filme sobre a obra de Ricardo Aleixo, se sentiu constrangida com o assédio às mulheres negras. “Pessoas se aproximam da gente, como se nossa presença na feira fosse algo extraordinário, como se o nosso corpo negro fosse um lugar de expiação do sentimento de culpa”.

    A verdade mais nua e crua sobre o impacto negro na festa das elites, quem disse foi ela, dona Diva: “Aparentemente tivemos uma libertação que não existe até hoje”. Já na abertura, uma enorme faixa do Sindicato Estadual dos Profissionais na Educação do Rio de Janeiro, protestando contra o sucateamento da educação pública, recomendava que os participantes da FLIP lessem a obra de Lima Barreto para entender a realidade brasileira atual. Ao final a faixa exclamava: “Salve Lima Barreto!” Salve também Diva Guimarães e todas as negras e negros que rasgam seu lugar na literatura. Subversivas e subversivos!

     

     

     

  • LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

    LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

    É verdade que o escritor negro Lima Barreto morreu pobre, doente, desprezado e enlouquecido, sem o reconhecimento que seu talento e sua inteligência mereciam. Mas sua luta por um lugar na literatura do Brasil racista do início da República está longe de ter sido em vão, temor que deixou registrado num de seus últimos escritos. A reverência a sua obra pela 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty foi suficiente para tirar o evento de qualquer lugar de culto elitista à erudição separada da cultura popular e da realidade nacional, o que seria contraditório com o legado do autor. Como um ciclone capaz de levar o Brasil a retornar-se sobre si mesmo, a homenagem fez da Feira um evento também caracterizado pela reflexão sobre o atravessamento da tragédia política e social do país na sua produção literária.

    Única sobrevivente de sua família no genocídio de Ruanda, Scholastique representa a literatura do testemunho

    Num clima de denúncia, protestos e diversidade, a Festa de Paraty ficou menos elitista e um pouco mais coerente com o autor que ela reverencia, o cultíssimo descendente de escravos que defendia a cultura popular e propunha o manifesto de uma literatura militante contra o racismo, o machismo e toda a forma de opressão. Com Lima feito uma espécie de guerreiro póstumo no front de um expressivo cordão de autores que rasgou o seu espaço na FLIP, o evento também se tornou uma feira militante da diversidade. Fazem parte desse cordão mulheres feministas, negros, quilombolas, indígenas, testemunhas de guerras de extermínio, como a escritora da etinia tutsi, Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de Ruanda, que lança sua literatura de testemunho na FLIP com Pés descalços. E ainda a angolana Djaimilia Pereira de Almeida, autora de Esse cabelo, uma ficção que traz para a narrativa a questão do corpo como identidade étnica. Na noite do dia 27, Mukasonga compartilhou com a brasileira Noemi Jaffe, cuja obra reverencia a mãe sobrevivente do holocausto nazista, um dos mais densos e tocantes painéis. A ruandense disse que escreve para suportar o horror que ela e sua família viveram e fazer valer o privilégio de ter escapado viva.

    Desde a abertura na quarta-feira (26/7), a quinzenária FLIP promete não ser a mesma que reproduziu, na sua última edição, o modelo dominante de sociedade colonial, onde mulheres, índios, negros e pobres estão marginalizados do mundo da cultura. O reconhecimento público desses autores em nível nacional e internacional mostra que o boicote à “literatura militante” pelo cânone e pelo mercado não passa de preconceito. Mostra ainda que se o artista não se engaja às questões políticas que falam dos dramas humanitários do seu tempo, o seu tempo o engaja nessas tragédias. Nesse espírito de contraliteratura, a abertura e o primeiro dia da mostra foram marcados pela implicação do movimento político no estético que caracteriza as épocas sombrias.

    Manifestações políticas marcam a 15ª edição da Festa de Paraty

    Houve protesto, houve Fora Temer, Fora Pezão, manifestações efusivas durante o espetáculo de abertura que continuaram no dia seguinte. No recital que acompanhou a linha de tempo de sua dramática biografia, apresentada pela historiadora e professora de antropologia da USP Liliam Schwarz, a obra e a trajetória de Lima Barreto atingiram atualidade máxima. A leitura de Lázaro Ramos para os trechos mais primorosos de Lima acentuou a potência da retórica literária de Lima, que na mesma cena sintetiza um realismo cru com impagável humor popular, para em seguida alcançar o lirismo dos grandes clássicos. As passagens mostram a tragédia de personagens negros, negras e pobres idealistas que ousaram, como ele e seu Policaropo Quaresma, atravessar os territórios da cultura e da intelectualidade sob o domínio branco, masculino e burguês.

    Um retumbante brado de Fora Temer foi a forma do público aplaudir e agradecer a dupla que  surpreendeu a plateia maior de não-pagantes, limitada à tenda de projeção em frente à Praça, para refazer ao vivo a leitura dramática de encerramento. Diante de cerca de mil pessoas, Lázaro deu vida à voz de um Lima Barreto de clareza e refinamento encantadores ao apresentar as bases do que considerava ser a tarefa da literatura e das artes. À diferença dos poderosos diletantes, que elitizam a literatura para aprofundar a diferença entre as classes, a literatura, segundo Lima, serve para derrubar os muros entre os homens. Serve para tornar a humanidade mais tolerante, fazendo-a conhecer melhor sua condição, entendendo suas virtudes e fraquezas. “A missão da literatura é fazer comunicar umas almas às outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando assim a solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade”.

    Desde a abertura, as manifestações políticas marcam as conferências e debates, quando palestrantes são interrompidos para serem ovacionados cada vez que denunciam, através de Lima Barreto, o obscurantismo social que o Brasil vive hoje e a violência contra os que fogem aos padrões dominantes de subjetividade. Isso ocorreu muitas vezes quando o poeta e ensaísta negro Edmilson de Almeida Pereira, professor da Universidade de Juiz de Fora (MG), pesquisador das contribuições africanas na língua portuguesa, analisou o impacto da obra de Lima Barreto como a permanência de um passado que sabota as possibilidades de expressão artística para os marginalizados. Pereira dividiu o painel Arqueologia de um Autor, ocorrido na manhã do dia 27, com a professora Beatriz Resende (UFRJ), organizadora da obra principal de Lima Barreto, e o pesquisador Filipe Botelho Correa, professor do Kings´s College London, que recuperou textos inéditos de Lima Barreto. Beatriz foi igualmente ovacionada ao comentar a denúncia do autor carioca à corrupção sistêmica no Brasil republicano e lamentar a ausência de colegas da UERJ, como Ítalo Moriconi, entre outros, que não puderam vir à feira porque estão há quatro meses sem receber salário.

    A leitura dramática de Lázaro Ramos funde-se com a escrita insurgente de Lima Barreto

    Empobrecida pelo corte violento de recursos federais e estaduais, esta Feira se tornou ainda mais seletiva para os que foram convidados ou conseguiram comprar ingressos para as apresentações, palestras e mesas-redondas concentrados no auditório da Igreja da Matriz Nossa Senhora dos Remédios. Mas a curadoria sensível de Joselia Aguiar impediu que o evento assumisse os ares de festa de esnobes diletantistas. Além de criar a tenda de projeção como um espaço para a inclusão gratuita de todos os que conseguiram chegar à belíssima Paraty, criou um espaço para discussão de literatura não-canônica no painel Aldeia. Na manhã de quinta-feira (27), o painel reuniu escritores e educadores de povos tradicionais para discutir a literatura oral e escrita que está intrinsicamente conectada a suas lutas coletivos pelo direito à vida e à identidade. Participaram Ivanildes Kerexú Pereira da Silva, ativista feminista e professora na Escola Paraty Mirim, na aldeia Guarani Mbya Itaxi; Laura Maria dos Santos, arte-educadora e militante pela educação e pela cultura quilombola na região de Paraty e Álvaro Tukano, pensador indígena do Alto do Rio Negro, que lançou na feira O mundo Tukano Antes dos Brancos. Um dos precursores do movimento indígena brasileiro, Álvaro Tukano mobilizou a plateia ao afirmar que no Brasil se procura imitar os europeus, quando a maior parte dos autores e dos leitores ignora a literatura indígena que deveria fazer parte da formação de todos os brasileiros.

    Pensador indígena Álvaro Tukano reclamou o lugar da literatura dos povos tradicionais na cultura brasileira

    CONTRA O FIM DOS POLICARPOS

    Antes mesmo da abertura, um manifesto liderado pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro quebrou a zona de conforto dos convidados e pagantes que avançavam na fila para a cerimônia de estreia no auditório da Igreja da Matriz. Empunhando faixas com dizeres irônicos, como “Triste fim para milhares de Policarpos Quaresmas”, professores, estudantes e servidores de escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro protestavam contra o fechamento de 300 escolas pelo governo do Rio de Janeiro e contra o atraso no pagamento dos educadores que, segundo eles, fará se repetir o destino de Policarpo Quaresma, condenando à morte cultural os estudantes das periferias. “Estamos aqui hoje abrindo a Flip para denunciar o descaso do governo do Estado com as escolas públicas do Rio de Janeiro, onde estudam a maioria dos filhos dos trabalhadores”, afirmou Clarice Ávila, diretora do SEPE e professora de Língua Portuguesa para mudos em Barra Mansa.  “Estamos aqui representando milhares de Limas Barretos que, na época do início da República também foi esquecido pelos cânones da literatura brasileira, que o acusavam de ser panfletário, simplesmente porque denunciava o racismo e toda a forma de opressão”.

    Outros educadores se alternaram ao microfone, contando a vida de Lima e recomendando a leitura de seus livros para que sua tenha um impacto verdadeiro nas decisões políticas e no comportamento do povo brasileiro. “Os participantes da Festa de Paraty, um evento que discute as questões da cultura, precisam saber que este governo não está atento à educação de qualidade para a maioria que dela precisa”, acrescentou a professora Cecília de Araújo Brás, do Sepe de Barra Mansa. Usando alto-falante, os professores lembraram que Lima Barreto está sendo homenageando tardiamente e em nome dele é preciso denunciar  todas as injustiças de Pezão e seus aliados contra o Rio de Janeiro e contra a educação pública que só fortalecem a elitização do ensino. “Não basta homenagear: é preciso refletir sobre a história de lima Barreto, que é muito atual. Tudo que ele denunciava estamos vivendo no século XXI”, lembra Clarice. Além de Barra Mansa, estavam presente professores de Barra do Piraí, Volta Redonda e São Gonzalo.

    Protesto na entrada do auditório da FLIP denunciou o fechamento de 300 escolas públicas

    Ao fundo, Lima Barreto e esta paradigmática edição da Festa Literária de Paraty mostram que não há oposição entre o estético e o político, assim como não há separação entre erudição e cultura popular. O sociólogo Walter Benjamin nos permite definir erudição justamente como a capacidade dos grandes narradores de buscar a experiência coletiva da cultura, subindo e descendo os escalões dessa experiência com a facilidade de quem percorre nos dois sentidos os degraus de uma mesma escada. “O grande narrador está sempre enraizado no povo”, escreveu Benjamin. Ao mesmo tempo em que avança para baixo e afunda seus pés na terra, enraizando-se na cultura popular, ele se esgueira para cima, perdendo-se além das nuvens, em direção ao clássico.

    A literatura moderna, em todas as suas formas de expressão, consiste, como defendeu Lima Barreto em seu manifesto por uma literatura militante, no talento de falar, em uma linguagem clara e capaz de mobilizar as massas sobre as estruturas de opressão invisíveis que só a arte pode fazer emergir de modo mais compungente. “A literatura trabalha pela união da espécie. Assim, trabalhando, concorre, portanto, para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade”, escreve o autor de uma das obras mais contundentes contra a soberba e a ignorância das elites brasileiras, excluído pela Academia Brasileira de Letras, morto aos 41 anos, mas imortalizado por sua literatura dos vencidos. O ilustradíssimo descendente de escravos continua botando o dedo na ferida da mentalidade colonialista.

    Lázaro Ramos: o Brasil ainda ceifa a vida de talentos como Lima Barreto
  • Foro de São Paulo defende a comunicação contra-hegemônica

    Foro de São Paulo defende a comunicação contra-hegemônica

    Os mais de 300 delegados do 23º Foro de São Paulo, realizado na Nicarágua entre os dias 15 e 19 de julho, apresentaram um documento destinado a orientar a luta das forças progressistas e de esquerda, intitulado “Consenso da Nossa América”. Nele, alguns dos mais representativos líderes da esquerda latino-americana defendem a construção de um modelo comunicacional contra-hegemônico, destinado a enfrentar o “dilúvio de mentiras” que embasam a propaganda pró-imperialista e de direita.

    O documento também insiste na necessidade de se construir hegemonia popular, em vez de apenas ocupar os espaços institucionais, o que pode ser lido como uma autocrítica em relação à atuação de partidos como o PT do Brasil, durante os governos de Lula e Dilma Rousseff.

    Notável também é o apoio irrestrito à Revolução Bolivariana na Venezuela. Os delegados decidiram por unanimidade apoiar a convocação da Assembleia Nacional Constituinte feita pelo presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, para mudar a Constituição do país e alcançar a paz.

    Segundo a presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), senadora Gleisi Hoffmann, convocar o povo a votar é a melhor maneira de decidir o destino de um país. As eleições para decidir os integrantes da Constituinte estão marcadas para o dia 30 de julho.

    O Foro de São Paulo reuniu representantes de 18 partidos políticos de esquerda da América Latina e Caribe. A síntese das discussões está contida no documento chamado “Consenso da Nossa América”.

    Participaram do evento representantes de partidos de esquerda de Argentina, Aruba, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Curaçao, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Martinica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.

     

    Abaixo, o documento:

     

    Declaração Final do 23º Foro de São Paulo

     

    Nossa América na luta

    Rumo à Unidade de Nossa América para sua segunda e definitiva Independência

     

    Depois de mais de cinco séculos de dominação estrangeira e luta indígena e popular pela emancipação, pela primeira vez na história da América Latina e do Caribe seus povos alcançaram uma substancial acumulação social e política, incluindo a ocupação dos espaços institucionais que os coloca ante a tremenda oportunidade e o enorme desafio de desenvolver processos de transformação revolucionária ou reforma social progressista.

     

    Na primeira década de eleições e sucessivas reeleições dos governos de esquerda e progressistas (1999-2009), a necessidade de transformar ou reformar a sociedade a partir dos espaços institucionais recém-ocupados fez com que se negligenciasse o desafio de construir hegemonia popular, única fonte de poder capaz de dotá-los da força necessária para derrotar as tentativas previsíveis do imperialismo e das oligarquias “criollas” de restaurar seu antigo domínio monopolista do Estado, e a vacina para imunizá-los contra deficiências, desvios e erros que causam desacúmulos social e políticos.

     

    No tempo transcorrido desde a segunda década do atual estágio da luta (2009 até o presente) é esse desafio o que dificulta o reconhecimento da oportunidade para transformar ou reformar nossas sociedades. Onde as forças de esquerda e progressistas perderam o controle do poder executivo (Honduras, Paraguai, Argentina e Brasil) os povos intensificam a batalha contra a  nova onda neoliberal,  e  se  reorganizam  para  reconquistar  os  espaços perdidos. E onde resistem à ofensiva destinada a fechar os espaços democráticos e reverter as transformações sociais, na Venezuela, Bolívia,  Equador,  Uruguai,  Nicarágua  e  El Salvador,  nossas forças seguem trabalhando  em função da  transformação social  para alcançar sua plena e definitiva emancipação, para construir um genuíno sistema de integração regional,  e  para coadjuvar a construção de um mundo  multipolar  no qual impere uma correlação de forças favorável aos povos.

    Atualmente nos batemos contra uma nova fase de ataques do imperialismo, da direita e das forças oligárquicas a seu serviço, o que torna necessária uma plataforma politica de esquerda, que sirva de instrumento para reagrupar nossas forças no espaço governamental, partidário, dos movimentos sociais e intelectuais com o objeto de relançar os processos de integração latino-americana e caribenha, que têm na Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) o seu espaço mais precioso, e cujo desenvolvimento e consolidação deve ser um dos nossos objetivos estratégicos de primeira ordem.

    No 50º aniversário do assassinato de Che Guevara e do Centenário da vitória da Grande Revolução Socialista de Outubro, não poderia haver melhor homenagem do que, juntamente com as análises auto-críticas, conseguir a criação de uma frente comum continental anti-imperialista que nos leve à nossa segunda e definitiva independência, mediante a luta popular e o aprofundamento dos processos de mudança progressistas e revolucionários no nosso continente.

    Após 27 anos de vida, o Foro de São Paulo continua a trabalhar para se fortalecer como um espaço de debate, acordo e convergência da esquerda América Latina e caribenha. O documento Consenso de Nossa América, em permanente elaboração, é uma contribuição para este objetivo político de construir a necessária e indispensável unidade de nossos povos na luta que temos de levar.

     

    Nossa América em sua hora decisiva

     

    América Latina e Caribe continuam a ser um palco de combates entre as  oligarquias locais aliadas do imperialismo e os povos organizados em suas lutas patrióticas e anti-imperialistas, orientadas para o socialismo.

    Hoje nosso continente vive momentos cruciais de sua história, nos quais são cada vez mais visíveis os efeitos da crise econômica-financeira, política e moral do sistema capitalista. As grandes economias estão cada vez mais pressionadas pelas crises de superprodução e a saturação de seus mercados, o que lhes gera déficit comercial, endividamento, tensão orçamentaria e precarização crescente e não só causado por elas fora do seus territórios, mas dentro deles.

    A globalização neoliberal foi projetada e serviu para favorecer as potências imperiais, que não renunciaram e nem renunciarão a proteger suas fronteiras nem a ter negócios rentáveis ​​em todos os cantos do mundo, especialmente aqueles que extraem matérias-primas para a indústria. Tampouco renunciaram e nem renunciarão a derrubar e eliminar a fronteiras do restante dos países, nem a desestabilizar politicamente os nossos governos e a erodir a soberania de nossos povos. Outra coisa é o neoprotecionismo imperial impulsionado por Donald Trump, com o qual se pretende modificar a favor dos Estados Unidos –mas não suprimir—os termos sob os quais se estabeleceram as relações da dita potência com o resto do mundo no marco da globalização neoliberal  que as potências imperialistas impulsionaram e seguirão impulsionando.

     

     

    Bolívar e a solidariedade à Revolução na Venezuela

    Os principais ataques do imperialismo e seus aliados na América Latina e no Caribe são contra a Venezuela e sua Revolução Bolivariana, por seus valiosos recursos naturais e sua importância geopolítica e estratégica, da qual se depreende que sua derrota provocaria um efeito dominó na esquerda governante latino-americana e caribenha, sobretudo nos países integrantes da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP), além de enfraquecer os paradigmas de acordo político, cooperação e integração promovidos pelos governos dos países membros desta aliança. Daí a importância de defender a Venezuela e prevenir a consumação deste plano.

     

    A batalha pela Venezuela é a batalha pelo continente e pelo mundo. O triunfo das forças revolucionárias na Venezuela representa o triunfo de todas as forças de esquerda em todo o mundo e especialmente na América Latina e no Caribe. Sendo a Revolução Bolivariana o alvo de ataque principal do imperialismo e seus lacaios, o movimento revolucionário e progressista da América Latina e até mesmo global não podem fazer menos do que ter como principal prioridade em seus planos de luta e estratégias a defesa da Revolução Bolivariana até suas últimas consequências.  É por isso que esta XXIII Reunião do Foro de São Paulo teve como conteúdo fundamental a BATALHA PELA VENEZUELA.

     

    São bem conhecidos os processos desestabilizadores realizados pelo imperialismo norte-americano através das oligarquias locais, contra os processos progressistas e revolucionários de mudança em nosso continente. Os golpes de Estado em Honduras, Paraguai e Brasil; as tentativas de golpe na Venezuela e a guerra econômica contra este país; as tentativas de golpe policial no Equador e secessionista na Bolívia; a ameaça de vetar o acesso da Nicarágua aos créditos dos organismos financeiros internacionais, com a iniciativa legislativa da extrema direita norte-americana conhecida como Lei Nica; a campanha de obstrução e descrédito da gestão do governo da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), de El Salvador; a judicialização da política na Argentina, Brasil e El Salvador; bem como as declarações ofensivas e descontextualizadas do presidente Donald Trump contra Cuba e, mais recentemente, com respeito a que os Estados Unidos vão tomar medidas econômicas fortes e rápidas se a Venezuela levar adiante a Assembléia Nacional Constituinte em 30 de julho; estes são apenas alguns exemplos da intervenção imperialista em nossos países.

     

    Depois de um ano do golpe no Brasil, existem medidas tomadas pelos golpistas que terão sérias repercussões internacionais, especialmente em nossa região, como as reformas trabalhistas e da previdência social, que violam várias convenções da OIT, além de promover uma política externa subordinada ao imperialismo e agressiva contra o governo venezuelano. O golpe é contínuo e um passo a mais acaba de ser dado com a condenação do ex-presidente Lula, para impedir que seja candidato novamente à presidência em 2018.

    Um golpe contra um é um golpe contra todos e estamos todos ao lado de Lula, de seu partido e de seus aliados em defesa da democracia e contra o retrocesso econômico, social e político agora vigente no Brasil.

     

    Desde o triunfo da Revolução Bolivariana em 1998, que inaugurou a fase ascendente para a esquerda latino-americana e caribenha na luta pelo poder, chegando a governar em dez nações latino-americanas, só na Argentina as forças populares perderam o governo por eleições. Este é um fato que prova conclusivamente a força dos processos de mudança no nosso continente. Enquanto isso, em Cuba, Nicarágua, Equador, Bolívia, Uruguai e El Salvador os governos esquerdistas se consolidam cada vez mais.

     

    Em Cuba, avança a passos firmes a atualização do modelo econômico e social e a consolidação do Partido como fiador da continuidade histórica do processo revolucionário. Na Nicarágua, a Revolução Sandinista avança em sua segunda fase, criando poder popular e reduzindo a pobreza e a desigualdade social no marco do modelo de consenso com amplo apoio respaldo da população. No Equador, tem lugar a renovação criativa do processo de mudanças e transformações da Revolução Cidadã liderada inicialmente pelo companheiro Rafael Correa Delgado. Na Bolívia, a Revolução Democrática e Cultural alcançou grandes conquistas sociais, o que fortalece a liderança do presidente Evo Morales, indicado pelos movimentos sociais para as eleições de 2019 no marco da Constituição e das leis, para garantir a continuidade do processo revolucionário. No Uruguai, priorizam-se nas políticas governamentais, aspectos sociais que significaram progressos significativos em áreas como saúde, educação, direitos do trabalho, bem como na segurança pública e infra-estrutura. Em El Salvador, a esquerda luta para ampliar e consolidar a transição democrática iniciada a partir dos Acordos de Paz de 1992, e as transformações sociais e econômicas iniciadas desde que chegou ao governo em 2009 e 2014 pela FMLN, constantemente enfrentando tentativas da direita oligárquica para revertê-las e/ou estancá-las. Na Venezuela, apesar da crise causada pelas manobras do imperialismo e da guerra econômica contra o povo e o governo, as forças bolivarianas conseguiram manter a iniciativa com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte para o aprofundamento da revolução bolivariana e a defesa da paz e estabilidade no país, que gradualmente vai conseguindo sair da crise, apesar da imagem em sentido contrário apresentada pelos meios de desinformação.

     

    Desde o início da atual ofensiva imperial, a esquerda obteve três triunfos presidenciais: em El Salvador com o professor Salvador Sánchez Ceren em 2014; na Nicarágua com o Comandante Daniel Ortega em 2016; e no Equador, com o companheiro Lenin Moreno Garcés em 2017, dando continuidade ao processo da Revolução Cidadã. Isto e o que foi dito antes refutam a tese do “fim do ciclo progressista” na América Latina e no Caribe.

     

    Devemos incentivar a unidade mais ampla e sólida das forças progressistas e revolucionárias dentro de cada país e em nível continental, e dar um salto de qualidade em nossos mecanismos organizacionais, que nos permita definir uma estratégia e um programa conjuntos de todas as forças de esquerda no continente, sem lamentar revezes ou gabar-se dos triunfos, e sendo, em contrapartida, autocríticos e firmes defensores de nossas conquistas, visando aprofundá-las com iniciativa e ousadia.

     

    Ali onde a direita recuperou o governo, os povos estão prontos para lutar e as forças de esquerda e progressistas têm muitas possibilidades de voltar a governar no curto prazo. A direita não tem outro projeto que não seja o neoliberal, que tanto mal causou aos povos. Por isso – e como demonstram os fatos no Brasil e na Argentina – a ferocidade das medidas da reação nos países onde ela recuperou o governo está sendo um fator objetivamente causador de uma radicalização das forças populares e de ativação de setores até o momento apáticos ou manipuláveis, o que se vê favorecido pela difícil situação econômica e social na qual ainda vivem milhões de latino-americanos e caribenhos, afligidos pela desigualdade, a pobreza extrema, a fome, o desemprego, o analfabetismo, a falta de acesso à educação e aos mais básicos serviços de saúde, o consumo de drogas, a violência, a discriminação e outros males sociais próprios do capitalismo e exacerbados pelo modelo neoliberal. Todos esses males sociais se acentuam com a política das forças imperiais e oligárquicas, que buscam minar as bases sociais da esquerda através de marginalização e banalização mais atroz. A indústria do entretenimento se usa como droga para construir ídolos cada vez mais desumanizados e supérfluos.

    Conforme expresso na Declaração Final da 14ª Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da ALBA-TCP em Caracas no dia 5 de março de 2017:

    “Os governos e os povos da ALBA-TCP (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América – Tratado de Comercio dos Povos) vemos nesses fenômenos uma nova oportunidade para reagrupamento, mobilização e luta. Devemos apoiar as ações emancipatórias, definir com clareza e realismo os horizontes, identificar bem os valores e princípios que nos unem e assumir um programa de ação integracionista, solidário e internacionalista, que estabeleça as premissas econômicas, sociais e políticas da mudança libertadora.”

    Hoje mais do que nunca cobram vigência as palavras do Che na Assembleia Geral das Nações Unidas, citando a Segunda Declaração de Havana:

    “Essa onda de estremecido rancor, de justiça reclamada, de direito pisoteado, que começa a se levantar pelas terras da América Latina, essa onda não parará mais. Essa onda irá crescendo cada dia que passe. Porque essa onda a formam os majoritários em todos os aspectos, os que acumulam com seu trabalho as riquezas, criam os valores, fazem andar as rodas da história e que agora despertam do grande sonho embrutecedor a que foram submetidos. Porque essa grande humanidade disse BASTA! E começou a andar. E sua marcha de gigantes não se deterá até conquistar a verdadeira independência…”

     

    A revolução cubana abriu a era da luta continental pela libertação e o socialismo. Vinte anos depois, a Revolução Sandinista reavivou as esperanças na luta revolucionária e inaugurou a era do colapso das ditaduras militares pró-imperialistas de Direita no continente. Vinte anos depois, a Revolução Bolivariana foi o início de uma ofensiva revolucionária sem precedentes, em que até uma dezena de países da América Latina chegou a ser governada por forças progressistas e de esquerda.

    A pouco tempo de se completarem os vinte anos da Revolução Bolivariana, novos processos de luta se desenvolvem a partir do grande potencial revolucionário de nossos povos. A única maneira de enfrentar a ofensiva imperialista é fortalecer a unidade das forças de esquerda e aprofundar os processos de mudança social em curso. Só assim conseguiremos incentivar e levar a crescente luta dos povos para manter o terreno alcançado e avançar até novos triunfos populares em toda a grande pátria latino-americana e caribenha.

     

    O aprofundamento das mudanças em andamento está na criação de um novo modelo político e econômico, no qual os cidadãos não só elejam representantes e governantes, mas que decidam as políticas públicas, de Estado e de Governo, tomem decisões, definam o marco de ação de seus representantes e governantes eleitos, e controlem o desempenho destes e do que deverá ser uma nova institucionalidade a partir da qual o povo, desta maneira, exerça diretamente o poder. Um modelo que, no âmbito econômico, consiste na coexistência da empresa privada com um novo setor econômico de caráter popular, em que os trabalhadores possam criar seus próprios meios de produção, e onde o Estado seja o fiador desta democracia econômica complementar para o desenvolvimento das forças produtivas, a prosperidade com eqüidade social e erradicação da pobreza.

    O aprofundamento das mudanças está também na estratégia de luta pelo poder, que implica não reduzi-lo à luta eleitoral pelo governo, mas sim incluindo-se as lutas sociais e a disputa por todos os espaços institucionais para sua transformação e evitar que a direita faça uso deles para reverter as conquistas sociais alcançadas.

     

    A concretização de um bloco político e social de mudanças para deslocar o bloco dominante deve ter na classe trabalhadora do campo e da cidade (assalariados e os que não o são) o seu principal protagonista, acompanhada por amplos e diversos setores da sociedade, incluindo a classe média, intelectuais e progressistas, pequenos produtores e empresários. A defesa e o aprofundamento das mudanças sociais e da democracia exige uma ampla base de apoio para eles. A criação do novo modelo político e econômico é parte indispensável na construção de uma nova forma de exercer o poder.

     

    Este novo modelo político e social precisa de um instrumento político que impulsione o protagonismo popular e a construção de uma vontade coletiva nacional e popular.

    (…)

    Isto implica a necessidade de uma liderança revolucionária que deve ser forjada e perdurar durante a instauração das mudanças sociais necessárias, a fim de contribuir para o maior grau possível de irreversibilidade do processo de transformação.

     

    O Estado deve desempenhar o papel fundamental de direção e regulação da atividade econômica e, portanto, deve garantir a distribuição justa da riqueza e implementar planos de desenvolvimento econômico e social que gozem de apoio popular e se articulem ao processo de integração regional na América Latina e Caribe.

     

    O âmbito cultural e comunicacional

     

    Devemos criar uma frente cultural e comunicacional anti-hegemônica, que some tanto os  esforços dos governos progressistas como os das forças políticas de esquerda e dos movimentos sociais. Não é possível uma revolução verdadeira se não for acompanhada por uma profunda revolução cultural e comunicacional.

     

    Não se pode perder a memória sobre a opressão que sofremos os povos colonizados e neocolonizados, desde a conquista com o saque e a destruição, até as primeiras patadas do nascente Império do Norte contra o México, arrebatando deste último a metade de seu território, toda a história da exploração de nossos recursos naturais, intervenções armadas, ditaduras militares impostas pelos Estados Unidos e a continuação atual da opressão imperialista mediante a ação depredadora das corporações sobre nossos países, cuja pobreza se origina em toda essa história de latrocínio.

     

    Isto se manifesta na crônica sinistra das sucessivas intervenções imperiais na América Central e no Caribe, o apoio às ditaduras sangrentas, a gestação de golpes militares, o Plano Condor, implementado pelas ditaduras militares do Cone Sul, com a sua sequela de tortura e desaparecimentos, o uso continuado do terrorismo, a guerra suja contra a Nicarágua na década de oitenta, o criminoso bloqueio e as operações subversivas contra Cuba e outros países progressistas do continente, constituem um legado que não podemos esquecer.

    Por causa disso, devemos usar as efemérides associadas a esta história para conduzir campanhas, eventos, fóruns on-line e outras iniciativas que nos ajudem a espalhar a verdade, livre de distorções e manipulações; assim como estimular o desenvolvimento de análise crítica sobre “obras” e “figuras” dos falsos ídolos e sobre as armadilhas do aparelho de legitimação do sistema capitalista, desmontando e denunciando as manipulações.

     

    As forças de esquerda devem se esforçar para promover redes que articulam os núcleos de resistência cultural que hoje estão dispersos; conformar uma frente de pensamento anti-hegemônico sob princípios capazes de trazer os indivíduos e os grupos de diferentes filiações políticas, desde as mais radicais até as de inspiração humanista.

     

    Também se exige uma modificação do discurso e da linguagem política, baseando-se em novos códigos, que incluam um adequado enfoque classista, identitário e de gênero, que mantenha a honestidade, a comunicação direta e confiável com as pessoas, que seja capaz de auscultar e refletir as suas preocupações e interesses, e que contribua para o desenvolvimento do pensamento independente, comprometido com a transformação emancipadora. A defesa permanente da verdade é essencial na atuação da esquerda.

     

    É necessário promover a gestação de organizações de investigação e promoção que funcionem como aliadas dos movimentos sociais e progressistas de esquerda para influenciar no campo da cultura. Onde já existem estas instituições, é preciso potencializá-las ao máximo, implantá-las nos setores intelectuais sem qualquer tipo de sectarismo. Algumas destas entidades podem desempenhar um papel ativo na produção de conteúdo e na geração de propostas para canalizar as nossas ideias, considerando os enormes investimentos que fez e continua a fazer o Império para conceber estratégias cada vez mais sutis a serviço de seus interesses.

     

    Devem fazer-se visíveis as figuras e obras que representem a cultura da resistência;  é preciso identificar os eventos culturais e programas onde podem ser apresentados e promovidos; desmontar as fraudes do neoliberalismo e do capitalismo e promover as idéias da emancipação com o apoio da intelectualidade que o maquinário hegemônico excluiu. Nosso desafio está em somar essa vanguarda e conseguir um uso eficaz das novas tecnologias em função da participação cidadã e a da defesa de causas e idéias verdadeiramente justas.

     

    Deve-se conectar os ativistas das redes sociais com aqueles que usam como um meio de expressão de suas demandas, as emissoras de rádio e televisão comunitárias, de modo que a verdade vá encontrando circuitos para se dar a conhecer frente ao grande dilúvio de mentiras. Deve-se incorporar a nossa agenda os temas culturais e somar a nossa luta, sem preconceitos, os esforços daqueles que enfrentam o discurso hegemônico no campo intelectual, especialmente na batalha midiática.

     

    É necessário fazer pleno uso das redes sociais, criar meios de comunicação alternativos em todos os formatos existentes (rádio, televisão, redes sociais, imprensa escrita), que nas mãos de comunicadores sociais gerem o debate sem manipulação, gerem informações a partir de posições firmes de esquerda, distanciadas do panfletário, que é estéril, mas com direção política e conteúdo ideológico. Também é necessário procurar penetração também na mídia comercial e meios de comunicação convencionais, para incluir as vozes progressistas e combater a guerra midiática da direita contra os governos progressistas do continente. Deve-se vincular essa tarefa com o estudo da história e da teoria revolucionária, de modo a ser capaz de combater na luta de idéias, que é a mais importante das lutas revolucionárias.

     

    Todas estas tarefas são exigências destes tempos em que, talvez, mais do que nunca, é crucial diversificar as vias para chegar às bases e multiplicar nossa capacidade de  –como disse Fidel– “semear idéias, semear consciência”.

    Projeções gerais de curto e médio prazo

     

    É necessária a mobilização das forças progressistas e de esquerda, tanto a nível político partidário como de movimentos sociais, identificando os temas que podem gerar unidade no mais amplo espectro ideológico possível, com o objetivo de desenvolver uma agenda de consolidação da unidade de nossas forças e promover a CELAC como o principal espaço de acordo político da região.

    Temos de avançar no acordo entre as forças políticas e os movimentos de esquerda, que permita uma ação coordenada nos foros regionais e internacionais e para enfrentar a ofensiva imperialista e de direita.

    Devem ser ampliados os espaços de acordo e cooperação com todos os atores e organizações internacionais que desafiam a hegemonia dos EUA e defendem um mundo multicêntrico e multipolar.

    Deve-se detectar, estudar e tirar o máximo proveito de todos os aspectos que constituem os pontos fracos do imperialismo e das forças oligárquicas, assim como as suas próprias contradições.

    Considerando que a livre circulação de capitais, a ausência de controles dos bancos privados e a ganância dos proprietários das empresas e das corporações permitiram que da América Latina se evadissem U$ 340 bilhões, convertendo-se isto em um enorme escândalo de corrupção no setor privado, invisibilizada pelas corporações de mídia, apoiamos a proposta do governo equatoriano, da criação de um organismo internacional tributário nas Nações Unidas, e reconhecemos seu esforço executivo e legislativo na luta contra os paraísos fiscais.

     

    O compromisso com a proclamação da América Latina e do Caribe como Zona de Paz, adotada na Segunda Cúpula da CELAC realizada em Cuba em janeiro de 2014, deve orientar a nossa ação internacional, assim como a defesa dos valores universalmente reconhecidos no direito internacional e consagrado na Carta das Nações Unidas. Isto deve incluir um profundo compromisso antiimperialista e portanto anticolonialista, que reivindique o direito à independência, soberania e autodeterminação dos povos.

     

    Uma ameaça ou agressão do imperialismo contra qualquer de nossos países deve ser assumida por todos como uma ameaça e agressão a todos e a cada um dos que compõem a frente continental de forças progressistas e de esquerda, bem como um insulto e violação da Proclamação da América Latina e Caribe como Zona de Paz.

     

    Eixos de mobilização popular

     

    Nossa luta é parte da luta mundial que, de diferentes formas, faz frente à ofensiva imperial dos Estados Unidos. Neste sentido, apoiamos e retomamos o desafio da recente declaração das bancadas de esquerda da Europa e América Latina.

     

    Condenamos o fortalecimento do militarismo no mundo inteiro e instamos os Estados Unidos e a Europa a acabar com as incursões militares que desestabilizam os países do Oriente Médio para apoderarem-se de seus recursos naturais, em aberta cumplicidade com grupos terroristas, o que tanta desolação e morte tem levado aos povos afetados, e verdadeira origem da migração em massa para a Europa daqueles que fogem da morte e guerra levada pela própria Europa aos seus países.

    Denunciamos o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA) como Ministério das Colônias dos EUA, que a partir da Secretaria-Geral e de maneira particularmente beligerante nos últimos anos, se colocou sempre a serviço dos interesses intervencionistas e se faz de cega diante dos múltiplos atentados contra a democracia e as graves violações dos direitos humanos por parte dos governos oligárquicos e pró-imperialistas na América Latina e nos Estados Unidos.

     

    Condenamos a guerra não convencional e de amplo espectro, econômica e midiática contra a Venezuela por parte da direita oligárquica venezuelana que, incentivada pelo governo dos EUA, está empenhada em desestabilizar e pôr fim, mediante o terrorismo, ao governo democraticamente eleito do presidente Nicolás Maduro que, apesar da situação difícil em sua economia, continua a alocar 70% do orçamento público para o bem-estar de seu povo.

     

    O Foro de São Paulo se declara em estado de alerta e em Sessão Permanente, em apoio à luta do povo venezuelano em defesa da Revolução Bolivariana.

     

    Estamos solidários com as forças políticas e sociais que são reprimidas e perseguidas pelo governo do presidente Mauricio Macri.

     

    Estamos solidários com a paz na Colômbia e denunciamos o conjunto de ações com as quais a extrema-direita naquele país pretende boicotá-la; os assassinatos sistemáticos de dezenas de líderes sociais, defensores dos direitos humanos, lutadores pela paz e indultados das FARC e seus familiares, por forças paramilitares abrigadas sob o manto protetor do terrorismo de Estado; assim como exigimos o cumprimento integral do Acordo de Paz, especialmente a libertação dos presos políticos que estão em greve de fome há vinte e quatro dias, exigindo o cumprimento da lei de anistia. Da mesma forma, apoiamos as negociações com o Exército de Libertação Nacional (ELN).

     

    Exigimos a liberdade de Simón Trinidad e Sonia, revolucionários colombianos e combatentes das FARC que estão presos injustamente nos Estados Unidos, apesar de que, uma depois da outra, foram desmascaradas as falsas acusações que foram feitas contra eles.

    Exigimos a liberdade de Milagro Sala, deputada do Parlasul, dirigente social argentina e prisioneira política por defender os direitos dos setores mais humildes e negligenciados em seu país.

    Regozijamo-nos com a liberdade do lutador pela independência de Porto Rico Oscar Lopez Rivera, recentemente libertado da prisão graças à tenaz campanha internacional pela sua liberdade e sua forte resistência e firmeza a toda prova.

    Apoiamos plenamente a mobilização dos trabalhadores brasileiros contra as políticas neoliberais e antipopulares do governo golpista e  de direita de Temer, e a Lula em sua luta por justiça social e democracia, que desencadeou a fúria de seus oponentes, que querem inabilitá-lo politicamente.

    Estamos solidários com o povo e o governo da Nicarágua, país que atualmente enfrenta a ameaça do veto dos Estados Unidos contra seu acesso aos créditos nos organismos financeiros internacionais, como chantagem política exercida pelos setores mais reacionários do Congresso, o Senado e o governo dos EUA, encorajados pela direita “criolla” com a vã ilusão de que, como resultado disso, os ditames imperiais serão acatados pelos sandinismo, cujas raízes estão na luta vitoriosa de Augusto C. Sandino contra as tropas intervencionistas norte-americanas, e que conta com um amplo apoio popular e uma correlação de forças amplamente favorável  em todos os âmbitos da vida política nacional.

    Estamos solidários com o povo e o governo de El Salvador, que conseguiu deter e começar a reverter a crise econômica resultante de duas décadas de governos neoliberais, reduzir a pobreza em 8% e aplicar um exitoso plano de segurança, apesar de ter sido submetido a uma estratégia multifacetada desestabilizadora que inclui o bloqueio econômico à gestão governamental por parte do partido da oligarquia (ARENA) na Assembleia Legislativa e dos magistrados a seu serviço que o controlam a Câmara Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça.

    Lutamos pela educação gratuita e o acesso à educação de qualidade; por uma cobertura de saúde universal, gratuita e de qualidade; pela eliminação da fome e da desigualdade em toda a região.

    Repudiamos a criminalização dos imigrantes, as políticas anti-imigração e a violação dos direitos humanos e trabalhistas dos latino-americanos e caribenhos nos Estados Unidos. Apoiamos primordialmente a luta para manter os benefícios temporários de trabalho (TPS) que ajudam a centenas de milhares de famílias em El Salvador, Honduras, Nicarágua e Haiti.

    Repudiamos absolutamente as ameaças do governo dos EUA, do Partido Republicano e de congressistas de direita que pretendem extorquir estes e outros governos para forçar o voto em organismos internacionais como a OEA, por causa do apoio ao intervencionismo dos Estados Unidos, sob a ameaça de eliminar os benefícios migratórios desses povos. Defendemos que o governo do México devolva os fundos de poupança usurpados dos chamados “braceros”,  trabalhadores mexicanos que foram empregados nos Estados Unidos entre 1941 e 1964.

     

    Apoiamos um mundo sem fronteiras em que se priorize a livre circulação dos seres humanos e não apenas a livre circulação de mercadorias. Por isso, rejeitamos os muros, especialmente o que se pretende construir na fronteira entre Estados Unidos e México.

    Pronunciamo-nos pela total eliminação do arsenal nuclear que existe no mundo, nos opomos à corrida armamentista e à existência de bases militares em solo estrangeiro.

    Rechaçamos qualquer forma de racismo e discriminação. Impulsionamos o exercício pleno dos direitos econômicos, culturais, sociais e políticos das mulheres, e a eliminação da cultura patriarcal.

    Exigimos a retirada das forças da MINUSTAH que, seguindo o mandato do antidemocrático Conselho de Segurança da ONU, mantém ocupado o Haiti há mais de uma década.

    Condenamos o narcotráfico, o tráfico de seres humanos e o terrorismo, e denunciamos a dupla moral de um sistema que diz lutar contra o crime organizado, enquanto protege os seus grandes promotores e os principais responsáveis. Defendemos o cultivo legal e o uso tradicional benéfico da folha de coca.

    Condenamos as políticas anti-imigrantes e o terrorismo e promovemos o reconhecimento dos imigrantes como trabalhadores, o reconhecimento de seus direitos trabalhistas e o respeito pelos seus direitos humanos.

    Estamos solidários com os povos que enfrentam hoje os governos de direita na região. Proclamamos o direito humano à água, lutando contra a destruição do meio ambiente, a ameaça à biodiversidade e ao ecossistema em geral.

    Apoiamos as demandas dos pequenos Estados insulares do Caribe à reparação pelos danos humanos da escravidão e a acessar recursos que permitam sua resiliência frente às alterações climáticas.

    Exigimos o levantamento incondicional, total e definitivo do bloqueio econômico, comercial e financeiro do governo dos Estados Unidos contra Cuba, e a indenização do povo cubano pelos danos e prejuízos causados ​​por mais de meio século de agressões de todos os tipos.

    Exigimos a devolução ao povo de Cuba do território ocupado pela ilegal base naval americana em Guantánamo.

    Apoiamos a reivindicação histórica da Argentina sobre a soberania das Ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul.

    Apoiamos a Bolívia em sua reivindicação de saída para o mar com soberania.

    Exigimos a descolonização completa do Caribe e apoiamos de maneira particular a independência de Porto Rico, que no dia 25 de julho de 2017 lembra cento e dezenove anos da invasão militar estadounidense contra esta nação caribenha. Nós também defendemos a eliminação de todas as formas de colonialismo e neocolonialismo.

    Exigimos a eliminação de todas as bases militares dos EUA que existem na região (77 no total, que, juntamente com a Quarta Frota, cobrem todo o espaço regional), e todas as bases militares estrangeiras de qualquer país, onde quer que estejam.

    Apoiamos o pedido de indenização ao Caribe pelos horrores da escravidão e o tráfico de escravos, assim como ao resto da América Latina, por 500 anos de saques a suas riquezas e a seus povos, que ainda continua.

    Defendemos os direitos e as culturas dos povos originários, cuja existência tanto hoje como ontem, sempre esteve ameaçada.

    Neste momento decisivo para o nosso continente enfrentaremos o desafio de aprofundar os processos de mudança em curso como a única maneira de derrotar a ofensiva da direita e do imperialismo. [Mantemo-nos] fiéis à nossa luta pela paz, a democracia e o socialismo, única garantia para alcançar nossa segunda, definitiva e verdadeira independência política e econômica, bem como a nossa emancipação cultural e nossa própria identidade continental latino-americana e caribenha; a identidade, soberania e autodeterminação desta grande pátria, justamente batizada pelo apóstolo continental José Martí como NOSSA AMÉRICA, que é o sonho de Bolívar cada vez mais perto de ser realidade.

     

    Nossa América na luta, HASTA LA VICTORIA SIEMPRE!

    Cidade de Manágua, em 19 de julho, 2017.

  • Cidinha da Silva: A cadeira de Miss Davis

    Cidinha da Silva: A cadeira de Miss Davis

    Eu sou uma mulher de sorte. Esta afirmação tem a força de atrair cada vez mais os bons augúrios e afastar a desinsorte, já que aquele nomezinho de quatro letras nem pronuncio.

    Acontece que fui a Cachoeira turistar com familiares e à noite resolvi tietar amigas que participavam de um curso sobre feminismo negro decolonial nas Américas, promovido pelo Coletivo Ângela Davis. Encontros daqui e dali, papos rápidos, beijos e abraços e um restaurante escolhido para jantar. De repente as vozes sussurradas e emocionadas dão conta de uma presença em movimento: “Olha ela, é Ângela. É Ângela. Ela saiu de casa. Ela está vindo.”

    E quem é que vem para a mesma calçada onde estou e senta-se à mesma mesa, a três cadeiras de distância da locutora que vos fala? Ela, a Pantera, como o pessoal a estava chamando por lá. A que chamaram de Ângela, sem sobrenome, porque passou a ser da família. Tá bom, tá bom. Era a mesa da diretoria e da amada, por isso ela se sentou na “minha mesa”. Não tem problema, pessoal, isso não embaralha minha sorte.

    Conversa vai, conversa vem, uma filha do Rei de Oyó postada à cabeceira da mesa iniciou, com Ângela, um papo sobre política brasileira. Eu me mordi de vontade de participar com meu inglesinho de boa base gramatical e pronúncia imperfeita, só que não fui mencionada, convidada, e me resignei ao silêncio observador. Cada qual reinando no seu reino.

    Alguém, creio que a própria Ângela, resolveu rearranjar os lugares da mesa para que os casais separados ficassem próximos. Uma vizinha de cadeira moveu-se para o lugar de Ângela Davis, a primeira a se levantar. E ela, a Pantera, sentou-se onde? Adivinhem. Quem responder “ao lado de Cidinha da Silva”, ganha um doce.

    A primeira sensação quando isso acontece, vou contar para você que nunca se sentou ao lado de um ícone, é: O que posso falar que não vá incomodá-la? A pessoa está ali no bar para relaxar. As anfitriãs já haviam montado um forte esquema espacial para blindá-la das cansativas selfies, não queria ser eu a incomodá-la. Optei por ficar calada e, se surgisse alguma oportunidade falaria algo.

    Angela Davis no Brasil. foto: Forum Anarquista Especifista em: https://www.facebook.com/faebahia/photos/a.684794088222670.1073741828.684778788224200/1393549037347168/?type=3

    Ângela sorriu para mim e me cumprimentou, perguntou como estava? Respondi ao cumprimento e aproveitando a deixa disse-lhe que diria minha frase clichê desde 1997, quando a encontrei em sua primeira vinda ao Brasil: “A primeira vez que te vi foi em Atlanta, em 1994, e você tinha longuíssimos dreadlocks”. Muito simpática, ela disse que se lembrava, que meu rosto lhe era familiar nessas duas décadas que vinha ao Brasil. Calma, gente! É óbvio que ela não se lembrou de mim, principalmente no evento em Atlanta, onde havia centenas de mulheres negras. Talvez se lembrasse que tinha mesmo dreads àquela época, e a lembrança de dreads cortados sempre traz uma nostalgia, ou talvez (sou otimista) se lembrasse da minha frazezinha-clichê, que, vamos combinar, já era a terceira-vez que eu dizia a ela.

    Ainda na linha simpatia total, ela me perguntou o que havia sido o evento de Atlanta e o que eu fazia por lá. Respondi que se tratava de uma edição da Black Women’s Health Conference, e eu, que estudava e morava em Illinois à época, havia ido lá encontrar uma companheira de Geledés, participante do encontro. Depois ela me perguntou como se dizia ketchup em português. Respondi que era daquele jeito mesmo e que a gente só acentuava a letra u. Rimos. Pedimos ketchup ao garçom que nunca o trouxe e como as batatas fritas de Ângela já estavam pela metade, fui ao balcão buscar o molho vermelho. Conversamos ainda sobre a tradição africana de deixar o sal em cima da mesa, ao invés de entregá-lo a alguém que o solicita. Sobre banhos de sal grosso e sobre jogar sal para trás como táticas de proteção espiritual e ainda, sobre não entregar uma faca com a ponta voltada para a pessoa que a recebe.

    Bem, essa prosopopéia toda foi para justificar porque sou uma mulher se sorte, uma legítima filha do Rei. Mas, o mais importante da noite ainda não contei. É que ao mudar-se de lugar, Ângela Davis que é muito alta, sentou-se numa cadeira maior do que as outras ou que estava num ponto mais alto da calçada. Fato é que a junção das duas coisas deixou-a em destaque na mesa. Ninguém reparou porque ela já era a grande estrela e era natural que a víssemos como a maior de todas. Mas ela, muito incomodada, falava como que para si mesma, que estava mais alta do que todo mundo e olhava para o chão e para os lados, buscando solução para o problema. Eu, pensando se tratar da própria altura dela, disse que ela era mesmo a mais alta da mesa e ela respondeu: “Eu sei, mas tem alguma coisa errada aqui”.

    Então, mais uma vez, Ângela se levantou e trocou de lugar, sentando-se na cadeira ao lado, mais baixa ou que não estava num ponto alto da calçada, ficando assim na mesma altura das demais pessoas. E disse aliviada: “Agora, sim! Agora eu estou confortável!”

  • BRASIL DE FATO – A questão do poder na Venezuela: foco no processo, não na pessoa

    BRASIL DE FATO – A questão do poder na Venezuela: foco no processo, não na pessoa

    Por Raphael Lana Seabra e Gladstone Leonel Júnior

     

    Os meios de comunicação tradicionais pintam o presidente Maduro como o grande causador dos problemas na Venezuela. Não por acaso, o discurso que há alguns anos cabia a Cuba, então inimiga número um do chamado “mundo moderno”, foi deslocado para esse novo inimigo. Da mesma forma do feito com Cuba, agora a Venezuela torna-se alvo da pretensa falta de liberdade individual e desrespeito às cláusulas democráticas, tanto pelo discurso oposicionista que vigora no senso comum, quanto por algumas vozes progressistas. Mudam-se os alvos, mantêm-se o enredo!

    Nada de novo em um discurso cômodo, que nos mantêm na zona de conforto da crítica, idealizado e sem contradições dos processos políticos na América Latina, ou seja, um discurso crítico de processos que jamais existirão. O processo político real e pouco linear, conhecido por Revolução Bolivariana, sofre todas as intempéries das claras intervenções políticas externas, da sua disputa interna, da inflamada conjuntura mundial recente e da condução na sua própria gestão. Não há fórmula mágica ou crítica abrangente o suficiente capaz de trazer diagnósticos límpidos, caso sejam ignorados esses fatores. O que se depreende de tudo isso, é a necessidade da manutenção do processo revolucionário em razão das mudanças paradigmáticas populares por ele trazidas na vida das pessoas, do povo que vive do trabalho.

    O atual presidente, democraticamente eleito na Venezuela, exerce o segundo mandato e enfrenta uma oposição ferrenha não só em seu país, mas em outros locais do mundo. Mas, afinal de contas, qual o interesse de algumas das principais potências econômicas do mundo na desestabilização de um país mediano, localizado entre o Caribe e a América do Sul, dentre quase 200 países no planeta?

     


    Ato realizado em Caracas, em defesa da revolução Bolivariana / Carmen Meléndez‏ (gestionperfecta)

     

    Considerações sobre a “crise” na Venezuela

    A Venezuela é um dos países com a maior reserva petrolífera do planeta e essa não pode ser considerada uma informação secundária em um mundo energeticamente petrodependente, mas além deste recurso, o país possui grandes reservas comprovadas de outros minerais estratégicos como: ouro, bauxita, columbita-tantalita e cobre.

    Após a entrada de Hugo Chávez na presidência, o Estado venezuelano modificou a gestão e o direcionamento dos faturamentos da PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.), visto que os royalties do petróleo passaram a ser investidos desde a área da saúde à habitação em benefício do povo venezuelano e não mais um privilégio restrito apenas a setores ligados ao grande capital privado.

    Diante do fato descrito acima, não resta dúvida de que não são novos os anúncios tão evidenciados e disseminados sobre a existência de uma longa “crise” na República Bolivariana da Venezuela. Ao indivíduo mais dotado de historicidade, o início da “crise” pareceria coincidir com a vitória eleitoral de Hugo Chávez em 1998, mas que teria na oposição às Leis Habilitantes de 2001 seu marco fundamental. Todavia, num exemplo de completa “amnésia”, apagadas todas as referências pretéritas, para os meios de comunicação e a oposição ao governo Maduro, a conjuntura pela qual atravessa a Venezuela seria simples resultado da inabilidade do atual presidente e dos chavistas em conduzir a vida política, social e econômica do país.

    Dessa forma, as explicações para uma crise passam pela alta inflacionária, pela falta de produtos básicos nos supermercados e ganhando contornos de “crise humanitária” somada a uma repressão violenta aos setores oposicionistas.

    Não é novidade para aqueles que têm o apreço pelos livros ou pelo simples conhecimento da história, que ações golpistas e desestabilizadoras fazem parte da trajetória política dos países da América Latina que ousam afrouxar as amarras da dependência, entre eles a Venezuela. O golpe para a tentativa de retirar o presidente Hugo Chávez em 2002, talvez tenha sido o mais escancarado até então.

    Vários outros episódios desestabilizadores se sucederam: a tentativa de fragilização da PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.) por seu corpo diretivo (2003); o Plan Guarimba cuja chamada à desobediência civil tinha como tática o fechamento violento de ruas e avenidas em bairros de alta renda de Caracas, como também o uso de coquetéis molotov, bazucas e bombas caseiras (2004); a sabotagem para gerar falta de produtos básicos não perecíveis e formação de um tímido mercado negro de papel higiênico, creme dental, café e farinha de milho, após a declaração do “Socialismo do Século XXI” (2005). Todas são manifestações desesperadas de uma oposição incapaz de vencer pela via eleitoral e de construir um consenso ao redor de seu “programa político”.

    A intensificação da violência tática por parte da oposição ocorreu com o anúncio do adoecimento do ex-presidente Hugo Chávez em 2011 e alcançou níveis alarmantes com seu falecimento em março de 2013. A partir de então foram postas em funcionamento duas táticas complementares: a guerra econômica e a guarimba.

    A guerra econômica, aprofundada desde meados de 2012, se estrutura pelo recurso ao açambarcamento, o estoque de mercadorias em grande quantidade com intuito de provocar a sua escassez, como também o recurso ao mercado paralelo a preços exorbitantes, estimulando a atividade ilegal dos bachaqueros; a indução da inflação pelo ataque à moeda, cujos principais agentes especuladores são a casa de câmbio Dolar Today em Miami e as casas de câmbio situadas na cidade colombiana de Cucutá; o boicote ao fornecimento de produtos e insumos industriais para a produção de determinados bens essenciais, como também médico-hospitalares pelas empresas monopolistas nacionais e estrangeiras; e finalmente, o bloqueio financeiro internacional, evidente pela manipulação do risco país Venezuelano, o mais alto do mundo, superando a “falida” Grécia e a “conflitiva” Síria. Tal tática visava minar o poder de compra dos salários, reduzir a produtividade interna e reduzir a confiança na eficiência da intervenção estatal na economia.

    Um dos atos chocantes mais recentes, incitados pela oposição, foi a destruição de um depósito da rede estatal de abastecimento Mercal, onde foram queimadas 50 toneladas de alimentos que seriam distribuídos em comunidades pobres do Estado de Anzoátegui, como destacou em artigo o professor Igor Fuser. Ademais, a sabotagem econômica é intensificada, visto que a maior parte da produção ou distribuição de produtos está concentrada nas mãos do empresariado, em regra, alinhado com a oposição do governo, embora difundam a culpa como sendo exclusivamente em razão de uma má gestão econômica do governo Maduro. A fim de combater a escassez, foram criados os Comitês Locais de Abastecimento e Produção, com o intuito de fornecer alimentos subsidiados para grande parte da população, além da manutenção dos programas sociais do governo.

    A segunda tática, a guarimba consiste na formação de barricadas em avenidas, queima de pneus e lixo, cabos de aço atravessando as ruas à altura do pescoço, ações violentas de grupos portando armas de fogo e caseiras. São formas de instigar a ação mais repressiva pelo governo, de gerar o medo entre a população. Cabe destacar que não são ações menores de grupos aventureiros, mas sim convocadas por figuras expoentes da Mesa de la Unidad Democrática (MUD) da oposição como o ex-candidato a presidente Henrique Caprilles, o ex-prefeito de Chacao-Caracas Leopoldo López, a ex-deputada da Assembleia Nacional Maria Corina, o atual presidente da Câmara dos Deputados Henry Ramos Allup entre outros.

    Essas ações sempre acompanhadas por campanhas em defesa da liberdade de imprensa e contra as violações dos direitos humanos, as quais exigiam a renúncia do presidente. Essa combinação das táticas complementares de sabotagem, nunca foram denunciadas pelos mesmos meios de comunicação opositores ao governo e à revolução, o que gera efeitos psicológicos e desestabilizadores, criando um clima de ingovernabilidade.

    A Encruzilhada Jurídica e a Questão do Poder

    A Constituição Venezuelana de 1999 é um marco na história recente no país, pois partiu efetivamente do imaginário popular de empoderamento e participação na condução da vida política, reflete, portanto o pacto realizado em um momento político que garantiu outra forma política como parte do processo de ruptura capaz de gestar um projeto popular. Todavia, os embates com uma oposição agressiva desde 2001, num processo dialético de aprofundamento das conquistas populares, encaminharam a decisão de transitar ao socialismo em 2005, deixando claras as rupturas provocadas e estimuladas pela nova Carta Magna.

    A partir do momento que se reconhece o avanço de um processo revolucionário que busca extrapolar paradigmas formais do liberalismo, a estrutura liberal do Estado, em alguma situação e momento histórico, apresentará limites claros que devem ser enfrentados por se tratar de uma Revolução que aponta para um horizonte socialista. A Constituição, por mais que seja uma garantia moderna na defesa de direitos e apontamento de deveres, não deve ser vista como uma “camisa de força” incapaz de permitir a construção de um novo pacto social firmado no bojo de um processo revolucionário, mesmo que se faça uso da Constituição para avançar no próprio processo.

    Na crítica realizada ao processo venezuelano, simplesmente recorrer a análises formais do direito como método de distanciamento do próprio processo, só valoriza a opção por uma crítica que reforça os pilares liberais alçado a pedestais, nem sempre libertários. Ao que parece, somente a normalidade dos procedimentos liberais são aceitos como “naturais”, afastar-se disso seria uma anomalia inaceitável aos padrões estabelecidos historicamente, mesmo que esses padrões não se interessem pela maioria do povo explorado e marginalizado ao longo desse processo.

    Não se trata de questão de incoerência ou mera conveniência na defesa constitucional por um lado e na apresentação de seus limites diante da conjuntura política por outro. O que está em jogo é o poder do Estado e, consequentemente, o futuro de milhões de pessoas que não abrem mão do poder popular, mesmo discordando eventualmente de atos políticos e de gestão das autoridades eleitas, que estão à frente do projeto político atual.

    Alguns setores críticos do campo progressista trazem abordagens importantes, porém temerosas, uma vez que o grupo, que de fato tem condições reais de assumir o poder do Estado, caso o governo seja derrotado, traz um projeto reacionário, antipopular e sem ter receios de afirmar o termo, muito além do chavão, claramente imperialista. Ao abordar como grandes problemas da Venezuela, o não respeito a separação de poderes, (que ainda sim, pode ser questionado), ou a dependência relacionada ao rentismo decorrente do petróleo (que consiste, de fato, em situação crítica estrutural da economia) ao invés de denunciar a contra-revolução em andamento que, além da Venezuela, atinge boa parte dos países da América Latina, como o golpe que atingiu o Brasil, é no mínimo controverso nesse momento. Para enfatizar essa questão, basta fazer uma simples pergunta: Alguém acredita que a oposição venezuelana estaria disposta a resolver esses problemas caso alcançassem o poder do Estado? Responder essa questão, talvez facilite elencar prioridades, sem se esquivar dos problemas no horizonte.

    Ao rememorar o centenário de uma Revolução vitoriosa, a Russa de 1917, cabe destacar o elemento fundamental, de acordo com o seu maior líder, para se alcançar o triunfo: a questão do Poder.

    Lenin, em trecho do texto Uma das Questões Fundamentais da Revolução, escrito em setembro de 1917, dizia que “a questão mais importante de qualquer revolução é sem dúvida a questão do poder do Estado. Nas mãos de que classe está o poder (…) Não é possível eludir nem afastar a questão do poder, pois esta é precisamente a questão fundamental que determina tudo no desenvolvimento da revolução, na sua política interna e externa”.

    Os grupos radicais opositores ao governo Maduro há muito passaram os limites em suas ações não divulgadas devidamente pelos meios de comunicação na busca pelo poder do Estado. Não cessam as ações verdadeiramente terroristas como: a queima de pessoas vivas; a realização, com o uso de helicóptero, para o disparo de tiros e granadas contra a sede do Supremo Tribunal de Justiça, em Caracas; o ataque a outros prédios públicos e as guarnições militares; tudo no intuito de despolitizar o cotidiano e intensificar a instabilidade no país.

    Novos instrumentos devem ser forjados para responder aos desafios apresentados pela conjuntura. Nem sempre darão as respostas que se espera, mas constituem apostas necessárias, pois caso não realizadas, a única certeza serão as derrotas iminentes a todo um povo, caso o projeto neoliberal da oposição retorne ao Poder do Estado.

    Muito certamente a intensificação dos ataques violentos oposicionistas estejam relacionados ao receio que possuem do processo constituinte que se faz presente no horizonte. Porém, observadas quase duas décadas de persistente e desesperada ação contrarrevolucionária, agora intensificada pelas táticas da guerra econômica e guarimbas: há muito tempo a oposição não confia nas soluções liberais burguesas como via de retorno à condução da vida política do país. O que torna ainda mais importante a nova Constituinte convocada por Nicolás Maduro, dado seu potencial de rearticular as massas trabalhadoras em torno do processo bolivariano, processo revolucionário esse, que sofre algum desgaste com a figura de Maduro. Embora, não reste dúvida de que o processo é muito maior do que a pessoa e, por esse motivo, deve ser defendido para que avance para um novo nível de radicalidade e articulação em torno de um projeto popular para a Venezuela.

     

    Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2017/07/19/analiseor-a-questao-do-poder-na-venezuela-foco-no-processo-nao-na-pessoa/

  • VENEZUELA: É A VELHA LUTA DE CLASSES QUE ESTÁ NAS RUAS!

    VENEZUELA: É A VELHA LUTA DE CLASSES QUE ESTÁ NAS RUAS!

     

    De Caracas, para os Jornalistas Livres

    Quem há de dizer que a Venezuela é uma Ditadura? Se alguém sentia falta de uma consulta popular, o país realizou duas no mesmo dia! Uma foi convocada pelo governo do presidente Nicolás Maduro, na forma de uma simulação da eleição para os deputados da Assembléia Nacional Constituinte, que deverá ocorrer de verdade no próximo dia 30 de julho. A outra foi convocada pela Mesa de Unidade Democrática (MUD), a frente de partidos de oposição ao chavismo.

    Foi um domingo alegre e iluminado em Caracas. Quente, como sempre. As ruas estavam cheias de famílias, já que 16 de julho é o Dia das Crianças venezuelano. Meninas e meninos com os rostos pintados como bichinhos, em roupas elegantes, viam-se por toda a cidade. As lojas estavam abertas. Nada havia que denunciasse a guerra civil ou os enfrentamentos dramáticos, cheios de sangue, ódio e ira, vistos todos os dias nas televisões e grandes jornais do Brasil. Mas a disputa renhida estava presente.

    1º CAPÍTULO
    A ATIVIDADE DO POVO POBRE

    Há semelhanças e dessemelhanças cruciais entre o golpe que ocorreu no Brasil há um ano e o que pretende se implantar agora na Venezuela. Em ambos os países, o poder econômico quer assumir o comando e impor uma cartilha neoliberal em que apenas os ricos rentistas podem se dar bem. A diferença está no povo pobre que, no país de Chávez, está organizado em comunas de bairros, em movimentos sociais e no PSUV (o Partido Socialista Unido de Venezuela).

    É impossível conversar com os defensores da República Bolivariana inaugurada por Chávez há 19 anos, sem que apareçam nas falas os “interesses nacionais”, a “Pátria Grande”, o petróleo (um orgulho, já que nacionalizado), os “direitos dos trabalhadores” e o “imperialismo predador” a ser combatido.

    Todos falam em luta de classes. Dizem que o núcleo político da oposição reside na defesa de interesses espúrios por parte da burguesia e de uma classe média que tem os olhos e o desejos postos em Miami. Bem informados, falam do golpe ocorrido no Brasil, da condenação de Lula pelo juiz Sergio Moro. Defendem Lula com emoção e gratidão.

    A Constituinte proposta por Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez, tem tudo a ver com esse povo politizado e dotado de profunda consciência de classe. Pretende “aperfeiçoar o sistema econômico, social e político” e realizar uma extensa reforma política no país. Na prática, deverá radicalizar na via de transformação do Estado Venezuelano, reformando a Constituição de 1999, criada por iniciativa de Hugo Chávez.  O propósito é adequar o Estado, de modo a torná-lo mais e mais um espelho da maioria da população do país, que é pobre e mestiça.

    Jornalistas Livres percorreram a fila formada diante do Liceu Andrés Bello, no centro de Caracas. Trata-se de colégio icônico, um dos primeiros do país, e representa o sonho republicano de uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos. Lá, diante de um gigantesco e lindo mural retratando a luta popular desde os tempos da colônia, uma fila animadíssima de cidadãos pobres e orgulhosos explicava porque participavam da simulação eleitoral convocada por Maduro.

    A simulação foi organizada pelo Conselho Nacional Eleitoral, o CNE, que tem na Venezuela autoridade equivalente à do nosso Tribunal Superior Eleitoral. Tudo computadorizado, como acontece no Brasil, mas no final o eleitor retira seu voto e o deposita numa urna física, de modo a ser possível fazer recontagens de votos, em caso de suspeita de fraude.

    Para Maduro, a Constituinte é a única possibilidade de levar paz ao país, porque criaria uma instância de poder para decidir os rumos do Estado venezuelano. Hoje, vive-se lá uma grave crise econômica, social e política decorrente da corrupção, da sabotagem econômica e do uso de táticas terroristas pelos que pretendem reimplantar um modelo neoliberal e privatista. As vitrines da loja de Departamentos Traki, no centro da cidade, por exemplo, exibem latas de conservas e embalagens de artigos de higiene e limpeza em arranjos caprichosos, como se jóias fossem. Nas farmácias faltam medicamentos e não se sabe quando eles estarão à disposição.
    Para o chavismo, a Constituinte é a forma de resolver esses problemas da vida cotidiana, além de resgatar para o espaço da discussão política setores hoje descontentes com a adoção de táticas violentas por parte da oposição. Pacificar o país, que já conta mais de 112 mortos em conflitos e atentados de matriz terrorista, é um dos objetivos. É nisso que acreditam os partidários do governo que foram às urnas neste domingo para treinar o voto. Dia 30 de julho, o voto será para valer.

    Para quem achava que o jogo estava em vias de terminar na Venezuela, a professora universitária Nilze Almendraz, 62 anos, vestida com camiseta negra em que se vê o rosto imenso de Simon Bolívar, garante: “Estamos apenas começando! E estamos dispostos dar nossas vidas para defender o sonho de nosso comandante máximo, Hugo Chávez. Porque é o nosso sonho também. ”

    Oposicionistas ateiam fogo nas cédulas e nas atas eleitorais, ao fim de seu “plebiscito informal”

    A ATIVIDADE DA OPOSIÇÃO

    Jornalistas Livres acompanharam a atividade oposicionista em dois pontos de Caracas: em Sabana Grande e na praça Carabobo, na região central. Concentrações da classe média branca, cem pessoas em cada uma delas, organizavam o seu “plebiscito” como se fosse a eleição do representante de classe na escola. Em vez de listas de votantes, folhas de papel sulfite A4, que cada “eleitor” preenchia mediante a apresentação de sua cédula de identidade –válida ou vencida, diga-se.

    A pessoa podia votar fora de seu domicilio eleitoral, como constatamos ao entrevistar a jovem estudante de letras da Universidade Central de Venezuela, Susan Ovalle, 26 anos. Moradora de Catia, periferia pobre de Caracas, perto do aeroporto de Maiquetía, ela votou em Sabana Grande. Como evitar que pessoas votem várias vezes?, perguntamos. “Confiamos na honestidade dos nossos”, respondeu ela. Sei.

    O plebiscito organizado pelos oposicionistas tinha três perguntas, todas em aparente defesa da Constituição de 1999, que esses mesmos setores combateram antes, quando Chávez a promulgou. Na prática, o objetivo era inviabilizar politicamente a convocação da nova Assembléia Nacional Constituinte, iniciativa de Nicolás Maduro, conforme garante a própria Constituição de 1999:

    1. Você rechaça e desconhece a realização de uma constituinte proposta por Nicolás Maduro sem a aprovação prévia do povo da Venezuela?
    2. Você pede à Força Armada Nacional e a todo funcionário público que obedeça e defenda a Constituição de 1999 e respalde as decisões da Assembléia Nacional?
    3. Você aprova que se proceda à renovação dos Poderes Públicos de acordo com o estabelecido na Constituição e à realização de eleições livres e transparentes, assim como a conformação de um governo de União Nacional para restituir a ordem constitucional?

     

     

    A idéia dos oposicionistas era recolher um número significativo de respostas “Sim” às três questões, de modo a deslegitimar a presidência de Nicolás Maduro e derrubar o que eles chamam de “Ditadura Chavista”. Nenhuma negociação, nenhum plano a não ser a explosão do atual governo.

    Interessante o conceito de “Ditadura”, já que é ampla a liberdade de manifestação e expressão dos opositores, inclusive na televisão e nos meios impressos, em que fizeram abertamente campanha para chamar à participação no “plebiscito informal” deste domingo. Também é curioso que chamem de “ditador” a um presidente que, como Maduro, foi eleito pela maioria do povo venezuelano em eleições das quais a oposição participou e às quais convalidou. Ressalte-se que Maduro está ainda a um ano de ter seu mandato encerrado.

    Incongruências à parte, o problema principal da oposição foi a total desorganização da consulta que realizou sem o apoio logístico do Conselho Nacional Eleitoral, o CNE, que tem na Venezuela autoridade equivalente à do nosso Tribunal Superior Eleitoral.

    Piorando o que já estava precário, em vez de urnas, os votos foram recolhidos em caixas de sabão e de enlatados. Não havia lacre.
    A deputada Tamara Adrian, deputada da Assembleia Nacional pelo partido Vontade Popular, de oposição a Maduro, explicou pela manhã que todos os votos recolhidos pelos oposicionistas seriam incinerados “por questões de segurança”. Foi o que de fato aconteceu, e logo deu para entender o porquê.

    Tratava-se de evitar que alguém tivesse a inconveniente idéia de contar os votos ou checar a lista de votação para evitar fraudes. E foi assim: nacionalmente, a oposição combinou que, tão logo se apurasse o resultado de cada urna, todo o registro da votação –as cédulas inclusive—seriam queimadas. Isso aconteceu já na noite de domingo. Sem condições de checagem, a oposição disse que obteve mais de 7 milhões de votos, dos quais 98,4% rejeitando a Assembleia Nacional Constituinte proposta pelo presidente Nicolás Maduro. Na realidade, mesmo com todas as fraudes que possam ter ocorrido e que jamais poderão ser investigadas, o número de votantes ficou bem aquém dos 11 milhões que eram a meta da oposição. Mas isso não impediu o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Julio Borges, antichavista ferrenho, de proclamar ao final da votação neste “plebiscito” de fancaria: “O mandato de Nicolás Maduro está praticamente revogado”.

     

    Na praça Carabobo em que a oposição realizava sua “consulta”, cerca de 10 homens portando paus sentaram-se sobre a sinalização do Metrô de Caracas. Batiam fortemente no metal, avisando que não estavam para brincadeiras. Enquanto isso, mulheres agitavam bandeiras para os veículos que passavam na rua. Carrões SUV e caminhonetes saudavam o protesto oposicionista, enquanto a turma que passava de ônibus nem se dignava a olhar para o que ocorria no espaço dominado pela direita.

    Definitivamente, na Venezuela, a cisão é de classes. E todos têm consciência disso.