Jornalistas Livres

Categoria: Feminismo

  • Quem cala não consente

    Quem cala não consente

     

    A Marcha das Vadias sai às ruas paulistanas pela quinta vez defendendo a liberdade e a autonomia sobre o corpo contra a violência da cultura do estupro

    A 5a Marcha das Vadias de São Paulo, realizada no sábado, 30 de maio, reuniu cerca de 2.000 pessoas que saíram em passeata pela avenida Paulista até a praça Roosevelt. A concentração começou às 11 horas no vão livre do Masp, onde cartazes, faixas e corpos foram grafados com frases em repúdio ao estupro e à violência de gênero.

    Fotos William Oliveira/MIRA

    Nossa equipe de jornalistas livres contava com quatro homens cisgêner@s e um homem trans: eu. Fomos chamados pelas jovens feministas da organização e devidamente fichad@s: foto, nome e telefone. A explicação, compreensível, era de que, se alguma das mulheres (muitas saíram às ruas com os corpos total ou parcialmente nus) fosse assediada, facilitaria a identificação do agressor.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Consegui falar com um@ d@s organizador@s, Sâmie Bonfim, do coletivo Juntas, que me concedeu uma breve entrevista. “A Marcha das Vadias é um grito das mulheres contra o machismo, a violência sexual, e assédios em geral, onde o feminismo moderno tem a sua melhor expressão e seu momento mais genuíno”, ela disse. “É um movimento bastante amplo, diversificado e internacional, com a adesão de ícones da música pop e atores de cinema.”

    Foto Ennio Braun

    Marcia Balades, articuladora estadual da Liga Brasileira de Lésbicas de São Paulo, define a Marcha das Vadias: “É um dos feminismos, há vários. É superválido porque luta pela plena autonomia do próprio corpo. Tem feminista tradicional que torce o nariz pra elas, mas é inveja do sucesso”.

    Não vi nenhuma mulher transexual ou travesti na marcha, e segundo a ativista transfeminista Daniela Andrade, “nunca houve disposição delas para nos chamarem, ao contrário de outros lugares como na de Aracaju que é construída com travestis e mulheres transexuais”.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Daniela cita as radfems, que são as feministas radicais que não aceitam transexuais no movimento, como possível impedimento. Para ela, a Marcha das Vadias “é o feminismo mainstream (termo inglês que expressa uma tendência ou moda dominante), e o resto é tratado como subfeminismos, ou feminismos de segunda classe ou inexistentes, como o feminismo negro ou o transfeminismo.” Poucas negras participaram da marcha de São Paulo. Vendo tantos corpos brancos pintados, a impressão que ficou é de que a maioria das participantes da Marcha das Vadias de São Paulo era de classe média branca.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Por volta das 14 horas, uma pequena e bela multidão colorida fechou uma pista da Paulista e desceu a rua Augusta rumo à praça Roosevelt. A bateria de frente, formada por militantes feministas, cantou músicas e gritou palavras de ordem contra o machismo, o racismo e a hetero-lesbo-transfobia. No final do trajeto, vítimas de estupro deram depoimentos e participantes leram cartas de vítimas de violência sexual.

    Foto Ennio Braun

    A origem da Marcha das Vadias remonta a janeiro de 2011, quando uma aluna da Faculdade de Toronto, no Canadá, foi violentada por colegas em uma festa. Depois do estupro, um policial declarou que as mulheres evitassem “se vestir como vadias (sluts, no inglês original), para não serem vítimas”.

    A aluna Jaclyn Friedman, que é hoje uma escritora e ativista feminista, bebia e usava roupas não convencionais na festa quando foi atacada. No dia 3 de abril de 2011, 3.000 pessoas foram às ruas no Canadá para protestar contra a violência cometida contra Jaclyn e denunciar os frequentes abusos ocorridos na Universidade de Toronto. Desde essa data, o movimento se internacionalizou e passou a ser realizado em diversas partes do mundo.

    Foto Ennio Braun

    A primeira Marcha das Vadias no Brasil foi realizada em São Paulo, em 4 de junho de 2011, e no mesmo ano foram realizadas outras em Brasília, Minas Gerais e Pernambuco. Hoje, a maioria dos estados brasileiros realiza essa manifestação.

    Segundo a crença disseminada na sociedade, na maioria dos estupros a vítima é vista como vilã, enquanto os agressores são redimidos por terem sido “seduzidos”. A Marcha das Vadias protesta contra essa crença de que as mulheres que são vítimas de abuso sexual são culpadas porque provocam a violência devido ao seu comportamento.

    O termo “vadia” foi ressignificado e reapropriado para um discurso político que defende a liberdade e a autonomia sobre o corpo contra a violência da cultura do estupro, que permeia as relações de poder sustentadoras do patriarcado.

    Neste ano, o tema da marcha foi “Aborto ilegal = Femicídio de Estado”. responsabilizando o Estado por criminalizar uma prática recorrente e disseminada na sociedade, que expõe pessoas a riscos que muitas vezes levam à morte. Obviamente uma pequena parcela rica recorre a boas clínicas ou vai para outros países onde o aborto é legalizado.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Em agosto do ano passado, Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, morreu numa clínica clandestina na zona oeste do Rio de Janeiro, onde foi realizar um aborto. Sua mãe disse que a filha tinha medo de perder o emprego por estar grávida. Seu corpo foi encontrado carbonizado dentro de um carro dias depois.

    No mesmo mês, a autópsia no corpo da carioca Elizângela Barbosa encontrou um tubo de plástico dentro do seu útero. Esses são dois dos milhares de casos em que a morte foi provocada por procedimentos abortivos clandestinos. Nesse sentido, o Estado é, sim, o responsável, ao negar acesso à saúde, descumprindo o artigo Artigo 196 da nossa Constituição Federal, que diz que “saúde é direito de todos e dever do Estado”.

    Foto William Oliveira/MIRA

    Além de mulheres cisgêneras, homens trans e pessoas não-binárias (que são aquelas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros, mas que ao nascer foram designadas como mulheres) também podem ter uma gravidez indesejada. Por fazerem parte de um dos segmentos sociais mais vulneráveis, com certeza serão vítimas preferenciais dessa situação de ilegalidade. Em caso de estupro, uma pessoa trans, que já tem dificuldades em lidar com seu próprio corpo e/ou ser bem tratado nas unidades de saúde, dificilmente irá procurar hospitais numa situação de emergência.

    Foto William Oliveira/MIRA

    No Brasil, o aborto só é liberado em caso de estupro, risco de vida para a mulher ou anencefalia fetal. Em todos os outros casos, é crime punido com pena de até três anos de cadeia. Muitas pessoas, quando realizam abortos em clínicas de fundo de quintal ou com as próprias mãos, correm o risco de ter complicações e sequelas, mas acabam nem recorrendo aos serviços emergenciais de saúde com medo de serem criminalizadas.

    De acordo com as estatísticas do SUS (Sistema Único de Saúde), são realizados 240 mil procedimentos emergenciais por ano em consequência de abortos clandestinos, o que gera um gasto extra de cerca de R$ 45 milhões ao Estado.

    Descriminalizar o aborto é sem dúvida nenhuma uma questão de saúde pública e justiça social.

    Foto William Oliveira/MIRA

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  • Ser mãe negra e jovem no Brasil

    Ser mãe negra e jovem no Brasil

     

    Como ensinar a sua filha a ter orgulho da própria cor no país da falsa Abolição

    Ontem, dia da Abolição, deveria ser feriado Nacional. Deveria ser um dia de comemoração, um dia para ser lembrado. Mas acho que sei porquê o dia 13 de maio não está em vermelho no calendário: por mais que a escravidão tenha sido oficialmente abolida do nosso país, ela continua dentro das pessoas.

    Sou negra, nunca fui obrigada a trabalhar em troca de comida ou moradia, mas sei o que é entrar em um algum lugar e ser olhada como diferente, sei o que é ouvir piadinhas (todas sem graça nenhuma) pelo fato de sua pele ser de uma pigmentação mais escura, ter apelidos por causa da minha etnia, perguntarem por que não faço uma progressiva.

    A escravidão acabou oficialmente, mas o racismo não. O que me deixa extremamente abalada é ver que para muitas pessoas isso é normal. Vemos na televisão e nos cinemas que as empregadas domésticas são negras, que os bandidos são negros, que a maioria dos mortos são negros. E me pergunto: quando isso irá mudar? Quando isso deixará de fazer parte da cultura brasileira?

    Frases como: “Tinha que ser preto!”, “Viu aquele neguinho?”, “Cuidado, é preto e corinthiano!”, são ditas com a maior naturalidade, sem constrangimentos. Aceita-se esse tipo de abordagem. Não apanhamos mais de senhores feudais, não temos mais navios negreiros. O que temos é a NEGAÇÃO da nossa cor no dia a dia.

    Ao olhar na periferia, vemos que ali estão os pretos e pardos. Numa construção, os serventes e pedreiros são negros, assim como as faxineiras. Claro que o Brasil evoluiu um pouco, já temos muitos negros na universidade, muitas cotas oferecidas (por mais que a USP se negue a participar), temos o PROUNI, o FIES, mas também temos o Senado querendo aprovar a PEC 171 para reduzir a maioridade penal. Quem perde com a diminuição da idade penal são os “neguinhos da quebrada”. Nossos presídios estão lotados de negros.

    Lembro de quando estava na 5ª série (atualmente, 6º ano) e meu apelido era “Poodle”, pois meu cabelo não era do padrão de beleza estabelecido. Recordo-me que todos os empregos que minha mãe obteve foram como empregada doméstica. E foi assim, com o suor e a batalha, limpando tantos banheiros, que ela criou meu irmão e eu.

    Quanta vezes presenciei amigos serem abordados dentro de bares, padarias ou até mesmo na rua, simplesmente por serem negros e nossos amigos brancos, nunca. A desculpa era de que estavam em “atitude suspeita”. Mas estávamos juntos fazendo as mesmas coisas.

    Ao olhar para minha sala de aula na faculdade vejo que sou uma das poucas negras (na verdade, minha sala, que tem 50 alunos, tem apenas dois negros) e sou a única negra bolsista. Isso não é novidade dentro de uma universidade reconhecida como a minha.

    Hoje estou com 26 anos, sou casada e tenho uma linda filha, a Isabella, que mesmo com 5 anos sabe bem o que é ser uma menina negra. Sempre ouço (até de nossos próprios parentes): “Nossa, criança, que cabelo é esse?”, ou “Quando ela crescer pode fazer uma [escova] progressiva!”, ou, ainda, “Tinha que puxar justo o seu cabelo e o seu nariz?”. Sim, nosso nariz batatinha também sofre na nossa sociedade preconceituosa. Mas me enche de orgulho de ouvir ela sempre dizer:

    “Amo meus cachos, são iguais aos da minha mãe!”

    Claro que isso não é nada perto de tantos negros que já foram presos, espancados, mortos. Meu relato não chega perto de tantas mães que viram seus filhos saírem de casa sem nunca mais voltar. Ou daqueles que percebem as pessoas que atravessam a rua com medo, puxando suas bolsas, porque um negro está ali. E te olham com nojo.

    Certa vez ouvi que o dia 20 de Novembro não era uma data que deveria ser comemorada, afinal todos nós temos Consciência Negra. Me indignei com isso, pois se TODOS NÓS realmente tivéssemos essa consciência, esse meu texto não precisaria ser escrito, não haveria tantos jovens negros assassinados.

    No dia 13 de Maio de 1888 a lei Áurea foi assinada. Mas a verdadeira Abolição ainda não aconteceu. Gostaria muito de dizer que a escravidão se foi há 127 anos, mas apenas posso dizer que ela continua de uma forma mais camuflada — e igualmente cruel.


    Michelli Cristini C M de Oliveira, 26 anos — é estudante de Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, casada com William Freitas de Oliveira e mãe de Isabella Cardoso de Oliveira. Faz parte da rede Jornalistas Livres.

  • Mãe, um conceito em mutação

    Mãe, um conceito em mutação

    Mãe é aquela que gerou? Pai é aquele que inoculou o sêmen? Um casal de transexuais argentinos provou ao mundo que não. Alexis Taborna engravidou da esposa, Karen Bruselario, e deu à luz uma menina, que recebeu o nome de Gêneses Angelina. O casal também formalizou a união no civil, e Karen declarou que realizou “o sonho de toda mulher transexual que teve uma vida difícil: casar de branco e ter uma festa celebrada com amor”.

    A advogada e empresária paulista Márcia Rocha, de 49 anos, fez um outro caminho. Antes de fazer a transição para sua atual expressão de gênero, que ela define como “travesti”, teve uma filha do primeiro casamento e nos conta como foi assumir seu desejo de mudança:

    “Minha filha me chama de pai, mas eu sempre fui mãe dela. Quado ela era pequena, minha mulher estudava à noite, e era eu quem trocava fralda e punha pra dormir. Eu sempre joguei limpo com a minha filha e nunca escondi nada dela. Quando contei que ia me hormonizar, minha filha disse: ‘Ah, pai, o senhor sempre foi assim’. Aí eu disse: ‘Mas eu vou ficar mais, vou me hormonizar e colocar próteses’. Nesse tempo eu me separei da minha esposa e a minha filha teve uma crise. Eu mandei ela estudar fora do país, na Nova Zelândia. Pus as próteses e assumi publicamente. Quando minha filha chegou, ela me pediu pra eu parar de me expor, porque ela não queria que o preconceito respingasse nela nem ser motivo de comentários dos amigos. Mas, com o tempo, os amigos foram aceitando, o namorado aceitou, e ela ficou mais calma. Ela não gosta, mas acabou aceitando, porque ela sabe que é importante pra mim”.

    Foi a partir do século XVII, com as novas teorias biológicas da sexualidade e a exigência jurídica de se definir a identidade de cada um, que os conceitos de homem e mulher que conhecemos hoje se consolidou. Ao longo dos séculos, o modelo tradicional da família ocidental cisgênera e heterossexual se constituiu historicamente, se cristalizando em relações sociais bem definidas e tendo como base a matriz binária reprodutora.

    As representações e os valores sociais do que é ser pai e ser mãe foram fundamentados num pensamento essencialista que acredita que o comportamento de homens e mulheres são definidos geneticamente. Mas, depois de Simone de Beauvoir ter revelado ao mundo que “não se nasce mulher, torna-se” e Foucault ter arrematado dizendo que não existe corpo pré-discursivo, a emergência de novos arranjos biológicos e parentais colocam em xeque as “verdades absolutas”, desconstruindo esse modelo maniqueísta de família fundada na cis-hetero-normatividade.

     
    Da esquerda para direita: Letícia Lanz com sua esposa Angela Autran Dourado, o casal argentino Alexis Taborna e Karen Bruselario e a travesti Márcia Rocha.

    Para fechar com chave de ouro, a psicanalista transexual Letícia Lanz, casada há 39 anos com a mesma mulher, com a qual tem um casal de filhos, me concedeu uma entrevista “no meio do corre-corre de cozinheira oficial da casa, no dia das mães”:

    “Que adolescente rebelde não ouviu da mãe a advertência-maldição de ‘quando você for mãe, a sua opinião vai ser outra’? Mãe é um dos papéis mais conservadores e reacionários que existem na sociedade. Uma vez ingressadas nesse papel, a maioria absoluta das mulheres ‘muda de opinião’. Mãe definitivamente não é um papel progressista, inovador, questionador. E as poucas mães que ainda tentam manter uma posição independente e crítica em relação a esse papel vez por outra estão mergulhadas em conflitos existenciais absolutamente insolúveis. Por isso mesmo, é tão difícil ser mãe de pessoas transgêneras, como também é difícil ser uma mãe transgênera”.

    Letícia sintetiza as dificuldades de ser mãe de pessoas transgêneras: “Nesse caso, o fato mais comum é a mãe ficar dividida entre amar e acolher @ filh@ transgêner@ do jeito que el@ é e ‘forçar a barra’, exercendo todas as pressões e técnicas de sedução que o cargo lhe disponibiliza no sentido de ‘recuperar’ @ filh@ transgêner@ para o convívio ‘normal’ dentro da sociedade”.

    E fala, a seguir, dos impasses de ser mãe transgênera: “Nesse caso, o fato também muito comum é a mãe transgênera esmerar-se para reproduzir, com requintes de perfeição, o modelo tradicional de mãe, aquela que busca produzir membros totalmente enquadrados aos dispositivos da sociedade patriarcal-cisgênera”.

    Letícia conclui trazendo à tona, entre outros, o tema da educação: “A resposta a tantos conflitos e contradições é consciência política e evolução social, coisas que só se conseguem, como todo mundo sabe, através de uma educação crítica, sólida e contínua de toda a população”.


    Leo Moreira Sá é ator, ativista transexual e um dos Jornalistas Livres. Mais textos e fotos em facebook.com/jornalistaslivres

     

     

  • Evento hacker tem espaço exclusivo para mulheres

    Evento hacker tem espaço exclusivo para mulheres

    Pela segunda vez, a CryptoRave, que acontece em 24 e 25 de abril, em São Paulo, terá oficina para mulheres

    “Isso não é um evento hacker, tem muitas mulheres!”, reclamou, no ano passado, um participante desavisado da CryptoRave. Sim e não, colega. A CryptoRave é um evento de 24 horas para difundir conceitos fundamentais e softwares básicos de criptografia, com atividades sobre segurança, criptografia, hacking, anonimato, privacidade e liberdade na internet, e que este ano será realizada no 24 e 25 de abril, no Centro Cultural São Paulo. É sim um evento hacker, aberto, gratuito e livre. E terá, se depender das mulheres hackers, uma participação feminina cada vez maior.

    A primeira pessoa a escrever um algoritmo, uma sequência de instruções a ser processada por uma máquina, foi uma mulher. Ada Lovelace, matemática, foi a programadora do engenho analítico de Charles Babbage, descrito pela primeira vez em 1837, no século XIX, e que é o bisavó do computador. Entetanto, ainda hoje, no século XXI, os ambientes de tecnologia, principalmente os que tratam de segurança da informação, são dominados por homens. Daí o estranhamento do moço, e a iniciativa das mulheres em criar, este ano, na CryptoRave, um espaço para que pessoas que sofrem com a desigualdade e discriminação de gênero se sintam incentivadas a participar. O nome do espaço é Ada. ☺

    A CryptoRave foi inspirada no movimento das CryptoParties e é o maior evento aberto e gratuito deste tipo no mundo e reúne hackers, ciberativistas e cypherpunks de diversas regiões e países em um único lugar. É organizada voluntariamente pelos coletivos Actantes, Saravá, Escola de Ativismo e O Teatro Mágico.

    Elisa Ximenes, participante do Coletivo Saravá e uma das organizadoras da CryptoRave, realizou na primeira edição do evento, no ano passado, uma oficina de criptografia para mulheres, da qual participaram cerca de 20 pessoas. “Mas por que tem que ter uma específica para mulheres? Elas sabem fazer as coisas, por que tem que ter uma oficina mais ‘facinha’?”, perguntou, na época, outro hacker. As oficinas para mulheres não são mais “facinhas”. São as mesmas oficinas, em um ambiente mais acolhedor. “Há mulheres que não se sentem confortáveis em ambientes masculinos. Se inibem, ficam quietas, não fazem perguntas, não expõem suas dúvidas”, observa Elisa. Há uma outra questão específica que incomoda quem sofre com discriminações de gênero: mulheres, trans e pessoas não binárias são as maiores vítimas de assédio e ameaças no meio digital.

    Em relação aos temas tratados na CriptoRave, a coleta de dados pessoais, para gerar publicidade “personalizada”, tem entre as mulheres um público amplo. Cabelos, vestidos, lugares para ir, corpos perfeitos, ideias de famílias e mulheres “ideais” são vendidas o tempo todo na internet, reforçando o padrão vigente de como as mulheres devem ser. Além de alimentar uma indústria baseada na coleta de dados pessoais, a invasão da privacidade, na internet, aumenta o faturamento da imprensa sensacionalista. Monica Lewinsky, a estagiária da Casa Branca que ficou famosa, em 1998, por ter se envolvido com o então presidente dos Estados Unidos, disse no TED Talk, no mês passado: “Essa invasão de privacidade é uma matéria-prima eficiente e desumanamente minerada, embrulhada e vendida para a obtenção de lucro. Um mercado emergiu onde a humilhação pública é um produto e a vergonha, uma indústria. Como se ganha esse dinheiro? Cliques. Quanto mais vergonha, mais cliques. Quanto mais cliques, mais dinheiro de publicidade.”

    Porque são as maiores vítimas do assédio, as mulheres precisam estar mais atentas ao expor sua privacidade online, explica Fernanda Shirakawa, uma das organizadoras do Espaço Ada. Além de um espaço de aprendizagem sobre como proteger a comunicação online, o encontro é uma oportunidade de trocar de experiências com as demais participantes. “A programação é diversa, vamos ter oficinas práticas de Criptografia e Segurança Digital, rodas de discussão sobre segurança e ciberativismo feminista e também espaços abertos para instalação de ferramentas de criptografia e sistemas operacionais como o Debian”, explica Fernanda. “Podem participar todas as pessoas, mesmo que nunca tenham usado criptografia e software livre antes.” E mesmo quem não souber o que é criptografia — uma forma de “embaralhar” as mensagens trocadas pela rede para que somente quem tem a “chave” para decifrá-las poder ler. E, assim, impedir que empresas ou governos tenha acesso à sua comunicação privada. No documentário Citizenfour, vencedor do Oscar deste ano, a primeira cena é exatamente uma aula de criptografia. Edward Snowden, analista de sistemas e ex-contratado da CIA e da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos, explica a Laura Poitras, a documentarista, por que ela tem que usar criptografia para receber as denúncias que ele estava prestes a fazer sobre o sistema de vigilância global do governo norte-americano.

    Há também uma outra dimensão política na coleta de dados por Estados e por empresas que, como denunciou Edward Snowden, além de usar os os dados de seus clientes para obter lucro, fornecem essas informações para governos. O resultado é que sob vigilância, sem direito à privacidade, não há como se organizar, se expressar, debater livremente temas políticos. Por isso, pessoas como Elisa e Fernanda participam da organização do evento, que pretende, com mesas redondas, palestras e oficinas, aprofundar e qualificar o debate sobre a defesa da privacidade na internet como questão fundamental à democracia.