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Categoria: fascismo

  • Basta de Bolsonaro! O Brasil não pode ser governado por um genocida confesso

    Basta de Bolsonaro! O Brasil não pode ser governado por um genocida confesso

    Por Dacio Malta*

     

    Com pouco mais de 500 dias de governo, Jair Bolsonaro já reúne condições mais do que suficientes para que sofra um processo de impeachment.

    O capitão foi eleito com 57 milhões de votos, sendo que oito milhões foram de órfãos de Alckmin, Amoedo, Meirelles, Marina e Álvaro Dias —todos arrependidos ou envergonhados. Mas ele não tem 57 milhões de votos. Ele teve. Hoje recebe o apoio de menos de 30% da população, se tanto.

    Bolsonaro não pode ser condenado pelo seu passado. Este é conhecido. Sempre disse que nada mudaria no país através do voto. Para ele, o golpe de 64 errou ao não matar 30 mil. Sempre foi a favor da tortura, e seus pronunciamentos eram racistas, misóginos e homofóbicos.

    E 2018 o absolveu.

    Não se deve culpá-lo pelo alinhamento aos Estados Unidos, mas sim ao presidente Donald Trump. Ele repetiu várias vezes que o idolatra. Nem a sua fanfarronice em favor do governo de Netanyahu —embora ele nada saiba sobre o Holocausto  , e muito menos de qualquer coisa que diga respeito ao povo judeu. Israel para ele é vestir uma túnica branca e molhar a cabeça no rio Jordão.

    Não se pode execrá-lo por seguir os “ensinamentos” do astrólogo, ideólogo e chantagista Olavo de Carvalho —responsável pela indicação de alguns dos mais desqualificados integrantes do governo, como os ministros da Educação e o das Relações Exteriores, além de figuras menores, mas não menos perigosas, como é o caso do presidente da Fundação Palmares.

    Ser pai de três milicianos foi o destino que traçou. Laranjinha, Carluxo e Bananinha são retrato fiel de um pai tosco e machista. Os ensinamentos que receberam foram mentir, prevaricar, conspirar e alimentar conflitos.

    Bolsonaro não deveria ser punido pelo ódio ao Exército, que o expulsou por tentativa da prática terrorista e quebra de disciplina.
    Muitos dos comandantes militares são irmãos, filhos ou netos de militares. A adoração pela Arma faz com que muitos procurem traçar o mesmo caminho. Bolsonaro, ao contrário, não encaminhou nenhum dos filhos para a carreira militar, pelo simples fato de que ele a odeia. Preferiu colocá-los na política, onde a imunidade parlamentar é uma porta escancarada para a impunidade, o caixa 2, as rachadinhas, a lavagem de dinheiro, o enriquecimento ilícito e outras  ilicitudes. O Exército serviu apenas para que ele chegasse à Câmara e lá permanecesse por 28 anos.

    Muitos militares estão nesse governo, mas pouquíssimos exercem o poder. Engana-se quem pensa que alguns o tutelam. Ele não respeita ninguém e, sempre que possível, humilha-os. Em dezembro de 2018, às vésperas de sua posse na presidência, exigiu do então comandante Eduardo Villas Bôas uma medalha por ato de bravura  —que teria praticado 40 anos antes. E o Exército, covardemente, se curvou a um reles capitão que foi expelido de suas fileiras.

    Bolsonaro não pode ser crucificado por não entender de economia, não ter programa de governo e ter em seu ministério pelos menos três corruptos conhecidos – os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente), Ônyx Lorenzoni (Cidadania) e Marcelo Álvaro Antônio (Turismo).

    O capitão não deve ser culpado pelo convite ao ex-juiz Sérgio Moro para o papel de super ministro, apesar de humilhá-lo a ponto de o Marreco ser obrigado a pedir demissão. Hoje, os dois duelam. E ambos devem estar certos.

    Seu comportamento fascista contra a imprensa —desrespeitando o trabalho dos repórteres e insuflando anunciantes visando a falência dos jornais— também não é o suficiente para derrubá-lo.

    Nem mesmo todo o conjunto da obra levaria ao impeachment.

    O que condena Bolsonaro —e isso faz com que se torne urgente o seu afastamento do poder— é a escancarada sabotagem diante da maior e mais devastadora crise sanitária vivida pelo país, que prevê a morte de mais de 100 mil brasileiros até meados de agosto.

    Em 100 dias de pandemia, Bolsonaro não teve uma única palavra de consolo aos familiares das vítimas, não visitou um único hospital, demitiu dois ministros da Saúde, entregou a pasta a um capacho treinado para obedecer a ordens —por mais estúpidas que elas sejam, obrigando-o a assinar protocolos condenáveis, portarias assassinas, nomeação de despreparados, o desprezo constante à ciência e, mais recentemente, a camuflagem do número de contagiados e de mortos, falseando estatísticas e duvidando da veracidade dos atestados de óbitos. Humilhando, assim, médicos e familiares dos mortos, como se fosse possível desenterrar quase 40 mil cadáveres e realizar novas autópsias.

    É sabido que as subnotificações aumentariam em cerca de 20% a quantidade de óbitos pelo Covid-19, mas o general paraquedista que está comandando o Ministério da Saúde trabalha para reduzir esses números atendendo aos anseios do coveiro da nação.

    A exposição e o discurso diário contra o isolamento, a luta pela abertura do comércio, volta às aulas, o chamamento do povo para passear nas ruas, a sabotagem explícita diante da pandemia e o descaso à ciência  —são razões mais do que suficientes para que as instituições dêem um basta já.

     

    *Dacio Malta trabalhou nos três principais jornais do Rio – O Globo, Jornal do Brasil e O Dia – e na revista Veja.

    Leia mais Dacio Malta em:

     

     

  • Pablo Capistrano: “Caso o fascismo se instale, a única reação possível é a violência”

    Pablo Capistrano: “Caso o fascismo se instale, a única reação possível é a violência”

    Por Rafael Duarte, da agência Saiba Mais
    Foto: Pam Santos

    O fantasma do fascismo voltou a rondar a política brasileira com o protagonismo do então deputado federal Jair Bolsonaro. Na fase pré-campanha eleitoral e durante a campanha presidencial de 2018, os termos “fascista” e “fascismo” entrou definitivamente para o cotidiano e também para o dicionário dos movimentos populares.

    A agência Saiba Mais conversou com o filósofo e professor Pablo Capistrano sobre o fascismo e o perfil fascista ou protofascista do governo Bolsonaro. Essa entrevista também está disponível em áudio no Saiba Mais Podcast pelas plataformas Anchor, Spoify, Google Podcasts, Breaker e Radio Public.

    Confira a entrevista:

    Agência Saiba Mais: Faz sentido a gente falar em fascismo nos dias de hoje no Brasil ?  

    Pablo Capistrano: Faz sentido sim falar sobre fascismo nos dias de hoje no Brasil, porque esses conceitos, esses rótulos políticos, eles não são rótulos estanques. A gente não pode imaginar que essas doutrinas políticas que surgiram no século 20 são elementos exclusivos de um único período da história. Elas podem se repetir na história a partir de outros contextos. Lógico que quando a gente fala em fascismo a gente não vai falar no mesmo tipo de fascismo que existiu na Itália ou no nazismo que existiu na Alemanha nos anos 30. Mas a gente pode entender que existe de certa maneira alguns elementos que estiveram presentes no fascismo daqueles anos que nós podemos encontrar na contemporaneidade. E não apenas no Brasil, a gente vê isso em outros espaços, em outros países. A gente vê isso, por exemplo, na Hungria, na Polônia e, de certa maneira, a gente pode ver isso até em fenômenos contemporâneos, como o trumpismo nos Estados Unidos. Então faz sentido, mas lógico que não é o mesmo fascismo. É um fascismo contextualizado numa outra época.

    A origem do fascismo está na Itália de Mussolini ? Ali está, vamos dizer assim, o ponto de partida do fascismo ? Ou dá pra identificar movimentos anteriores a esse período com esse mesmo perfil ?

    Na verdade é importante a gente entender o que significa a ideia de um movimento fascista. Antes de mais nada, o fascismo ele é um ensaio, digamos assim, uma espécie de simulação de uma revolução. Por que a gente diz simulação de uma revolução? Porque o fascismo é um movimento que procura dar a impressão de que está havendo uma grande transformação, uma grande mudança na sociedade ou que pretende produzir uma grande mudança na sociedade. Mas essa mudança não é uma mudança para construir algo novo, é uma mudança para retornar a algo que já existia antes e que foi em tese perdido. A gente entende o fascismo como uma espécie de contra-revolução ou uma utopia regressiva. Geralmente os movimentos fascistas têm conexões com esse aspecto conservador justamente porque o discurso por trás da ideia fascista é: houve uma mudança na sociedade e essa mudança produziu degeneração na sociedade, produziu desordem na sociedade, produziu corrupção na sociedade e nós precisamos então voltar ao passado pelo menos resgatar determinados valores passados para poder salvar a sociedade do caos ou do colapso. Então, na verdade, a gente diz que é uma simulação de revolução porque é uma mudança de tudo para manter tudo como está. Ou seja, é uma tentativa de transformar tudo para deixar tudo do mesmo jeito ou pelo menos para impedir que as coisas se transformam verdadeiramente.

    Nesse sentido, o Mussolini foi, digamos, o primeiro a vocalizar essa experiência. Mas se a gente for pensar na modernidade e a gente imaginar que a modernidade ela tem início no período renascentista ou, mais especificamente, para ser mais exato, um marco na reforma protestante, a gente pode entender que esse espírito contra-revolucionário, esse espírito de tentar criar uma utopia regressiva ou de bloquear transformações reais na sociedade, que iriam produzir mudanças estruturais, já está presente desde a contra-reforma católica. A gente pode entender que um protótipo dos fascismos conservadores foi a contra-reforma católica e as inquisições que surgiram a partir dessa contra-reforma. A gente pode encontrar um elemento que conecte isso. Agora é lógico que como movimento de massa organizada moderna a gente encontra lá na Itália e, posteriormente, na Espanha de Franco, Portugal Salazarista e na experiência nazista também.

    “O fascismo é uma mudança de tudo para manter tudo como está”

    O fascismo sofreu mutações ao longo dos anos ?

    É provável que a gente possa falar sobre o fascismo atual usando um termo que a gente utiliza para o liberalismo moderno, que seria contemporâneo, seria o neo. Então a gente pode falar sobre neofascismo da mesma maneira como a gente pode falar sobre neoliberalismo, que é uma atualização, uma retomada de certos valores e de certas estruturas de pensamento que estão presente nessa doutrina política anterior.

    Assim, se você imaginar que depois da segunda guerra mundial ficou muito difícil nas democracias ocidentais, pelo menos, ou mesmo no bloco soviético, no bloco socialista,  defender abertamente valores fascistas ou manter uma postura claramente fascista, por causa da experiência da segunda guerra mundial, a gente pode perceber que os grupos conservadores de extrema-direita no mundo inteiro eles começaram a buscar uma nova abordagem para justamente divulgar aqueles velhos valores. Eles não podiam mais utilizar os mesmos termos de Hitler, os mesmos termos do Mussolini, os mesmos termos do racismo tradicional daquela daquela época, do década de 30.

    Eles começaram a utilizar uma nova retórica e foram criando estratégias de abordagem, utilizando recursos midiáticos contemporâneos, para divulgar os mesmos conteúdos de pensamento trajados com outras vestes. A gente pode dizer que houve uma mudança na forma de apresentação do fascismo, mas que os conteúdos políticos fundamentais, que são os conteúdos filosóficos do fascismo são os mesmos: a ideia de uma degeneração, a ideia de uma corrupção generalizada , a ideia da necessidade de uma ruptura violenta, a ideia de um retorno a uma era de ouro do passado, tudo isso continua nos movimentos atuais. Seus símbolos são diferentes, a linguagem tem uma roupagem nova, mas o conteúdo que está encoberto por essa linguagem ainda é o old school.

    O Brasil já namorou o fascismo na década de 1930, quando o escritor e jornalista Plínio Salgado funda o integralismo. Aliás, movimento que teve a participação de notáveis, entre eles o nosso Luís da Câmara Cascudo. O fascismo e o integralismo eram a mesma coisa ? Cascudo era um fascista ? Qual era a diferença ali ?

    O que acontece com o integralismo é mais ou menos o que aconteceu com outros movimentos de extrema-direita em outros países. Depois da segunda guerra mundial foi necessário, por parte daqueles que participaram do movimento, se afastar da conexão que existia nos anos 30 e anos anos 20 com os movimentos fascistas e os movimentos nazistas na Europa.

    Então você tem muitos intelectuais que participaram do movimento integralista naquela época, que depois da guerra se esforçaram para desacoplar o pensamento deles da Inspiração fascista. Mas quando você vai para os textos da época, quando você vai observar os textos escritos no período, você percebe nitidamente a conexão entre o integralismo brasileiro e o fascismo europeu.

    O professor Luiz Gonzaga Cortez, por exemplo, no livro A pequena história do Integralismo no RN, cita um discurso de Francisco Veras no Teatro Carlos Gomes, hoje teatro Alberto Maranhão, no dia 14 de julho de 1933 numa solenidade de instalação da ação integralista brasileira onde ele diz “na impossibilidade de conseguirmos por hora o estado Cristão, aceitamos o estado integral. Forte, nacionalista intervencionista, antiliberal, anti-socialista, qual idealizou Plínio Salgado. Não tenhamos medo das palavras, o integralismo é o fascismo brasileiro”. Então ficava muito claro na época essa conexão, que foi com o passar do tempo meio que diluída, até porque muitos representantes honoráveis da cultura e da política brasileira participaram do movimento. Foi necessário dar uma roupagem mais aceitável ao integralismo.

    “A gente pode dizer que houve uma mudança na forma de apresentação do fascismo, mas que os conteúdos políticos fundamentais são os mesmos”

    Há uma banalização do termo hoje ? É comum a gente ouvir a expressão: “ah, mas aquele seo tiozão fascista no grupo de zap”. Na maioria das vezes é só um cara conservador ou geralmente há indícios de fascismo mesmo no discurso dele ?

    Realmente acontece um certo abuso, do ponto de vista de um rigor da filosofia política ou da Ciência Política, usar o termo fascista como as pessoas utilizam na linguagem cotidiana é meio que uma espécie de ampliação do sentido. Geralmente as pessoas usam o termo como um sinônimo de autoritário. Alguém que é autoritário é considerado fascista. Mas também a gente não pode ficar exigindo das pessoas uma exatidão total do uso dos termos na linguagem no debate cotidiano. Se a gente fosse fazer isso com o fascismo, a gente teria que fazer isso com a palavra alma, a palavra mente, a palavra felicidade, a palavra tempo. A gente ia ter o tempo inteiro que estar transformando o discurso público numa espécie de debate filosófico, que talvez não fosse algo muito viável.

    Agora isso também acontece com o termo comunista. É interessante a gente ver, do mesmo jeito que você usa fascismo como sinônimo de autoritário, você usa comunista como sinônimo de progressista ou como sinônimo de alguém defende direitos e que tem um sentido de solidariedade, ou seja lá o que for. O que de certa maneira é um mau uso também do termo, do ponto de vista técnico.

    Como identificar o fascismo e um fascista ? 

    Existem basicamente algumas características que são importantes para a gente identificar um movimento fascista, digamos assim “raiz”. O primeiro é o apelo à ideia de nação. E nesse sentido o nacionalismo é um elemento básico de uma ideologia fascista porque é um elemento que estabelece a ideia de que todos somos membros de uma única nação por isso não há possibilidade de haver divergências ou grupos internos discordantes porque teremos que ter uma unidade de pensamento que está representado pelos símbolos nacionais. Qualquer tipo de discrepância, discordância, dissidência é visto como algo que corrói, que mina, que corrompe, que degenera a nação. Então o nacionalismo é uma característica. No caso do nazismo, esse nacionalismo é acoplado à ideia de raça, que aí dá um conteúdo mais especificamente nazista.

    O outro é o apelo à violência direta de grupos paramilitares. Os movimentos fascistas eles têm essa característica de apelar para o armamento de grupos fora das instituições para poder coagir diretamente a população através da violência física. Você tem isso com os camisas negras italianos, você tem isso com a SA na Alemanha. E você tem isso hoje com os grupos de extrema-direita que se armam e que querem ter uma ação direta de coação da população através do uso da violência.

    “O nacionalismo é um elemento básico de uma ideologia fascista”

    Outro elemento é a identificação de um grupo, que é um grupo interno dentro da nação que precisa ser exterminado. No caso do nazismo, isso fica muito claro com a ideia dos Judeus. Os Judeus seriam então um elemento que entra na nação, rompe a nação, degenera a nação e você precisa isolar esse grupo, eliminar esse grupo para poder manter a nação saudável. E esse grupo pode ser qualquer coisa, pode ser comunistas, esquerdistas petistas, feministas. Qualquer grupo que possa ser identificado, separado do corpo e eliminado do processo político, inclusive com a morte das pessoas.

    E, por fim, o elemento, que também é clássico, que é a fidelidade à figura de um líder. Então você precisa ter um líder carismático, que consiga se comunicar diretamente com as pessoas, através de uma linguagem de poder, e que de certa maneira age como uma espécie de bússola para o movimento. Ele  é quem dá o norte, todo movimento segue aquele líder. Então têm essas quatro características clássicas que você pode identificar inclusive hoje nos movimentos de extrema-direita espalhados pelo planeta.

    Como você avalia esses movimento antifascistas no Brasil, que estão na polícia, um setor majoritariamente conservador, agora nas torcidas organizadas de futebol e já se espalham por várias áreas ? 

    No caso dos movimentos anti-fascistas eles têm um papel muito importante de servir como uma espécie de contraponto a esse discurso doutrinário, ideológico e autoritário que toma conta de setores da sociedade brasileira e que parece ter tido uma espécie de penetração muito forte no campo das polícias, tanto da Polícia Militar quanto da Polícia Civil. Do ponto de vista das torcidas, eu vejo muito curiosamente o fato de que nós temos parece que uma passagem da disputa política para o campo da linguagem do futebol.

    De um lado você tem os grupos bolsonaristas de base fascista que se apropriaram dos símbolos ligados à Seleção Brasileira, camisa da CBF, a própria bandeira do Brasil. Do outro lado, a gente vê surgindo no campo dos clubes um espaço de resistência a esse movimento autoritário, dentro desses segmentos das torcidas que se posicionam como torcidas antifascistas.

    Eu acho que é uma polarização interessante para ser estudada do ponto de vista até antropológico. Como é que o futebol passa a ser o palco onde essas discussões políticas ganham eco no momento assim de pandemia, onde as pessoas estão isoladas, trancadas em casa. Ganha-se a rua e os símbolos que se utilizam para poder expressar essas dimensões políticas são símbolos ligados à linguagem do futebol. Até porque o futebol sempre teve um papel muito interessante na sociedade brasileira, que foi o papel de servir como uma espécie de mediador de linguagem. Costumava dizer que o futebol era o único discurso que permeava todas as classes sociais, porque do banqueiro, passando pelo juiz federal, pelo porteiro do prédio, pela empregada, pela enfermeira, todas as pessoas, de todos os setores, de todas as áreas, discutem futebol. O futebol era como uma espécie de argamassa de linguagem, que ultrapassava as classes.  Então você poderia utilizar em qualquer bate-papo o resultado da rodada quando você queria entabular uma conversa com alguém no Brasil. Hoje, a gente já vê que a polarização política chegou no nível tal que talvez esteja comprometendo até mesmo esse espaço de integração nacional que é a bola. A ver o que aconteceu com a camisa da seleção brasileira, nem todo mundo hoje em dia quer vestir a camisa verde-amarela da CBF com medo de ser identificado como um bolsonarista.

    Os bolsonaristas usam o fato de Bolsonaro ter sido eleito nas urnas para reafirmar o perfil democrático do governo. Uma vitória eleitoral basta para chegar a essa conclusão ? 

    Olha, o fato de alguém ter sido eleito não é garantia de que haja um governo democrático. Porque a democracia não se resume apenas à eleição. A democracia do ponto de vista moderno, que é uma construção de teóricos, filósofos, pensadores liberais, ela implica num conjunto de outros elementos, como por exemplo a separação de poderes, a fidelidade a normas constitucionais, o respeito a direitos fundamentais, a ideia de que ninguém, nem o presidente, está acima da Lei, da Constituição. Então você tem um arcabouço de outros elementos para configurar uma ordem como sendo democrática. A simples eleição não é um elemento que caracteriza a essência da Democracia. Ela é um elemento importante, mas não é o único.

    O fato de bolsonaro ter sido eleito não é condição, nem necessária nem suficiente, para garantia de uma ordem democrática. Basta lembrar que o Hitler, o Partido Nazista,i chegou ao poder na Alemanha através de uma eleição, uma eleição democrática.

    “A simples eleição não é um elemento que caracteriza a essência da Democracia”

    O governo Bolsonaro tem o perfil fascista ? 

    Eu acho que na verdade o governo que Bolsonaro quer fazer tem um perfil fascista. Por todas as manifestações, por toda a linguagem, por todo o discurso, por toda a atuação de Bolsonaro nesse um ano e meio que ele está no poder, mostra que ele gostaria muito, que ele tem como principal objetivo criar um governo fascista. O problema é que ele não tá conseguindo isso ainda. Porque a gente tem as instituições de certa maneira tentando criar contenções para o exercício do poder nos moldes do que o movimento bolsonarista gostaria de ter. A gente pode dizer que ele é um governo protofascista. Ele está em vias de se tornar um governo fascista. Esperamos que o bolsonarismo não consiga isso.

    Sua colega de filosofia Márcia Tiburi lançou em 2015 o livro “Como conversar com um fascista”. Para algumas pessoas, esse diálogo é impossível. E pra você ?  

    Se a gente pensa o diálogo como uma forma de afetividade, como imaginava o velho Platão lá na antiguidade grega, e que é uma maneira de você suspender provisoriamente a sua verdade para estar aberto à verdade do outro, para entender o discurso do outro, para poder deixar que o discurso do outro possa interferir no seu próprio discurso, se isso é diálogo, se o diálogo está concentrado nesse tipo de experiência, de compartilhamento de valores e de verdades, a Marcia Tiburi tem razão a estabelecer a ideia de que não é possível dialogar com um fascista. Porque o discurso fascista é antítese desse tipo de diálogo. Ele é justamente o elemento contrário a esse tipo de diálogo que é a ideia de que você precisa suspender, impedir não o seu próprio discurso, sua própria verdade, mas o discurso do outro, a verdade do outro, o valor do outro. Porque o outro é sempre visto pelo fascista como uma ameaça potencial. Tudo aquilo que não é igual a mim me ameaça e eu preciso então impedir que esse diferente possa se expressar. Então não há possibilidade de dialogar com um fascista raiz. O que a gente pode fazer é dialogar com pessoas que têm concepções mais abertas de sociedade, por isso que é tão importante evitar que o fascismo se instale. Porque na hora que o fascismo se torna hegemônico na sociedade, elimina todas as possibilidades de diálogo. E aí a única forma possível de reagir ao fascismo é com a violência, porque a própria possibilidade de diálogo fica contaminada na sociedade. Por isso que aquele meme que circula pela internet que diz: diálogo com um fascista é voadora no peito até que a suástica vire catavento, ele é uma espécie de  meme profético. Caso o fascismo se instale, a única possibilidade de reação é uma reação violenta. Por isso que é tão importante que a gente impeça que essas condições de diálogo sejam destruídas. A questão fundamental é evitar que o fascismo se instale, porque depois que ele se instala aí só com fuzil.

    “Não há possibilidade de dialogar com um fascista raiz”

     

  • As bandeirinhas coloridas do junho antifascista

    As bandeirinhas coloridas do junho antifascista

    O antifascismo passa por um processo de hellokittyzação. De luta vinculada a campos políticos bem delineados com projetos políticos bem definidos, ela se transformou numa luta do bem contra o mal no último ciclo eleitoral, e hoje mobiliza de maconheiros a apreciadores de café, passando por ex-economista do Banco Mundial e influenciadores digitais.

    Pelo menos os apreciadores de café não trocaram as cores. Podemos dizer que eles bebem tanto do anarquismo quanto do comunismo?

    Por “hellokittyzação” eu quero dizer essa massificação despolitizada em que a estética se basta enquanto significado. A simbologia perde o vínculo com o objeto que pretende representar, e nesse caso temos uma legião de antifascistas sem um antifascismo, sem um movimento político de oposição ao movimento político que é o fascismo. Você já reparou que a Hello Kitty é uma gata muito estranha, que não tem boca? Ou já leu que na verdade a Hello Kitty não é oficialmente uma gata, mas uma menina? Alguém se importa? As pessoas usam na roupa, compram chinelo, tem carimbo pro caderno. As pessoas se identificam com ela. Tanto faz o que ela é. Ela é muito bonitinha e vende bem.

    É uma descaracterização disfarçada de popularização. Apesar da famosa foto do Che feita por Alberto Korda ter virado estampa de camiseta na C&A, as pessoas pelo menos reconhecem o Che pela cara e compreendem vagamente que ele era um revolucionário. Já a Frida Kahlo deixa de ser a artista comunista militante e vira aquela moça de flor no cabelo, símbolo de não se sabe bem o que.

    Mesmo com orelhinha de Mickey, o Che ainda é o Che
    Não sei quem cometeu esse crime, mas depois da revolução certamente receberia uma multinha por propaganda anticomunista
    Compartilho com desgosto a FridaMoji, cometida por um designer gráfico estadunidense, o Sam Cantor
    Tem também a Fridinha Kawaii

    Antifascistas sem antifascismo

    Comentei sobre esses dois casos pra abrir uma discussão sobre essa nossa memetização dos símbolos de luta: nada contra “viralizar” as coisas, muito pelo contrário. Política tem é que ser popular. A gente faz militância pra popularizar as ideias que a gente defende, porque acreditamos que são as melhores e que se colocadas em prática vai todo mundo viver melhor. Quer dizer, pra militância de esquerda é todo mundo. Militância de direita defende outra coisa.

    A camiseta do Che vendendo em shopping center é resultado de uma campanha de despolitização em torno da figura dele e também ajuda a avançar esse processo, neutralizando a sua imagem enquanto um símbolo de luta. Da mesma forma, a apropriação das bandeirinhas antifascistas por pessoas que não compreendem o que é fascismo (e por consequência não têm como se opor a ele) sinaliza uma onda de antifascistas sem antifascismo, com uma multidão que não é necessariamente antifascista, apenas “se identifica como”.

    Veja bem, não estou criticando pessoas que expressam seu apoio ao antifascismo mas não se engajam na luta de formas mais orgânicas. Nem todo mundo vai ser militante, e uma massa de pessoas expressando o apoio a uma causa é um bom sinal de que a disputa ideológica está indo bem para tal causa. O que estou dizendo é que tem muita gente que está expressando apoio a qualquer coisa que por coincidência tem o mesmo nome do movimento histórico de combate ao fascismo que teve ampla participação de comunistas e anarquistas.

    “Ah, mas as pessoas tão só se apropriando do símbolo de luta e transformando no delas”

    É esse o problema. A mudança das cores é uma customização não só estética, mas simbólica. Ela sinaliza que é possível customizar o antifascismo com a sua ideologia preferida, e que ela pode ser nacionalista, de direita, conservadora, isentona, desvinculada da classe trabalhadora ou o que você preferir.

    Outras customizações que tão rolando

    Estou acompanhando 3 narrativas principais circulando sobre o fascismo (percebam que eu disse 3 narrativas e não 3 posições):

    1) Fascistas e simpatizantes: Temos grupos como o famoso 300 do Brasil de Sara Winter, além de outros grupelhos neonazistas (ligados ou não ao atual presidente) e alguns grupos da base de apoio do presidente Bolsonaro que têm cara de nazifascistas, cheiro de nazifascistas, mas não se identificam publicamente como neonazistas ou fascistas. A ideologia é fascista, com elementos de ultra nacionalismo, militarismo, anticomunismo  e tradicionalismo, e a prática política é fascista, com alguns grupos – como os próprios 300 – se constituindo na forma de grupos paramilitares/milícias armadas. Mas eles não se dizem fascistas porque sua ideologia ainda não tem o apoio que eles precisam. Estão em um momento inicial de trabalho de base e disputa ideológica que seria comprometido caso se mostrassem abertamente fascistas.

    Peguei aqui esse comentário aleatório para ilustrar por falta de fonte melhor. Mas o discurso é o mesmo. A tática aqui é se defender não do conteúdo da acusação, mas da acusação em si, se vitimizando.

    Eles dizem que não são fascistas, que fascismo é crime e que todo extremismo deveria ser (como por exemplo o feminismo). Dizem que são antifascistas e anticomunistas. Daí vêm propostas como as defendidas pelos Bolsonaro como essa ideia legislativa aqui: “Tornar apologia ao comunismo, nazismo e fascismo um crime.” Nessa narrativa também cabe o discurso “anti antifa” do Trump, que diz que tratará “o grupo” como terrorista por meio de um tweet compartilhado pelo Bolsonaro.

    2) É o felipenetismo: entra aqui um elemento despolitizador que defende que antifascismo não é uma posição política, e sim uma posição moral que todos devemos defender. A confusão aqui é que parte dessa afirmação é verdade: antifascismo é a única posição moralmente defensável (partindo de uma moral progressista e libertadora). Mas ela é a única posição política moralmente defensável. Antifascismo é política, e afirmar algo diferente é por coerência dizer que o próprio fascismo não é política. Vou jogar aqui a definição que aparece no próprio Google pra ninguém dizer que eu tô buscando significados obscuros ou inacessíveis:

    Quando alguém diz que fascismo não é política só pode ser ignorância ou má fé. No caso da ignorância à la Felipe Neto, é dito que a oposição ao fascismo não é política porque as pessoas associam política a partidos, e essa seria uma forma de aumentar o apoio ao antifascismo entre aquelas pessoas que rejeitam a política representativa e os partidos políticos no geral. Não funciona, e vou argumentar por que: quando dizemos que o fascismo não é política, ele é apenas “o mal” e que precisa ser combatido, qual a proposta para combater efetivamente? Usar apenas a força da vontade expressa a partir de memes de bandeirinhas coloridas?

    “A discussão, hoje, não é mais política. É sobre liberdade e opressão. Quando o presidente manda um jornalista ‘calar a boca’, não é mais um lado político. A gente não pode validar o fascismo” – Felipe Neto tentou explicar no Roda Viva que antifascismo não é uma posição política. Em defesa dele, o influencer tem também falado de política abertamente e pode ser uma boa influência para jovens no próximo ciclo eleitoral. Mas ainda precisa dar aquela afinadinha na estratégia, Felipe!

    3) O terceiro grupo aqui é a esquerda de fato, que leva adiante a militância antifascista desde a época em que o fascismo e o nazismo eram regimes políticos. E isso é importante: dentre essa oposição política significou trabalho militante organizado para destruir o fascismo e o nazismo. E quem estava nessas frentes de luta em grande parte eram anarquistas e comunistas – daí vêm esse símbolo antifascista que conhecemos, e por isso as bandeiras dentro dele são a preta, simbolizando o anarquismo, e a vermelha, simbolizando o comunismo. Manter esse legado vivo tem uma importância que não é só histórica, mas também política: não se combate uma ideologia sem outra pra por no lugar. Precisamos de um projeto de sociedade para contrapor ao fascismo. A esquerda defende o socialismo.

    É verdade que não é preciso ser anarquista nem comunista para ser antifascista. Mas não tem como apoiar um movimento e se opor a quem o constrói e à ideologia de quem o constrói. Quem propôs e se esforçou para construir uma frente ampla de combate ao fascismo foram esses anarquistas e comunistas, que compreendiam que é necessário construir alguns consensos sobre o que é e o que não é o fascismo (e por consequência o antifascismo), construir uma plataforma de oposição e partir para a ação. E que até hoje anarquistas e comunistas continuam engajados na luta de expor e combater o nazifascismo onde quer que ele apareça, construindo alianças com outros setores progressistas e disputando politicamente a sociedade.

    Não temos como combater o fascismo sem fazer oposição política com nossos movimentos disputando as narrativas com outras ideologias, rejeitando não só o fascismo como algo abstrato, mas sua economia (que é capitalista e imperialista), sua noção de direito (que não considera os direitos humanos de outros povos, imigrantes, mulheres, homossexuais, pessoas com deficiência, judeus) e tudo mais que constitui o fascismo. E não temos como combater o fascismo quando ocupa espaço no Estado – com deputados e até o presidente sinalizando simpatia a ele – sem nossos partidos e candidatos de oposição. Mesmo que o sistema político esteja irreparavelmente corrompido e que sejamos críticos a ele.

    Não vou entrar aqui nos motivos para isso porque seria um outro texto gigante, mas vou me limitar a dizer que a defesa do capitalismo e mesmo a indiferença a ele são incompatíveis ao combate do fascismo por que não apresentam outra proposta, e por que o capitalismo, ainda que não seja ele mesmo fascista, também não se opõe a ele necessariamente. E que o fascismo e o nazismo não teriam surgido sem interesses capitalistas, e que valores como o expansionismo, o militarismo e o imperialismo, partes fundamentais do nazifascismo, também só existem num contexto de capitalismo global. E vou deixar o lembrete de que tanto o nazifascismo quanto outros regimes autoritários (como a ditadura militar no Brasil!) foram implantados também com a justificativa de combater o comunismo.

    Aqui é que entra a bagunça colorida que estamos vendo nesses últimos dias: quem olha sem atenção vê bandeira de tanta cor que pode achar que é alguma comemoração junina virtual que as pessoas estão fazendo por causa da quarentena. De anarquismo e comunismo mesmo não se vê quase nada. E tem organizações de esquerda entrando nesse arco-íris do bem contra o mal sem prestar atenção nesse processo de despolitização do antifascismo. Aqui vão alguns lastimáveis:

    O amarelo é a cor dos anarcocapitalistas (bandeira da direita, em todos os sentidos, que de anarquistas não têm nada e são de extrema direita, compartilhando muitos valores justamente com os grupos que queremos combater.
    Dá pra tentar entender qual a ideia aqui, mas qual o sentido de um antifascismo nacionalista que troca a bandeira vermelha pela verde e amarela? Só mesmo se for a galera do primeiro grupo.
    Essas cores aí são do anarcoprimitivismo – aquela galera que defende desindustrialização e o fim da energia elétrica. Tem também um grupo de “terceira posição” (grupo 1) que usa essas cores e a combinação também agradou aos integralistas brasileiros. Infelizmente a Frente Brasil Popular, que também usa a cor verde na sua identidade visual, mirou no Brasil e acertou o tom da Nova Resistência. Verde no Brasil também é a cor do Partido Socialista Cristão.
    Por mais que o movimento LGBT tenha se engajado historicamente no movimento antifascista, até por que homossexuais foram perseguidos pelo nazismo e pelo fascismo, eu questiono qual a ética por trás de priorizar a autoafirmação a ponto de preferir as cores da sua autoidentificação às do movimento a que quer se vincular. Parece que importa mesmo é a sua identidade, e não os valores do movimento que você diz fazer parte.
    O junho antifascista exagerou nas cores das bandeirinhas

    Na minha opinião, o grupo 2 acaba sem querer ajudando o grupo 1. O grupo 1 aposta na despolitização, tanto porque ela abre caminho para vincular essa luta contra o mal ao anticomunismo, ao dizer que ambos são extremismos e portanto errados, quanto porque ela enfraquece iniciativas efetivas de combate ao fascismo – que podem ir desde uma frente eleitoral que apresente boas alternativas até grupos de autodefesa para desmobilizar na marra atos fascistas e grupos armados de extrema-direita. E quando organizações da própria esquerda entram na onda do meme e tentam “viralizar” sem prestar atenção na mensagem, acabam contribuindo com o ruído que é o grupo 2 e fortalecendo a narrativa de que apagar o comunismo e o anarquismo da luta antifascista não traz prejuízo nenhum. Que é exatamente o que o grupo 1 quer agora. Depois eles mudam a narrativa, mas até lá as bandeiras vermelhas e pretas vão sumindo aos poucos. E a gente sabe quem sai perdendo disso aí.

    Pra não dizer que só critiquei ou que eu sou contra adaptações e atualizações dos símbolos, vou terminar com alguns exemplos de uma galera que acertou o tom:

    Essas sim são apropriações e adaptações que não descaracterizam a simbologia e nem se desvinculam da simbologia antifascista. Alguns tomaram mais liberdades que outros, mas todas são exemplo de que adaptações são bem vindas quando elas não descaracterizam a mensagem. São pessoas que tomam tanto o símbolo quanto a própria luta como delas, em vez de trocar o símbolo e alterar a luta pra caber na identidade política que elas já têm.

    *O post foi editado para corrigir o símbolo do Palmeiras Antifascista. Na versão original a versão que aparecia era na verdade o símbolo “anti antifascista” que também está circulando pela internet e aparece quando buscamos “palmeiras antifascista”.

  • Os camisas negras de Bolsonaro

    Os camisas negras de Bolsonaro

    Mais de 1 milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens foram submetidos ao assassinato e à tortura de forma programada pelos nazistas com o objetivo de exterminar judeus e outras minorias. Nos primórdios da Itália fascista, os camisas negras – milícias paramilitares de Mussolini – espancavam grevistas, intelectuais, integrantes das ligas camponesas, homossexuais, judeus. Quando a ditadura fascista se estabeleceu, dez anos antes da nazista, Mussolini impôs seu partido como único, instaurou a censura e criou um tribunal para julgar crimes de segurança nacional; sua polícia secreta torturou e matou milhares de pessoas. Em 1938, Mussolini deportou 7 mil judeus para os campos de concentração nazista. Sua aliança com Hitler na 2ª Guerra matou mais de 400 mil italianos.

    Perdoem-me relembrar fatos tão conhecidos, ao alcance de qualquer estudante, mas parece necessário falar do óbvio quando ser antifascista se tornou sinônimo de terrorista para Jair Bolsonaro. Os direitos universais à vida, à liberdade, à democracia, à integridade física, à livre expressão, conceitos antifascistas por definição, pareciam consenso entre nós, mas isso se rompeu com a eleição de Bolsonaro. O desprezo por esses valores agora se explicita em manifestações, abraçadas pelo presidente, que vão de faixas pelo AI-5 – o nosso ato fascista – ao cortejo funesto das tochas e seus símbolos totalitários, aqueles que aprendemos com a história a repudiar. Jornalistas espancados pelos atuais “camisas negras” estão entre as cenas dessa trajetória.

    A patética lista que circulou depois que o deputado estadual Douglas Garcia(PSL-SP) pediu que seus seguidores no Twitter denunciassem antifascistas mostra que o risco é mais do que simbólico. Depois do selo para proteger racistas criado pela Fundação Palmares, e das barbaridades ditas pelo seu presidente em um momento em que o mundo se manifesta contra o racismo, e que lhe valeram uma investigação da PGR, essa talvez seja a maior inversão de valores promovida pelos bolsonaristas até aqui.

    A ameaça contida na fala presidencial e na iniciativa do deputado, que supera a lista macartista pois não persegue apenas os comunistas, tem o objetivo óbvio de assustar os manifestantes contra o governo e de açular as milícias contra supostos militantes antifas, dos quais foram divulgados nome, foto, endereço e local de trabalho.

    É a junção dos “camisas negras” com a Polícia Militar, que já se mostrou favorável aos bolsonaristas contra os manifestantes pela democracia no domingo passado em São Paulo e no Rio de Janeiro. E que vem praticando o genocídio contra negros impunemente no país desde sua criação, na ditadura militar, muitas vezes com a cumplicidade da Justiça, igualmente racista.

    Como disse Mirtes Renata, a mãe de Miguel, o menino negro de 5 anos que foi abandonado no elevador pela patroa branca de sua mãe, mulher de um prefeito, liberada depois de pagar fiança de R$ 20 mil reais, “se fosse eu, a essa hora já estava lá no Bom Pastor [Colônia penal feminina em Pernambuco] apanhando das presas por ter sido irresponsável com uma criança”. Irresponsável. Note a generosidade de Mirtes com quem facilitou a queda de seu filho do 9º andar.

    Neste próximo domingo, os antifas vão pras ruas. Espero não ouvir à noite, na TV, que a culpa da violência, que está prestes a acontecer novamente, é dos que resistem como podem ao autoritarismo violento. Quem quer armar seus militantes, e politizar forças de segurança pública, está no Palácio do Planalto. É ele quem precisa desembarcar. De preferência de uma forma mais pacífica do que planejam os fascistas para mantê-lo no poder.

    Por: Marina Amaral, codiretora da Agência Pública

  • A quem interessa ser profeta do caos?

    A quem interessa ser profeta do caos?

    Por Jacqueline Muniz, Ana Paula Miranda e Rosiane Rodrigues
    Imagens de autoria dos Jornalistas Livres, capturadas em protestos, no último final de semana, em São Paulo e na França
    A advertência de não realização de manifestações políticas, fundada no medo e na promoção do pânico social, é um atentado à democracia, uma forma de extorsão de poderes, de dirigismo monopolista das pautas plurais e das reivindicações divergentes de sujeitos que são diversos em cor, classe, renda, gênero, orientação sexual, instrução, etc. A advertência sob a forma de ameaça produz paralisia decisória de lideranças, imobilismo social e lugares resignados de fala, que seguem aprisionados nas redes sociais, na política emoticon do “estamos juntos” até o próximo bloqueio, diante da comunhão de princípios com diferença de opiniões: “você deve ir ao shopping, mas não a passeata”.
    A fabricação de conjecturas apocalípticas e suposições catastróficas com roupagem analítica é um recurso de persuasão de via única, impositiva, que aponta para um sentido hierárquico e, até mesmo autoritário, de quem se acha portador de uma verdade ‘revelada’ sobre os atos políticos e de uma razão superior sobre os fatos da política. A fala profética é uma fala moralista, ilusionista, que, por meio do uso da fé e do afeto, inocula nas pessoas uma culpa antecipada por suas escolhas para desqualificar seus arbítrios e fazê-las rebanho dependente de um guia despachante do juízo final. Este projeto de poder necessita fazer crer que o pessimismo visionário e proselitista é mais real que a própria realidade vivida e que deve fazer parte do cálculo das ovelhas boas e más, dos aliados e opositores de ocasião. A fala profética serve aos senhores da paz, da guerra e do mercado, sem distinção. É um jogo ardiloso do ganha ou ganha em qualquer circunstância ou resultado obtido.
    A quem interessa ser o profeta do caos? Ao próprio profeta que, inventor do jogo do quanto pior melhor, sacrifica seus seguidores feito gado, gasta a tinta das representações com seu próprio manifesto e promove a tensão entre espadas para se manter como o grande  conselheiro conciliador.  
    Os profetas do caos são como uma fênix que ressurgem da crise que criam. Eles se apresentam como proprietários das representações políticas, à direita ou à esquerda, em cima e embaixo. Eles se oferecem como mediadores dos conflitos que provocaram, como tradutores intérpretes na Torre de Babel que criaram entre nós.  A ameaça (do caos, da morte e do cerceamento da liberdade) não serve como advertência. Os profetas do caos produzem o medo, moeda de troca fundamental para a construção de milícias, para vender os seus remédios (previsíveis, amargos e inócuos). Para eles, não importa se os doentes morrem ou vivem, o que importa é que, doentes ou não, consumam suas previsões do passado.
    É notório que as polícias no Brasil têm tradição em policiar eficazmente o entretenimento lucrativo dos blocos de carnaval, shows e aglomerações em campeonatos de futebol. Nesses casos, sua atuação se dá na manutenção do status quo dos públicos, constituída a partir das atividades de contenção e dispersão das multidões. Já para o controle de pessoas que ocupam o espaço público sob a forma de protestos de todos os matizes políticos, apesar de ser um fenômeno relativamente recente e não haver protocolos policiais escritos e validados, sabemos que esses eventos se tornam encenações, nas quais janelas são abertas para oportunistas de todas as ordens, para acertos de contas da polícia dos bens com a polícia do bem, incluindo os ‘caroneiros’ de manifestação que comparecem por motivos completamente alheios às pautas dos protestos.
    Nesses espetáculos públicos que encenam os jogos da política aprendemos coisas muito básicas, sejamos nós manifestantes ou espectadores: sempre haverá a presença de agentes infiltrados (que ajudam na contenção) e de provocadores, para providenciar a dispersão. A infiltração de agentes de inteligência por dentro dos movimentos sociais remonta uma antiga estratégia estadunidense da década de 1960. Ou seja, muito antes do surgimento dos Black Bloc. Nos últimos 60 anos, acumulou-se um aprendizado sobre o uso do espaço
    público relativo ao círculo do protesto (aglomeração, deslocamento,  ato de encerramento e dispersão) que permite que os movimentos saibam lidar com esses elementos internos. 
    Neste mesmo período aprendemos, também, que o que torna legítimo um protesto não é a quantidade de indivíduos reunidos em um território específico por um período de tempo determinado, mas os modos de ocupação do espaço público e a construção coletiva de uma agenda política que os mobilize e tenha impacto na sociedade. A produção de dossiês intimidatórios, com a participação de agentes públicos, também não é novidade. Os constrangimentos da exposição de dados acabam por jogar na lama do “tribunal digital” os adversários, fortalecendo a promoção de linchamentos virtuais, de direita ou de esquerda.
    O governo Bolsonaro não é o único que tem disseminado o medo para sabotar os mecanismos de cooperação e mobilização sociais, substituindo práticas de coesão por coerções e cruzadas moralistas vindas de cima, de baixo e ao redor. Discursos do medo contra ou a favor de Bolsonaro são péssimos conselheiros porque dão a #Elenão um tamanho e uma agilidade política irreal, retirando-o do isolamento político em que se encontra para nos fazer acreditar que, quando chegarmos às ruas, imediatamente um cabo e um soldado fecharão o Congresso, o STF e tirarão as emissoras e os portais de internet do ar. O medo transforma Bolsonaro num bicho papão, num monstro mítico incontrolável que atira hordas de zumbis (com cabelos tingidos de acaju) contra todos nós.
    O medo disseminado faz com que as pessoas vejam gigantes onde há sombras e abram mão de seus direitos e garantias em favor de um ‘libertário do agora’ que prometa proteção. Mas o profeta-liberador de hoje será o seu tirano de amanhã!
    O rigor científico não permite que nós, pesquisadores, determinemos como os movimentos sociais devem se comportar, nem que sejam pautados por oráculos que anunciam profecias que se autorrealizam. A contemporaneidade produziu os ativismos acadêmicos, mas eles não devem substituir jamais a liberdade dos sujeitos de decidir suas agendas, nem servir de chofer dos movimentos sociais em direção à “Terra sem Males”, um mundo idílico sem conflitos e, por sua vez, sem a política. A ciência pode contribuir com diagnósticos da realidade e oferecer alternativas que considerem, inclusive, que a negação dos conflitos monopoliza o debate e as representações, obscurecendo as negociações dos interesses em disputa. Quando a decisão científica está acima da pactuação social ela deixa de ser ciência e passa a ser doutrina, retira da sociedade a responsabilidade pelas escolhas que faz, para o bem e para o mal.
    Ao  olharmos a história vemos que os discursos de “lei e ordem” são utilizados sempre a serviço dos interesses do Estado e seus grupos de poder. Viver sob o jugo da espada não é novidade para as pessoas para quem o isolamento social é uma prisão histórica dos direitos de cidadania, e não um privilégio de classes. A juventude, principalmente a negra, conhece de perto a violência policial, e sabe que nem em casa está protegida.
    Sobre as autoras do texto: 
    JACQUELINE MUNIZ,antropóloga, professora da UFF.
    ANA PAULA MIRANDA, antropóloga, professora da UFF
    ROSIANE RODRIGUES, antropóloga, pesquisadora do INEAC/UFF.
  • Miguel: quantos como ele correm perigo nas casas das patroas de suas mães?

    Miguel: quantos como ele correm perigo nas casas das patroas de suas mães?

    https://www.youtube.com/watch?v=sMvyTtB070M

    Se nesse momento a história da trágica morte do menino negro, Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, filho da empregada doméstica, Mirtes Renata Santana da Silva, fosse inversa em todas os seus detalhes: se ele fosse o filho branco da patroa, Sari Mariana Gaspar Corte Real, e tivesse morrido depois de despencar do 9º andar por desleixo e irresponsabilidade da empregada doméstica, certamente essa mulher negra estaria, neste exato momento, encarcerada.

    Miguel Otávio Santana da Silva, 5 anos de vida, é vítima do racismo arraigado na vida cotidiana de pessoas como Sari, uma mulher que, ironicamente, possui sobrenome supremacista branco “CORTE REAL”.

    Mas esse não é o pior dos detalhes. Nesse episódio trágico, a imprensa pernambucana, majoritariamente branca, portanto “limpinha”, não quis desagradar a mulher do prefeito da cidade de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB).

    Até agora não há sequer uma menção realmente incisiva sobre a responsabilização de Sari na morte do menino.

    O mesmo aconteceu com o delegado Ramón Teixeira, que acolheu o caso inicialmente. Preferiu preservar a identidade de Sari Mariana Gaspar Corte Real.

    Sari não dispensou Mirtes por causa da pandemia. Sari não quis limpar sua própria merda, não quis varrer seu chão, não quis colocar  suas roupas na máquina de lavar, não quis cozinhar sua própria comida. Sari não quis levar seu cachorro para passear. Sari colocou a vida de sua empregada em risco, exposta à COVID-19. Sari matou o filho de Mirtes.

    Que tipo de gente é essa?  Miguel, 5 anos, queria ver a mãe, que saiu para levar o cachorro da patroa a passear. Insistiu, fez birra, como qualquer criança faria. E não se curvou ao racismo de Sari. Por isso entrou no elevador. Por isso foi ao nono andar. Sozinho, porque Sari não se importa, não se importou com o fato de ele ser um menino. Ele era filho da empregada, não era nada. E ele caiu do nono andar. Ele morreu. Quando um filho morre, a mãe é a primeira que desce à cova. Era um filho negro. Na casa da patroa branca. A mãe negra, a empregada, não percebeu isso ainda. Em meio à dor, em estado de choque, ela humildemente lamenta a “falta de paciência” da patroa assassina.

    Miguel
    Miguel com sua mãe, Mirtes. Ao lado, Sari Corte Real, a patroa que colocou a empregada e seu filho em risco.

    O FATO – O menino foi vítima de homicídio na terça-feira (2). Caiu do 9° andar da sacada de um prédio de luxo no Centro do Recife, em Pernambuco, conhecido como Torre Gêmeas. A informação inicial era de que, na hora do acidente, a empregada estaria trabalhando no 5° andar do prédio, mas hoje foi revelado que, na verdade, a empregada estava cumprindo a função de passear com os cachorros da família, enquanto a patroa cuidava de Miguel. Sari foi presa inicialmente, mas pagou uma fiança de R$ 20 mil e responde em liberdade, mesmo depois da divulgação de vídeos mostrando que Sari colocou Miguel sozinho no elevador de serviço, o único que dava acesso para a área desprotegida da qual o menino despencou para a morte. Os elevadores para pessoas como Mirtes e seu filho, na prática, ainda são diferentes no Brasil. E foi lá que a patroa o deixou.

    Apartamento onde Miguel estava
    Planta de um apartamento no prédio de luxo de Sari, marcado por corrupção e tragédia

     

    Um corpo negro que vale 20 mil reais? Realmente vivemos um pesadelo legitimado pela racismo institucional do judiciário

    Liana Cirne Lins, professora da Faculdade de Direito da UFPE, relatou em suas redes sociais que muitos têm defendido a tese de que, inclusive, houve homicídio DOLOSO, configurando dolo eventual. “Afinal, que adulto coloca uma criança de cinco anos, que está chorando pela mãe, sozinha, num elevador, e não calcula a possibilidade de um acidente?” Miguel não tinha intimidade com elevadores. Morava com os pais em uma casa pobre, num bairro humilde.

    Sari sabia dos riscos e não faria o mesmo com os próprios filhos. Aliás, essa é uma pergunta que gostaríamos de fazer à patroa de Mirtes: como você acabaria com a birra de seus filhos?

    Certamente Sari não os colocaria em risco. O centro desse debate é, sem dúvida, a herança de nossa cultura escravocrata e racista.

    Outra declaração importantíssima de Liana Cirne é sobre o local e a data simbólica do homicídio: “O local é nas famigeradas Torres Gêmeas, esse lugar horroroso que tem essa energia do mal, do crime, da corrupção. Elas são um aborto em nossa paisagem e cenário de vários escândalos, desde que a [construtora] Moura Dubeux as ergueu, entre liminares. Nesse momento, mais do que em outros, queria que a sentença demolitória do juiz Hélio Ourém tivesse sido executada. Sobre a data: Miguel morreu no dia em que a PEC das Domésticas completou cinco anos! E é assim que se celebra o aniversário da legislação de proteção das Domésticas, o que diz muito sobre nosso país, que não superou sua herança escravagista.”

    Os Jornalistas Livres se solidarizam demais, profundamente, com mais esse fato absurdo, horroroso, que tem como alimento o racismo.

    Miguel, presente!

     

     

     

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    A Polícia de Wilson Witzel matou João Pedro, um jovem estudante. Ele poderia ser seu filho