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Categoria: Exército

  • Governo de Bolsonaro apoia a guerra dos Estados Unidos contra Venezuela

    Governo de Bolsonaro apoia a guerra dos Estados Unidos contra Venezuela

    Os Estados Unidos registraram ontem (01/04) 884 mortes pela covid-19 em 24 horas, um recorde no país, segundo contagem divulgada pela Universidade Johns Hopkins. O forte aumento elevou a 4.475 o número de mortos no país desde o começo da pandemia.

    Enquanto contabiliza o maior número de mortos quanto ao novo coronavírus e o colapso do sistema de saúde americano, o presidente Donald Trump investe pesadamente em uma ofensiva contra a Venezuela, e anunciou o envio de forças militares para a região costeira daquele país. Entre os recursos a serem enviados estão destroieres, navios de combate costeiro, embarcações da Guarda Costeira americana, aviões-espiões e helicópteros da Força Aérea.
    O anúncio foi feito pelo presidente americano durante uma coletiva de imprensa convocada para tratar de medidas contra a pandemia da covid-19 no país.
    Na semana passada, os EUA acusaram Nicolás Maduro e outros líderes do governo venezuelano de comandarem um regime narcoterrorista e ofereceram recompensa por informações que levem à captura do presidente e das lideranças chavistas.
    Logo depois, o vice-presidente da Venezuela, Jorge Rodríguez, chamou o anúncio de “uma tentativa de desviar a atenção” do que está acontecendo nos Estados Unidos com a crise de saúde causada pela covid-19.

     

    Jorge Rodríguez, vice-presidente da Venezuela, 

    repudia o anúncio do Governo Trump  

     

     

     

    Bolsonaro
    O Brasil que enfrenta sérios problemas pela pandemia da covid-19 e a possibilidade de estrangulamento do sistema de saúde nos próximos dias, acaba por demonstrar a sua submissão e alinhamento ideológico ao governo americano, ao lançar, via Itamaraty, uma nota de apoio à ofensiva militar estadunidense. No texto, o governo de Jair Bolsonaro se coloca à disposição para um enfrentamento militar contra um país vizinho que nunca ofendeu ou criou problema diplomático com o Brasil.
    É bom lembrar que Bolsonaro e uma ala considerada mais ideológica e alinhada aos grandes empresários, menosprezam constantemente a pandemia chamando-a de “gripezinha”. Ignoram as ações de isolamento social e mitigação, propostas por especialistas, e adotadas por praticamente todos os países atingidos pela covid-19. Nesse momento, qualquer apoio militar a uma ofensiva americana contra o governo venezuelano deixaria o Brasil ainda mais fragilizado perante a eminência do avanço na epidemia no país. Desviaria recursos financeiros que deveriam ser aplicados na saúde, na proteção dos trabalhadores e trabalhadores e da população mais vulnerável. Além do mais, as forças militares deveriam estar somando e ajudando o país nesse momento do combate a pandemia.

     

    Conversa
    Antes do anúncio sobre mobilização de uma força militar em direção ao Caribe e ao leste do Pacífico realizado na Casa Branca, Trump e Bolsonaro conversaram pelo telefone. O Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, também participou da conversa ao lado do presidente brasileiro. Segundo relato de Bolsonaro, o assunto era a pandemia causada pelo coronavírus e a solidariedade mútua entre os dois países..

    Nota do Itamaraty

    PROPOSTA DE MOLDURA INSTITUCIONAL PARA A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA NA VENEZUELA

    O governo brasileiro, após tomar conhecimento da proposta de uma Moldura Institucional para a Transição Democrática na Venezuela, apresentada em 31/3, pelo governo dos Estados Unidos da América, expressa sua coincidência com os objetivos da proposta e a apoia como instrumento capaz de contribuir para o restabelecimento da democracia na Venezuela.

     

    2.De maneira convergente com a proposta, o governo brasileiro considera que somente a realização de eleições presidenciais livres, justas e transparentes poderá pôr fim à grave crise política, econômica e humanitária por que passa a Venezuela. Considera, igualmente, que a saída de Nicolás Maduro é condição inicial para o processo, uma vez que ele carece de qualquer legitimidade para ser parte numa transição autêntica.

     

    3.Vários dos elementos presentes na proposta têm sido defendidos pelo Brasil individualmente e também pelo Grupo de Lima, de que o país faz parte.

     

    4.A renúncia concomitante do ditador Nicolás Maduro e do Presidente Encarregado Juan Guaidó e o estabelecimento de um Conselho de Estado, eleito pela legítima Assembleia Nacional, com o mandato de organizar eleições livres e justas, sob observação internacional, constituiria importante passo em direção a uma solução definitiva para a crise na Venezuela. No entendimento brasileiro, a garantia de participação no processo de transição de todas as forças políticas comprometidas com a democracia, o repúdio ao crime organizado, a libertação de presos políticos, a restauração das imunidades parlamentares, a restruturação do Conselho Nacional Eleitoral e o restabelecimento de uma Corte Suprema de Justiça legítima são indispensáveis para a reconstrução do Estado de Direito e de um ambiente democrático na Venezuela.

     

    5.O Governo brasileiro está pronto a trabalhar com a comunidade internacional de modo a apoiar o processo de transição democrática na Venezuela, pelo qual tanto anseiam os próprios venezuelanos e os amantes da liberdade em toda a região.

  • ELISA LUCINDA: Em Portugal, com o Brasil a doer no coração

    ELISA LUCINDA: Em Portugal, com o Brasil a doer no coração

    Elisa Lucinda na terra de Eça de Queiroz, onde participou do Encontro Internacional Literário Correntes D’Escritas - foto: Jonathan Estrella
    Elisa na terra de Eça:  “o mundo está assistindo nossa dor” – foto: Jonathan Estrella

    Estou em Póvoa de Varzim, terra de Eça de Queiroz, lindo lugar que pertence ao distrito do Porto, lançando o livro “A fúria da beleza” por uma editora luso cabo-verdiana, Rosa de Porcelana… Uma beleza. Somos muitos autores neste Encontro Internacional Literário bem chamado de Correntes D’Escritas. O país que nos colonizou vai muito bem, respeitando as artes e as ciências humanas e exibindo escolas públicas de altíssima qualidade. Pois vai muito bem mesmo este nosso Portugal. (não se preocupem não vou morar aqui… rsrs). É nutrição de esperança ver Portugal brilhando como esquerda europeia. O pequeno imenso país vai mesmo muito bem.

    Meu coração brasileiro é que não.

    Tenho vergonha do desmonte lá de casa. Vim representar um país cujo governo o despreza e o ataca diariamente. Para ele, fodam-se os índios, os pretos, a diversidade de gênero, a Amazônia, nossos metais valiosos, nossos museus, nossas universidades, nossa ciência, nossa pesquisa, nossa sustentabilidade, a soberania nacional. A elite brasileira não perdoa um governo que olhe para o povo. Por isso o ministro da justiça Sérgio Moro não luta mais contra corrupção; notaram? Se esqueceu da possível armação rachadinha do Queiroz, faz vista grossa para milícias e tudo que possa ferir o poder que alcançou negociando cargo em plena gestão de suas condenações da lava jato. Moro parece só pensar agora em ser o próximo presidente, e não tem tempo para a justiça. Tampouco se explica ao país. O poder é mais um dos seus brinquedinhos, coisa de menino rico que só sabe ser o dono da bola e ganhar sozinho o jogo. Nada pra ele é do coletivo. Não está nem aí pro genocídio da juventude negra pois, em sua balança cega para os que dela precisam, pesa a desigualdade. A cada hora uma criança perde a vida no Rio de Janeiro na chamada guerra contra o crime. E só é assassinada criança preta e pobre. Os petroleiros estão em greve. A cada hora um trabalhador perde ainda mais sua possibilidade de trabalho na constante desindustrialização do país por parte deste governo. Também, fodam-se os trabalhadores pois o ministro da economia quer o dólar alto por que não quer saber desta farra de domésticas viajando pra Disney sem parar, já que, a sonhada bobagem de grandes bonecos de Mickey e Pateta, é simbologia branca da classe média, e de quem tem dinheiro. Não é pra pobre não, senão vira bagunça. O presidente é racista, homofóbico, misógino e publicamente sem qualquer pudor, desrespeitador das mulheres e de várias vastas “minorias”. Tenho vergonha dele. Aqui ainda me sinto mais mal. Trago um Brasil doente no peito. Na internet do mundo rola o fedor da nossa roupa suja. O pessoal aqui tá sabendo. O ataque baixo do presidente à jornalista Patricia Campos Mello, ao jornal Folha de S.Paulo e a toda imprensa independente que o está criticando, todo mundo tá sabendo. Que horror! Socorro! Estou num festival de letras representando um país cujo presidente não me representa, não acredita nas letras e que, em nome de deus quer que o pobre continue pobre e não tenha dignidade nem saída. Estou representando um país cujo presidente se tornou internacionalmente metáfora de coisa ruim. Referência de despotismo, de fascismo, de atraso. Todos o sabem. Perguntam-me nas ruas daqui estarrecidos. Na lanchonete o rapaz que faz o sanduíche me questiona: “O que aconteceu ao Brasil? O homem só faz estragos! Só diz asneiras! E a Regina Duarte, será que não vê isto, oi?”

    Por isso, declaro aos presentes aqui: Sei que o mundo está assistindo nossa dor.

    Nossa democracia sofre duros e sucessivos golpes numa nocauteante sequência. Estava num bom caminho e nitidamente desandou aos nossos olhos e aos olhos do mundo que sinceramente tinham o Brasil num imaginário de um notável país, amante da liberdade e em desenvolvimento que, reduziu a fome, ostentou o SUS como melhor atendimento de saúde pública do mundo, zerou o analfabetismo, foi referência no combate à Aids. Fez o dinheiro circular e o trabalhador começou a poder andar de avião. Diminuiu com forte impacto a população abandonada e moradora das ruas das grandes cidades. Preto, indígena e pobre ocupando lugares nobres nas PUCs e outras importantes Universidades, LGBTQI+ avançando nitidamente ao seu lugar legítimo de cidadania.

    De repente, o tempo virou.

    Rapidamente o Brasil sai deste lugar pra virar constrangimento? Para citar e namorar os conceitos nazistas em pleno 2020? Enquanto as universidades do mundo estudam e aplicam o método Paulo Freire de ensino o presidente o ataca, ofende sua memória, importância e saber, na cara de quem o estudou? O presidente se volta contra a literatura, o cinema, os artistas, os professores, os direitos humanos? Enquanto os terreiros de candomblé e umbanda são atacados e vilipendiados por neo fundamentalistas, a Damares faz de seu ministério um templo, defende abstinência sexual para os jovens e o Estado, que era laico, faz culto evangélico na assembleia do Rio???!!!! O racista Sérgio Camargo insiste em assumir a Fundação Palmares, criada para defender os direitos dos negros! O cara está sendo imposto como um lobo destinado a cuidar das chapeuzinhos. Ele tem sede. É capitão do mato. É como designar um pedófilo para coordenar uma creche. Mas venho avisar a este mundo que estamos lutando. O senhor Sérgio não nos representa e não vai ocupar a presidência que leva o nome do Quilombo mais poderoso de que já se teve notícia. Quem trai Zumbi não ocupará Palmares. Este presidente não nos representa. Falo em nome dos que nunca acreditaram neste governo e também dos que por ele foram traídos e só agora estão entendendo. E parabenizo os nossos constitucionalistas, os ativistas, os bravos parlamentares, os professores, os estudantes, os petroleiros, povos da floresta, povos das favelas, povos quilombolas, ambientalistas, aqueles que de suas trincheiras não cansam de lutar. Bolsonaro não tem partido nem tem o congresso. Se cercou de militares, e não aceita que nem todo seu desejo possa virar decreto. A lei o atrapalha. O congresso e a constituição complicam sua vida.

    O Brasil se revelou na sua hipocrisia:

    Está mais assumidamente racista, perdido nas fake news, vendo atrocidades em nome de Deus, da pátria e da família. Mas está cada vez menos explicado: de qual Deus, de que pátria e de qual família fala o presidente? E quem entrou pelo sistema de cotas na universidade está entendendo sim e explicando pro seu pessoal, esclarecendo, conscientizando. Agora temos mais advogados pretos, temos rede social filmando as barbáries, desafiando e esfregando na cara da sociedade a realidade que ninguém quer e ninguém queria ver. O mundo mudou. O país é novo e complexo. Por isso advogados rapidamente se apresentaram diante do abuso sofrido por Raull Santiago. Sempre foi assim pros pretos. Desde o nosso holocausto que durou 400 anos. Há muito nos matam por lá. Por isso o governo Lula criou a Secretaria Especial da Igualdade Racial que este governo fez questão de acabar. Mas agora todo mundo vê. Lê. A fofoca é geral. Salva, comenta e compartilha. Estamos mais articulados do que nunca e, embora mais silencioso do que o conjunto de seus algozes, o quilombo contemporâneo se avoluma. A minoria está ficando do tamanho da maioria que é. É ao vivo, em tempo real, sem edição. Haverá revolução.

    Agradeço a esse encontro das Correntes D´Escritas, lugar onde a palavra é celebrada, em que várias vezes o Brasil foi citado como uma preocupação mundial. Sei que vocês sabem que o Brasil não é um caso isolado, e a retrógrada e insana mão da extrema direita ameaça o mundo. Por isso o Brasil percebe a solidariedade de todas entidades do planeta comprometidas com a igualdade, sabedora de que a desigualdade não produzirá a paz. Aproveito para compartilhar uma das lições que a nossa democracia duramente está recebendo: Nós da esquerda temos que nos livrar de costumes separatistas, preconceituosos que engendramos e praticamos em nossa política do cotidiano, e dos quais se aproveitam as forças conservadoras. Enquanto formos machistas, racistas e homofóbicos na vida íntima ou coletiva, mais estaremos vulneráveis ao nazismo e ao fascismo. Agradeço a este país que me recebe de braços abertos, aos escritores e poetas do mundo que cá estão, e faço questão de vos lembrar as palavras de Martin Luther King: “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. Há um país que não aceita mais o racismo explícito do jornalista William Waack ou do Rodrigo Bocardi e que, apesar de sofrer toda a peste da evangelização tóxica em toda parte a dominar as mentes com seus moralismos, há um país cuja população adulta é filha da liberdade, e seus filhos mais ainda. Há uma país que não abrirá mão desta liberdade, que não a negociará, e que não vai parar de fazer amor, nem de exigir saber quem mandou matar Marielle!

    Póvoa de Varzim, Inverno em fevereiro, 2020

     

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  • O ódio ao índio, por Álvaro García Linera*

    O ódio ao índio, por Álvaro García Linera*

    Jornalistas Livres reproduzem artigo de Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia no exílio, porque a tragédia boliviana ajuda a entender a nossa própria tragédia. Lá é o ódio ao índio; aqui é ao índio, ao negro, ao mestiço, ao nordestino. Lá, como aqui, a reação provém daqueles que sempre usaram sua cor de pele (branca) e sobrenomes tradicionais como forma de prevalecer sobre a maioria do povo pobre e oprimido, monopolizando o acesso aos bens do Estado.

     

    Como uma espessa névoa noturna, o ódio se espalha pelos bairros das tradicionais classes médias urbanas da Bolívia. Seus olhos transbordam de raiva. Eles não gritam, cospem; eles não reivindicam, eles impõem. Suas canções não são de esperança ou fraternidade, são de desprezo e discriminação contra os índios. Eles andam de moto, andam de caminhão, se reúnem em suas fraternidades de carnaval e universidades particulares e caçam índios que ousaram tirar seu poder.

    No caso de Santa Cruz, eles organizam hordas motorizadas 4×4 com paus na mão para assustar os índios, a quem chamam de collas e que vivem em favelas e nos mercados. Eles cantam slogans dizendo que você tem que matar collas, e se no caminho cruza com eles alguma mulher usando a pollera (saia rodada típica das mestiças), eles a espancam, ameaçam e ordenam que ela saia de seu território. Em Cochabamba, organizam comboios para impor a supremacia racial na zona sul, onde vivem as classes carentes, e avançam como se fosse um destacamento de cavalaria sobre milhares de camponesas indefesas que marcham pedindo paz. Eles carregam tacos de beisebol, correntes, granadas de gás, alguns exibem armas de fogo. A mulher é sua vítima favorita, eles agarram uma prefeita de uma população camponesa, humilham-na, arrastam-na pela rua, batem nela, urinam nela quando ela cai no chão, cortam seus cabelos, ameaçam linchá-la e, quando percebem que estão sendo filmados decidem jogar tinta vermelha, simbolizando o que farão com seu sangue.

    Em La Paz, eles suspeitam de suas empregadas e não falam quando elas trazem a comida para a mesa; no fundo temem-nas, mas também as desprezam. Depois saem às ruas para gritar, insultam Evo e nele todos esses índios que ousaram construir a democracia intercultural com igualdade. Quando são muitos, arrastam a wiphala, a bandeira indígena, cospem, pisam, cortam, queimam. É uma raiva visceral que se descarrega sobre este símbolo de índios os quais gostariam de extinguir da terra junto com todos os que nela se reconhecem.

    O ódio racial é a linguagem política dessa classe média tradicional. De nada servem seus títulos acadêmicos, viagens e fé porque no final tudo se dilui diante do ancestral. No fundo, a estirpe imaginada é mais forte e parece aderir à linguagem espontânea da pele que odeia, aos gestos viscerais e à sua moral corrompida.

    Tudo explodiu no domingo, 20, quando Evo Morales venceu as eleições com mais de 10 pontos de diferença no segundo, mas não mais com a imensa vantagem de antes ou 51% dos votos. Foi o sinal que as forças regressivas aguardavam, desde o medroso candidato da oposição liberal, as forças políticas ultraconservadoras, a OEA e a inefável classe média tradicional. Evo venceu novamente, mas ele não tinha mais 60% do eleitorado, e então estava mais fraco –era hora de passar por cima dele. O perdedor não reconheceu sua derrota. A OEA falou de eleições limpas, mas de uma vitória minguada e pediu um segundo turno, aconselhando a ir contra a Constituição, que afirma que, se um candidato tiver mais de 40% dos votos e mais de 10 pontos de diferença em relação ao segundo, é o candidato eleito

     

    E a classe média foi à caça dos índios.

    Na noite da segunda-feira 21, cinco dos nove órgãos eleitorais foram queimados, incluindo boletins de voto. A cidade de Santa Cruz decretou uma greve cívica que articulou os habitantes das áreas centrais da cidade, ramificando-se a greve para as áreas residenciais de La Paz e Cochabamba. E então o terror eclodiu.

    Bandos paramilitares começaram a sitiar instituições, a queimar sedes sindicais, a queimar as casas de candidatos e líderes políticos do partido do governo; no final até a residência particular do presidente foi saqueada. Em outros lugares, famílias, incluindo crianças, foram seqüestradas e ameaçadas de serem flageladas e queimadas se o pai, ministro ou líder sindical, não renunciasse ao seu cargo. Uma dilatada noite de facas longas foi desencadeada e o fascismo deixava seus rastros.

    Quando as forças populares mobilizadas para resistir a esse golpe civil começaram a recuperar o controle territorial das cidades, com a presença de operários, trabalhadores, mineiros, camponeses, indígenas e colonos urbanos, e o balanço da correlação de forças estava se inclinando para o lado popular, veio o motim policial.

    Os policiais haviam demonstrado durante semanas uma indolência e inépcia para proteger as pessoas humildes quando elas eram espancadas e perseguidas por gangues fascistóides; mas a partir de sexta-feira, com o desconhecimento do comando civil, muitos deles mostrariam uma capacidade extraordinária para atacar, prender, torturar e matar manifestantes populares. Certamente, antes tinha que conter os filhos da classe média, e supostamente eles não tinham capacidade, mas agora que era para reprimir os índios revoltosos, a arrogância e a sanha repressiva eram monumentais. O mesmo aconteceu com as Forças Armadas. Em toda a nossa administração, nunca permitimos que as manifestações civis fossem reprimidas, nem mesmo durante o primeiro golpe de Estado cívico, de 2008. Agora, em plena convulsão, e sem que ninguém perguntasse nada, eles disseram que não tinham elementos antidistúrbios, que apenas tinham 8 balas por integrante e que, para estar presentes na rua de maneira dissuasiva, era necessário um decreto presidencial. No entanto, não hesitaram em pedir-impor ao Presidente Evo a sua renúncia, quebrando a ordem constitucional. Eles fizeram o possível para tentar sequestrá-lo quando ele foi e estava no Chapare; e quando o golpe foi consumado, eles foram às ruas para disparar milhares de balas, militarizar as cidades, matar camponeses. Tudo sem decreto presidencial.

    Obviamente, para proteger o índio, era necessário um decreto. Para reprimir e matar índios, bastava obedecer ao que o ódio racial e de classe ordenava. Em cinco dias já existem mais de 18 mortos e 120 feridos a tiros. Claro, todos eles são indígenas.

    A pergunta que todos devemos responder é: como essa classe média tradicional foi capaz de incubar tanto ódio e ressentimento contra o povo, levando-a a abraçar um fascismo racializado, centrado no índio como inimigo? Como fez para irradiar suas frustrações de classe para a polícia e Forças Armadas e ser a base social dessa fascistização, dessa regressão estatal e degeneração moral?

    Foi o rechaço à igualdade, isto é, o rechaço aos próprios fundamentos de uma democracia substancial.

    Nos últimos 14 anos de governo, os movimentos sociais tiveram como principal característica o processo de equalização social, redução abrupta da pobreza extrema (de 38% para 15%), extensão de direitos para todos (acesso universal à saúde, educação e proteção social), indianização do Estado (mais de 50% dos funcionários da administração pública têm uma identidade indígena, nova narrativa nacional em torno do tronco indígena), redução das desigualdades econômicas (de 130 para 45, a diferença de renda entre os mais ricos e os mais pobres), isto é, a democratização sistemática da riqueza, do acesso aos bens públicos, às oportunidades e ao poder estatal. A economia cresceu de 9 bilhões de dólares para 42 bilhões, ampliou-se o mercado e a poupança interna, o que permitiu a muitas pessoas ter sua casa própria e melhorar sua atividade profissional. Mas isso levou ao fato de que em uma década a porcentagem de pessoas na chamada classe média, medida em renda, aumentou de 35% para 60%, a maior parte proveniente de setores populares, indígenas. Trata-se de um processo de democratização dos bens sociais mediante a construção da igualdade material, mas que inevitavelmente levou a uma rápida desvalorização dos capitais econômicos, educacionais e políticos possuídos pelas classes médias tradicionais. Se antes um sobrenome notável ou o monopólio dos saberes ou o conjunto dos vínculos parentais típicos da classe média tradicional lhes permitia acessar posições na administração pública, obter créditos, licitações de obras ou bolsas de estudos, hoje o número de pessoas que lutam pela mesma posição ou oportunidade não apenas dobrou, reduzindo pela metade as chances de acessar esses bens; mas, além disso, a nova classe média de origem popular indígena tem um conjunto de novos capitais (língua indígena, vínculos sindicais) de maior valor e reconhecimento estatal para lutar pelos bens públicos disponíveis.

    É, portanto, um colapso do que era característico da sociedade colonial, a etnia como capital, ou seja, do fundamento imaginado da superioridade histórica da classe média sobre as classes subalternas, porque aqui na Bolívia a classe social é apenas compreensível e visível sob a forma de hierarquias raciais. O fato de os filhos desta classe média terem sido a força de choque da insurgência reacionária é o grito violento de uma nova geração que vê como a herança do sobrenome e da pele desaparece diante da força da democratização dos bens. Embora exibam bandeiras da democracia entendidas como voto, na verdade se rebelaram contra a democracia entendida como equalização e distribuição da riqueza. Por isso o transbordamento de ódio, a abundância de violência, porque a supremacia racial é algo que não se racionaliza; se vive como impulso primário do corpo, como uma tatuagem da história colonial na pele. Portanto, o fascismo não é apenas a expressão de uma revolução fracassada, mas, paradoxalmente, também nas sociedades pós-coloniais, o sucesso de uma democratização material alcançada.

    Por isso, não surpreende que enquanto os índios recolhem os corpos de cerca de 20 mortos, assassinados a bala, seus algozes materiais e morais narrem que o fizeram para salvaguardar a Democracia. Na realidade, sabem que o fizeram para proteger o privilégio de casta e o sobrenome.

    O ódio racial, porém, só pode destruir; não é um horizonte, não é mais que uma primitiva vingança de uma classe histórica e moralmente decadente, que demonstra que por detrás de cada liberal medíocre se agarra um golpista consumado.

    * Vice-presidente da Bolívia no exílio

  • EUA, BRICS e América Latina – Tudo conectado

    EUA, BRICS e América Latina – Tudo conectado

    Em artigo publicado recentemente no jornal Monitor Mercantil, o analista geopolítico Fábio Reis Vianna mostra como a crescente militarização e convulsão na América Latina faz parte dos planos de Washington para minar a influência de China e Rússia na região e controlar as velhas e novas fontes de petróleo, gás e outros produtos minerais. Vale a pena ler:

    Eleições argentinas, enquadramento da América do Sul e os Brics


    Por Fábio Reis Vianna

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    No último dia 29 de outubro, o Ciclo de Seminários de Análise da Conjuntura Mundial, organizado pelos professores Monica Bruckmann e Franklin Trein, recebeu no Salão Nobre do IFCS-UFRJ, no Rio de Janeiro, a ilustre presença do ex-vice-presidente do Banco de Desenvolvimento dos Brics, o professor Paulo Nogueira Batista Jr.

    Em meio ao peculiar momento de convulsões sociais que se espalham pelo mundo, discutiu-se a Nova Rota da Seda, grande projeto chinês de integração geoeconômica da Eurásia por vastas redes de estradas, trens de alta velocidade, gasodutos, cabos de fibra ótica e portos, e que beneficiará milhões de pessoas (incluindo a Europa Ocidental, e incidentalmente, o continente africano e a própria América Latina).

    Para isso, três instituições criadas na órbita deste projeto cumpririam papel fundamental: o Silk Road Fund, o AIIB (Banco de Investimento e Infraestrutura da Ásia) e o NBD (Banco de Desenvolvimento dos Brics).

     

    Para EUA, era preciso separar o Brasil de Rússia e China a qualquer custo

     

    Sendo o Estado brasileiro acionista e fundador do NBD, muitos projetos de financiamento oriundos desta instituição global já poderiam ter sido aprovados e seriam muito bem-vindos à cambaleante economia brasileira.

    Porém, não obstante nos últimos anos, especificamente de 2003 a junho de 2018, empresas chinesas terem investido quase US$ 54 bilhões em mais de 100 projetos, segundo dados do próprio governo brasileiro, a partir de 2017, os investimentos caíram vertiginosamente.

    Segundo estudo do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), os investimentos chineses no Brasil somaram US$ 8,8 bilhões em 2017 e não mais que US$ 3 bilhões em 2018. Uma queda de 66%. O aprofundamento do enquadramento brasileiro à órbita imperial norte-americana diz muito sobre isso.

    Com a institucionalização da Nova Estratégia de Defesa dos Estados Unidos, promulgada em 18 de dezembro de 2017, oficializou-se o que na prática já vinha ocorrendo desde meados de 2012, com a aceleração da disputa interestatal e a escalada da competição mundial: o reposicionamento norte-americano no xadrez geopolítico mundial de maneira cada vez mais agressiva e unilateral.

    Deixando de lado a retórica multilateralista promovida ao longo do século passado, os norte-americanos, diante do fortalecimento das potências “revisionistas” Rússia e China – questionadoras da centralidade americana no uso das regras e instituições criadas e geridas de maneira unilateral durante todo o século XX – agora procuram impor sua vontade, sem concessões, aos países do chamado Hemisfério Ocidental.

    Região ao qual os Estados Unidos se atribuem, por direito, o pleno exercício da soberania, por considerarem sua zona de influência direta, inadmitindo assim, qualquer contestação à sua supremacia, nem mesmo qualquer aliança estratégica de países que possa criar um polo alternativo de poder; muito menos no Cone Sul do continente.

    Sendo assim, a postura de total alinhamento do atual governo brasileiro aos interesses da administração Trump, em muito diz respeito a este enquadramento do Hemisfério Ocidental à estratégia de contenção do expansionismo dos atores eurasiáticos.

    Se o aprofundamento do projeto eurasiático e da parceria estratégica sino-russa – dentro da teoria do controle do heartlandde Mackinder – já seria inadmissível por si só, então a participação de um grande país do Hemisfério Ocidental como protagonista de uma instituição contestadora de antigas normas estabelecidas e reguladas pelo hegemon já seria demais: era preciso separar o Brasil de Rússia e China custe o que custar, mesmo que para isso o país tenha que arcar com o preço de ver suas instituições destruídas e envolvido no labirinto de um quase fechamento militar de regime.

    Os últimos meses têm sido de muita agitação em várias e diversas partes do mundo; em particular na América do Sul. Mesmo que por motivos não exatamente similares, principalmente nos casos específicos de Peru e Bolívia, os protestos populares ocorridos no Equador e no Chile teriam em comum as características de uma reação, quase natural, de autoproteção destas sociedades às políticas restritivas neoliberais.

    Como se fora uma velha ironia da história, bem no momento em que vivemos o esgarçamento da competição interestatal, surge uma correia de transmissão espalhando por vários países, tão distantes quanto díspares entre si, a fagulha dos protestos sociais.

    Curiosamente, essa potente e perigosa combinação entre insatisfação social e acirramento de conflitos entre países, em outras épocas da história acabaria por configurar-se naquele período de transição entre os ciclos finais e de reconfiguração do grande tabuleiro do sistema mundial.

    Diante disso, é importante ressaltar o risco de uma característica em comum que vem aos poucos se delineando em alguns países da América do Sul: a militarização.

    Com o acirramento dos conflitos globais, o enquadramento da América do Sul à estratégia norte-americana de contenção dos adversários eurasiáticos e diante das agitações populares à deterioração dos padrões de vida, surge a lamentável opção pela imposição da ordem nua e crua, trazendo de volta ao cenário politico desses países a presença dos militares como garantidores da estabilidade institucional.

    Caminha-se na região para um cenário em que governos eleitos, enfrentando a crescente agitação interna, passariam a depender dos militares para sobreviver. Os recentes acontecimentos no Peru, Equador e Chile não deixam mentir. Fora o fato de que o Brasil já vive sob a sombra de uma velada tutela militar às suas instituições.

    O ponto fora da curva desta história é a Argentina e a impressionante vitória eleitoral da oposição peronista (num momento em que o uso de ferramentas de desestabilização tem sido frequentes para interferir em resultados eleitorais, como no caso da propagação em massa de fake news via Whatsapp em favor de Jair Bolsonaro no Brasil).

    Contra todas as tendências, em uma região acossada pela interferência cada vez mais agressiva dos Estados Unidos – vide a atual tentativa de deslegitimar e desestabilizar a recente eleição de Evo Morales por meio da já manjada e forjada “Revolução Colorida”, que se aprofunda na Bolívia – a Argentina caminha para a retomada de um projeto de nação autônomo e soberano.

    Diante da bem-sucedida, por hora, destruição da aliança estratégica Brasil-Argentina, que vinha se fortalecendo desde a redemocratização das duas nações em meados dos anos 80, caberá àquele país o complexo desafio de buscar expandir sua inserção internacional sem o seu antigo parceiro de Mercosul.

    Algo interessante dito pelo professor Paulo Nogueira Batista Jr., no Ciclo de Seminários de Análise da Conjuntura Mundial, diz respeito à atual postura chinesa diante da agressividade e truculência da administração Trump: paradoxalmente, tal agressividade estaria contendo o ímpeto expansionista chinês dos últimos anos na América do Sul, o que, segundo o professor, poderia abrir ótimas oportunidades para os países da região barganharem acordos mais favoráveis aos chineses.

    Com o engessamento do Brasil e o seu alinhamento cego à Nova Estratégia de Defesa dos Estados Unidos, abre-se à Argentina a oportunidade não só de barganhar acordos comerciais favoráveis, mas ocupar o espaço deixado vago pelo Brasil no projeto de integração eurasiático.

    Como bem disse o professor Paulo Nogueira Batista Jr., os Brics e em especial o seu banco de desenvolvimento (NBD) estariam caminhando para um processo de ampliação de seus participantes.

    Na nova configuração geopolítica mundial, em que o acirramento da disputa global aumenta a necessidade das potências competidoras em garantir sua segurança energética, a América do Sul já é vista por muitos analistas como o novo centro de gravidade da produção mundial de petróleo, em substituição ao Oriente Médio.

    A se confirmar esta tendência, não cabe outra alternativa a países baleia como Brasil e Argentina do que retomarem o projeto estratégico sul-americano sob risco de terminarem seus dias fragmentados e engolidos por interesses e disputas de potências externas à região.

    Por hora, cabe a Argentina caminhar sozinha e por necessidade, ampliar os laços econômicos e geopolíticos com China e Rússia porque a tendência é o país tornar-se alvo das próximas campanhas de desestabilização, guerras de “quarta geração” e asfixia econômica desferidas sempre sorrateiramente pelo hegemon.

    Fábio Reis Vianna

    Escritor e analista geopolítico.

    Leia o artigo original em: https://monitordigital.com.br/eleicoes-argentinas-enquadramento-da-america-do-sul-e-os-brics

  • JEAN WYLLYS: “Eu cuspi na cara dele por você, Dilma. Por nós”

    JEAN WYLLYS: “Eu cuspi na cara dele por você, Dilma. Por nós”

    Querida Dilma,

    Meu coração simultaneamente apertou e acelerou quando li a notícia de que um delegado da Polícia Federal, aliado do ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, pediu sua prisão.

    De imediato eu não pensei na explícita prática de lawfare que este pedido de prisão absurdo representa; não pensei na estratégia do canalha em criar, com este factóide, uma cortina de fumaça que impeça a maioria do povo brasileiro de ver a entrega do petróleo do pré-sal por parte do governo Bolsonaro (com apoio de plutocratas que apenas fingem se importar com o desapreço deste pela democracia); nem pensei nos ensaios de fechamento do regime que esses fascistas organizados em seitas religiosas e organizações criminosas fazem todo dia para testar os limites de uma nação agora adoecida por ter se recusado a trabalhar traumas como a escravatura e os terrorismos das ditaduras…

    Ao ler a notícia, eu só pensei em você, minha amiga. Primeiro, naquela senhora que me abraçou demorado – seu cheiro bom, aquele cheiro de afeto que os filhos identificam em mães amorosas, ainda está está na minha lembrança como se eu tivesse acabado de lhe abraçar – naquele restaurante japonês em Copacabana, onde jantamos em companhia do historiador americano James Green. Aquela senhora que me aconselhou a sair do país por reconhecer que eu realmente estava correndo risco de morte. Aquela senhora que, num dado momento da conversa, chamou-me de “meu filho”…

    Em seguida, lembrei-me de que aquela senhora amorosa é também a estudante da foto histórica em que, após dias sob tortura por parte de covardes idolatrados hoje pelos igualmente covardes que pediram sua prisão, você encara altiva seus torturadores, imorais que escondem suas caras na esperança de escapar do julgamento da história e da infâmia que a maldade joga sobre sua (deles) descendência…

    Só depois dessa reação afetiva; dessa preocupação com a pessoa (que é avó e ama sua família); só depois disso, é que, relembrando o quanto nossas histórias individuais se entrelaçaram na trama da história do Brasil, por eu ter sido o primeiro ativista gay a chegar no Congresso Nacional e você a primeira presidenta – sim, presidenta – da república, dei-me conta dos significados políticos e dos perigos terríveis contidos nesse pedido de sua prisão.

    As facções políticas (incluindo aí as organizações criminosas na cidade e no campo) que perpetraram o golpe contra seu governo – com o objetivo de garantir a si mesmas privilégios, lucros obscenos e impunidade em seus (delas, das facções) crimes – estão em guerra pelo poder desde então. A prisão do Lula, a intervenção militar no Rio de Janeiro feita pelo governo do crápula que lhe traiu e ao PT, Michel Temer, e a posterior execução de Marielle Franco são as consequências dessa guerra entre as forças políticas de direita que produziram a ruptura com a democracia em 2016.

    Você sabe, Dilma, que nem mesmo o alinhamento dessas facções golpistas em torno da figura de Bolsonaro nas eleições de 2018 (àquela altura já instrumentalizada e turbinada pelos plutocratas da extrema-direita americana) garantiu a paz entre elas.

    Os ricos brasileiros, os banqueiros ilustrados, os marajás do funcionalismo público, os donos de veículos de comunicação e os intelectuais endinheirados que fizeram da Lava Jato um complô e, do cafona e medíocre Sergio Moro, um fantoche, não esperavam que as facções criminosas com as quais se aliaram – milícias e seitas religiosas que servem de lavanderia para dinheiro sujo – fossem querer ter as rédeas do país. Mesmo assim, com todo o horror que elas vêm praticando, a Globo e a Folha de São Paulo seguem elogiando seu ministro da Economia, como se não se tratasse do mesmo governo fascista que ameaça a liberdade de imprensa, a cultura e a laicidade – e ignora emboscadas que matam os guardiões da Amazônia.

    Dilma, não sei se você sabe, mas, naquela noite em que teve início o golpe disfarçado de processo de impeachment, logo depois de dedicar seu voto ao torturador Brilhante Ustra (o covarde que quebrou com um soco o maxilar daquela menina da foto que é você), Bolsonaro me xingou de “queima-rosca” e me disse “tchau, querida”, numa referência à frase que o Lula lhe disse na conversa grampeada ilegalmente por Sergio Moro e divulgada pela Globo. A misoginia e a homofobia – males gêmeos – exigiram-me uma reação naquele momento. Além delas, a memória dos mortos sob as torturas perpetradas pela ditadura militar.

    Eu cuspi na cara dele por você, Dilma. Por nós.

    E, por tudo isso, mas principalmente por você, a quem poderia chamar de “minha mãe”, mas chamo de “minha amiga”, eu lhe peço nesta carta aberta:

    Tenha cuidado, amada! Os fascistas ressentidos de ontem e de hoje não toleram o que você representa, presidenta.

    Te amo!

    Jean Wyllys

  • PROTESTO NO CHILE: “Eles têm medo de nós porque não temos medo”

    PROTESTO NO CHILE: “Eles têm medo de nós porque não temos medo”

    Por Zarella Neto, especial para os Jornalistas Livres
    Com fotos de Antonio Brasiliano e Zarella Neto, de Santiago, Chile

     

     

    Milhares de pessoas tomam as ruas do centro de Santiago exigindo mais direitos em todos os parâmetros sociais, pedido principalmente uma nova Constituição e a queda do presidente Sebastian Piñera.

    Na última pesquisa realizada, 87 % da população apoiam os protestos e são contra a violenta repressão policial. Apersar disso, não se vê cobertura real das grandes mídias chilenas. Nos últimos três dias de protestos na praça Itália, palco principal e foco real de resistência dos manifestantes, não se viu uma só vez uma emissora de TV. Apenas cinegrafistas e fotógrafos independentes ou de grandes agências internacionais estavam presentes.

    A participação popular é linda e crescente, diferente do estado policial, que com seu gigantesco aparato de segurança reprime com muitas bombas de gás lacrimogêneo e jatos d’água misturados com algo que parece ser gás lacrimogêneo, com o qual fomos atingidos diversas vezes e que, quando em contato com a pele, queima como fogo.

    A repressão da polícia é de uma desumanidade sem tamanho. Um aparato com mais de dez carros-tanques de repressão é usado para atacar os manifestantes que muitas vezes estão isolados e em número pequeno. Nesta semana, enquanto ocorria uma manifestação pacífica, com músicos entoando canções de resistência, com artistas nus e corpos com pinturas que lembravam os que tombaram mortos nas manifestações passadas, a polícia interveio com um forte ataque. A desigualdade de forças era tal que parecia a luta entre elefante e formiga.

    Penso, porém, que o elefante não está preparado para lutar contra um formigueiro. Enquanto manifestantes olham para frente, outros se aglomeram por detrás e, com o apoio maciço das pessoas comuns que cercam a praça, gritando, explicam para os homens de farda que hoje são eles, manifestantes, que sofrem, mas que, amanhã, poderão ser a mãe ou os filhos de quem hoje reprime…

    O Chile hoje não é um país para amadores. Os manifestantes em sua maioria pertencem à classe média, classe que segundo eles não existe mais…

    Nas manifestações não existe uma bandeira única nem partidária… Ela é plural e igualitária. E sempre se vê a onipresente bandeira do povo originário mapuche.

    É difícil Piñera resistir. O Povo do Chile, como eles mesmo dizem, não tem mais medo, e canta alegremente: “Nos tienen miedo porque no tenemos miedo”.

    Como me disse uma senhora de 63 anos que viveu a ditadura de Augusto Pinochet e com quem conversei, “os jovens de hoje não se curvaram à intolerância”. Ela disse também que no Chile nasceu o neoliberalismo na América Latina e no Chile começou a sua queda.