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Categoria: Entrevista

  • “A luta de classes nunca tirou férias neste país”

    “A luta de classes nunca tirou férias neste país”

     Em entrevista aos Jornalistas Livres e Brasil de Fato, o pesquisador e professor emérito da UFRJ, José Paulo Netto, analisa recentes manifestações de ódio contra determinados setores da sociedade a partir da formação social e da cultura política brasileira.

    Manifestações de ódio, racismo, declarações machistas e ameaças verbais e físicas contra lideranças da esquerda têm sido constantes no último período no país. Segundo o professor José Paulo Netto, essas atitudes têm relação com a tentativa das classes dominantes de “afastar a massa do povo dos centros de decisão política”.

    José Paulo Netto é doutor em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi vice-diretor da Escola de Serviço Social da UFRJ e do seu Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, tendo título de professor emérito na instituição. Tradutor e organizador de textos de autores clássicos como Marx, Engels, Lênin e Lukács, em que se destaca como grande especialista, produziu obras teóricas e políticas sobre o capitalismo, serviço social e marxismo. É membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e atua em parceria com movimentos sociais, como o MST.

    Em entrevista ao Brasil de Fato e aos Jornalistas Livres, ele faz uma análise das classes dominantes a partir da formação social brasileira, fala sobre o quadro político atual no país e sobre como atuam as elites em face da crise do capitalismo contemporâneo.

    Para Netto, é justamente em momentos de tensões políticas e econômicas que “todo esse porão da sociedade brasileira, com um forte sentimento antipovo, antipopular, antimassa, racista e discriminador, vem à tona”.

    Foto: Leandro Taques/Jornalistas Livres

    Jornalistas Livres — Estamos presenciando a todo o momento ataques da direita brasileira que deixam explícitos o preconceito, o racismo e o sentimento de ódio contra determinados setores da sociedade. Como a nossa formação social pode nos ajudar a compreender essas atitudes?

    Se analisarmos com cuidado a história brasileira, vamos encontrar algumas constantes que são traços constitutivos da nossa formação social e que, portanto, são elementos constitutivos da cultura política brasileira. Um traço muito visível de meados do século XIX em diante tem sido a capacidade das franjas das camadas mais ativas das classes dominantes em afastar a massa do povo dos centros de decisão política. Mesmo quando tivemos, ao longo do século XX, momentos de institucionalização mais ampla da participação política, tivemos elementos, mecanismos, meios e modos que constrangeram ou limitaram essa participação política a processos adjetivos. Costumo dizer que tivemos no Brasil um processo tardio, lento, desigual e sinuoso de socialização da política.

    Isso ganhou certa magnitude com a derrota da ditadura instaurada em 1964. A constituição de 1988 consagrou direitos políticos essenciais, abriu caminho para se repensar direitos civis e, sobretudo, ampliou o leque dos direitos sociais no país. Com todas as desigualdades e assimetrias, creio que se pode dizer que no pós-1988 tivemos formalmente a institucionalização da cidadania moderna no Brasil. Entretanto, se observarmos o processo de luta contra a ditadura, de crise da ditadura e de transição democrática no Brasil, teremos a clara percepção dessa capacidade das franjas mais ativas das classes dominantes de encontrar meios de excluir a massa do povo de processos decisórios. Tivemos um processo de socialização da política, mas nem de longe um processo de socialização do poder político. Isso tem relação com o que eu chamo de linhas de continuidade na nossa história.

    O senhor pode citar alguns exemplos disso?

    O Brasil foi um país escravocrata. Em 1888 tivemos uma abolição inteiramente formal, em que não se criou nenhuma pré-condição para que o liberto pudesse construir sua vida autonomamente. Da noite para o dia foram libertos, mas sem ter terra, sem ter nada. Esta cultura escravocrata não desapareceu. Há exemplos recentes. As camadas médias (não necessariamente camadas oligárquicas) reagiram negativamente em face da legislação acerca do trabalho doméstico. Poderíamos citar outros exemplos como o acesso à universidade, historicamente elitista. É só observar a dimensão das nossas universidades e a população em condições etária e formal de ingressar ali.

    Deste modo, podemos perceber que a sociedade foi construída para que muito poucos usufruíssem dos direitos formais que ela veio (bem ou mal) escrevendo no seu ordenamento jurídico-político. Em momentos de crise ou em momentos de tensão, em que se agudiza abertamente a luta de classes (para utilizar um jargão da esquerda), todo esse porão da sociedade brasileira, com um forte sentimento antipovo, antipopular, antimassa, racista e discriminador, vem à tona. O processo de transição da ditadura fez com que amplos setores tivessem vergonha do seu conservadorismo. Mas isso acabou.

    Foto: Leandro Taques/Jornalistas Livres

    Qual foi o impacto do PT na mudança dessa atmosfera política?

    Eu diria que o PT teve um papel duplo. Pensando no PT como força de governo, a partir de janeiro de 2003, foram tomadas providências de caráter emergencial, mas que foram apresentadas como políticas duradouras de Estado e que beneficiaram objetivamente a massa mais pobre. Isso foi muito positivo. Ao mesmo tempo, isso foi feito no marco de uma orientação macroeconômica que privilegiou os grupos financeiros do país, que não restringiu em absoluto a fome lucrativa dos monopólios nacionais e internacionais. Isso criou uma situação paradoxal que pode ser observada ao cabo do mandato do Lula. Mas as elites jamais suportaram o significado simbólico de ter um trabalhador que tomava cachaça e falava errado na Presidência da República. O efeito PT (quando Lula se elege) é enorme do ponto de vista simbólico. Enfim um sujeito aparentemente igual à maioria da população chega lá.

    “Marolinha”?

    Lula elege sua sucessora no marco de uma crise econômica internacional gravíssima, a qual ele caracterizou como uma “marolinha”. Só que os efeitos daquela crise rebateram na periferia de formas distintas. Sob o governo dele, uma orientação macroeconômica conseguiu driblar bem esses efeitos. A articulação de economia política que funcionou nos dois governos dele não funcionou no governo Dilma. Não foi por incompetência da equipe gestora. Houve sim falhas técnicas, mas elas não são as mais importantes. Mas é que a “marolinha” virou um “tsunami”. Neste momento, aqueles mesmos grupos que foram altamente beneficiados no governo Lula põem para fora todo o seu preconceito de classe que vem acompanhado de manifestações de ódio de classe, de marcas racistas e, sobretudo, de uma entrada em cena, sem qualquer tipo de maquiagem, do velho elitismo brasileiro. Penso que este é o quadro em que estamos vivendo hoje.

    Como este elitismo se expressa?

    Penso que o processo eleitoral mostrou isso com clareza. Tivemos uma vitória eleitoral democrática que mostrou uma sociedade dividida. Não ponho em dúvida a legitimidade de vitória de Dilma. Mas não há duvida nenhuma que há uma legitimidade expressa eleitoralmente muito estreita em termos de maioria e que, portanto, é muito vulnerável. Exatamente sobre esta vulnerabilidade atuam as elites. Também operam através de uma mídia historicamente oficialista e porta voz de tudo aquilo que atravanca a conquista, a realização e a ampliação de direitos.

    De 1888 a 2015, quando se tem uma crise (não no sentido de possibilidade de quebra do regime, mas uma crise financeira do Estado), se não há orientações claras e políticas claras em face desta dificuldade, o momento se torna ideal para que os segmentos mais retrógrados se apresentem como são. Temos uma composição do legislativo que me parece a mais anódina e amorfa dos últimos trinta anos e, portanto, facilmente catalisada com propostas de oportunismo meramente eleitoral. Os que querem desestabilizar tem um prato feito. Não sei como vai se desdobrar esse processo governativo, mas tenho a impressão de que a presidente Dilma vai travar uma guerrilha diária. Não se satisfaz a fome de leão do PMDB com alface.

    Foto: Leandro Taques/Jornalistas Livres

    O senhor utilizou os termos “luta de classes”, “ preconceito de classe” e “ódio de classe”. Com toda a complexidade da divisão socioeconômica e das ramificações do trabalho na nossa sociedade, ainda podemos falar em classes sociais?

    Não tenho a menor dúvida. Classe social é uma categoria teórica que expressa elementos fundamentais da realidade em uma sociedade como a nossa. A sociedade brasileira tem hoje uma estrutura de classes muito complexa e eu desconheço qualquer estudo rigoroso e sério sobre isso. Não estou falando daqueles estudos publicitários que separam a nossa sociedade em classes A, B, C, D, etc., mas de estudos que tragam relações com os meios de produção e com a consciência de um projeto político. A luta de classes nunca tirou férias neste país. Ela esteve latente ou expressa ao longo desses últimos doze anos em manifestações referentes a determinados projetos de políticas públicas e em como fazer a orientação macroeconômica. Isso foi uma luta que atravessou o governo Fernando Henrique, o governo Lula e atravessa o governo Dilma. O que temos agora é uma emersão clara das posições de classe.

    E como é possível mediar essas tensões?

    Eu percebo um dilaceramento do tecido social brasileiro do ponto de vista político. O que é preocupante, porque não estão em jogo projetos políticos, mas projetos de nação. Que sociedade nós queremos? Nós queremos uma sociedade onde quem tem orientação diferente é objeto de espancamento e onde o dissenso político é resolvido com ameaças físicas? Vivemos uma conjuntura internacional difícil, com ajustamento na divisão internacional do trabalho. Nós vamos nos inserir nisso de maneira subalterna ou soberana? Temos que vir a público para determinar com clareza que tipo de sociedade nós queremos e para chegar lá são possíveis vários meios.

    Estamos com problemas que não vieram do governo Dilma, do governo Lula ou do governo Fernando Henrique. Eles vêm da nossa transição interrompida. Eu espero que tenhamos firmeza de princípios e sabedoria para resolvê-los sem romper um pacto civilizatório que fizemos pelos menos em 1988 e que, na minha opinião, está ameaçado por expressões de preconceito e ódio de classe. Não podemos repetir experiências traumáticas do passado, cujos resultados foram desastrosos para a massa do povo brasileiro, ainda que tenham sido excelentes para as suas elites.

    Nesse sentido, penso que temos que olhar a política brasileira para além das expressões institucionais abastardadas, onde se troca ministério por voto no Congresso Nacional. Isto não é o Brasil. Isto é a expressão institucional da política brasileira. A política brasileira está nas universidades, nas fábricas, nas usinas, nos escritórios, no comércio e nas ruas.

    Foto: Leandro Taques/Jornalistas Livres

    O senhor é um grande especialista da obra de Marx, um nome que causa arrepio nas elites e nos setores mais conservadores da sociedade. Os intelectuais que se utilizam deste referencial teórico tem sido acusados de promover “doutrinação ideológica” nas universidades. O que o senhor pensa disso? É possível resgatarmos Marx para analisar a sociedade contemporânea?

    Uma das coisas que mais tem me divertido na exposição do pensamento da direita brasileira (se é que ela pensa) é imaginar que os comunistas estão no poder. Isso é coisa do Olavo de Carvalho, não é? É uma calúnia contra o PT e contra os comunistas, mas deixemos isso de lado. Primeiro, eu diria que no universo cultural, resultado de experiências históricas e da batalha de ideias sob a hegemonia burguesa, o marxismo andou muito desprestigiado e muito desacreditado. No final da década de 1990 houve um acantonamento do pensamento marxista. Isso mudou nos últimos dez anos na universidade e fora dela. Houve um interesse renovado pelas ideias de Marx, não apenas no Brasil. Segundo, eu acho que Marx é um incômodo contemporâneo para nós. Essa crise sistêmica que o capitalismo está experimentando (pelo menos desde o início do século) está trazendo a discussão sobre uma série de projeções que Marx fez. Ele é extremamente atual. É impossível tentar compreender com seriedade as mutações econômicas dos últimos 30, 40 anos sem Marx.

    Socialismo?

    Não há solução para a crise do capitalismo. Ela é global não no sentido do globo, mas por ser uma crise ética, política, econômica e ecológica. O padrão de civilização capitalista se exauriu. Não adianta dar carros para todo mundo, pois não haverá lugar para jogá-los fora. Nós não podemos continuar nessas cidades que crescem loucamente sem nenhum planejamento. O capitalismo só tem a oferecer mais insegurança, mais instabilidade e mais violência. Nesse sentido, esgotado o capitalismo, a única alternativa para ele é o socialismo. Não posso ser original: “Ou o socialismo ou a barbárie”. E a barbárie já está aí pertinho. Sob esse aspecto, o socialismo é extremamente atual. Agora a questão é se essa atualidade é transformada em viabilidade. E eu não vejo essa viabilidade em curto prazo. O que me torna muito pessimista, pois quanto mais tardia a alternativa do socialismo, maior será a destruição que o capitalismo pode realizar.

    Por que o senhor não vê essa alternativa no horizonte?

    Porque o socialismo não resulta da crise e da exaustão do capitalismo, mas de um duro, longo e difícil processo em que massas organizadas de homens e mulheres mudam o curso da vida coletiva e individual. Eu não vejo isso se desenhando em curto prazo no horizonte. Vou dizer algo que já foi dito por Antônio Gramsci e que é adequado para pensar o agora: “Quando aquilo que é velho ainda não morreu e aquilo que é novo ainda não emergiu, nesses tempos de transição, revelam-se fenômenos que são verdadeiras sociopatias”. Estou convencido de que a ordem do capital, que é o velho, ainda não morreu e a ordem do futuro ainda não emergiu. Então estes são períodos históricos que oscilam entre o trágico e o dramático.

    Foto: Leandro Taques/Jornalistas Livres

    A esquerda fala em revolução, em protagonismo da classe operária e em tomada de consciência pela massa. Mas também defende que qualquer tipo de transição radical passa por uma formação séria dos trabalhadores. Como o senhor vê isso? E como essa formação de caráter teórico se transforma em prática?

    Eu não penso que as massas revolucionárias serão massas teoricamente muito ilustradas. O que leva os trabalhadores a querer mudar de vida é o momento em que suas vidas se tornam insuportáveis. É evidente que camadas de trabalhadores letradas e informadas são muito mais capazes de tomar consciência dos seus interesses do que camadas trabalhadoras rústicas, mantidas na ignorância pelas classes dominantes. Acredito que a questão central seja a formação política dos militantes. Líderes e dirigentes não fazem a revolução. É inteiramente irrealista imaginar que o conjunto das classes trabalhadoras vai se transformar em líderes da transformação social. Segmentos que vão constituir as suas vanguardas (no plural) é que podem dirigir um processo de transformação social. O investimento na formação desses segmentos é absolutamente essencial. É preciso formação política com base teórica. Aqui não me refiro à agitação e propaganda ou doutrinação, mas sim a conhecimentos de teoria social que permitam discernir e distinguir o essencial do acessório, o substantivo do episódico.

    Teoria e prática?

    A teoria é absolutamente indispensável para a formação de vanguardas que sejam capazes de, em momentos de ruptura e de tensão social, dar orientações claras, lúcidas, sérias e responsáveis às massas. Rupturas sociais são sempre processos traumáticos. Não apenas no sentido da violência material, mas elas envolvem rupturas ideológicas, intelectuais, éticas, etc. Se lideranças não tiverem competência teórica e sabedoria política, o resultado dessas rupturas pode ser catastrófico. Pode ser a derrota de bandeiras e demandas generosas e legítimas. Isso significa que ninguém avança no domínio do progresso social, da universalização de direitos, da criação de condições de uma consciência e de uma nova cultura política só pela militância operativa. É preciso formação teórica e cultural. Eu me atreveria a dizer que sem isso não caminharemos.

    Queria ser original, mas alguém já disse há cerca de 110 anos que “sem teoria revolucionária, não há revolução” [Lênin]. É preciso estudar, estudar e estudar para poder mobilizar e organizar com competência. Uma revolução não pode ser o arrebentar de uma represa de demandas reprimidas e de esperanças humilhadas. É sobre esse chão, sobre a indignação e sobre a revolta que corre a possibilidade de outro mundo. Mas ele tem que ser construído com cientificidade, competência e com uma palavra que está desgastada, que é a sabedoria.

    Foto: Leandro Taques/Jornalistas Livres
  • “ Não se nasce mulher, torna-se mulher”

    “ Não se nasce mulher, torna-se mulher”

    O café filosofico, realizado no Cheirim de Café, na sexta-feira (9) de outubro, contou com a participação de Ana Carolina Radd debatendo sobre o feminismo

    Por Klara Wingler (Domeio Conteúdos), para os Jornalistas Livres

    Ana Carolina Radd é formada em Direito e filosofia, faz doutorado em Ciências Sociais, e foi assessora legislativa na Câmara Municipal de Juiz de Fora-MG. Junto aos realizadores do evento apresentou sua palestra inspirada na vida de Simone de Beauvoir.

    “ Eu decidi falar sobre Simone de Beauvoir porque ela foi uma mulher muito forte tanto em sua personalidade quanto na participação da política feminina em uma época tão conservadora”

    Para ela, a mulher sempre foi relacionada a certa vulnerabilidade.

    “ Quando alguém tenta nos apoderar sempre nos colocam em situação de fragilidade, como se esse alguém pressupôs-se que sou uma pessoa frágil e preciso de proteção, pois ainda há a ideia de um masculino dominador, o ‘macho alpha’, um superior e o mundo está mostrando essa situação muito diferente”.

    – O feminismo na política

    Ana Carolina Radd (divulgação)

    Temas dentro do feminismo também foram comentados por Ana Carolina, como cota para mulheres na câmara “ Considero de extrema importância existir cota para mulheres na câmara pela base de representatividade que temos, pois somos minoria em cargos de poder, considerando da empresa até o parlamento. Somos a maioria de professoras nas universidades, porém os chefes de departamento são homens”. Ana Carolina também informa que as mulheres são maioria nos concursos públicos e comenta da desigualdade no mercado de trabalho “ As mulheres advogam nas varas de família, mas ainda há um preconceito de gênero sexual nas áreas criminais, que são ocupadas em sua grande maioria por homens, como também os cargos de indicação e geralmente esses possuem um salário mais elevado. A justificativa é sempre a de que iremos nos encaixar melhor em outro lugar, pois podemos “não dar conta” de tais trabalhos” e completa Então é muito importante que haja cotas para mulheres e mesmo que a gente não consiga preenche-las, essa é uma das formas que temos para discutir a importância da igualdade e nisso se aplica o feminismo”.

    – O feminismo como tabu em relacionamentos

    Simone de Beauvoir

    “ Em alguns relacionamentos, principalmente em relações heterossexuais, se a mulher não quer fazer algo, as vezes surge aquela pergunta “ Mas você não é feminista?” e as mulheres, por serem feministas, são libertárias e se decidirem não querer algo ela deve ser respeitada e geralmente isso é o que gera muita cobrança por parte dos homens” diz Ana Carolina Radd.

    – Estatuto da Família

    Quando perguntada sobre sua opinião do novo estatuto da família, onde só é considerado uma família, casais heterossexuais com crianças de sangue, Ana

    Carolina diz não concordar e que existem várias formas de família atualmente no Brasil. “ As mulheres com quem trabalho e as famílias que pesquiso, a maioria delas não se encaixam nesse padrão do Estatuto da Família. Muitas mulheres criaram e criam seus filhos sozinhas”. A pouco tempo o casamento homoafetivo foi legalizado no Brasil e de acordo com a estudante o Estatuto estaria retrocedendo no conservadorismo.

    Ana Carolina Radd deixa um recado especial para as militantes do feminismo, “ Eu gostaria de dizer para as militantes do feminismo para que elas não desistam. Ainda enfrentamos um período super conservador. Embora haja dificuldade em lutar em prol de movimentos feministas, é importante não desistir por mais que as vezes eles se colidam. Sejamos sempre solidárias umas com as outras, pois isso é o mais importante”.

    Foto: Ana Clara Sicalo

    – O feminismo no mundo masculino

    O organizador do evento, Valdir Ribeiro de 32 anos, professor de Filosofia da rede Estadual e FAETEC contou um pouco sobre a iniciativa e a importância de um evento feminista. “ A iniciativa surgiu em abril deste ano e a idéia é construir um círculo de debates sobre temas políticos, que são relevantes para a sociedade. Começamos com direitos humanos, passamos por redução da maioridade penal e nesse mês de outubro chegamos a teoria de gêneros e então o feminismo. É muito importante introduzir uma reflexão e ajudar no desenvolvimento de um pensamento crítico sobre esses temas”. Rodrigo Cosenza de 36 anos, professor de História comentou sobre a idéia de realizar um evento em prol das mulheres e da igualdade de gênero. “ A idéia de se realizar um evento feminista vai além de uma reflexão sobre a condição do indivíduo na sociedade. É preciso mostrar o atrito que existe dentro de nossas relações sociais e como elas estão presentes no cotidiano. A Carol ( Ana Carolina Radd), perpassou a questão de como é difícil permear essa questão de classes e se ter um debate feminista” e conta que o principal objetivo desses debates é promover possibilidades de novas reflexões e vínculos.

    “ Precisamos tratar de maneira mais harmoniosa nosso convívio e perceber o indivíduo na sua maior completude”.

    Rodrigo também comenta sobre a posição do homem emposta pela sociedade. “ É preciso se colocar a prova e na minha condição de homem, é me colocar no papel de um opressor, pois o mundo ainda é opressor com as mulheres. Ainda carregamos uma herança cultural e emocional, que nos impede de enxergar tais preconceitos e isso é ainda mais fácil do que a condição da mulher com o mundo nessas relações sociais” e diz que esses debates são importantes na conscientização tanto no feminismo, quanto nas relações de classes sociais,condições de gênero e preconceitos étnicos.

    CAFÉ COM CULTURA

    Dentre vários eventos culturais realizados no Cheirim de café, como exposição de quadros para vendas a brechós ambulantes, conversamos com Geo, comerciante e proprietária do estabelecimento.

    Como você se sente em proporcionar cultura para as pessoas?

    Geo: Sinto muita satisfação de ter uma casa onde possamos marcar debates independentes de seu tema. Gosto de poder proporcionar um lugar onde as pessoas possam preparar temas e trazê-los para serem discutidos em grupo. Acredito esse ser o bote inicial para um debate aberto e democrático acontecer.

    O que sentiu ao realizar um evento sobre o tema Feminismo?

    Geo: O tema feminismo me atrai, assim como outros temas realizados no café filosófico. Essa possibilidade da conversa, de poder olhar para os assuntos de forma aberta e debater sobre eles, tendo alguém que faça o papel de curador, mediador e não o dono da palavra é muito importante. Muito me agrada conversar sobre o feminismo nesse ambiente.

    Geo deixa um recado amigável aos amantes da cultura e do café e os convida participarem dos encontros. “ O Cheirim de café é um espaço que gera links e cria vínculos, uma espécie de ponte para amizades duradouras” . Geozeli De Pinho, 32 anos.

  • Crise Hídrica: “Preservar é mais vantajoso do que apostar em grandes obras” afirma pesquisadora da Califórnia

    Crise Hídrica: “Preservar é mais vantajoso do que apostar em grandes obras” afirma pesquisadora da Califórnia

    Preservar cada gota d’água, consertando os vazamentos da rede de distribuição de água, é um investimento muito mais vantajoso do que as atuais apostas em grandes obras de transposição no estado de São Paulo.

    Essa é a visão de , Newsha pesquisadora da Universidade Stanford, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos, que esteve no Brasil em dezembro de 2014 para discutir, junto ao governo paulista, a crise hídrica de São Paulo.

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    Newsha também é diretora do programa Water in West, que trabalha com alternativas de modelos de gerenciamento hídrico a serem implantados no Oeste dos Estados Unidos, onde, só na Califórnia, já se completaram quatro anos consecutivos de seca. Ela enxerga as grandes obras como investimentos “em uma fonte alternativa que não se sabe se vai estar lá ou não daqui a 30 anos.”

    Confira e entrevista que ela concedeu por Skype para o Conta D’água:

    Conta D’água — Você esteve aqui em São Paulo no ano passado, em dezembro, e li que você ficou muito surpresa quando viu que havia um rio no meio da cidade, cheio de água. Mas como está situação do Califórnia?

    Newsha Ajami — Nós temos uma grande seca, este é o quarto ano. E nós não temos esse tanto de água. Nossos reservatórios estão quase vazios, e não temos tanta água neles, que são praticamente nossa fonte de água. O verão acabou, então estamos esperando que talvez o El Niño traga alguma chuva, mas, se continuar assim e não tivermos mais neve e chuva este ano, com certeza estaremos em uma situação muito crítica no ano que vem em relação ao fornecimento de água.

    Conta D’água — Outra coisa que chamou sua atenção aqui foram os vazamentos em nosso sistema hídrico. O quão prejudicial é isso? O reparo é simples?

    Newsha Ajami — É necessário tecnologia para identificar onde estão os vazamentos para depois consertá-los. Não é super fácil, mas é um reparo valioso, porque cada gota d’água que entra em seu sistema hídrico você tem que limpar, gastando uma grande quantidade de energia e de recursos para limpá-la e inseri-la em seu sistema. Então, quando você perde aquela gota d’água, é uma perda financeira, de recursos que já foram gastos no sistema. É algo que deve ser feito. Precisa de um grande investimento de capital, mas é um investimento mais vantajoso do que construir grandes aquedutos para trazer água de grandes distâncias para São Paulo.

    Conta D’água — Sim, porque perdemos quase 30% de nossa água com esses vazamentos.

    Newsha Ajami — E isto é um grande problema.

    Conta D’água — A respeito desses grandes projetos para trazer água de outros locais, quais são as consequências futuras que eles podem trazer?

    Newsha Ajami — Isto pode ser olhado por diversos ângulos. Uma das consequências é o fato de que em 20, 30, 50 anos poderá não haver água o suficiente para se desviar para São Paulo. Então eles estão basicamente confiando em uma fonte alternativa que não se sabe se vai estar lá ou não daqui a 30 anos.

    “A população está crescendo e as exigências dessa população são maiores em relação ao acesso à água. Está se investindo uma grande quantidade de capital em algo que pode não ser confiável daqui a alguns anos.”

    Além disso, é preciso pensar no montante de dinheiro necessário para se construir algo assim e nas consequências ambientais, obviamente. É uma infraestrutura que precisa de manutenção, não é algo barato e pode causar grande destruição no plano ambiental e do ecossistema do rio do qual você está retirando a água.

    Conta D’água — A Califórnia também vem realizando grandes obras a fim de combater a crise hídrica?

    Newsha Ajami — Na Califórnia, nós basicamente trazemos água de nossas montanhas. A neve derrete e vai a reservatórios, de onde é redirecionada para diversas regiões. Há grandes canos e aquedutos que transferem a água da região mais ao norte do estado para a costa oeste e a região sul, além de áreas agrícolas na região central. Nós fazemos o mesmo, mas não só retiramos a água dos rios, existe um sistema complicado de captação que depende da neve nas montanhas.

    Conta D’água — Como lidar com a crise em relação ao crescimento populacional?

    Newsha Ajami — A Califórnia é o estado mais populoso dos EUA e está crescendo. É um grande desafio, mas temos nos virado muito bem nos últimos vinte anos, mantendo o uso de água estável. Retiramos o mesmo montante de água de trinta anos atrás, a partir de diversas fontes. Estamos atendendo a demanda do crescimento populacional com a mesma quantidade de água [de trinta anos atrás]. Pode-se dizer, em outras palavras, que a produtividade que imprimimos para nossa água vem aumentando. Com cada gota d’água, cumprimos a demanda exigida pelo aumento de pessoas, pela agricultura e pela indústria. Em paralelo, muitas discussões vêm acontecendo aqui sobre os usos da água pelo homem e para a geração de energia, e o quão conectados esses sistemas estão.

    Conta D’água — Aqui, em São Paulo, o governo demorou muito tempo para admitir que houvesse uma crise hídrica acontecendo, insistindo em negá-la. E na Califórnia?

    Newsha Ajami — Não, não foi a mesma coisa. Estão definitivamente reconhecendo que há uma seca acontecendo e que estamos em uma crise hídrica. Não há negação nesse aspecto. Aconteceu que a seca pôs um holofote nos problemas de gestão da água que existiam e promoveu muitas discussões entre diferentes setores e porções da sociedade para falar sobre o que queríamos fazer, como iríamos sobreviver, como iríamos gerenciar nosso sistema hídrico de forma que ele fosse mais eficiente e sustentável. É um tópico sobre o qual todos falam e o gerenciamento do uso da água na seca, além dos desafios que vêm com ele, estão no topo das prioridades do governo.

    Conta D’água — Desde o começo da crise?

    Newsha Ajami — Sim, com certeza. É claro que o número de anos em que convivemos com a seca se estendeu, e os desafios aumentaram. Sem chuvas, os reservatórios não se enchem, e sempre recorremos às mesmas fontes. Então, a cada ano a situação tem se tornado pior do que estava antes. Nos primeiros anos de qualquer seca, de forma geral, você deseja que melhore e apenas espera. No terceiro, quarto ano, você começa a perceber que o problema pode perdurar por um longo tempo e que soluções precisam ser encontradas.

    “Agora há um chamado oficial para a redução do uso da água, há uma grande campanha para a conscientização da população, para que ela entenda o que está acontecendo e não desperdice, para assegurar que as pessoas estejam conscientizadas.”

    Conta D’água — Quais são as soluções de curto prazo em relação à crise que estão sendo tomadas na Califórnia e que não estão sendo realizadas em SP?

    Newsha Ajami — Estive em São Paulo por um curto período de tempo, então não posso dizer de fato o que estava e o que não estava ocorrendo. Eles mencionaram que estavam concedendo bônus a quem economizasse água, que é um modo de lidar com a escassez e encorajar as pessoas a economizar água. Quase um ano se passou, então não tenho muita noção do que está acontecendo, mas a realidade é que aqui começamos a multar pessoas que estão desperdiçando água, aguando os gramados, lavando os carros e as calçadas.

    Temos tido muitas discussões sobre como cobrar pelo fornecimento de água; há muitas coisas acontecendo, além da grande campanha de conscientização, com cartazes e folhetos nas casas das pessoas. Alguns sistemas que se comunicam com os clientes começaram a ser implementados para informar a quantidade de água que eles estão usando, e a comparação com os seus vizinhos. Além de incentivos financeiros para que a população mude os equipamentos de suas casas e investimentos para diversificar as nossas fontes de recursos hídricos, com captação de água das chuvas, para limpá-la e reutilizá-la.

    “Vocês em São Paulo têm o rio Tietê no meio da cidade e poderiam criar sistemas de reúso dessa água, garantindo que ela não fosse poluída. Um dos problemas que há com o Tietê é que as cidades da região da nascente [Alto Tietê] depositam seu esgoto diretamente nele. Há muito que pode ser feito, mas o principal é proteger e conservar as fontes de água existentes e captar a água das chuvas.”

    Conta D’água — Aqui em São Paulo há casos de pessoas que ficam cerca de quatorze horas no dia sem acesso à água em suas casas. Isso acontece na Califórnia?

    Newsha Ajami — Não fizemos isso ainda. Conversei sobre racionamento com as autoridades brasileiras e elas entendem que ele remete à interrupção do acesso à água, mas não é o que fazemos aqui.

    “A razão é que interromper o fluxo do sistema hídrico e depois fazê-lo funcionar novamente pode contaminar as fontes de água. Definitivamente não fazemos isso aqui.”

    Conta D’água — E os riscos de contaminação são reais?

    Newsha Ajami — Eles são reais. É preciso pensar que os canos sempre têm algum tipo de rachadura que podem entrar em contato com contaminantes do solo que os envolve, os quais vão se inserir neles através do vácuo que é formado [quando se fecha o registro]. Quanto mais vazamentos existem em seu sistema hídrico, as chances de contaminação são maiores.

    Conta D’água — E a reutilização da água da chuva?

    Newsha Ajami — Quando eu estava em São Paulo choveu o dia todo e as ruas ficaram cheias de água. Essa é uma ótima fonte hídrica que pode ser captada, e a parte boa é que ela é muito limpa, então é uma boa solução para a região de vocês, que tem grandes índices pluviométricos. É triste assistir à água escorrendo para os rios e se misturando com a água poluída de lá, o que é um grande desperdício.

    Conta D’água — Quais são os desafios para o futuro?

    Newsha Ajami — Aqui na Califórnia constantemente falamos sobre não confiar em apenas uma fonte de água, ter um extenso portfólio de soluções, ter várias opções. Estamos definitivamente progredindo e diversificando nosso portfólio de fornecimento de água, incluindo mais de uma solução e contando que elas sejam confiáveis e sustentáveis. É muito importante para nós termos certeza de que estamos usando a água da maneira correta.


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  • “O cidadão que consome drogas é um portador de direitos como todos os outros”

    “O cidadão que consome drogas é um portador de direitos como todos os outros”

     

    Em entrevista aos Jornalistas Livres, o antropólogo Mauricio Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Drogas defende que a atuação do Estado deixe de ser uma questão de segurança pública e passe a ser observada sob o ponto de vista da saúde e dos direitos humanos.

    A guerra às drogas é um modelo falido. A política de repressão ao uso e comércio fracassou: não houve redução na oferta e demanda de drogas ilícitas. Ao contrário, o que aconteceu foi o aumento da violência, o superencarceramento e mais corrupção, mistura que amplia a vulnerabilidade social de quem já se encontra em situação delicada.

    O Brasil é um dos países mais ativos na construção do “proibicionismo”, políticas que criminalizam o consumidor, que têm viés punitivo, ligado à segurança pública e não aos direitos humanos. “Há uma tendência cada vez mais forte de questionamento, em nível global, da guerra às drogas e de todos os seus terríveis efeitos na saúde pública, no nível de violência e criminalidade”, explica o antropólogo Mauricio Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Drogas, lançada na noite desta quinta-feira (28/5). A Plataforma é uma rede formada por 28 entidades e composta por um robusto conselho consultivo, que agrega lideranças em diversas áreas ligadas à justiça e aos direitos humanos.

    Colocar a questão das drogas no rol da saúde pública, sob a lupa dos direitos, com foco na redução de danos — e não na criminalização — , faz parte da missão da Plataforma, que pretende qualificar o debate e incidir sobre as políticas de drogas. Tem como eixos prioritários a promoção da saúde pública, da educação, do desenvolvimento social e econômico e a redução de todos os tipos de violência. Propõe uma cultura de paz, que trabalhe a liberdade, a autonomia do indivíduo e o respeito aos direitos humanos.


    Jornalistas Livres — Estamos vivendo uma mudança nas políticas de drogas na América Latina. Políticas de viés punitivo e proibicionista, importadas dos Estados Unidos, se provaram ineficazes e, pior que isso, nocivas. Legalização e mudanças na legislação são tendências atuais, assim como uma abordagem que considere saúde pública e direitos humanos. Qual é o posicionamento da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas sobre uma política eficiente e inclusiva? É uma tendência mundial?

    Mauricio Fiore— Um apontamento, antes de responder. Ainda que os EUA tenham tido um papel fundamental na consolidação da paradigma proibicionista, não podemos dizer que os países latinoamericanos tenham importado esse modelo. O Brasil é um bom exemplo de um país que teve papel ativo na construção do proibicionismo, principalmente com relação à maconha. Feita essa ressalva, o cenário é esse que você desenhou, há uma tendência cada vez mais forte de questionamento, em nível global, da guerra às drogas e de todos os seus terríveis efeitos na saúde pública, no nível de violência e criminalidade e no respeito aos direitos humanos.

    As cerca de trinta organizações que compõem a Plataforma não têm um consenso fechado sobre um novo modelo de política de drogas, mas um consenso em torno do diagnóstico crítico ao paradigma atual. Alguns membros trabalham com a ideia de simplesmente tirar as drogas do campo penal, outros em regular sua produção e comércio; outros membros estão mais focados no tratamento digno e em liberdade para usuários e dependentes de drogas. Ou seja, a Plataforma quer ser um instrumento para potencializar a ação de seus membros e colocar a discussão sobre política de drogas em outro patamar e, assim, construir uma política de drogas mais justa e eficaz.

    JL — Como se dá essa relação entre a proibição e o nascimento do tráfico, tema da campanha do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec)? Como seria se não houvesse proibição?

    Mauricio — Sob uma certa perspectiva, foi a proibição que criou o tráfico, já que colocou fora de qualquer tipo de controle um mercado gigantesco e, ao mesmo tempo, gerou um faturamento de risco por conta de ilegalidade. A campanha do Cesec é muito feliz em chamar a atenção da população em geral para isso, pois há uma naturalização da questão das drogas, como se o tráfico sempre tivesse existido. O que sempre existiu é o uso de drogas, o tráfico é uma fenômeno contemporâneo. Caso nos afastemos progressivamente do modelo proibicionista, poderemos criar políticas públicas que foquem no uso de drogas em si e nos problemas que elas podem acarretar, que não sou poucos.

    JL — Quais são as políticas defendidas pela PBPD? Como podem “garantir a autonomia e a cidadania das pessoas que usam drogas e o efetivo direito à saúde e ao tratamento em liberdade”, parte da missão da organização?

    Mauricio — Como eu disse anteriormente, a Plataforma atua mais a partir de um diagnóstico crítico do que tendo um modelo de política de drogas pronto. Mas há alguns valores compartilhados, como a retirada da questão das drogas da esfera penal, o fortalecimento da redução de danos como forma de atenuar os efeitos negativos das substâncias psicoativas e também a defesa de modelos de atenção e tratamento baseados em evidências científicas e não no isolamento forçado e com práticas desumanizadoras. Um ponto central das políticas promovidas pela Plataforma é ver no cidadão que consome drogas, tenha ele problemas ou não com esse uso, um portador de direitos como todos os outros e cuja assistência médica e social visem a melhora de seu quadro, não necessariamente a sua submissão moral a uma determinada escala de valores.

    JL — Como vocês avaliam as políticas de drogas no Brasil? Qual é a tendência? Há abertura para o diálogo? O que opinam sobre os programas da prefeitura paulistana na Cracolândia?

    Mauricio — O Brasil está distanciado das discussões mais avançadas em política de drogas, está inserido completamente no paradigma proibicionista do sistema ONU.

    “Somos um dos países que mais sofre as consequências dessa política na nossa violência. Temos mais de 55 mil homicídios por ano e a política de drogas é uma parte importante desse cenário.”

    No entanto, percebemos algumas possibilidades de avanço no horizonte. Mas há que se ter cuidado, pois a lei de drogas de 2006, por exemplo, foi percebida como um avanço na época, mas teve consequências práticas muito ruins, como o aumento do encarceramento. De qualquer forma, há setores no executivo e no judiciário que admitem que o crescimento exponencial do encarceramento e, assim, sinalizam mudanças pontuais. O STF, por exemplo, deve discutir em breve um recurso que pede ainconstitucionalidade da criminalização da posse de drogas para uso pessoal.

    Caso julgue o recurso procedente, isso pode ter um impacto importante, forçando o legislativo a se posicionar mais claramente na definição de uso e tráfico. Mas ainda há muita resistência na sociedade, que encara qualquer crítica à situação atual como uma defesa do uso de drogas. Na verdade, é uma defesa do debate racional sobre política de drogas, o que ainda não acontece no Brasil. Sobre o Braços Abertos, nos parece uma política inovadora, que encara o problema das pessoas que vivem naquela área como muito além do consumo abusivo de crack, mesmo que esse seja um problema dramático. No entanto, há problemas, não só do próprio programa, mas que têm a ver com o próprio modelo proibicionista e nossa estrutura urbana. A coordenação científica da Plataforma está envolvida numa pesquisa de avaliação do programa que deve estar pronta nos próximos meses.

    JL — Está comprovada a relação entre crimes hediondos e uso de drogas? O que está por trás dessa associação?

    Mauricio — As evidências indicam que a maior associação entre crimes violentos e drogas está no seu mercado, e não no consumo em si. É claro que há uma associação entre padrões de consumo de algumas drogas com ações violentas, por exemplo, o consumo de álcool com violência doméstica. Mas uma política de drogas digna desse nome tem que enfrentar essas possibilidades de acordo com os padrões e as características do consumo de cada substância. Drogas estimulantes, por exemplo, devem ser pensadas de maneira mais cuidadosa, no que diz respeito à violência associada, do que a maconha ou o tabaco, para ficar em dois exemplos práticos. Mas, repito, hoje é o mercado de drogas ilícitas que está relacionado à violência.

    Ironicamente, inclusive, a lei brasileira considera o tráfico de drogas um crime equiparado aos crimes hediondos, com uma execução penal severa. Esse é um dos motivos que faz com que mais de um quarto dos homens e dois terços das mulheres presas tenham sido punidas por tráfico de drogas.

    Foto: Mídia NINJA