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Categoria: Debate

  • Movimentos de luta por moradia fazem ato contra injustiças

    Movimentos de luta por moradia fazem ato contra injustiças

    Uma tragédia na vida de 1.230 famílias. O Judiciário determinou o “despejo” dessas famílias de suas casas. Os magistrados determinaram a utilização de armas para arrancar mulheres, adultos e perto de mil crianças de suas moradias. Com essa violência as crianças também serão expelidas das escolas. A decisão do Judiciário afronta a lei e ao mesmo tempo viola os direitos fundamentais das pessoas. As 237 famílias do edifício da Rua Mauá, 340 moram no local há mais de dez anos. Na Av. São João, 588, as 81 famílias moram há mais de sete anos. As 354 famílias da Ocupação Parapuã e as 194 da Ocupação Imirim estão no terreno há três anos. As 110 famílias da ocupação Elza de Guimarães, as 48 famílias da Ocupação Vitória – Cidade Ademar e as 100 famílias da Ocupação de Guaianazes estão nas terras há mais de oito meses.

    A decisão do Judiciário é injusta, pois quer restituir a posse da propriedade a quem as abandonou e nunca exerceu o domicilio que a lei determina. Portanto, não as possui. Não deu função social determinada pela lei. A posse é daqueles que estão morando no local. Protegendo suas famílias, seus filhos e exercendo seus direitos fundamentais.

    Jogar essas famílias na rua é fechar os olhos para as pessoas e para a justiça. Não é razoável a decisão do Judiciário. Assim sendo estamos aqui para que o poder público não permita o despejo dessas famílias. Conclua a desapropriação do imóvel da Rua Mauá, 340, da Av. São João 588, da Av. Ipiranga, 879 e do Motel na Rua Maco Gagliano, 55. E que as terras da Cohab: Parapuã, Imirim, Elza de Guimarães, Guaianazes, que atendam essas famílias em projetos habitacionais ou deixem elas morando lá. Não podemos aceitar essa decisão injusta que o viola o direito das pessoas. Como já dizia São Tomás de Aquino: ““Quando a necessidade é premente, os bens são comuns”.

     

     

    QUEM NÃO LUTA, TÁ MORTO!
    São Paulo, 22 de junho de 2017

    A FLM – Frente de Luta por Moradia, articulação de movimentos de moradia que atua na cidade de São Paulo, vêm a público denunciar a retomada e intensificação de uma agenda de reintegrações de posse que se executadas jogarão às ruas 1.230 famílias que não tem onde morar. Entendemos, que as ações de despejo determinadas pelo Judiciário são um massacre às famílias sem teto. Que atacam um direito Constitucional, que é o direito à moradia. Favorecem injustos proprietários e a especulação imobiliária. Ferem o direito à vida, à dignidade, à segurança, a um lar. Além disso, entendemos que cabe a PMSP assumir a defesa e proteção destas famílias para que não sejam jogadas às ruas. Por isso, convocamos as bases da luta por moradia para lutar contra essas injustiças. Quem não Luta, Tá Morto!

     

    Relação de ocupações que serão afetadas com ordens de despejo

    1. Ocupação Mauá – Rua Mauá, 340 – ocupado desde março de 2007. Vivem no local 237 famílias. O processo correu na 26ª Vara – Juíz responsável: Carlos Eduardo Borges Fantacine. O último pedido de recurso correu no Tribunal de Justiça julgado pelo Desembargador Simões de Vergueiro. Processo nº 0038511-10.2013.8.26.0100.

    Durante a última gestão, a PMSP publicou um DIS – Decreto de Interesse Social para a desapropropriação do imóvel para destinação a programas de atendimento habitacional. Foi efetuado o depósito do pagamento de R$ 11 milhões de reais para os injustos proprietários, que questionaram o valor pago e apresentaram laudo de avaliação no valor de R$ 18 milhões de reais. Dando prosseguimento a este processo o Juíz responsável pelo caso, solicitou nova perícia para revisão dos valores. O Perito Judicial avaliou o imóvel em 24 milhões de reais. O valor final absurdo apresentado pelo Perito fez com que a PMSP desistisse da desapropriação e novamente os moradores da ocupação Mauá voltam a viver o drama de execução de uma liminar de reintegração de posse, que condena essas famílias à vida nas ruas da cidade de São Paulo.

    1. Ocupação São João – Av. São João, 588 – ocupado desde outubro de 2010. Vivem no local 81 famílias. O processo correu na 39ª Vara Cível Central. Durante a última gestão, o imóvel recebeu DIS, mas os proprietários não aceitaram os valores oferecidos pela prefeitura como indenização. Fazendo mais uma vez correr uma ação de reintegração de posse, que jogará nas ruas os moradores que zelaram por este imóvel nos últimos sete anos. Processo nº 0109886-63.2010.8.26.0100.

    2. Ocupação Ipiranga – Av. Ipiranga, 879 – ocupado desde abril de 2012. Vivem no local 106 famílias, sendo 96 crianças, 4 deficientes e 5 imigrantes. Juíza responsável: Simone Gomes Rodrigues Casoretti da Fazenda Pública. Os moradores desta ocupação passaram os últimos cinco anos reformando e zelando por este imóvel que estava abandonado. Não houve avanço nos processos de desapropriação e compra do imóvel por parte da prefeitura. Hoje, tramita no Judiciário uma ação de reintegração de posse que coloca as 106 famílias moradoras deste imóvel nas ruas. Processo nº 0205591-33.2012.8.26.0100.

    3. Ocupação Parapuã – Rua Augusto do Amaral, 100 – Brasilândia, ocupado desde abril de 2014. Vivem no local 354 famílias. A área pertence a COHAB e é destinada a Habitação de Interesse Social. Esteve abandonada por mais de trinta anos. Hoje, as famílias que lá residem fazem cumprir a destinação à moradia. Processo nº 1004974.39.2014.8.26.0020.

    4. Ocupação Imirim – Rua Atlantico Meridional, nº 82 – Vila Imirim, ocupado desde fevereiro de 2014. Vivem no local 194 famílias. A área pertence a COHAB e é destinada a Habitação de Interesse Social. Esteve abandonada por mais de trinta anos. Hoje, as famílias que lá residem fazem cumprir a destinação à moradia.Processo nº 1007673.39.2014.8.20.0001.

    5. Ocupação Elza de Guimarães – Rua Elza de Guimarães, 277, Lauzane Paulista, ocupado em outubro de 2016. Vivem no local 110 famílias. A área pertence a COHAB e é destinada a Habitação de Interesse Social. Esteve abandonada por mais de trinta anos. Hoje, as famílias que lá residem fazem cumprir a destinação à moradia. Processo nº 1007673.39.2014.8.20.0001.

    6. Ocupação Vitória – ANTIGO MOTEL – Rua Marco Gagliano, 55 – Cidade Ademar, ocupado em outubro de 2016. Vivem no local 48 famílias, sendo 40 crianças, 2 crianças com necessidades especiais e uma pessoa com deficiência. O processo correu na 74ª Vara Cível do Fórum de Santo Amaro.O imóvel estava abandonado. Servindo a ratos e baratas. As famílias que ocuparam o local hoje passam a refazer as suas vidas, pois estão fora dos altos aluguéis. A área pode ser destinada a habitação para atendimento de muitas famílias sem teto. Processo nº1060177-48.2016.8.26.0002.

    7. Ocupação Guaianazes – Rua Profº Wilson Reis Santos, 100, ocupado desde outubro de 2016. Vivem no local 100 famílias. A área pertence a COHAB e é destinada a Habitação de Interesse Social. Esteve abandonada por mais de trinta anos. Hoje, as famílias que lá residem fazem cumprir a destinação à moradia.O processo correu na 13ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo. Processo nº 1006173-10.2013.8.26.0053.

    Veja a programação para o próximo sábado na Ocupação Mauá, saura da resistência:
    https://jornalistaslivres.org/2017/06/sarau-okupa-maua-okupa-chama-todos-para-fortalecer-luta/

  • INFORMAÇÃO (E SUBSTÂNCIA) DE QUALIDADE

    Por Jessica de Almeida, para os Jornalistas Livres 

    Foto: Rafael Marques/Coletivo Chão/divulgação

    “Se pensarmos no ser humano como um ser que é dotado de desejo e curiosidade e que busca aliviar tensões pela via do prazer, é mais do que justo que ele utilize essas substâncias em determinados contextos para se sentir bem, compartilhar momentos e é isso que o espaço de festa é, um espaço de amor, de busca, e a nossa ideia é como deixar o espaço de confraternização mais seguro e saudável para as pessoas que estão ali compartilhando. O recorte aqui será a redução de danos em contextos de festa”, introduz uma mulher ruiva e de vestido longo. A partir dali, a discussão teve como norte a ética e o respeito sobre escolha de consumir substâncias, reflexões sobre possíveis riscos e estratégias de autocuidado, cuidado com o outro e a sociedade.

    A redução de danos tem como base um conjunto de estratégias cuidadosas que refletem sobre as vulnerabilidades em relação ao uso de drogas. Considera-se que as pessoas assumam a responsabilidade sobre suas escolhas, mas sempre prezando o mundo e os outros envolvidos. O conceito de redução de danos não é novo e os efeitos da aplicação dessas estratégias são célebres, como a iniciativa de troca de seringas para usuários de drogas injetáveis na Holanda, em 1984. A medida reduziu intensamente o contágio por doenças como a hepatite B e a propagação do vírus HIV. É facilmente acessível, hoje, materiais sobre a redução de danos enquanto política pública e tratamento efetivo de dependentes químicos a partir do uso de diversas outras substâncias. Mas o diálogo sobre redução de danos cruza, em vários momentos, com as discussões sobre a fronteira entre os usos recreativo, problemático e medicinal de drogas, a inclusão da população em situação de rua, a luta antimanicomial e práticas de sexo seguro.

    A plataforma brasileira de política de drogas é majoritariamente embasada no paradigma proibicionista, responsável pelo distanciamento da relação uso de drogas-controle sanitário (nos processos de produção, armazenamento e distribuição), tornando altamente duvidosa a composição de substâncias psicoativas, ampliando o risco de consumi-las e mantendo seus efeitos no campo do desconhecido.

    Surgida no início do século XX e pautada na ideia de que algumas substâncias devam ser inacessíveis para a sociedade. Os alvos de perseguição se tornam, então, essas substâncias específicas; as pessoas que a produzem, transportam e vendem; o próprio uso. Enquanto isso, outras substâncias são permitidas ou mantidas no regime médico. No caso da redução de danos, o impacto é no tratamento. Domiciano Siqueira, redutor de danos e presidente da Associação de Redução de Danos de Minas Gerais, destaca que “o uso de drogas é, sim, presente nas organizações sociais desde os tempos mais remotos, mas ninguém fala que ele [o uso] se tornou um problema há apenas 120 anos, com o proibicionismo”.

    Uma das proposições do paradigma proibicionista é que a única forma de reduzir o dano ou tratar uma pessoa em situação de dependência é cessar o consumo. Siqueira explica que a meta das ações de redução não é a abstinência e que há diversas formas de lidar com a questão, incusive a abstinência, ideal para alguns casos, mas não para todos. E é exatamente a totalidade que a política deve abarcar.

    Nem todos os envolvidos na contestação do proibicionismo tem uma direção clara sobre como deve ser a política de drogas ideal – já que nada além do que está posto foi tentado em grande escala – mas todos compartilham o diagnóstico de que este modelo é um fracasso, não só do ponto de vista da preservação dos direitos humanos, mas na garantia da promoção da saúde pública e da redução de danos. O propósito é mudar a discussão no Brasil de patamar e declarar oficialmente o fracasso da guerra às drogas.

    AÇÕES LOCAIS

    Já passa de duas de manhã e o celular de Frederico vibra. A demanda vem de uma pessoa que fez uso drogas e se viu diante de uma experiência difícil. No Whatsapp Frederico recomenda, primeiramente, o simples: tome um banho. Minutos depois, o resultado: “Tomei banho e fiquei de boa. ‘Brigadão aí”. É com um quê de orgulho que o redutor de danos do Coletivo Egrégora conta uma das ocorrências cotidianamente comuns de um ofício voltado para a boa “viagem” de alguém. “O tráfico é o maior produtor de danos individuais e sociais”, emenda.

    Segundo Frederico, uma das ações fundamentais para conter os riscos em espaços de festa é o uso de aparelhos de testagem. O drug checking exige reagentes químicos para “examinar” a composição de drogas. “Não é o ideal, mas é o que é possível fazer no Brasil, pois máquinas para fazer análises técnicas são caras para o contexto brasileiro”. O maquinário seria adequado para mostrar, com precisão, a dosagem da substância ou quais outros elementos compõem a droga.
    O emprego de reagentes químicos é a ação possível nos microespaços. Para usá-los, a recomendação é raspar levemente o comprimido ou fazer um recorte de ⅛ de um blotter – o “quadrado” de LSD – e, ao pingar apenas uma gota do reagente químico (armazenado em um frasco), a cor da reação identificará basicamente os componentes. O testador mais comum é o Marquis, usado frequentemente para testar comprimidos. Se uma gota do Marquis sobre a “bala” trouxer a cor roxa, ali contém MD (methedrina), mas, segundo Frederico, “pode ser ‘MD alguma coisa’, ou trinta coisas”, alerta.

    A comunidade de usuários de drogas em contexto de festas cada vez mais se preocupa com a redução de danos. “As pessoas tem se preocupado mais em perguntar, repassar informações para os amigos e há cada vez mais estandes de testagem em festas”, explica o redutor de riscos. Belo Horizonte está sendo incipiente nesse sentido. Um dos exemplos é o Festival Pulsar, festival de cultura alternativa e psicodélica com duração de cinco dias e circulação de cerca de três mil pessoas de todo o país. Neste ano o evento ocorreu em Ipoema, distrito de Itabira, mais especificamente na Cachoeira Alta. Frederico conta que desde a segunda edição a produção traz um coletivo de fora para fazer testagens e acompanhamento com redução de danos.

    RECORTE DE CLASSE

    Considerando a colossal diversidade de drogas e modos de consumo, é urgente o reconhecimento de que as políticas de drogas não podem, nem sequer devem, se dissolver de um entendimento amplo de sociedade. Ao abordar o uso de substâncias psicoativas, o recorte de classe deve ser lembrado, uma vez que “problemas” relacionados a drogas são concentradamente territorializados, aqueles considerados agentes desse problema tem classe e cor de pele bem definidas e a cidadania afetada. A abordagem foi lembrada pelo médico epidemiologista Mauro Cardoso.

    “A questão das drogas não se separa da questão de classe porque o problema das drogas é um problema do pobre. O rico não tem problema com droga. A gente pode falar que o consumidor de crack é um problema, mas há silêncio sobre o usuário da cocaína que é transportada por helicóptero”, lembrou e emendou: “A questão do crack é uma discussão em campo inimigo. A substância [o crack] é a pior situação do uso de drogas que eu conheço na realidade brasileira e quando começamos a discutir drogas a só pelo crack, estamos destacando o pior exemplo da situação, sendo que a prevalência de outras substâncias é mais comum”.

    Liberação de conteúdo inconsciente, recuperação de memórias, reflexão introspectiva, regressão – às vezes até o nascimento, insights religiosos psicofilosóficos são alguns dos efeitos de drogas psicoativas citadas por Cardoso. “Sintomas que, pelo menos para essa classe de drogas, praticamente remetem à terapia e esses efeitos dão a ideia de que você pode explorar tudo isso do ponto de vista da psicoterapia além da questão da escuta, como é feito”, opinou.

    EXERCÍCIO DE DIREITO

    A transformação da política de drogas enquanto questão social propõe ampliar os canais de comunicação e decisão entre os envolvidos na efetivação do direito à saúde previsto na Constituição de 1988: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. O cenário proibicionista brasileiro representa a necessidade de trazer aperfeiçoamento e melhor entendimento das contribuições possíveis de um pensamento humano sobre drogas.

    Rafael Marques/Coletivo Chão/divulgação
  • Atemporal: Os 10 pontos dos Panteras Negras ontem e hoje

    Atemporal: Os 10 pontos dos Panteras Negras ontem e hoje

    Reflexões sobre a luta antirracista nos EUA e no Brasil sob os olhos que quem vive o racismo na pele e se inspirou pela exposição “Todo poder ao povo! Emory Douglas e os Panteras Negras”

     

    1. Queremos liberdade. Queremos o poder para determinar o destino de nossa Comunidade Negra.
    2. Queremos emprego para nosso povo.
    3. Precisamos acabar com a exploração do homem branco na Comunidade Negra.
    4. Nós queremos moradia, queremos um teto que seja adequado para abrigar seres humanos.
    5. Nós queremos uma educação para nosso povo que exponha a verdadeira natureza da decadente sociedade Americana. Queremos uma educação que nos mostre a verdadeira história e a nossa importância e papel na atual sociedade americana.
    6. Nós queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar.
    7. Nós queremos o fim imediato da brutalidade policial e assassinato do povo preto.
    8. Nós queremos a liberdade para todos os homens pretos mantidos em prisões e cadeias federais, estaduais e municipais.
    9. Nós queremos que todas as pessoas pretas quando trazidos a julgamento sejam julgadas na corte por um júri de pares do seu grupo ou por pessoas de suas comunidades pretas, como definido pela Constituição dos Estados Unidos.
    10. Nós queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz. E como nosso objetivo político principal, um plebiscito supervisionado pelas Nações-Unidas a ser realizado em toda a colônia preta no qual só serão permitidos aos pretos, vítimas do projeto colonial, participar, com a finalidade de determinar a vontade do povo preto a respeito de seu destino nacional.

    Falar sobre os Panteras Negras não se trata de fazer um pequeno resumo escolar com palavras amontoadas tentando explicar o que aconteceu. Trata-se, isso sim, de trazer de volta a consciência comunitária do povo negro que nunca morreu, o desejo de justiça e a indignação com o que fizeram e ainda fazem conosco. Tratar desse partido hoje, décadas depois, não é como ir ao zoológico, tirar fotos dos animais, fazer uma pequena pesquisa na internet. Trata-se principalmente de acordar cada Pantera dentro de cada irmã e irmão de cor, abrir as jaulas, reacender o instinto de união, comunidade e esperança, tendo apenas uma presa em comum: o racismo.

    Na década de 60, nos Estados Unidos, policiais perseguiram, agrediram, criminalizaram, prenderam arbitrariamente a população negra. O número de pessoas dentro da prisão era cada vez maior, a miséria assolava vários estados do Sul do país, e os resquícios da escravidão acarretavam o aprofundamento das desigualdades sociais. Foi dentro dessa realidade que Bobby Seale e Huey P. Newton nasceram. Os dois vieram de famílias pobres dos estados do Sul, tentando ganhar a vida. Conheceram-se em Oakland, Califórnia, quando estudavam no Merritt College. Lá, começaram a participar de movimentos estudantis por igualdade racial, raiz principal do Partido dos Panteras Negras, que foi criado justamente para autodefesa da população negra, contra a injusta repressão da polícia.

    Eles organizaram pequenas patrulhas comunitárias compostas por negros, que se vestiam de preto, jaquetas de couro, óculos de sol – essa se tornou a “identidade visual” do grupo –, sempre andando armados, com as armas à mostra. As patrulhas impunham respeito diante da polícia autoritária e vigiavam sua ação dentro dos bairros, explicitando o sentido de comunidade a que pertencia qualquer negro revistado pela polícia. Eles formularam o Programa dos Dez Pontos, que articula e define as perspectivas dos Panteras Negras.

    Do gênero felino, esses animais não foram feitos pra ficarem enjaulados. Uma pantera sabe se cuidar e cuidar do seu povo. Esse é, basicamente, o ponto número um dos Panteras Negras. O governo racista daquela época não era capaz de garantir o direito do povo negro, seja de Oakland, seja de qualquer outra cidade onde os negros viviam. Mais de 50% da população do Alabama vivia abaixo da linha da pobreza. A articulação dos Panteras Negras era urgente.

    A questão da pobreza nos leva ao ponto dois: A necessidade de emprego para a população – talvez esta idéia seja também atual para o povo brasileiro e a nossa realidade. Nascer numa sociedade de configuração capitalista exige que a população trabalhe para se sustentar, garantir as necessidades próprias e das famílias e os direitos básicos, cada vez mais retirados. A maioria das empresas dos Estados Unidos daquela época possuía uma postura racista institucional – traço ainda presente, mesmo que mascarado, em empresas do Brasil – seja ela explícita quando um negro nem chega a ser contratado; ou quando nosso tratamento dentro das firmas é diferenciado do tratamento de pessoas brancas, o que também é refletido no nosso salário mais baixo e na falta de dinheiro para ter alimento sobre a mesa.

    Recentemente, mais um negro foi constrangido ao tentar entrar em um shopping na região nobre de São Paulo. A comunidade negra já está farta de ver tal cena. Nos Estados Unidos dos anos 60, um negro nem poderia se sentar no mesmo banco de ônibus do branco, e dividir espaços, seja na escola, no hospital ou até mesmo na rua. A comunidade branca explorou exponencialmente o trabalho provindo das mãos negras, tanto para criar a ferrovia que corta de Leste a Oeste os Estados Unidos, quanto para construir os grandes shoppings da cidade de São Paulo em seus bairros nobres. Ainda hoje, nossa cor nos deslegitima a estar dentro desses ambientes que foram construídos por nossas mãos. Não à toa, o terceiro ponto reforça que queriam (e queremos!): que o homem branco e a classe burguesa parem de explorar a comunidade pobre e negra apenas para construir seus prazeres.

    Morro do Alemão, Capão Redondo, Belágua no Maranhão e tantos outros lugares no Brasil onde a população pobre, em maioria negra de linhagem afrobrasileira, se esforça para tentar sobreviver sobre os duros custos de vida. Por sermos descendentes de escravos, temos que multiplicar nossas forças (quando temos), para tentar ter um conforto de vida e uma casa (sonho ainda de muitos brasileiros). Dificuldade essa que a burguesia, e a classe média oriunda da Casa Grande nunca precisou passar e enfrentar, pois sempre terá aquela velha herança guardada na família. Quando falamos de racismo estrutural, falamos dessas estruturas que vêm sendo consolidadas há anos, cujas conseqüências ainda são enfrentadas pela população negra. A possibilidade da família negra de ter uma casa, um lar pra morar, é o tema do quarto ponto do programa.

    Aos poucos, é possível ver que o sentido da palavra “educação” ganha novos moldes com o tempo. O que deveria ser entusiasmo pelo saber, na prática, torna-se prisão de horas, onde os alunos não querem permanecer. Quando dizem que eles estão sendo “educados”, muitos se sentem adestrados, simplesmente para fazer provas que serão capazes de “salvar as suas vidas”. Os problemas dentro da educação brasileira são mais que reais: são visíveis. Um deles, em específico, vai ao encontro do problema da educação na sociedade norte-americana: a invisibilidade do povo negro dentro dos livros didáticos e nos currículos escolares.

    Se por vezes somos representados, nossa história é sempre curta e com o mesmo roteiro: Escravidão, escravidão e escravidão. Não sabemos de nossas origens, quem veio antes de nós, nossas contribuições para a sociedade. Não sabemos quem foram nossos escritores, músicos, artistas, poetas. Não sabemos quem são as mulheres negras dentro da nossa cultura, e os papéis que elas exercem na nossa sociedade. As leis federais 10.639/03 e 11.645/08 vieram para mudar essa história nas escolas, mas sua aplicação ainda é insuficiente. Querer uma verdadeira educação e não poder obtê-la por ser encoberta por livros de histórias que apenas representam a população branca e européia, só confirma a necessidade do quinto ponto dos Panteras Negras.

    Os pontos seis, sete, e oito do partido conversam entre si. Nos 16 anos de vida dos Panteras, um dos assuntos que sempre esteve presente foi a guerra do Vietnã, onde os Estados Unidos intervieram brutalmente, sem o consentimento de boa parte da população americana – essa parte inclui os Panteras Negras, que foram até o Vietnã dar um aperto de mão na população que ali sofria, em um gesto de solidariedade. Os Panteras Negras haviam percebido que o mesmo Estado que assassinava a população negra nas ruas também enviava seus jovens para morrer na guerra. O mesmo negro que antes era cercado pela violência policial agora era obrigado a “defender seu país”. O mesmo país que nunca os defendeu. Os Panteras exigiram a isenção do serviço militar e lutaram por meio das patrulhas para que a violência policial acabasse. A violência é a mesma que se vê presente em vários atos e manifestações ainda hoje, aqui, quando os secundaristas saem exigindo uma educação melhor, quando a população exige um presidente legítimo, eleito pelo voto democrático, ou quando Rafael Braga é preso pelo esdrúxulo motivo de portar de Pinho Sol, pois, para a polícia, sua cor de pele fala mais do que suas atitudes.

    O Brasil possui suas prisões em carga máxima e tem a quarta maior população carcerária do mundo. Muitas dessas prisões, seja aqui, seja nos EUA, são provocadas pela polícia racista: jogam o pó branco básico dentro da bolsa e enquadram mais um negro…

    A realidade de um negro é somente do negro, e somente outro negro pode entender. Mas estamos cheios de acadêmicos e estudiosos brancos que, por serem tão supridos de inteligência, pensam ser capazes de entender exatamente o que acontece com a comunidade negra.

    Uma das maiores dificuldades que temos na luta contra o racismo é esta: brancos que acham que entendem a nossa vida. Querem protagonizar ou se provar mais entendidos do que acontece conosco. Não serão capazes. Só quem está em nossa pele sabe o que é estar aqui. Todo apoio é bem-vindo, mas somos nós, negros, quem sabemos os limites entre apoiar e atrapalhar.

    A experiência dos Panteras Negras pode nos dar aporte histórico para pensar sobre essa questão. Não havia um interesse de entender o que acontecia com a população negra. Por isso, os Panteras reivindicavam a presença de negros no sistema judiciário. Queriam uma justiça que se preocupasse também com os filhos negros de 14 anos na rua voltando muito tarde pra casa, queriam uma justiça que entendesse que não é confiável uma polícia que dá enquadros em jovens negros e enfia o pacotinho branco dentro de suas mochilas.

    Querer terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz, minimamente deveria ser lei, regra, e um dever do governo. Esses desejos não alcançados fazem parte do décimo ponto dos Panteras Negras e das reivindicações de comunidades africanas, indígenas e tantas outras comunidades pobres, esquecidas. Os exemplos da realidade nos mostram que essas necessidades ainda são muito atuais.

    As manifestações que acontecem ao redor do mundo de populações fartas de governos que não as ajudam, e que, sob o nome da “democracia”, escondem do povo seus verdadeiros interesses, provam que a luta dos Panteras Negras é necessária e atual como antes.

    Você quer saber mais sobre os Panteras Negras? Tem uma exposição maravilhosa sobre eles no Sesc Pinheiros, em São Paulo, até o dia 2 de julho. Todas as terças, quartas, quintas, sextas e sábados, das 10h30 às 21h30. Rua Paes Leme, 195, Pinheiros SAO PAULO | CEP: 05424-150

     

  • Projeto Brasil Nação: uma reconstrução em discussão no #CONUNE

    Projeto Brasil Nação: uma reconstrução em discussão no #CONUNE

    “Em defesa da autonomia nacional, democracia, desenvolvimento econômico com a diminuição da desigualdade” por Ciro Gomes, Bresser Pereira e Eleonora de Lucena

    Na última sexta feira, o Projeto Brasil Nação foi lançado para os estudantes presentes no 55º CONUNE. Correspondendo às expectativas dos presentes – que formaram fila na espera da palestra e até uma pequena concorrência pelos primeiros assentos -, o vice-presidente do PDT, Ciro Gomes, o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira e a jornalista Eleonora de Lucena, dissertaram e argumentaram sobre sua proposta brasileira.

    Logo de início, a jornalista Eleonora convidou ao debate um projeto nacional: “eu acho que a gente tá acostumado muito a discutir políticas específicas (…), o que falta é uma política nacional que englobe tudo isso”. E continua: “(o projeto) é uma defesa da autonomia nacional, da democracia, do desenvolvimento econômico com a diminuição da desigualdade e da defesa do meio ambiente”.

    Bresser, ao tomar palavra, deixou claro que o que se procura é uma alternativa ao modelo liberal vigente, objetivando a volta do crescimento do país junto da justiça ao povo. Segundo ele, sofremos de três crises: econômica, política e moral e, “desde 1880, o Brasil cresce muito pouco”. Depois de apresentar um panorama da situação brasileira dos últimos governos, afirmou que o projeto segue a linha do novo desenvolvimentismo, o qual concorda com uma política econômica baseada em cinco pontos: uma regra fiscal responsável; uma taxa de câmbio competitiva; um nível de taxa de juros baixa; uma capacidade de investimento Estatal e um sistema tributário progressivo – “só assim se distribui renda. O Brasil é o único país onde tributos são regressivos”.

    Foto: Isabela Abalen / Jornalistas Livres

    Para finalizar a apresentação, Ciro Gomes conquistou a simpatia dos estudantes com discurso em defesa dos ideais do projeto Brasil Nação. Considerando pontos da história política e econômica do país enquanto apontava falhas governamentais, Ciro enfatizou o problema da inflação – a qual “toma todas as energias do país”-, a importância da presença do Estado na economia e o problema de termos “abrido mão do investimento interno” e, agora, dependermos de exportação. Ele aconselhou: “leiam tudo, mas não deixem de observar a realidade com seus próprios olhos, porque o Brasil não é nem para amadores nem para manuais estrangeiros”. E continuou: “O Brasil, para crescer, precisa compreender que estamos proibidos de crescer. Primeiro, anos na fila de juros alto colapsou o balanço das empresas privadas; não há um ponto que nós podemos esperar das empresas privadas para o investimento no país. Segundo, há um colapso do real que está fazendo despencar a receita pública.”

    Ciro afirmou que a taxa de câmbio – presente em um dos cinco pontos do projeto – deve se tornar assunto público, já que interfere diretamente na vida das pessoas. Além disso, ressaltou: “Nós precisamos de política industrial de comércio exterior que supere esse desequilíbrio e (…) ter um câmbio estimulante que trabalha e produz”, terminando com um convite: “vamos pensar o Brasil”.

    O manifesto do projeto Brasil Nação conta com assinaturas de Chico Buarque, Raduan Nassar, Laerte, entre outras influências. Seu acesso é livre pelo site.

  • Herança da Ditadura, a PM é uma máquina de matar pobre

    Herança da Ditadura, a PM é uma máquina de matar pobre

    Por Maria Vitoria Ramos, especial para os Jornalistas Livres

    Orlando Zaccone, delegado Rio de Janeiro e integrante do movimento Policiais Antifascistas, discorreu sobre a trajetória da PM até suas implicações atuais. “Quem fazia o policiamento ostensivo nas ruas antes da ditadura era a Polícia Civil. A Polícia Militar ficava quartelada, trabalhando apenas de forma emergencial. Foi durante a Ditadura que passou a fazer parte da segurança pública. E a redemocratização manteve isso”, inicia ele, levantando justamente a dúvida sobre o caráter democrático de tal processo. Segundo ele, a redemocratização foi negociada e a intromissão das Forças Armadas na Constituinte garantiu a manutenção dos militares através da segurança pública. Até hoje, a PM é auxiliar das Forças Armadas: “O órgão que mais perdeu espaço com a Ditadura foi a Polícia Civil.”, afirma Orlando.

    A continuidade das Forças Armadas no controle da ordem interna coloca o Brasil fora do parâmetro democrático mundial. “Em qualquer democracia minimamente estruturada cabe às Forças Armadas apenas a manutenção da ordem externa. Mas nossa Constituição inverteu isso no seu Artigo 142.”, explica. As Forças Armadas garantindo o funcionamento dos poderes é a inversão da lógica democrática. Na teoria, o governo eleito pelo povo deveria garantir o funcionamento do exército, não o contrário. Para o delegado, o Brasil não vive sob um Estado de Direito Democrático, mas num Estado de Exceção Permanente.

     

    A primeira vez que o Artigo 142 foi usado como respaldo legal para a interrupção da recém-estabelecida ordem democrática foi logo em 1988, durante o governo Sarney, quando foi autorizada uma intervenção do exército na metalúrgica CSN contra os operários em greve. Na ação foram assassinados três operários: Carlos Augusto Barroso, 19 anos, Walmir Freitas Monteiro, 27 anos e William Fernandes Leite, 22 anos. O episódio foi eternizado na música “Aos Fuzilados da CSN”, da banda de rock Garotos Podres.

    Em referência ao grito “Não acabou, | tem que acabar, |Eu quero o fim da Polícia Militar”, o delegado opina: “O grito é bacana, incendeia, mas do ponto de vista político é difícil de se concretizar.”. E esclarece que a briga não é pelo fim, mas para desvincular a PM como força auxiliar das Forças Armadas, entregar para o governador eleito e cortar de uma vez esse cordão umbilical. “Pelo menos o governador foi escolhido pelo povo”, completa.

    Outra reivindicação fundamental do delegado é o fim do estatuto militar. “Temos que construir o policial como trabalhador, porque hoje é visto como soldado e isso tem implicações inclusive jurídicas, como o direito de greve. Como pode ir preso o policial que está com o cabelo grande? Tudo naquele estatuto tem que acabar!”, condena.

    A estigmatização do policial vem de ambos os lados. Para a esquerda, o policial é reduzido a dois únicos sujeitos possíveis: o corrupto e o torturador. Já a direita criou a imagem única do policial-herói, que tem como missão defender o bem do mal, independente de qualquer coisa, inclusive salário ou condições de trabalho. Em tom de piada ele lembra: “O [José] Padilha inventou o torturador-herói, né? No [filme] ‘Tropa de Elite’, a banda boa é a que mata!”

    A construção do traficante como representante de todo o mal da sociedade é uma consequência e um instrumento da guerra às drogas. O delegado pergunta sério: “Vocês conhecem algum dos grandes traficantes do país?”. Em coro a plateia respondeu ‘Aécio Neves’ e o palestrante se fingindo surpreso replica ironicamente: “Vocês estão loucos gente? O Aécio é senador!”.

    Ainda interagindo com os estudantes, Orlando perguntou se matar alguém era crime no Brasil. Diante da resposta afirmativa contestou: “Claro que não. Tem a legítima defesa! O policial que mata traficante na favela é absolvido por legítima defesa. Todo crime é uma construção política.”. E afirma que o que mais se ouve das mães dos jovens assassinados é “meu filho não era traficante”… Ele questiona: “Por quê? Se fosse [traficante] não teria direito à vida?”. Para ele é absurda a obsessão da imprensa com os antecedentes criminais. A existência de crimes passados funciona como um salvo conduto para o assassinato dessas pessoas.

    A construção política do inimigo se transforma na medida em que mudam os interesses. Primeiro é o traficante, depois o MST e agora os Black Blocs, por exemplo. “Então, quando estamos falando em fascismo não estamos jogando com as palavras. Fascismo é a exterminação de grupos por sua condição ontológica, de vida.”, reitera ele. Lembra ironicamente que quem mora na favela também fuma maconha: “Hoje o consumo é do morador, se engana quem acha que é para zona sul. Quem tem dinheiro está tomando Rivotril para relaxar ou Ritalina se quiser um barato mais atento.” Dessa forma, o morador que passa para pegar a maconha na sexta-feira depois do trabalho, para seu uso próprio no fim de semana, indo para sua casa é usuário ou traficante? O delegado coloca: “São usados fatores subjetivos nessa diferenciação. Um desses critérios é o lugar do fato ocorrido. Maconha na favela é traficante. Mas o cara mora lá!”.

    Na América Latina, apenas o Paraguai e o Brasil criminalizam o usuário. “Qual o crime? Onde já se viu crime sem vítima? Se o estado estivesse preocupado com a saúde pública investiria no SUS. Somando as mortes por uso de drogas de todas as substâncias ilícitas existentes no país, pode incluir tudo, heroína, LSD, ecstasy, não chega nem perto das mortes causadas por essa guerra às drogas. E o alvo dessa guerra são os moradores do morro!”, conclui o delegado. A guerra às drogas tem como consequência também o encarceramento em massa, que por sua vez culmina na superlotação dos presídios do país. Orlando garante: “Não existe crise no sistema prisional. Como diz Darcy Ribeiro sobre a educação, é um projeto político! Nos Estados Unidos têm empresas que manejam o sistema prisional com capital aberto na bolsa.”.

    Com relação ao encarceramento feminino ele indaga: “Quem são essas grandes traficantes? A maioria das mulheres presas pelo tráfico de drogas é flagrada tentando levar pequenas quantidades de maconha para seus companheiros presos.”. Esses, por sua vez, provavelmente também foram encarcerados por tráfico de drogas, gerando uma reação em escala devastadora.

    Sem titubear o delegado carioca afirma que única forma de acabar com o tráfico é legalizar a produção, distribuição e a venda de todas as drogas. E provoca: “Não adianta só colocar a maconha do lado da cerveja. Não adiata essa luta ‘maconha é uma planta’; papoula também é planta. O Evo Morales tentou conseguir autorização da ONU para a produção de farinha de coca, um alimento milenar proibido. Os pesticidas jogados pelos americanos nas plantações de coca são muito mais nocivos que a droga.”. Para finalizar sua fala, o delegado colocou de forma direta: “Nós não estamos aqui por uma luta própria, mas para combater o genocídio de uma população!”

    Rodrigo Mondego, advogado e militante dos direitos humanos, conduziu sua fala de forma narrativa, ilustrando sua tese com três casos emblemáticos. Começou com a história de Anderson, que fora seu companheiro de luta por vários anos, havia acabado de se formar como assistente social quando teve uma filha. Sem encontrar trabalho na sua área, prestou concurso para Polícia Militar, que na época estava crescendo e em foco no Rio de Janeiro por conta do surgimento das UPPs. Por um tempo conseguiu sustentar sua filha, mas com a crise das fracassadas UPPs, foi recolocado para trabalhar para o policiamento na rua. Dez dias depois, quando fazia uma abordagem em dois motoqueiros levou um tiro e morreu na hora. Virou então apenas uma estatística, e sua família, um problema para o estado do Rio de Janeiro. “O tratamento para as famílias de policiais mortos é terrível. A morte dele destruiu a família e o Anderson virou um argumento para quem defende a lógica dele estar atuando como o herói que vai resolver o problema do bandido morto. Essas pessoas cagam para a família dos policiais.”, afirma Rodrigo. Ele pergunta para a plateia quem é o representante carioca da ‘causa dos policiais’, que responde alto ‘Bolsonaro!’. Ele concorda e esclarece: “Então, são 200 assessores trabalhando para ele e nenhum tem como tarefa assistir as famílias de policiais assassinados. Quem faz isso são justamente alguns deputados de esquerda, como o Freixo.”.

    A segunda história é de Hélio, um morador da favela no rio de 50 nos. Sua mulher havia pedido que ele furasse uma parede, tarefa que ele adiava há dias. Mas naquela mesma manhã estava em curso uma operação do BOPE. Um policial viu de longe Anderson com ‘o que parecia ser uma metralhadora apontada contra a parede’ e atingiu Hélio com um tiro de fuzil na cabeça. Sua mulher teve que assistir a massa cefálica do marido se espalhar pelo chão da sala. “Esse policial foi absolvido, pois o Hélio parecia um bandido. E bandido bom não é bandido morto? Não adianta só condenar o policial que atirou, teve um promotor, um delegado e um juiz envolvidos nisso.”, finaliza.

    Mateus, morador do Jacarezinho, é o protagonista do terceiro caso trágico resultante da militarização da polícia e da política de guerra às drogas. Foi com a namorada para outra favela visitar um amigo. A menina comprou três vidrinhos de loló e colocou no bolso da calça. O nome dela não pôde ser revelado, uma vez que atualmente é vítima de ameaças. Dois policiais abordaram os jovens no trem de volta para casa. Revistaram a menina, encontraram os frascos e pediram para todos saírem do vagão. Apenas Mateus se recusou, temendo deixá-la sozinha com dois policiais homens. Fazia muito calor no Rio de Janeiro e, morador de uma cidade litorânea, ele não usava camisa. Foi chamado de cracudo marrento: “Lógico, jovem negro no trem do RJ só pode ser cracrudo.”, ironizou Rodrigo. A discussão começou e Mateus levou um tiro debaixo do braço e morreu no próprio vagão. Os policiais levaram a única testemunha do crime para a delegacia, a namorada, e a obrigaram a assinar um papel dizendo que o jovem havia tentado pegar a arma do policial.

    São três histórias, três mortes ilustrando o resultado dessa luta movida, segundo o advogado, por lucro. “O principal instrumento é a PM, a principal desculpa é a guerra às drogas e o interesse é o lucro.”, sintetiza.

    Rodrigo contou também o caso de Frederick Barbieri, empresário e, segundo ele, um dos maiores traficantes de armas do Brasil, que vive uma vida de luxo em Miami. “Como é que ele consegue trazer fuzil de avião? Agora há pouco acharam 60 fuzis chegando de avião ao Rio de Janeiro e quem encontrou foi a policia civil, não a PF. Então cadê essa Polícia Federal das grandes operações, da Lava Jato? Têm 150 oficiais para condução coercitiva do Lula mas está errando fuzil de avião?”, indaga.

    Rodrigo afirma que a guerra às drogas se sustenta em uma questão meramente ideológica. “O Brasil é o único país do mundo onde Direitos Humanos é visto como algo negativo.”, diz. Ele explica que aqui a concepção é que o bandido nasce por essência mau e, portanto, inferior com relação aos sujeitos de bem, estes considerados superiores. “Ser a favor do direito da pessoa humana vai contra essa lógica que dá respaldo a essa guerra.”. O advogado quantifica que menos de 100 dos 500 deputados do Congresso Nacional se reivindicam defensores dos direitos humanos. “Já bancada BBB, Bíblia, que eu digo com muitas aspas, Bala e Boi representa 70% da Câmara.”. Para ele, a guerra só continua porque existe sustentação social para ela.

    O advogado não deixa de expor sua crítica à esquerda, que em sua avaliação respalda essa guerra com a lógica da segurança pública. Diz ver muitos governos progressistas na educação, saúde, transparência, mas conservadores no que tange à segurança pública. E completa: “Vejo muitas pessoas de esquerda em defesa da violência contra os Black Blocs, corroborando a lógica da violência. Não entrando no mérito da luta direta, mas a violência nunca pode ser justificada.”

    Rodrigo finalizou a mesa com um caso no Rio de Janeiro. Durante uma ocupação (Ocupa Cabral), a galera na rua começou a correr por algum motivo e a polícia cercou a rua e decretou prisão para todos aqueles que estavam naquele espaço, argumentando que o simples fato de estarem lá os transformava em suspeitos, incluindo até um entregador de pizza. O advogado estava presente, fez a defesa e conseguiu liberar as pessoas ali mesmo. Pouco tempo depois, um sujeito veio cumprimentá-lo por estar defendendo os ‘cidadãos de bem’. Rodrigo respondeu enfático: “Cara, aqui você é bandido.” Quando se cria essa dicotomia do inimigo, rapidamente ele pode virar você, finaliza.

    A última parte da mesa foi constituída por falas curtas de estudantes que se inscreveram para debater o tema. Helena, estudante de engenharia e militante do movimento negro, ressaltou que enquanto ouvia a perfilação do inimigo, o traficante, apenas conseguia pensar: são negros. Os moradores do morro, os traficantes, os usuários criminalizados, em sua maioria são negros. Cobrou dos palestrantes que isso fosse colocado de forma mais clara, explicitando o racismo estrutural que permeia a questão. A jovem atentou ainda a outra questão pouco trabalhada quando o assunto é a legalização das drogas: “Como estudante de engenharia venho lembrar que a proibição é também uma barreira tecnológica. O cânhamo, por exemplo, é muito melhor que a madeira em diversos aspectos. Mas a proibição é um entrave para o conhecimento!”, finaliza.