Cáceres se encontra na micro região do Alto Pantanal. Tem uma população de quase 95.000 habitantes, faz fronteira com a Bolívia e é a principal cidade abrangida, quer dizer envolta ou abraçada, pelo Pantanal.
Agora imagine o abraço de um corpo em chamas e soltando fumaça.
“EU VOU GANHAR ESSA ELEIÇÃO DE QUALQUER MANEIRA.”
Francis Mariz Cruz.
O prefeito de Cáceres é Francis Mariz Cruz tem um patrimônio de quase 50 milhões de reais declarados. Oficialmente apoia o candidato Paulo Donizete que é de seu partido e que vai concorrer contra a sua vice prefeita Eliene, mas Francis acredita que mesmo que o candidato apoiado por ele perca, sua vice ainda pertence à sua base aliada o que lhe garantiria mais regalias políticas no município como supõe no áudio vazado.
Entrada daFazenda Cometa, de Francis Mariz Cruz, prefeito de Cárceres, micro região do Alto Pantanal, MT.
O Francisco da Cometa é conhecido assim por ser dono de uma loja de venda de motos, a Cometa Moto Center. Apenas um de seus empreendimentos entre fazendas, aviões, imóveis rurais e prédios comerciais além das 17 empresas das quais é proprietário.
Como todo milionário, o Rei de Cáceres, é arrogante. Em áudio obtido, que corre nos grupos de whatsapp da cidade, o candidato avisa que ganhará a disputa sem fazer esforço algum. “Essa eleição tá no papo!”
https://youtu.be/vs6JBoCgww0
Também não esconde o uso irregular de maquinário municipal utilizado exclusivamente para obras municipais de construção e transporte em benefício próprio como a reforma na Fazenda Cometa.
Maquinário municipal sendo utilizado em Fazenda do Prefeito de Cárceres.
Fazendo o percurso da Transpantanal envolta em fumaça pela manhã, fotografo passando por mim pelo menos três caminhões da Prefeitura de Cáceres voltando da Fazenda Cometa do Pantanal, do Prefeito Francis. A fazenda está em reformas e o maquinário utilizado para as tais reformas são da prefeitura como é possível ver em fotos e vídeo.
Caminhões da Prefeitura de Cáceres voltando da Fazenda Cometa do do Prefeito Francis.
A Fazenda tem sua sede a 12 km de sua entrada. Modesta propriedade que vende touros, sêmen e matrizes. O prefeito aceita seu touro velho na compra de um Nelore Cometa.
Na volta da Transpantanal passo por um foco de queimada recém iniciado à beira da estrada. Paro para observar em busca de alguma prova de crime ambiental, mas o tempo é curto e preciso voltar para o centro para me trocar. As roupas que estou usando estão pretas, sujas de terra, cinzas e fedem a fumaça. A sede e o calor de 45° também castigam e preciso me hidratar antes de voltar à tarde para continuar o trabalho.
Foco de fogo à beira da estrada
No retorno para a Transpantanal à tarde, aquele pequeno foco de fogo se transformou no Inferno abaixo. A fumaça escura tomou a ponte e o fogo pulou para o outro lado do rio se aproximando de casas, à beira do Rio Paraguai.
A fumaça escura tomou a ponte e o fogo pulou para o outro lado do rio se aproximando de casas, à beira do Rio Paraguai .
No local não há nenhum caminhão da prefeitura, ou do exército e nem corpo de bombeiros para tentar conter o fogo. Na verdade, desde que cheguei na cidade, não vi movimentação alguma dos bombeiros ou do exército o que surpreende de forma negativa já que a coluna de fumaça principal vem do centro da cidade cujo foco se encontra na mata que está no Rio Paraguai.
Caminhão pipa que poderia estar no combate ao fogo é usado pelo prefeito em sua fazenda.
Não existe esforço municipal na contenção das chamas que consomem a mata do outro lado do rio dia e noite. Um detalhe que chama ainda mais atenção é que a rua que fica na Praça da Sematur e que faz frente para o rio é também a rua onde mora o Prefeito.
Francis Mariz Cruz não apoia nenhuma iniciativa de socorro a animais. A prefeitura não dá suporte a brigadistas voluntários e nem criou uma força tarefa em concomitância com exército ou marinha para combater os demais focos de queimadas espalhados nas várias áreas da cidade. Nada está sendo feito.
Ao amanhecer, Cáceres desaparece sob a fumaça espessa que atravessa o rio e se instala no centro e entorno. Com o Sol forte ela deixa de aparecer com tanta nitidez, mas à noite é impressionante. E mais impressionante ainda é a apatia dos moradores que levam a vida como se nada estivesse acontecendo. Ao redor de Cáceres são incontáveis os focos de incêndio e é desumana e incompreensível administrativamente a ausência do combate ao fogo.
Talvez a explicação para essa apatia seja o fato de que a cidade se encontra no terceiro lockdown desde o início da Pandemia. Há toque de recolher, inclusive, às 20h. A despeito dos casos de covid19, crescentes assim como os óbitos, a cidade caminha como se nada estivesse acontecendo. Mas caminha lentamente já que é difícil enxergar com tanta fumaça nos olhos.
Quem se beneficia dessa cegueira que o fogo e a fumaça trazem é o prefeito. Não que ele faça algum esforço para esconder algo.
Por Daniel Camargos e André Campos | Foto: João Paulo Guimarães | 22/09/20 | para a Repórter Brasil
Parte do fogo que devasta o Pantanal mato-grossense teve origem em fazendas de pecuaristas que vendem gado para o grupo Amaggi, do ex-ministro e ex-senador Blairo Maggi, e para o grupo Bom Futuro, de Eraí Maggi, considerado o maior produtor de soja do mundo. Esses dois grupos empresariais, por sua vez, são fornecedores das gigantes multinacionais JBS, Marfrig e Minerva.
O levantamento da Repórter Brasil se baseou emestudo da ONG Instituto Centro de Vida, que identificou que as queimadas no Mato Grosso começaram em cinco propriedades, a partir da análise cruzada dos focos de calor do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), imagens dos satélites Sentinel-2 e Planet e mapeamento das áreas atingidas por incêndios da NASA. O estudo do ICV analisou os focos de incêndio no Mato Grosso entre 1º de julho e 17 de agosto, mas ressalta que a primeira queimada na região começou em 11 de julho. Com base na geolocalização dessas fazendas, a Repórter Brasil usou dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e da Secretaria de Estado da Fazenda para identificar os proprietários, bem como documentos para averiguar os compradores de dois desses fazendeiros.
No Pantanal mato-grossense, incêndio começou em cinco fazendas, duas delas dedicadas à criação de gado (Foto: Christiano Antonucci/Secom-MT)
O fogo que teve início nessas cinco propriedades rurais voltadas para pecuária, todas localizadas em Poconé (100 km da capital Cuiabá), foi responsável por destruir 116.783 hectares, área equivalente à cidade do Rio de Janeiro. Esse volume de destruição correspondeu a 36% da área total atingida por incêndios no Pantanal mato-grossense no período analisado (entre julho e a primeira metade de agosto).
O incêndio que atinge o Pantanal é alvo de investigação da Polícia Federal, que apura a responsabilidade de fazendas na área rural de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Já o estudo do ICV se concentrou no Mato Grosso, no entorno da cidade de Poconé.
Entre essas cinco propriedades rurais mato-grossenses, está a fazenda Comitiva, de Raimundo Cardoso Costa, onde o fogo começou em 20 de julho e foram registrados pelo menos 171 focos de incêndio. A área total destruída pelo fogo iniciado nesta fazenda foi de 25.188 hectares.
De acordo com dados da Secretaria de Estado de Fazenda do Mato Grosso, Raimundo Cardoso Costa é proprietário de outra fazenda, vizinha à Comitiva, chamada Recanto das Onças. A Repórter Brasil identificou que a fazenda Recanto das Onças comercializou gado com o grupo Bom Futuro, mais conhecido pela produção de soja, mas que tem um rebanho de 130 mil cabeças de gado nelore. O grupo Bom Futuro está entre os fornecedores de gado dos maiores frigoríficos do Brasil: JBS, Marfrig e Minerva, conforme atestam documentos a que a reportagem teve acesso.
Outra fazenda localizada em Poconé e que está entre as cinco analisadas pela Repórter Brasil é a Espírito Santo, de José Sebastião Gomes da Silva, onde o fogo começou em 4 de agosto. Segundo o Inpe, foram pelo menos 73 focos de incêndio que destruíram 14.292 hectares, segundo análise da NASA.
Os incêndios que começaram em fazendas do Mato Grosso já destruíram uma área equivalente à cidade do Rio de Janeiro (Foto: Mayke Toscano/Secom-MT)
Gomes da Silva também é dono de outra fazenda, a Formosa. Essa propriedade vende gado para a fazenda Rio Bonito, de Elza Junqueira de Carvalho Dias, que, por sua vez, comercializa gado com a JBS e Marfrig. A Fazenda Formosa também é fornecedora da Amaggi Pecuária. A empresa faz parte do grupo Amaggi, da família do político Blairo Maggi, que tem 10 fazendas no Mato Grosso e atua em diversos setores além de soja e pecuária, como energia e logística. A Amaggi Pecuária, por sua vez, está entre as fornecedoras da JBS, Marfrig e Minerva.
“Queremos descobrir quem foram os autores [das queimadas no Pantanal]”, disse, à Repórter Brasil o delegado Daniel Rocha, em referência ao fato de que os incêndios que destroem o bioma teriam sido provocados pela ação humana — e não por conta do período seco. As propriedades investigadas pela Polícia Federal na operação Matáá ficam próximas ao Parque Nacional do Pantanal, na divisa dos dois estados, e, segundo o delegado, são grandes fazendas de pecuaristas.
O fogo é a forma mais barata de ampliar uma pastagem, conforme explica o diretor-executivo da Amigos da Terra Amazônia Brasileira, Mauro Armelin. Para o executivo, os frigoríficos deveriam analisar também os seus fornecedores indiretos, como forma de coibir o desmatamento e também as queimadas provocadas pela ação humana. “Se os frigoríficos não fizeram a análise completa e monitorarem os [fornecedores] indiretos, eles nunca poderão dizer que suas cadeias de produção são livres de desmatamento”, explica.
Mais de uma centena de frigoríficos assinaram com o Ministério Público Federal (MPF) um acordo, que ficou conhecido como “TAC da Carne”, em 2009, para não comprar gado de áreas desmatadas ou autuadas por trabalho escravo na região amazônica. Mais de 10 anos depois, os frigoríficos conseguem driblar o acordo com uma série de artimanhas, muitas vezes envolvendo fornecedores indiretos com problemas socioambientais, como mostrou a Repórter Brasil em reportagem publicada em junho.
‘Fogo começou com explosão de automóvel’, diz pecuarista
Raimundo Cardoso Costa disse à Repórter Brasil que o fogo em sua propriedade começou após a explosão de um veículo. “Os bombeiros apagaram, mas o fogo ficou nas raízes das plantas e depois espalhou”, diz. O fogo, segundo ele, destruiu 40% dos 15 mil hectares da sua propriedade, além de ter se alastrado para outras fazendas.
O fogo é a forma mais barata de ampliar uma pastagem, segundo Mauro Armelin, da Amigos da Terra. (Foto: Christiano Antonucci/Secom-MT)
O fazendeiro reclama da legislação ambiental e diz que o ideal seria liberar o fogo no período que não fosse seco. “Tem que deixar o pantaneiro limpar o que tem que limpar”, afirma. Raimundo diz também que jamais colocaria fogo na própria fazenda, pois sem a mata nativa, que funciona como uma cerca natural, ele teria de gastar R$ 10 mil para construir um quilômetro de cerca — sua fazenda, segundo ele, precisaria de 50 quilômetros.
Morador de São Paulo, ele tem fazendas no Pantanal há 10 anos e um rebanho de 1,2 mil cabeças de nelore. É um típico fornecedor indireto, pois vende gado, principalmente, para outros fazendeiros que engordam a criação antes de comercializarem para o abate nos frigoríficos. Ele afirma ter vendido a fazenda Recanto das Onças, apesar de seu nome ainda constar como proprietário em documento da Secretaria de Estado da Fazenda. O pecuarista, no entanto, confirmou que negociou, em diversas ocasiões, com o grupo Bom Futuro (fornecedor de JBS, Marfrig e Minerva).
Raimundo reclama da responsabilidade dos incêndios recair sobre os fazendeiros. “Estão detonando a gente. O pantaneiro sempre foi o cuidador do Pantanal”, afirma. Ele também é um defensor do presidente Jair Bolsonaro. “Tudo que acontece no Brasil é culpa do Bolsonaro. A mídia acha que quanto pior, melhor. Temos que ajudar o presidente a melhorar o Brasil.”
A reportagem entrou em contato com a advogada do outro fazendeiro, José Sebastião Gomes da Silva, mas não obteve resposta até o fechamento deste texto.
A Amaggi, que compra gado de José Sebastião Gomes, informou à Repórter Brasil que vai suspender as compras de gado com este fornecedor enquanto aguarda a apuração sobre a responsabilidade da origem dos focos de incêndios em outras propriedades de Gomes.
Jaguatirica morta por conta dos incêndios na região de Poconé-MT (Foto: João Paulo Guimarães/Repórter Brasil)
A Minerva Foods destacou que “os produtores agropecuários são também prejudicados por incêndios de grandes proporções, que podem atingir suas propriedades”. Disse que os fornecedores diretos dela (Amaggi e Bom Futuro) não apresentam irregularidades, mas não comentou sobre os fornecedores indiretos (Raimundo e José Sebastião).
Dona das marcas Montana e Bassi, a Marfrig afirmou que usa uma plataforma de monitoramento via satélite para monitorar os fornecedores com focos de incêndio e que há um alerta para que a compra de gado seja suspensa até que a situação seja esclarecida, mas que não há controle total sobre os fornecedores indiretos. A empresa reconhece a questão como “crítica” e lançou, em julho, um programa para tentar resolvê-la.
A JBS, proprietária das marcas Friboi, Seara, Swift e Doriana, afirmou que só consegue monitorar os fornecedores que vendem diretamente para o frigorífico, pois não tem acesso às Guias de Trânsito Animal (GTAs) dos elos anteriores da cadeia. Sem a informação sobre as GTAs, a empresa entende que seria “precipitada qualquer conclusão da JBS sobre a origem do gado adquirido desses fornecedores” (Leia todos posicionamentos na íntegra).
O grupo Bom Futuro não retornou o pedido de posicionamento da Repórter Brasil.
Destruição avassaladora
As queimadas no Pantanal neste ano são as maiores desde que o INPE começou a registar os números, em 1998. São quase 16 mil focos de incêndio (até a última quarta-feira), 56% maior que 2005, o pior ano da série histórica. O fogo destruiu 15% da região, com 2,3 milhões de hectares da maior área úmida do mundo.
Há dez dias, bombeiros e brigadistas apenas observavam o fogo na região de Poconé, alastrado por áreas grandes demais para ser controlado (Foto: João Paulo Guimarães/Repórter Brasil)
A fauna nativa do Pantanal é a que mais sofre. São 1,2 mil espécies diferentes de animais, sendo que 36 são ameaçadas de extinção. Entre as vítimas estão cobras, jacarés, macacos e onças. Os incêndios já dizimaram um refúgio de araras azuis e avança sobre uma área de proteção de onças-pintadas.
“Quando cheguei em Poconé, perto da meia noite, a cidade estava envolta na penumbra. A fumaça era tão pesada que acreditei ser a névoa da madrugada. Não era. Era o efeito causado pelos mais de 2 milhões de hectares que estavam em chamas no Pantanal”, relatou o fotógrafo João Paulo Guimarães à Repórter Brasil.
No último dia 22 de Junho de, 2020 o pajé Jaguriçá e a Cacica Elúzia, ambos lideranças indígenas da etnia Pankararu-Opará localizada no Município de Jatobá (PE) 452 km do Recife, denunciaram ao departamento Jurídico do Ylê-Oca casa das tradições em Olinda, o conflito que vem ocorrendo em razão de interesses territoriais entre não-índios e índios estabelecidos no Território Indígena Pankararu Opará.
Ocorre que, desde o reconhecimento da T.I. Pankararu Opará pela FUNAI, agricultores não-índios que se estabeleceram na mesma localidade vem fazendo ameaças de violência e morte aos indígenas, já tendo destruído duas edificações integrantes do sítio ritualístico daquela etnia e tendo também queimado uma árvore sagrada para os índios no contexto do conflito.
Pajé Jaguricá Pankararu Opará
Os indígenas reportam já terem denunciado à situação às autoridades competentes, porém, com o contexto da Pandemia, ainda não tiveram qualquer devolutiva das instituições. A casa das tradições afroindígenas – Ylê Oca, provocou à Defensoria Pública da União e ao Ministério Público de Pernambuco a encetar diligências para mediar o referido conflito de interesse territorial, a fim de minimizar tensões entre índios e não-índios na região e apurando eventuais responsabilidades penais no que tange as denúncias de ameaça e intolerância religiosa veiculadas pelos indígenas, a fim de evitar o agravamento do conflito e ocorrência de mais violações de direitos.
Por Julio Zelic, especial para os Jornalistas Livres
Vivemos em um tempo tenebroso. O presidente Jair Bolsonaro, sem nenhum peso na consciência, ataca abertamente os povos indígenas. Em janeiro de 2020, por exemplo, Bolsonaro disse durante uma live em suas redes sociais que “Com toda certeza, o índio mudou. Está evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”[2]. Em diversas outras ocasiões ao longo de sua carreira como deputado e, agora, como presidente, Bolsonaro proferiu discursos contra a demarcação de terras indígenas. Luiz Antonio Nabhan Garcia, secretário fundiário de Bolsonaro, disse, em novembro de 2019, que “Hoje, o maior latifundiário do país é o índio”[3] e, durante a pandemia, articulou uma instrução normativa com a FUNAI que facilita o roubo das terras indígenas.
São tantas mentiras e imposturas racistas de Bolsonaro e seus aliados a respeito dos povos indígenas, que não é preciso pensar duas vezes antes de desconfiar de qualquer ação ou omissão do governo.
A “gripezinha” como minimizou o Presidente, nesta quarta-feira (13/5), já ultrapassou as 12 mil mortes[4] em todo o País. O amparo do governo não é suficiente, e a economia, posta acima de tudo, está trazendo a sombra do medo e a morte para cima de todos.
Para os povos indígenas, as consequências da pandemia se agravam ainda mais.
A FUNAI (Fundação Nacional do Índio), hoje presidida pelo delegado da PF Marcelo Augusto Xavier da Silva, que atuou na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da FUNAI, em 2016, como assessor da bancada ruralista, não está dando mínima assistência ou direito à saúde para os indígenas. Não atua para restringir o contato, para proteger a terra, para expulsar os garimpeiros ilegais que transmitem a doença para os índios. Quanto aos casos, hoje, conforme os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), no site “quarentena indígena” já temos a presença do vírus em ao menos 34 aldeias. São 308 contaminados e 77 mortos[5]. Sem contar toda a subnotificação, sabidamente imensa, já que o Brasil é dos países que menos testes tem feito para a doença.
É importante reparar que, se em 308 casos conhecidos da Covid-19 entre indígenas, registraram-se 77 óbitos, a probabilidade de o índio morrer ao apresentar sintomas é de 25%, enquanto, no Brasil como um todo, essa porcentagem está, hoje, em aproximadamente 7%. Temos portanto uma taxa de mortalidade entre os indígenas mais do que três vezes maior do que a taxa de mortalidade do País.Obviamente, essa situação reforçaria ainda mais a necessidade de ajuda, de tratamento, de EPI’s, de fiscalização. Mas o Estado está ausente, quando o assunto é salvar os povos indígenas de uma doença que não lhes pertence.
É trágica a constatação de que esta pandemia ainda irá longe, e que muitos indígenas morrerão por omissão criminosa do governo e do órgão que lhes deveria proteger. Segundo o censo de 2010, temos 800 mil índios no Brasil. Se seguirmos a projeção do Bolsonaro, segundo a qual, 70% da população irá se contaminar, e levando em conta uma porcentagem de 80% de assintomáticos[6] (que ainda não sabemos como se aplica aos índios por não existirem pesquisas a respeito), teríamos 112 mil remanescentes dos Povos Originários apresentando sintomas que podem requerer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória. Desses, a prosseguir o alarmante índice de 25% de mortalidade, 28 mil perecerão até o fim da pandemia.
Que isso não aconteça de novo em nosso país.
Vivemos em um tempo de medo e desestruturação no mundo inteiro, convivendo com uma pandemia que ameaça nossa existência e o modo de vida em sociedade. Esta sensação que temos agora já foi sentida pelos brancos há 100 anos, durante outra pandemia que ficou conhecida como Gripe Espanhola. Fato tão distante no tempo mostra quão extraordinário para a Sociedade Nacional é esse medo, essa angústia de adoecer, de ter a morte à espreita, essa incerteza sobre o amanhã de nossa gente.
Porém, quando olhamos para os povos indígenas, para as culturas e as pessoas tornadas invisíveis pelo mundo do Capital e da especulação, a realidade é muito diferente: doenças e morte são um perigo constante.
Ao ler diversos documentos históricos, arquivados no site Armazém Memória (aberto a todos), tive a oportunidade de perceber a luta que os povos indígenas travam para sobreviver em meio a uma sociedade que lhes fecha as portas da saúde e dos cuidados. Para além disso, pude encarar a perversão do Estado e da classe dominante quanto ao adoecimento nas aldeias: utilizam-se da fragilidade decorrente das doenças como ferramenta para tomar posse das terras, para expansão de latifúndios, para extração de minérios, para o desmatamento e comércio de madeira, para tudo que gere lucro independentemente das vidas que se perdem no meio dessa exploração desenfreada.
Estado genocida
Não podemos compreender as doenças que assolam os povos indígenas sem fazer paralelo com as ações do Estado brasileiro. Portanto, usaremos como referência os registros nos Anais do Congresso Nacional, que são documentos importantes para entendermos esta relação: Estado/Povos Indígenas/Epidemias.
O primeiro ponto notável, antes mesmo de apresentar documentos, é o descaso dos deputados diante das questões indígenas. Podemos ver que a quantidade de discursos no Congresso sobre epidemia em povos indígenas, entre os anos de 1946 e 1996, ou seja, num intervalo de 50 anos, não atingiu a marca de 30, e muitos desses discursos apareceram apenas como uma citação no Dia do Índio, soando como um descarrego de má consciência, depois de terem ignorado as pautas indígenas durante o ano todo.
Reprodução “Jornal do Brasil”
O discurso do deputado Marcos Freire[7], em maio de 1972, apresenta acusações graves à FUNAI, que mesmo sendo um órgão do governo cuja função é ajudar os povos indígenas, tem sido, ao longo da história, incapaz, incompetente e inepta no cumprimento de seu papel. Marcos Freire, após as denúncias contra a FUNAI, anexa a seu discurso uma reportagem publicada no “Jornal do Brasil” a respeito da renúncia de Antônio Cotrim a seu cargo na Funai. Destacarei aqui alguns trechos da notícia:
“Sertanista Antônio Cotrim abandona FUNAI para não ser um “coveiro de índios”
(Antônio Cotrim) “Afirma que não pretende continuar sendo instrumento de um órgão que é um “blefe à opinião pública” nem colocar em prática uma política indígena errada, pois não procura conciliar os interesses de desenvolvimento da sociedade nacional com a proteção das sociedades primitivas.”(…)
(…) Antônio Cotrim: “Quando estava entre os kubekrametis, em junho, foi avisado pela FUNAI que havia epidemia de gripe entre os jandeavis, transmitida durante a passagem pela aldeia da missão do Padre Antônio Carlos, da Prelazia do Xingu. Dos 76 índios, morreram 16.
O sertanista pediu medicamentos à FUNAI, mas eles só chegaram 48 dias depois e em quantidade insuficiente. Essa falta de assistência acabou por revoltá-lo ao ponto de se decidir pela demissão em caráter irrevogável.”(…)
(…) A morte de mais de 40 parakanãs, além de cegueira em oito, causadas por doenças venéreas transmitidas pelos próprios funcionários da fundação, é relacionada por ele como uma das razões que o está levando a se afastar do órgão.”
A partir deste documento podemos perceber em primeiro lugar a falta de amparo da FUNAI aos povos indígenas. Além disso, vemos também, que nestes casos citados, como em muitos outros, foi o contato dos brancos com os índios que trouxe doenças. É importante ressaltar que as doenças chegam, mas os medicamentos não.
Sobre o caso dos Parakanã, citado por Antônio Cotrim, temos ainda no discurso da deputada Lúcia Viveiros, em outubro de 1979[8], um anexo que prova a reincidência do erro descrito por Cotrim. Novamente representantes da FUNAI levando doença aos Parakanã. Toda repercussão do escândalo denunciado pelo sertanista não foi suficiente para a FUNAI rever sua conduta:
“1976: Uma frente de atração da FUNAI efetua contato com o grupo de Parakanã, junto ao Rio Anapu nas proximidades de Altamira. A situação de saúde dos componentes da equipe de atração, logo antes do contato, era bastante precária (malária e gripe) sem alimentação adequada e apoio suficiente.
A equipe não optou pelo retorno, como era de esperar, mas permaneceu até o encontro final.
O resultado foi que, logo depois do encontro, 11 índios morreram de malária e a equipe voltou às pressas impondo aos índios uma transferência e contato violentos com a “civilização”, em condições completamente diferentes dos próprios padrões culturais.
O grupo Parakanã do Lontra é transferido, pela 4.ª vez, para o atual aldeamento junto ao PI (Posto Indígena) da FUNAI chefiado nesta época por um enfermeiro. Além da mudança de aldeia, neste período várias transformações culturais são impostas ao grupo”
Seguimos com a oportunidade que este documento nos traz de refletir sobre o quinto parágrafo do artigo 231 da Constituição[9]:
“§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.”
Esta lei é uma ferramenta que pode ser utilizada de forma positiva ou negativa, pois permite a remoção de povos indígenas de suas terras em casos de epidemia (entre outros casos descritos no parágrafo). Podemos pensar de maneira positiva quando a remoção dos índios de sua terra visa aos cuidados de sua saúde. Seguindo a lei, após cessados os riscos, os índios deveriam retornar imediatamente para sua terra. Porém, as eventuais boas intenções dos constituintes não impediram a malversação da lei, que se tornou então uma ferramenta a serviço da expulsão dos índios de seus territórios. Como vimos no caso dos Parakanã, o Estado leva a doença e em seguida tira de forma forçada o povo de sua aldeia, pouco se importando com a cultura e o sagrado que ficam na terra em que eles habitam. Ao longo da história, os Parakanã foram remanejados diversas vezes, sempre por conta de algum interesse capitalista. Não por coincidência, este povo tem sua história pontuada pela doença, peste e sofrimento.
Em abril de 1979 o deputado Heitor Alencar Furtado proferiu um discurso muito forte[10], embasando, ainda mais, a denúncia ao Estado que fazemos neste texto.
“Para desalojar tribos indígenas e tomar-lhes a terra, no processo de ocupação que se desenvolveu ao longo da História, o branco sempre se utilizou de métodos desumanos, na maioria das vezes com a conivência das autoridades governamentais. Conta o sertanista Villas-Boas que, no período de construção da Estrada de Ferro Noroeste, os índios durante a noite desmanchavam o que era feito durante o dia. Houve, então, quem sugerisse e, pior, quem pusesse em prática a violência numa de suas formas mais cruéis. Algumas camisas contaminadas com o vírus do tifo foram deixadas junto à estrada. Ocorreu então uma epidemia devastadora e milhares de índios morreram. Quem pagou, ou quem pagará por essas vidas? A quem responsabilizar por estes crimes, senão a uma administração falha e omissa?”
Neste documento podemos ver que para além da incapacidade do governo de cuidar dos povos indígenas, o Estado é conivente com a violência do setor privado contra os povos, cujo objetivo é roubar as riquezas e as suas terras. Vemos também que as doenças foram utilizadas como ferramenta para fragilizar a luta indígena contra a grilagem de suas terras. De tal forma, doenças tornaram-se armas letais que se fingem como um infortúnio, uma fatalidade, mas que escancaram que o governo, além de omisso, é também cúmplice da maldade genocida dos capitalistas, pois não julga os crimes dos invasores e nem sequer presta socorro aos índios adoecidos.
É preciso respeitar a Constituição e os direitos dos povos indígenas, garantir-lhes o direito à terra, cultura, saúde e à vida. É nosso dever participar da luta dos povos originários para devolver o que lhes pertence por direito inalienável.
[1] Indígena em Manaus, durante pandemia de Covid-19 | Alex Pazuello/Prefeitura de Manaus
A decisão de demitir Mandetta por conta de medidas de distanciamento social é preocupante, mas não surpreendente. De acordo com o presidente, deixar a população trabalhar significa cuidar de seu bem-estar, algo que um Ministro da Saúde centrista não é bem equipado para supervisionar. O ex-bancário Rodrigo Maia, uma pessoa em teoria mais preparada para lidar com questões econômicas, fala de redistribuição de riqueza, enquanto Bolsonaro o ataca por não ter um coração verde e amarelo. Uma resposta mais “patriota” a essa pandemia seria acabar com o distanciamento e reduzir impostos para empresas que contratarem jovens (de 18 a 29 anos) e pessoas com mais de 55 anos. Em outras palavras, botar as pessoas para trabalhar.
Comparar o Brasil com os Estados Unidos é inevitável. Bolsonaro disse que não temos o luxo de não voltar ao trabalho, porque não somos tão ricos quanto os EUA e não podemos deixar que nossa dívida aumente mais um bilhão de reais. Maia, por outro lado, disse que o que não podemos permitir é que os erros dos EUA se repitam aqui, e que os índices de morte cheguem a tal nível.
Se há uma coisa que essa pandemia nos ensinou, é apreciar os dois aspectos mais essenciais da vida: comida e abrigo. Trabalho não é sinônimo disso, já que muitas pessoas trabalham e ainda não tem acesso a essas necessidades básicas. Os países ‘em desenvolvimento,’ que ‘ainda não chegaram a um ponto’ em que comida e abrigo sejam acessíveis a todos e todas, estão se preparando para quando a pandemia os atingir em cheio.
Talvez seja o nosso ‘subdesenvolvimento’ que nos prepara para lidar com uma crise sem acesso a recursos adequados ou apoio do governo, encontrando maneiras criativas de sobreviver nas paisagens mais áridas. Talvez desenvolvemos a capacidade de fazer gambiarra inevitavelmente, como soluções improvisadas de distribuição de alimentos a pessoas em situação de rua, ampliamos nossa rede e redirecionamos nossos recursos.
Mas há um aspecto da distribuição de alimentos que sempre foi inflexível e difícil de resolver — o que as pessoas querem comer?
De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira de 2014, pelo Ministério da Saúde, a deficiência nutricional deve ser tratada ao lado de doenças causadas pelo excesso de sódio e gorduras animais. Em outras palavras, a desnutrição causada pela pobreza não pode ser mitigada com uma dieta desequilibrada que gira em torno de carnes e alimentos ultra-processados. Eles podem causar um novo conjunto de problemas, como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e até câncer. Portanto, toda a campanha que visa ‘alimentar o mundo’ precisa reavaliar o que significa passar fome hoje em dia, agora que comida se tornou acessível, mas mata.
Um dos pratos mais emblemáticos do Brasil é a feijoada. Vem dos tempos coloniais, quando os colonos comiam as partes mais ‘valiosas’ do animal, enquanto pessoas escravizadas recebiam os restos, pés e orelhas. Era uma época em que os escravagistas não queriam que as pessoas consideradas ‘propriedade’ morressem.
Hoje, a feijoada é para todas as pessoas, mas os pobres ainda estão recebendo as sobras dos ricos. O cachorro-quente, por exemplo, servido em molho de tomate salgado e processado é muito popular. São as sobras das indústrias de suínos, vacas e galinhas misturadas com conservantes, antibióticos e corantes, depois pasteurizadas, embaladas e distribuídas para as famílias de menor renda. Nesses agregados familiares, a ascensão social está geralmente e inconscientemente ainda ligada ao modelo colonial de distribuição de recursos, onde provar um pouco da ‘vida boa’ significa comer a ‘carne boa’. Isso significa que as ‘partes boas’ do animal geralmente são enviadas para o exterior, enquanto os restos são oferecidos a nós disfarçados de O Sonho Americano, uma imagem dos filmes de Hollywood, com um nome que nem podemos pronunciar adequadamente sem inventar vogais: ‘hotchi- dogui’.
Houve outra mudança nos últimos séculos: pessoas über ricas não querem mais que pobres sobrevivam.
Tornou-se aceitável permitir que pessoas pobres morram de diabetes, tuberculose, doenças cardíacas, overdose, covid-19 e assim por diante. Não há vídeos de partir o coração de pessoas violentamente magras que, com sua ajuda, serão poupadas da tortura da fome. Existem ‘pessoas pobres e gordas’ que estão doentes ou abusam de drogas devido a suas próprias ‘más escolhas’ e, silenciosamente, morrem aos milhões, sem causar o menor desconforto ao resto do mundo.
Agora que as academias estão fechadas, qual é o sentido de tirar selfies para colocar no aplicativo se não podemos sair de casa? Quem somos nós quando não estamos constantemente no corre, tentando sobreviver? 2020 está transbordando de angústia existencial, compreensivelmente, já que muito mais pessoas do que o normal estão sentindo a fome e a perda de moradia (e morte) se aproximando delas.
Podemos apostar nas iniciativas de apoio mútuo, organizar nossa comunidade, redistribuir recursos e alimentar pessoas em necessidade. Se elas pedem hotchi-doguis, é só responder com um emoji triste e cansado.
Mudar ideias profundamente arraigadas sobre o papel que a desigualdade desempenha em nossas vidas é muito mais difícil do que acessar recursos básicos. Temos os meios para produzir muitos alimentos saudáveis e diversos de forma eficaz, o que não conseguimos fazer é controlar o crescimento da monocultura, que é ineficaz, direcionada ao processamento pesado e à ração. Os alimentos ultra-processados são feitos para serem baratos e durar uma quantidade desconcertante de tempo, e sabemos há anos como são nocivos. Por que tantas pessoas ainda preferem esses alimentos quando recebem uma alternativa pelo mesmo preço?
A resposta instintiva é afirmar que os aditivos que melhoram o sabor e preservam os alimentos são viciantes, e há algumas evidências disso. Mas eu gostaria de focar no lado social das péssimas dietas, porque também há pesquisas para mostrar que “exclusão e marginalização social progressiva” é uma “característica comum do vício humano” (“Time to Connect: trazendo o contexto social para a neurociência do vício”, por Heilig, Epstein e Shaham). Se os aditivos colocados em alimentos baratos são viciantes, a marginalização torna uma pessoa pobre mais suscetível a esse vício do que a falta de acesso financeiro a alimentos mais saudáveis.
Alimentos ultra-processados afetam nossa cultura, tornando os alimentos frescos desinteressantes, especialmente para os jovens. Na página 45 do Guia Alimentar, esse impacto é descrito como:
“A promoção do desejo de consumir mais e mais para que as pessoas tenham a sensação de pertencer a uma cultura moderna e superior.”
Essa é a consequência da ideologia do consumismo, um modo de vida dos Estados Unidos que se infiltra em nossa psique tanto quanto se infiltra em nossos corpos. Ingerimos novos aditivos da mesma maneira que regurgitamos novos sons. Os Big Macs, por exemplo, são tão problemáticos para comer quanto para pronunciar; essas consoantes abertas inevitavelmente se transformam em ‘Bigui Méki,’ à medida que o ritual da refeição se transforma em porções rápidas e individuais para serem consumidas ‘on the go.’ Não há mais necessidade de ter cozinha, a habilidade de cozinhar, acompanhantes ou tempo. Existe apenas uma solução rápida e individualista por um preço baixo.
Tentar mostrar que os alimentos processados estrangeiros não são tão bons quanto os produtos locais é mais difícil do que apenas oferecer esses produtos locais aos pobres. Em escala nacional, nossa produção agrícola é em grande parte direcionada para a manutenção dos hábitos alimentares tradicionais do hemisfério norte (e incorporá-los como nossos), como se pudéssemos ‘comer’ dinheiro estrangeiro. O que não considera que nossa terra é propícia para a produção de alimentos muito mais interessantes do que o que os países europeus minúsculos e frios têm sido historicamente capazes de produzir, e estão atualmente interessados em comprar. Não precisamos viver de linguiça e pão branco como um açougueiro Alemão do século 18.
Este é o Brasil, temos frutas que a maioria das pessoas do hemisfério norte nem sabe que existem. Temos pelo menos meia dúzia de tipos de bananas amplamente acessíveis, abacates do tamanho de bolas de futebol americano, e conhecimento tradicional e milenar sobre relacionamentos sustentáveis com a terra e com o corpo. Pelo menos neste país, alegar que alimentos ultra-processados são mais baratos do que produtos frescos locais não tem base na realidade — ainda. A única maneira disso se tornar realidade é com o marketing mais agressivo dessas empresas, o que aumentará a demanda por esses produtos, tornando outros produtos menos disponíveis.
Uma das principais sugestões do Guia Alimentar é: não veja o marketing como fonte educacional. A “função da publicidade é essencialmente aumentar a venda de produtos, não informar ou, menos ainda, educar as pessoas” (página 120). As vendas de alimentos aparentemente acessíveis são vistas como um sinal de Desenvolvimento, como progresso para o país e para comunidades marginalizadas. Este ‘desenvolvimento’ não tem em mente o melhor interesse da população, tem em mente os lucros do mercado de ações.
A cultura tóxica que somos forçados a engolir é o mais difícil de enfrentar nas iniciativas de apoio mútuo. Mais difícil do que arrecadar dinheiro, distribuir recursos, aprender uma nova habilidade, arregaçar as mangas e sujar as mãos. É aquela coisa escondida nos cantos escuros da psique, esse padrão de comportamento que anos de terapia podem nunca alcançar. Ele sussurra: “Eu não quero que as coisas mudem tanto assim” e dá espaço para a publicidade continuar a nos mudar e a destruir os nossos corpos.
____ NOTAS
Este artigo em Inglês: abeautifulresistance.org/site/2020/4/6/thesystemicchangesneeded
Entrevista de Claudia Korol a pesquisadora Silvia Ribeiro publicada no jornal argentino Pagina 12 em 03 de abril de 2020
Tradução Leila Monségur
Silvia Ribeiro, pesquisadora nascida no Uruguai que mora no México há mais de três décadas, é diretora para a América Latina do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), com status consultivo perante o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. A soberania alimentar e o impacto dos desenvolvimentos biotecnológicos na saúde e no meio ambiente são alguns dos tópicos sobre os quais ela investiga e que a levaram a questionar, desde o início da pandemia, a ausência, não apenas da descrição das causas mas também das propostas para modificá-las. Nesta entrevista, ela se refere a esse ponto nodal, ao sistema de produção capitalista e ao que podemos vislumbrar, a partir do isolamento obrigatório, como o futuro.
A pesquisadora Silvia Ribeiro. Foto: Francis Dejon
Embora estejamos falando há meses sobre este vírus, vale a pena perguntar: O que é o Covid -19?
– É uma cepa ou linhagem – a que dá origem à declaração atual de pandemia – da família dos coronavírus, que geralmente causa doenças respiratórias leves, mas que pode ser grave para uma porcentagem das pessoas afetadas, devido à sua vulnerabilidade. Faz parte de uma ampla família de vírus, que como todos, sofre mutações muito rapidamente. É o mesmo tipo de vírus que deu origem à síndrome respiratória aguda severa (SARS) na Ásia e à síndrome respiratória aguda no Oriente Médio (MERS).
De onde provém?
Embora exista um amplo consenso científico, sobre sua origem animal, e sua origem seja atribuída aos morcegos, não está claro de onde vem, porque a mutação dos vírus é muito rápida e há muitos lugares onde poderia ter sido originado. Com a intercomunicação que existe atualmente a nivel global, ele poderia ter sido levado de um local para outro muito rapidamente.
O que se sabe é que começa a ser uma infecção significativa em uma cidade da China. No entanto, essa não é a origem, mas o lugar onde ela se manifesta primeiro.
Rob Wallace, um biólogo que estuda um século de pandemias há 25 anos e que também é filo-geógrafo, e como tal tem seguido o caminho de pandemias e vírus, diz que todos os vírus infecciosos nas últimas décadas estão intimamente relacionados a criação industrial de animais. Nós – do grupo ETC e do GRAIN – já vimos com o surgimento da gripe aviária na Ásia e da gripe suína (que mais tarde eles chamaram de H1N1 para torná-lo um nome mais asséptico), também da SARS, que é relacionada à gripe aviária, que são vírus que surgem em uma situação em que existe um tipo de fábrica de replicação e mutação de vírus que é a criação industrial de animais.
É porque existem muitos animais que estão juntos, amontoados. Isto se repete tanto com frangos como com porcos, que não podem se mover e, portanto, tendem a criar muitas doenças. Existem diferentes cepas de vírus, de bactérias, que se transladam entre muitos indivíduos em um espaço reduzido. Os animais são submetidos a aplicações regulares de pesticidas, para eliminar outra série de coisas que estão dentro do próprio criadouro. Também existem venenos nos alimentos – em geral, é milho transgênico que lhes é administrado -. Tudo está intimamente relacionado ao negócio de venda de transgênicos para forragens. Dão a eles uma quantidade de antibióticos e antivirais, para prevenir doenças, o que está criando uma resistência cada vez mais forte.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) chamou as indústrias de criação de animais, especialmente frango, porcos, mas também piscícola e de perus, para parar de aplicar tantos antibióticos, porque entre 70 e 80% dos antibióticos do mundo, são usados na cria industrial de animais. Por serem animais que têm um sistema imunológico deprimido, estão expostos a doenças o tempo todo e também lhes aplicam antivirais. Lhes dão antibióticos não tanto para prevenir doenças, mas para torná-los mais gordos mais rapidamente. Estes centros industriais de criação, desde o confinamento até à criação de porcos, galinhas e perus, muito apinhados, criam uma situação patológica de reprodução de vírus e bactérias resistentes. Mas também, estão em contato com seres humanos que os levam para as cidades.
Mas vem de morcegos ou não?
– Há quem se pergunte: “se se diz que foi encontrado em um mercado e provém de morcegos, como chega aos animais que estão sendo criados? O que acontece é que os morcegos, os civetas e outros que supostamente deram origem a vários vírus – até uma das teorias é que o vírus da Aids provém da mutação de um vírus presente nos macacos – os expandem devido à destruição dos habitats naturais dessas espécies, que se deslocam para outros lugares. Os animais selvagens podem ter um reservatório de vírus, que, dentro de sua própria espécie, estão controlados, existem mas não estão deixando os animais doentes, mas de repente se mudam para um meio onde se tornam uma máquina de produção de vírus, porque encontram-se com muitas outras cepas e vírus.
Eles alcançam esses lugares deslocados de seus habitats naturais. Isso tem a ver principalmente com o desmatamento, que paradoxalmente também se deve à expansão da fronteira agrícola. A FAO reconhece que 70% do desmatamento tem a ver com a expansão da fronteira agropecuaria. Até a FAO diz que em países como o Brasil, onde acabamos de ver tudo o que aconteceu com os incêndios, devido ao desmatamento para a pecuaria, a causa do desmatamento é a expansão da indústria agropecuaria em mais de 80%.
Existem vários fatores que se conjugam. Os animais que saem de seus habitats naturais, sejam morcegos ou outros tipos de animais, inclusive podem ser até muitos tipos de mosquitos que são criados e se tornam resistentes pelo uso de pesticidas. Todo o sistema de agricultura industrial tóxica e química também cria outros vírus que causam doenças. Existem vários vetores de doenças que atingem sistemas de superlotação nas cidades, especialmente em áreas marginais, de pessoas que foram deslocadas e não têm condições adequadas de moradia e higiene. Se cria um círculo vicioso de circulação entre os vírus.
Qual é sua opinião sobre o modo como se esta enfrentando a pandemia no mundo?
– Nada do que está acontecendo agora está prevenindo a próxima pandemia. O que está sendo discutido é como enfrentar esta pandemia em particular, até que, tomara, em algum momento, o próprio vírus encontre um teto, porque há resistência adquirida em uma quantidade significativa da população. Portanto, esse vírus em particular pode desaparecer, como o SARS e o MERS desapareceram. Não afetará mais, mas outros aparecerão, ou o mesmo Covid 19 será transformado no Covid 20 ou Covid 21, por outra mutação, porque todas as condições permanecem as mesmas. É um mecanismo perverso. O sistema agroindustrial de alimentos teria que ser discutido, desde a forma de cultivo até a forma de processamento. Todo esse círculo vicioso que não está sendo considerado faz com que outra pandemia esteja sendo preparada.
É possível identificar os responsáveis por esta pandemia?
– É o mecanismo típico do sistema capitalista, que cria enormes problemas que vão das mudanças climáticas à contaminação das águas, dos mares, a enorme crise de saúde que existe nos países devido à má alimentação, mas também devido aos tóxicos aos quais estámos expostos, causando uma crise de saúde em humanos. É claro que o sistema capitalista não vai revê-lo, porque para isso teria que afetar os interesses das empresas transnacionais que são as que acumulam, as que concentram tanto na criação industrial de animais, como nas monoculturas, e inclusive nas empresas florestais e o desmatamento feito comercialmente.
Em cada um dos degraus da cadeia do sistema agroalimentar industrial, encontraremos algumas empresas. Estamos falando de três, quatro, cinco, que dominam a maior parte dessa área, como acontece com os transgênicos que são Bayer, Monsanto, Singenta, Basf e Corteva. O mesmo vale para aquelas que produzem forragem para animais. Por exemplo, Cargill, Bunge, ADM. Todas têm interesse na criação industrial de animais, porque são seu principal cliente. Muitas vezes são co-proprietárias dessas fábricas de vírus.
Além de questionar as causas, … elas teriam que ser modificadas. E mudá-las questiona os próprios fundamentos do sistema capitalista. É necessário questionar os sistemas de produção, especialmente o sistema agroalimentar, imediatamente. Mas também está relacionado a muitas coisas. Por exemplo: quem é o mais afetado pela pandemia no momento? As pessoas mais vulneráveis: quem não tem casa, quem não tem água. São os mesmos deslocados por esse sistema e que não podem acessar aos sistemas de saúde.
Como é a resposta dos sistemas de saúde?
– Nestas décadas de neoliberalismo não se atendeu a necessidade de sistemas de atenção primária à saúde, que é fundamental; mas também não há sistemas de saúde para cuidar agora de todas as pessoas que estão ficando doentes em muitos países. Os países em que houve menos mortes em relação à população são países que já tinham sistemas de saúde relativamente capazes de atender sua população. Aqueles que os desmontaram foram os que ficaram pior diante da pandemia. O sistema é injusto não apenas na produção. É injusto no consumo, porque nem todos podem consumir o mesmo. É injusto nos impactos que causa nas pessoas mais afetadas, que são as mais vulneráveis.
Em alguns casos, será devido à idade, mas em muitos outros, devido a doenças causadas pelo próprio sistema agroalimentar industrial, como diabetes, obesidade, hipertensão, doenças cardiovasculares, todos os cânceres do sistema digestivo. Tudo isso está relacionado ao mesmo sistema que produz os vírus. No meio disso, vêm os sistemas de “resgate” dos governos, e em todos os países do mundo, por mais que digam que primeiro atenderão aos pobres embora possa haver essa intenção – em outros nem sequer isso tem, como nos Estados Unidos – na realidade, o que estão tentando salvar são as empresas, porque dizem que são os motores da economia. Então se repete o mesmo esquema. Se volta a salvar as empresas que criaram o problema.
Qual é o papel das indústrias farmacêuticas diante da pandemia?
Mesmo diante da pandemia, as causas não são discutidas, mas se procuram novos negócios, como por exemplo, com a vacina. Todo o negócio das vacinas está acontecendo agora, para ver quem chega primeiro, quem a patenteia. As farmacêuticas estão procurando o negócio. Também é um negócio para todas as empresas de informática, com as comunicações virtuais. Pouco antes da pandemia, as famosas empresas GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft) já eram as empresas mais valorizadas no nível de valor de mercado de suas ações. E são as empresas que estão obtendo lucros enormes, porque houve uma substituição da comunicação direta, ainda mais, pela comunicação virtual. Os projetos de resgate da economia apoiarão esse tipo de empresa, as farmacêuticas que vão monopolizar as vacinas, as empresas de agricultura industrial que produzem estes vírus. É como uma repetição permanente desse tipo de sistema capitalista injusto, classista, que afeta muito mais a aqueles que já estavam mal.
Também é preciso dizer que 72% das causas de morte no mundo são devidas a doenças não transmissíveis: diabetes, doenças cardiovasculares, cânceres, hipertensão. São doenças respiratórias, não por contágio infeccioso, mas por contaminação nas cidades, com o transporte. Tudo o que está sendo feito agora em relação ao coronavírus é porque ele dá a ilusão no sistema capitalista, que pode ser atacado. Que se houver uma pandemia é um problema tecnológico, e a resposta é criar situações reguladas em cada país, o que é uma resolução do tipo tecnológica.
Mas existe outra possibilidade de enfrentar esta crise a não ser com o isolamento social?
– Quero esclarecer que concordo com que sejam tomadas medidas de distanciamento físico, e não social, mas devem ser acompanhadas por medidas que possam apoiar aqueles que não conseguem fazê-lo por causa de sua vulnerabilidade. O fato de selecionar uma doença específica, como neste caso é uma doença infecciosa, para liberar toda a bateria do que seria um ataque global à situação de pandemia, por um lado, não questiona as causas, mas, por outro, instala uma série de medidas repressivas inclusive, muito autoritarias, de cima para baixo pra dizer ao povo: “Faça isso, faça o outro, porque nos sabemos o que você deve fazer e o que não”.
Tudo isso está relacionado a não ver o fundo do problema, as causas e, ao mesmo tempo, dizer que os únicos que podem lidar com a situação em que vivemos hoje globalmente são os de cima, desde governos, empresas, que são os que forneceriam a solução e, portanto, devemos aceitar todas as condições que nos impõem. Diante disso, acredito que é fundamental resgatar e fortalecer respostas coletivas e desde a base.
Por exemplo?
– Por um lado, precisamos entender que existe um sistema alimentar que acessa o 70% da população mundial. Existem trabalhos muito serios de pesquisa do ETC e GRAIN, mostrando que 70% da população mundial se mantém pela produção em pequena escala de camponeses, pequenos agricultores, também hortas urbanas e outras formas de troca e coleta de alimentos que são pequenas, descentralizadas, locais. É isto que alimenta a maior parte da humanidade. E não é apenas uma comida mais saudável, como também a que chega a maioria das pessoas.
Estas alternativas deveriam ser apoiadas e fortalecidas. É como um paradigma para pensar soluções desde a base, descentralizadas, coletivas, de solidariedade, para ver como cuidar de nós mesmos, diante de uma ameaça que pode nos infectar, mas também cuidar um do outro, e continuar trabalhando na criação de culturas completamente questionadoras e contrárias ao sistema capitalista, porque é o que está deixando doente toda a humanidade, a natureza, aos ecossistemas e ao planeta.