Jornalistas Livres

Autor: Matheus Alves

  • MARIELLE FRANCO, 41 ANOS DEMOLINDO AS VELHAS ESTRUTURAS

    MARIELLE FRANCO, 41 ANOS DEMOLINDO AS VELHAS ESTRUTURAS

    Lembro-me que, naquele 14 de março de 2018, eu estava em um trabalho na Bahia, quando soube do assassinato de Marielle Franco. Era também, a data de meu aniversário. Cercada de amigos num restaurante, o mundo literalmente parou. Eu não havia conhecido Marielle pessoalmente, mas já acompanhava a sua atuação política e comunitária, mesmo antes de ser vereadora. Não acreditei que aquilo pudesse ter acontecido. Aliás, em época de fake news, eu achei que aquela era mais uma, e devido às minhas vivências profissionais com diversos parlamentares, no meu imagético mundo, a tal da imunidade parlamentar era como se fosse uma grande muralha impenetrável a qualquer tempestade. Marielle Franco faria 41 anos hoje.

    Por Matheus Alves e Katia Passos

    Amanhecer

    É óbvio que eu já havia me deparado com histórias de execuções de prefeitos, por exemplo, de pequenas cidades, mas pensar que uma vereadora legitimamente eleita havia sido morta no Rio de Janeiro, era algo absurdo e inadmissível para mim. Mais inaceitável ficava, ainda quando eu lembrava do rosto de Marielle Franco, que era, entre outras parlamentares, uma das minhas referências no modo de atuar politicamente, como mulher preta. A comida e a bebida já não desceram mais. Lembro-me que saí do restaurante e o Pelourinho estava metaforicamente silencioso para mim. Havia aquela movimentação com xêro de Pelourinho, mas pairava no ar um clima absorto de indignação e medo. Caminhando por ali, encontrei outros amigos e sentamos num bar. Nossos corpos sentiam uma exaustão que não era fruto do calor bahiano e logo entendemos que era dor. 

    Ali as nossas fichas começaram literalmente a cair. Aguardávamos Marielle para o dia seguinte participar de uma das atividades nas quais eu trabalharia como jornalista. Ela não viria. Recordo agora que choramos na mesa e não conseguimos mais tirar os olhos das telas dos celulares e queríamos ir embora para o Rio de Janeiro. 

    O amanhecer foi absurdamente horrível. Lembro que acordei com uma pressão no peito. Liguei para casa. Chorei. 

    Marielle Franco 41 anos

Katia Passos (à dir.) com os pais e irmã de Marielle Franco

Foto: Arquivo pessoal de Katia Passos
Marielle Franco 41 anos.
    Katia Passos (à dir.) com os pais e irmã de Marielle Franco
    Foto: Arquivo pessoal de Katia Passos

    Um ato público já estava organizado em protesto ao assassinato de Marielle e seu motorista Anderson Gomes. Durante a manifestação lembro-me que eu tentava fazer uma transmissão ao vivo, e num momento choroso encontrei Marcelo Rocha, um jovem fotógrafo negro, de amizade íntima e longeva. Nos abraçamos e caminhamos. Um silêncio, alías o único som era da terra dos campos da Universidade Federal da Bahia, onde acontecia a manifestação.  

    Sabíamos que aquele 14 de março não era só mais um dia para comemorar aniversário, sentimos que a data trazia um limítrofe com giz preto riscado no chão, sobre o que não iríamos mais tolerar e qual legado queríamos imortalizar. Entendemos ali o sentido da frase: “não serei interrompida!”.

    Depois de mais de 2 anos sem respostas sobre quem mandou matá-la, hoje chegamos vivos, eu e Matheus e muitos outros pretos, ao 27 de julho de 2020, data dos 41 anos de Marielle. Sim, porque para nós, Marielle Franco permanece em legado e semente representando obviamente um verdadeiro incômodo à Casa Grande, milicianos e racistas. 

    Mãe

    Dessa trajetória surgiram centenas de milhares de novas mulheres negras que se reconhecem como parte de uma estrutura que tem como engrenagem os seus próprios corpos e esses precisam se movimentar, como diz a mestra Angela Davis, para que toda uma estrutura se movimente, evolua e por nossa sobrevivência, que seja inclusive demolida e novas construções defendam uma das trajetórias mais ricas em poderio político, humanitário e afetuoso já vista na história de uma mulher preta, altiva e de tom permanentemente voraz em sua militância. E por falar em afeto, nesses 41 anos nós negras e negros amanhecemos literalmente afetados com a declaração daquela que pariu Mari, D. Marinete Silva:

    “Vinte e sete de julho de 1979! Era uma sexta de sol lindo com desenhos infinitos e desordenados, nem parecia inverno. A criança que veio ao mundo, tinha peso e tamanho de menino. A mãe feliz, segura, e tomada de confiança em Maria, sua intercessora, sua mãe Filó, que chegara de João Pessoa para acompanhar o nascimento da criança. A partir daquele dia nunca mais me senti sozinha, começava ali uma missão de doação, entrega e amor eterno com aquele ser indefeso e frágil que nos remete a pensar em você como prioridade para nada no mundo. Chegava sua melhor, amiga, companheira, guerreira, irradiando luz, esperança e um futuro brilhante para sua trajetória.

    Marielle Franco 41 anos

D. Marinete e Marielle recém nascida

Foto: arquivo das redes sociais da família de Marielle Franco
    D. Marinete e Marielle recém nascida
    Foto: arquivo das redes sociais da família de Marielle Franco

    Foram 38 anos de luta, sacrifícios, dedicação e amor infinito. Formei caráter, personalidade e principalmente o respeito ao sagrado. Cumpri minha missão de mãe e devolvi minha filha para Deus, precocemente, sem entender o porquê! Acreditando em sua misericórdia de pai que nunca me desamparou e sem perder minha fé. Só o senhor mudaria minha história e a da Marielle. A justiça dos homens pode não chegar, a sua jamais falhará e nessa eu acredito. O céu está em festa. Que toquem as trombetas da eternidade por nos dar de presente seus 38 anos de existência.” 

    Descobrir 

    Conheci Marielle bem de perto em dois eventos onde estive no Rio de Janeiro. Eu não era, de fato, um jovem próximo da vereadora, apesar de termos sido formalmente apresentados um ao outro. Mas desde quando a conheci, nunca mais acordei igual. Descobertas, um novo desperta.  Tornei-me um jovem preto mais esperançoso com a vida e avançado na consciência sobre meu real papel no país. 

    Sou um contrariador das estatísticas, e embora vivo, estou há dois anos angustiado lutando diariamente para que seja respondida a pergunta sobre os mandantes do crime. E mesmo não possuindo provas jurídicas sobre os assassinos, é muito claro que para nós, militantes do campo progressista, a sensação das conexões do assassinato com determinados personagens, esteja presente e por isso somos afetados por resistência e angústia ao mesmo tempo, desde o 14 de março de 2018. E isso piora quando somos apresentados a fatos supostamente ligados ao crime, veiculados pela mídia tradicional. Alternâncias intrigantes entre angústia, ardor no peito e resistência. 

    Hoje amanheci lembrando do sorriso e da firmeza das palavras da vereadora, que como diz Jorge Mautner, em canção que leva seu nome, “é uma força furiosa” . 

    Quando verbalizam “Marielle Franco”, logo vem à cabeça a sensação de exemplo, de coletivo, dá vontade de sorrir e de abraçar alguém. Seu nome remete a muitas coisas, dentre elas o amor à causa, seja ela qual for, desde que faça bem ao mundo. Sua vida é um enredo de amor à família e respeito ao chão em que se pisa. Trata-se do novo mundo que seus passos firmes no solos íngremes moldam a cada dia que sobrevivemos.

    Marielle é sobre a vontade de empurrar os nossos para adiante com um foco: projetar a favela como união e transgressão política em comunidade. É demolir as estruturas arcaicas da branquitude.

    Os 41 anos de Marielle Franco nos colocam num processo de felicidade que seu sorriso aberto levará por décadas e centenários para várias partes do Brasil e do mundo, onde quer que chegue, representando uma galera aí que pertenceu aos humilhados e ofendidos, mas que hoje é do barulho. E sim, esse sorriso barulhento aí, escancarado ao mundo, é o maior exemplo das centenas de fatos, posturas e conquistas que incomodam quem não gosta da felicidade do povo preto e tão pouco está interessado em fazer a alternância de poder necessária na política, nos partidos, movimentos sociais e até coletivos de mídia, essa é a turma do sono profundo e que se for para atrapalhar ou fortalecer o racismo que permaneçam inertes em suas zonas de conforto, mas não atrapalhem o legado de Marielle. 

    Semear

    Dizer que Marielle é semente, significa colocar em prática um projeto bom para acabar com um projeto mal: o de extermínio da população negra. Significa darmos asas a PANE ANTIRRACISTA, uma plataforma que vai construir, através do Instituto Marielle Franco, uma nova mobilização do sistema político no Brasil. Essa é a primeira eleição municipal sem a presença física de Marielle. Mas a PANE pretende derrubar o que até hoje foi “lógica” colocando no sistema político a responsabilidade da população negra que quer alterar essa lógica irresponsável e racista. 

    Marielle foi autora de sete importantes projetos de lei, que representavam grandes mudanças nas vidas de mulheres, crianças e da comunidade LGBTQIA+ carioca.

    O PL 17/2017 do Espaço Coruja, programa que garante creches noturnas aos filhos de famílias que estudam à noite; o Dossiê Mulher Carioca, que visa garantir dados mais detalhados sobre crimes de violência contra a mulher na cidade do Rio de Janeiro; a Campanha Permanente de Conscientização e Enfrentamento ao Assédio e à Violência Sexual são alguns dos exemplos.

    Há 15 dias de seu assassinato, no dia 28 de fevereiro de 2018, Marielle Franco assumiu a relatoria de uma comissão criada na Câmara Municipal do Rio para acompanhar a Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio, se tornando a responsável pela fiscalização dos militares nas favelas do Rio e, como socióloga, faria linha dura a qualquer descontrole. Não há caminho de retorno sobre os frutos que a história de Marielle entrega para fortalecer a luta antirracista. Eu sou porque nós somos é o mantra diário de nós mulheres e homens negros no país e não, não admitiremos sermos interrompidos em nossa construção.

    Marielle Franco, 41 anos
    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Katia Passos tem 44 anos, é mãe de duas meninas de 19 e 14 anos, ativista em Direitos Humanos, jornalista da bancada do PT na Alesp, fundadora dos Jornalistas Livres, integra o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas em Comunicacão, da Fundacão Perseu Abramo e atualmente constrói um projeto literário em homenagem e defesa do legado de Marielle Franco.

    Matheus Alves, 22, é fotojornalista freelance baseado em Brasília (DF). Tem seu trabalho dedicado a documentar Movimentos Populares de luta pela terra e direito à cidade. Premiado pelo Concurso Fotográfico “Combater os Retrocessos: Existir e Resistir à Retirada de Direitos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em 2019. É militante do Levante Popular da Juventude e colabora com a rede Jornalistas Livres.

  • O que de fato importa? As vidas negras ou as mortes negras?

    O que de fato importa? As vidas negras ou as mortes negras?

    Porque os corpos negros só se tornam relevantes quando alguma tragédia acontece?
    A imagem consegue por si só contar inúmeras histórias, que nos ensinam e nos forjam dentro de uma estrutura social. Pensar o modo que temos vivido se dá em uma busca constante por conteúdos visuais, somados a uma defasagem educacional gigante e proposital em nosso país. Desde o fim de maio, circulam por todo o mundo imagens do assassinato de George Floyd, causando uma grande onda de denúncias de violência policial e ações de promoção de causas ligadas ao assunto. A questão que se levanta com tal movimento é o que de fato importa: as vidas ou as mortes negras?

    Por Marcelo Rocha e Matheus Alves*

    Durante os meses de junho e julho, vários veículos de mídia expandiram os debates sobre as questões raciais em seus editoriais, capas e artigos, na busca de suprir violências de mais de 400 anos de extermínio. Fato que tem sua importância no contexto histórico, porém se dá mais uma vez após momentos de violência, repetindo uma estrutura de banalização do mal, pois os casos seguintes se tornaram apenas virais na internet, como na cidade de São Paulo, o caso da comerciante de 51 anos que teve seu pescoço pisoteado pelo soldado da Polícia Militar João Paulo Servato, durante uma abordagem.

    Sabemos que uma das bases da nossa educação é a imagem. Partindo disso, essa construção imagética da violência produz narrativas que por muitas vezes reduzem as ações do povo preto às violências sofridas, enquanto processo de documentação. A pesquisadora norte americana bell hooks, em seu livro “Olhares Negros, Raça e Representação”, faz uma síntese de como essas imagens reforçam a violência, pois não criam outras possibilidades concretas para esse povo e o condicionam à violência, fato que a repercussão da imagem no Brasil, causa um efeito reverso, reproduzindo as ações praticadas. Pensar que a imagem de um policial sufocando um homem negro nos EUA fora reproduzida quase que integralmente por um outro policial no Brasil, nos deixa com a reflexão de que isso pode ser uma demonstração de identidade com a violência praticada contra corpos negros. 

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Compreender a importância da valorização das vidas negras se faz necessário não apenas quando uma delas é perdida ou colocada em situação de vulnerabilidade. É algo que precisa ser construído cotidianamente através da promoção da cultura e da diversidade do povo, da inserção destes em espaços de criação de narrativas e decisão política e editorial. A construção da documentação do povo preto precisa considerar os mais diversos pontos de vista, inclusive sua própria história, como nos provoca a filósofa Sueli Carneiro sobre essa urgente tarefa de manter o pensamento negro vivo. 

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Há de lembrar que as imagens desde o período colonial têm um papel de manutenção da supremacia branca no Brasil, que apesar de sempre ter existido, agora demonstra sua faceta de forma mais explícita através de ações de extermínio. Ao olharmos toda a história brasileira nos museus e galerias, as únicas formas de representação negra ainda reproduzem essas violências estruturais. Se fazem necessárias alternativas que ultrapassem este lugar de denúncia, mas que construa também narrativas de futuro para as pessoas pretas, vide o trabalho e esforço que tem sido levantado pelos movimentos negros, como o MNU e o Ilê Aiyê, nos anos 70, com a apropriação e ressignificação de termos e figuras para a promoção da autoestima negra nos mais diversos segmentos da sociedade, como na arte e na política.

    Mortes negras: quantas mais?

    Façamos memória das potências negras que já nos deixaram, e que seguem construindo narrativas de transformação, como a própria vereadora Marielle Franco nos alertou pouco antes de ser assassinada: “Quantos mais têm que morrer pra essa guerra acabar?”. Esta frase não fala apenas sobre contar corpos, mas sobre a construção de um projeto de manutenção das vidas negras, onde a necropolítica que a supremacia branca nos determina não seja condicionante da forma que vivemos.

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    É necessário um processo de ruptura com a normalização dessas mortes, que não partam apenas do lugar momentâneo, mas da construção efetiva de processos de reestruturação social, que sejam interseccionais, como tem sido a Lei Federal de nº 10.639/2003 para a educação brasileira, em todos outros espaços de poder, uma derrubada das estruturas coloniais que ainda se mantém de pé.

    A falácia da democracia racial é grande responsável por promover este sentimento de cooperação e exclui a necessidade de entender a importância dos olhares pretos estamparem de forma positiva os espaços de mídia e os imaginários da sociedade. Por isso, é essencial que haja investimento e reconhecimento, para que sejam efetivados os esforços promovidos por artistas, ativistas e tantas outras figuras negras. Onde possam ocupar espaços na sociedade durante suas vidas. Aqui podemos citar trabalhos como do jovem fotógrafo alagoano Marcelino Melo “Nenê”, 25, que tem documentado de outra forma territórios marcados pela violência na região do Campo Limpo, ou mesmo o do antropólogo Hélio Menezes, 34, através de suas curadorias em espaços das artes, buscando ressignificar as identidades negras em exposições de obras produzidas por artistas negros. Ou, como os dois jovens negros que assinam este artigo – que facilmente poderiam ser manchetes sobre mais um extermínio do estado.

    Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

    Texto originalmente publicado pela coluna PerifaConnection, na Folha de S.Paulo.

    Marcelo Rocha, 22, é fotógrafo, ativista em educação, negritude e mudanças climáticas, graduando em Ciências Sociais, foi curador das mostras “Humano Cidade: Olhares além da medida” e “QUEBRADA: São Paulo, na visão dos cria”. Cria da cidade de Mauá, São Paulo.

    Matheus Alves, 22, é fotojornalista freelance baseado em Brasília (DF). Tem seu trabalho dedicado a documentar Movimentos Populares de luta pela terra e direito à cidade. Premiado pelo Concurso Fotográfico “Combater os Retrocessos: Existir e Resistir à Retirada de Direitos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em 2019. Colabora com a rede Jornalistas Livres.