Jornalistas Livres

Autor: Diógenes Júnior

  • Histórias da ditadura militar – parte III

    Histórias da ditadura militar – parte III

    São Paulo, 19 de outubro de 1974.

    O DEIC – Departamento Estadual de Investigações Criminais, órgão que atuava como braço do aparato de repressão da ditadura militar à época, prendeu e torturou naquela data 93 meninos com idades entre 11 e 17 anos.

    Os garotos, presos e torturados, eram meninos pobres, filhos de famílias de baixa renda, a maioria moradores de favelas, sendo que alguns viviam absolutamente largados pelas ruas da Capital.

    A Operação Camanducaia

    Presos na sede do DEIC, no Centro de São Paulo, os menores foram amontoados dentro de um ônibus e agredidos ao longo de toda a viagem, cujo destino desconheciam, já que as cortinas do ônibus estavam fechadas.

    A história nos revela que, obrigados a tirar suas roupas e jogados à beira da Rodovia Fernão Dias, os menores foram abandonados à própria sorte nas cercanias da cidade de Camanducaia, no Estado de Minas Gerais.

    Os policiais retiraram os menores do ônibus e dispararam às cegas em sua direção, para que se dispersassem no meio do mato ao longo da rodovia.

    Machucados e nus, os meninos conseguiram chegar na cidade e foram acolhidos e amparados pela população.

    Três dias depois, foram recolhidos pelas autoridades locais e levados de volta para São Paulo, onde permaneceram, novamente detidos.

    Embora as afirmações dos agentes de Segurança Pública lotados naquele órgão à época fossem de que se tratava de delinquentes, jamais foi encontrada qualquer indício de acusação formal contra aqueles menores.

    O caso foi denunciado pela imprensa e chocou a opinião pública brasileira, tornando-se um dos maiores escândalos de violação de Direitos Humanos do país.

    Apesar de todo o celeuma causado pelo caso, as investigações judiciais nunca avançaram no sentido de responsabilizar os culpados.

    A promotoria pública chegou a oferecer denúncia contra 14 delegados e 7 policiais, mas o caso acabaria arquivado, sem que qualquer autoridade fosse sequer investigada.

    Para dar certa aparência de que havia alguma intenção de punir os responsáveis, o DEIC realizou uma sindicância interna, que foi denunciada na época como farsa, e puniu um funcionário, um escrivão suspenso por 30, sob a acusação de ter comandado toda a operação.

  • Se não ele, quem?

    Se não ele, quem?

    O Brasil vive um pesadelo. 
    Depois de anos de uma certa confortável comodidade, o golpe que apeou Dilma do poder, revogando os votos de 54 milhões de brasileiros, entre eles o meu, jogou a nação em um abismo sem fundo.
    Antes do golpe, e principalmente durante nossa resistência a ele, os brasileiros já se insurgiam uns contra os outros, porém em menor escala do que nos dias atuais.
    Todos estamos assustados, porque a violência tem tomado proporções mais que assustadoras.
    Sabemos que casos de violência, não nos enganemos, sempre aconteceram.
    Lembro-me de ter escrito um artigo para o Portal Vermelho em 2016, onde denunciava fascistas que foram no enterro de um dirigente do PT para jogar panfletos odiosos caluniando a imagem do falecido.
    Quem em sã consciência consegue conceber a ideia de ir a um enterro hostilizar a família de um morto?
    Lembro-me de duas senhoras, na porta do hospital onde estava internada dona Marisa, com cartazes perguntando “porque ela não se internava no SUS”.
    Quem se esqueceu do tristemente célebre cartaz onde se lia “por que não mataram todos em 1964”?
    Perplexo, assisti a uma das cenas mais patéticas que já vi, uma cena onde pessoas ajoelhadas, de mãos na cabeça numa posição de rendição, se prostravam diante de soldados com armas em punho junto a bandeiras do Brasil, num gesto que emulava a entrega de suas vidas, de suas almas, de seus pensamentos, do destino de suas vidas.
    Pessoas clamando pelo retorno de um tempo onde a violência era prática rotineira do Estado, um tempo que a maioria dessas sequer vivenciou.
    Penso que o momento requer sim uma pacificação, mas que tal pacificação não se dará através de armas, da intervenção militar das Forças Armadas.
    A pacificação que vejo para esse momento tem apenas um nome.
    Se chama Luis Inácio Lula da Silva.
    Libertem Lula! Ouçam o clamor popular! Parem de fingir que ele não lidera as pesquisas para as eleições em todos os cenários. Todas as pesquisas em todos os cenários!
    Libertem Lula! Entreguem a ele a interlocução com os setores divergentes, entreguem a ele a mediação do drama dos caminhoneiros!
    Eu confio em Lula, confio no seu carisma, na sua sabedoria, na sua experiência.
    Não se trata de messianismo, não se trata de culto a personalidade.
    Trata-se de enxergar a realidade.
    Caminhoneiros, querem apoio popular joguem fora todo e qualquer pedido de intervenção militar, isso é uma imbecialidade!
    Peçam pela liberdade de um homem como vocês, do povo.
    Petroleiros, querem ainda mais apoio do povo, peçam pela liberdade daquele que foi um dos que mais defenderam a pujança e a independência da Petrobras.
    Não há nada mais importante no momento do que defender a liberdade de Lula.
    Sem que se desfaça a injustiça que é a prisão de Lula o Brasil não poderá seguir adiante.
    Não ter julgado os militares responsáveis pelas torturas durante a ditadura mostra bem isso, que quando não se exerce justiça, pode se por todo um projeto de país a perder.
    Libertem Lula!
    E sigamos em paz, porque paz se faz com justiça, não com violência.

  • Histórias da ditadura militar – parte II

    Histórias da ditadura militar – parte II

    Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, nasceu em Fortaleza, no Cerá, no dia 14 de setembro de 1945.

    No ano de 1962 foi escolhido como dirigente regional para a Região Nordeste da Juventude Estudantil Católica (JEC) logo se mudando para Recife. Ingressou então no noviciado dos frades dominicanos na cidade de Belo Horizonte, em 1966 profissão de fé e votos.

    No ano seguinte mudou-se para São Paulo, onde estudou Filosofia na USP.

    Em outubro de 1968 Frei Tito foi preso juntamente com diversas lideranças estudantis por participar do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), congresso declarado ilegal pela ditadura, e que foi realizado de forma clandestina em Ibiúna, interior de São Paulo.

    Foi fichado pela polícia política da ditadura militar, o tristemente célebre DOPS, e desde então tornou-se alvo constante de perseguição por parte das forças de repressão da ditadura.
    No dia 4 de novembro de 1969 Frei Tito foi preso novamente, juntamente com outros frades dominicanos, dessa feita pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.

    Foi acusado, juntamente com outros presos, de manter contatos com a ALN – Ação Libertadora Nacional, organização de luta e resistência armada contra a ditadura militar liderada por Carlos Marighella.

    Preso, foi barbaramente torturado.

    Relatou ter sofrido toda sorte de torturas nas dependências do DOPS, durante cerca de trinta dias. Depois deste período, foi levado para o Presídio Tiradentes.

    Após o período em que passou pelo Presídio Tiradentes, Frei Tito foi levado para a sede da OBAN – local chamado por Maurício Lopes, torturador, de “sucursal do inferno”.
    Onde mais uma vez foi barbaramente torturado.
    Na prisão, escreveu sobre a sua torturas as quais sofreu e o documento correu o mundo, transformando-se em símbolo da luta pelos Direitos Humanos.

    Eis o seu relato:

    “Fui levado do presídio Tiradentes para a “Operação Bandeirantes”, no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”. Algemaram minhas mãos, jogaram me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.
    Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz auditor dr Nelson Guimarães. Soube posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob “garantias de integridade física”.
    Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me “telefones” (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do “pau-de-arara”. O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.
    Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.
    Na quinta-feira três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas. “Vai ter que falar senão só sai morto daqui”, gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na “cadeira do dragão” (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao “pau-de-arara”. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz.
    “Nosso assunto agora é especial”, disse o capitão Albernaz, ligou os fios em meus membros. “Quando venho para a OB – disse – deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede… Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo “não” que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber”. Eram três militares na sala. Um deles gritou: “Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)”. Quando respondi: “não sei” recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos.
    Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte “metidos na subversão”. Partiu para a ofensa moral: “Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?”. Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido “a toque de caixa” e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo “tratamento”. Disse que a “Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo”. Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca “para receber a hóstia sagrada”. Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.
    Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma “explicação”. Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O “interrogatório” reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo “corredor polonês”. Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no “pau-de-arara”. Mas o capitão Albernaz objetou: “não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis”. “Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”.
    Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.
    Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.
    Na sexta-feira fui acordado por um policial. Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: “o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos”. Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a “gillete” para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: “Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos”. No meu quarto a OB deixou seis soldados de guarda.
    No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: “A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo”. Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.
    Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era “uma estupidez” e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltaria à OB, o que prometeu.
    De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OB que montavam guarda em meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.
    É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.
    A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo

    “Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos” (2Cor, 8-9).
    Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.

    Frei Tito de Alencar Lima, OP
    Fevereiro de 1970


    Em janeiro de 1971 Frei Tito foi deportado para o Chile e, sob a ameaça de novamente ser preso, fugiu para a Itália. Em Roma não teria encontrado apoio da Igreja Católica, por ser considerado um “frade terrorista”.

    Viajou de Roma foi para Paris, onde recebeu apoio dos frades dominicanos.
    Traumatizado pelas torturas que sofreu, Frei Tito submeteu-se a tratamento psiquiátrico.
    Estabeleceu-se no convento de Saint Jacques, localizado em Paris, até junho de 1973.
    Lá domiciliado, passou a estudar na Universidade de Sorbonne.
    O tratamento psiquiátrico, entretanto, não foi suficiente para que sua sanidade fosse plenamente recuperada.

    Partiu então do convento de Saint Jacques rumo ao convento dominicano de Sainte Marie de la Tourette, em Eveux.

    No dia 10 de agosto de 1974 Frei Tito não mais suportou a dor e o trauma impostos pelas torturas as quais foi submetido e deu fim à própria vida, enforcando-se no galho de uma árvore.

    Deixou para nós, entre outros, esse poema:

    Quando secar o rio de minha infância,
    secará toda dor.
    Quando os regatos límpidos de meu ser secarem, minh’alma perderá sua força.
    Buscarei, então, pastagens distantes
    Irei onde o ódio não tem teto para repousar.
    Ali, erguerei uma tenda junto aos bosques.
    Todas as tardes me deitarei na relva,
    e nos dias silenciosos farei minha oração:
    Meu eterno canto de amor: expressão pura de minha mais profunda angústia
    Nos dias primaveris, colherei flores para
    meu jardim da saudade.
    Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio.

    Tito de Alencar

  • Histórias da ditadura militar – parte I

    Histórias da ditadura militar – parte I

    Morador do Jabaquara, na periferia de São Paulo, o menino vendia para um ferro velho papelão e cobre (não existia latinha de alumínio à época), carregava sacola de madame na feira e engraxava sapatos para fazer algum trocado.
    Eram meados dos anos 80 e a ditadura militar já agonizava, mas ainda dava as cartas.

    Para os meninos pobres da Zona Sul de São Paulo, uma das poucas alternativas de diversões disponíveis era o CEEI — Centro Educacional e Esportivo do Ibirapuera, cujo principal atrativo era sua piscina pública, disputadíssima.
    Havia regras rigorosas para acessar aquela piscina, e uma das regras determinava o tipo de calção que o banhista tinha de usar.

    Quem controlava seu acesso era um militar da reserva, um senhor de aparência rude, muito grosseiro, que não fazia a menor questão de esconder sua antipatia pelos meninos que frequentavam a piscina nos finais de semana, todos pobres e em sua maioria, negros.

    Qualquer motivo era motivo suficiente para o militar barrar o acesso a única piscina pública da região, e ele tinha seus próprios motivos para fazer valer sua autoridade.
    Certa vez o militar barrou um menino, alegando que o calção que ele usava era inadequado, que “iria cair, mostrar a bunda para todo mundo ver”.

    “Quer brincar na piscina tem de estar com shorts decente. Já não basta esse nariz ranhento escorrendo? Estou te fazendo um favor, caralh. !!!”, disse, em tom agressivo.

    O militar guardava numa sala vários calções, que ALUGAVA para os meninos.
    Ou alugava um calção, ou não entrava na piscina.

    O preço do aluguel, ouso dizer, devia ser a quantia necessária para pagar um sanduíche e uma Coca Cola, vendidos pelo ambulante que ficava em frente ao clube.
    Naquele sábado o menino brincou na piscina, mas voltou para casa com fome, sem comer o sanduíche e tomar a Coca Cola pelos quais havia juntado dinheiro a semana toda para comprar.
    Eu jamais me esqueci daquele sábado, um sábado de de sol, porque aquele menino se chamava Diógenes.
    Aquele menino era eu.