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Autor: Cidinha da Silva | Jornalistas Livres

  • Editais de Cultura e a vulnerabilidade do artistas

    Editais de Cultura e a vulnerabilidade do artistas

    Mecenato é uma atividade de apoio artístico e cultural antiga. O mecenas escolhia e escolhe a quem patrocinar de acordo com suas crenças, valores, escolhas políticas e estéticas. Políticas públicas, por sua vez, devem responder às necessidades do setor artístico-cultural e do público, da cultura de um país, das pessoas que merecem e desejam a fruição. Políticas públicas devem, portanto, ter critérios e orientação política nítida, planejamento no tempo, mecanismos de monitoramento e participação popular para alicerçar e alavancar as funções distributiva, redistributiva ou regulatória que as embasa.

    As políticas públicas são a concretização da ação governamental pelo bem de todos, conceitualmente. No Brasil de hoje, por exemplo, vivemos dois movimentos sincrônicos e contrários a essa máxima: o primeiro aniquila as políticas públicas existentes; o segundo, implementa projeto político orientado para a morte, para o extermínio dos indesejáveis, de todas as pessoas do país em situação de vulnerabilidade, a saber, indígenas, negros, idosos, populações LGBT, os mais atingidos pela letalidade do Covid-19. A relação (opressora e genocida) entre Estado e sociedade está suficientemente explicita nos números desesperadores do Covid-19, aos quais o comando genocida central interpela com um desprezível “e daí”?

    O campo estatal da arte e da cultura orienta-se a mesma cartilha. A trilha sonora de fundo é uma canção imposta às crianças durante a ditadura civil-militar: “esse é um país que vai pra frente / de uma gente unida e tão contente / esse é um país que vai pra frente / de um povo unido de grande valor / é um país que canta, trabalha e se agiganta”… leve, sereno, porque milhares de corpos nas costas desse desgoverno não pesam. E, segundo o entendimento manifesto por eles, gente vive é pra morrer mesmo, é o fim de todo mundo, e não importa que seja em condições indignas e sofridas, impondo aos profissionais de saúde a decisão sobre quem viverá e quem morrerá na ocupação dos poucos leitos de UTI e respiradores existentes no Sistema Único de Saúde.

    Não havendo políticas públicas para a arte e a cultura, o setor privado entra no jogo com as suas políticas, programas e projetos próprios (essa é a natureza do setor privado), seu mecenato, e nós, agentes da arte e da cultura, abandonados pelas políticas públicas que deveriam garantir nossa existência nos tempos de vacas magras ou de quando a vaca vai pro brejo, como agora na quarentena, produzimos distorções apaziguadoras como “o Sesc é o nosso ministério da cultura”. Ora, o Sesc é o Sesc, é Sistema S, não faz parte da estrutura do Estado como um ministério ou secretaria nacional de cultura; recebe dinheiro público, é verdade, e em diálogo/tensão com as demandas sociais diversifica programações, atende interesses de diversos públicos, abre espaço para as novidades, resgata artistas consagrados que, entretanto, não têm segurança material, às vezes, sequer segurança alimentar, contudo, isso não se confunde ou não pode se confundir (aos nossos olhos de artistas) com a ação esperada de um ministério da cultura.

    Os bancos, ah os bancos, aqueles que, de acordo com o ministro da economia do governo genocida — são apenas seis no Brasil, para os quais duzentos milhões de idiotas (nós) dão o seu dinheiro — os bancos também constroem a própria política de apoio artístico-cultural, de acordo com sua orientação interna, pela escolha da arte e da cultura à qual queiram associar sua marca. Isso pode acontecer por meio de convites personalizados, concursos, apoios pontuais direcionados a certos grupos, editais públicos de empresa privada (abertos a participantes de perfil determinado pelo instrumento de seleção). Tais editais podem ser frequentes (aqueles que a gente espera ansiosamente todos os anos), eventuais e/ou emergenciais.

    Artistas brasileiros, como é de conhecimento público, sobrevivem em níveis diversos de precariedade, na literatura, por exemplo, volta e meia recebemos notícias de escritores consagrados (mulheres pouco chegam à consagração) que precisam de apoio financeiro de amigos, leitores e outras pessoas solidárias para pagar aluguel e outras contas básicas, por vezes até para comer. Trata-se de escritores consagrados pela crítica e pelo público, estudados nas universidades, reconhecidos no exterior, com obras traduzidas, mas sem condições mínimas de sobrevivência garantidas em fases da vida marcadas pela senioridade, fragilidade física e doenças, para as quais não se dispõe de recursos (financeiros, cuidadores, medicamentos) para enfrentar. Compositores reconhecidíssimos e fundamentais para a história da canção brasileira, que formaram gerações de outros músicos e a consciência política de um país inteiro, cujas famílias são obrigadas a recorrer a vaquinhas virtuais para cobrir despesas de saúde oriundas de processos agudos e/ou longos de adoecimento. Esses são casos extremos de artistas que conseguiram se realizar no ofício. Há também os milhares que nunca alcançaram a consagração e estão igualmente jogados às traças.

    De outro lado, na França, sem esquecer a exploração contínua de colônias e ex-colônias, existem políticas para os artistas desempregados ou em períodos de licença criativa, nos quais o Estado os subsidia; em contrapartida, quando estão trabalhando, um percentual dos rendimentos desses profissionais é recolhido para um fundo comum que lhes dará suporte quando necessário.

    O desemparo social e o desespero de criar contando com alguma remuneração que nos deixe em paz para fazê-lo, nos leva a esperar que o setor privado ocupe esse espaço deixado pelo Estado insuficiente e neoliberal. Os editais dessas instituições privadas não darão conta de todos os artistas relegados a níveis diversos de vulnerabilidade e escutaremos reclamações distintas e defesa de pontos de vista baseados na trajetória pessoal, muitas delas justas.

    Para enfrentar esse problema, penso que os editais das instituições privadas voltados ao setor deveriam realizar dois movimentos simultâneos: o primeiro, estudar as políticas de ação afirmativa e buscar consultorias nessa área, pois seria a forma mais eficaz de não colocar em concorrência, principalmente por pequenos montantes financeiros, artistas que conseguem pauta em teatros com capacidade para centenas de pessoas, patrocínio de empresas poderosas, bons rendimentos pela utilização da imagem e artistas que se apresentam em saraus, escolas, bibliotecas, botecos, casas ou outros espaços periféricos mantidos com recursos dos próprios grupos; tampouco misturar escritores que estão publicando o primeiro livro ou mesmo que ainda não publicaram e outros que já têm várias obras publicadas; autores que bancam os próprios livros ou publicam por editoras independentes e aqueles de editoras que pagam adiantamento para o/a profissional, que têm banners e espaço comprado para exposição de livros nas livrarias da moda; dinheiro polpudo para publicidade do livro e circulação de autores.

    A concorrência deve acontecer entre artistas de trajetórias similares, assim, você diferencia o artista consagrado que não tem onde cair morto (tem prestígio e reconhecimento dos pares, da crítica e do público, mas não tem trabalho remunerado que lhe permita viver com conforto ou pelo menos com dignidade) do artista consagrado que, numa situação de exceção como a que vivemos, pode cobrir despesas de seus auxiliares forçosamente inativos. Exemplo interessante foi dado pela cantora Ludmilla. Logo que começou a quarentena e os shows foram cancelados, a artista adiantou valor equivalente a dez cachês para a equipe que lhe dá sustentação. É assim que ela trata seus colaboradores, como gente que lhe dá sustentação para ser quem é e para ter o desempenho artístico que tem, pessoas pelas quais, ela, na condição de timoneira do Transatlântico Ludmilla, é responsável. É bom um exemplo, quem sabe inspira a alguém?

    No audiovisual existe um procedimento muito comum que é o seguinte, a área de captação de recursos inscreve-se em todos os editais possíveis para alcançar o orçamento final da película. Desse modo, um filme orçado em três milhões de reais, não participa apenas de editais de grandes somas como trezentos, quinhentos mil reais. Se houver um edital de cinquenta mil reais e eles estiverem dentro do perfil, concorrerão e, a depender da comissão julgadora, ganharão. Aqui entra o segundo movimento que as instituições privadas promotoras dos editais precisam fazer, quer seja, compor comissões de seleção multifacetadas, nas quais haja profissionais capazes de fazer leitura social e política das obras e de seus proponentes, não apenas do valor estético.

    Imaginemos um edital amplo, daqueles que cabem tudo (em certos casos isso é uma conquista, abre possibilidade para projetos interdisciplinares e outros que carecem de bordas mais fluidas para serem analisados),de apoio à cultura negra, por hipótese. Suponhamos que haja propostas tecnicamente viáveis, criativas, inovadoras, feitas por cineastas e equipes de primeira viagem, que se apresentam para realizar o primeiro filme. Na mesma palheta, cineastas consagrados que, de maneira honesta e tecnicamente competente, propõem-se a utilizar aquele pequeno valor para o pagamento de consultores na realização de filme sobre um personagem fundamental para a compreensão do Brasil negro. Será preciso contar com uma comissão julgadora apta a ponderar: “minha gente, vamos destinar cinquenta mil reais pra um projeto de curta metragem muito legal e viável, de uma equipe iniciante ou que ainda não contou com aportes financeiros significativos na carreira, ou para o cineasta fantástico que tem parceria com a Globo Filmes e usará esse dinheiro para pagar o cachê dos consultores de sua megaprodução?” Tudo é importante, os consultores, inclusive, mas não gastemos mais tempo e teclado discutindo a obviedade do que acabei de argumentar. É preciso separar as coisas e colocar em avaliação trajetórias similares.

    No mais, que tratemos de lutar para derrubar esse desgoverno e para voltarmos a ter condições de discutir políticas públicas para a arte e a cultura.

    LEIA O ÚLTIMO CONTO INÉDITO da autora publicado aqui nos Jornalistas Livres

    https://jornalistaslivres.org/conto-inedito/

    Conheça o BLOG da Cidinha:

    e site da Editora KUANZA produções:
    https://www.kuanzaproducoes.com.br/
  • Thriller – Conto inédito

    Thriller – Conto inédito

    Depois dos primeiros duzentos metros, vencidos como um velocista, Onirê encontrou uma senhora e pediu ajuda. Ela olhou para a camisa ensanguentada, abraçou a bolsa e apertou o passo. Será que ninguém tinha ouvido os tiros, a gritaria? Sinal fechado, carros parados. Os motoristas o observavam e desviavam o olhar, os surpresos, os fatalistas, os indiferentes. As mulheres fechavam o vidro, as crianças no banco de trás perguntavam o que era aquele homem cheio de sangue. Teve mãe que mandou criança calar a boca, sob pena de ser atacada por Onirê. Um jovem branco que ouvia um modão no último volume abaixou o vidro. Onirê apressou-se até o carro, começou a contar o que tinha acontecido. O sinal abriu, o motorista buzinou e arrancou, não sem antes gritar: tá assistindo muito videogame, moleque. Uma vontade de chorar, de desistir. O temor de encontrar algum policial que o enquadrasse e não acreditasse na sua história deixava um bolo no estômago e a garganta seca. Água, queria água. Sem documentos, sem dinheiro, ensanguentado. Vestia o uniforme da escola municipal, é verdade, mas e aquele menino alvejado pela polícia na favela do Rio que antes de morrer perguntou à mãe: por que o policial atirou em mim, mãe? Ele não viu que eu tava com o uniforme da escola? De todo modo, Onirê precisava de ajuda, tinha medo de não sobreviver sozinho. O desprezo doía na ferida, no osso, mas precisava insistir, buscar ajuda. Movimentou-se até um motorista de táxi que lhe deu atenção enquanto palitava os dentes, ouviu sua história e disfarçou a descrença: sinto muito, mas meu carro é alugado, não posso sujar o banco. Boa sorte aí, rapaz. Pediu auxílio a outro homem, uma senhora, uma moça. Todo mundo tinha medo, ninguém queria se envolver. O desespero de encontrar um carro da polícia ou um policial aumentava sua angústia. Não tinha mais sangue a perder. Uma sucessão de vultos exangues o comprimia na ilha da memória. Agora o ombro latejava e ardia, era o que o deixava alerta. Decidiu então correr de novo pela vida. Lembrou-se de haver um hospital próximo, mas não estava certo sobre a direção a tomar. Pediu informação a um adolescente, parecido com seu irmão mais novo. Por sorte, o menino sabia. Mesmo muito assustado, temendo que algum perseguidor de Onirê se voltasse contra ele também, o menino Barazinho valeu-se do mantra da sobrevivência ensinado pelos pais em casa, nós por nós, e deu informações sobre a rota para o hospital. Onirê juntou todas as forças e vontade de viver e correu. Correu como um maratonista na reta final. A uma quadra do hospital, ameaçou desfalecer e implorou a um pipoqueiro: eu não sou bandido, me ajuda, senhor, por favor. O homem se levantou confuso e nem desligou o gás do fogareiro. Amparou o menino que podia ser seu neto e de imediato o avental branco ficou vermelho. A panela de pipocas transbordou e as flores do velho cobriram o chão. O que fizeram com você, meu filho? Tem atirador na escola municipal, eu estudo lá. Dois meninos invadiram o colégio com metralhadoras e machadinhas. Trancaram o portão, deram tiro pra todo lado e jogaram as machadinhas na gente que tentava fugir. Uma delas é essa que tá no seu ombro, meu filho? Sim, senhor. Eu pedi ajuda pra várias pessoas, mas ninguém quis me ajudar. O vendedor de pipocas não segurou o choro, mas manteve-se firme amparando o jovem guerreiro a caminho da portaria do hospital. Lá preencheu a ficha, assegurou que Onirê era conhecido dele. Valendo-se da amizade que gozava com os funcionários da enfermagem, logrou atendimento rápido. Não largou da mão do menino na maca até que a mãe chegasse. Um homão daqueles, dezesseis anos, forte como um touro, correu cinco quilômetros com uma machadinha enterrada na clavícula. Sabia pelos comentários das atendentes que, três semanas antes, um menino negro, forte, parecido com Onirê, dera entrada no hospital, resfriado. Como o caso era simples, a mãe o deixara lá na seção de triagem e foi resolver aflições do desemprego. Quando voltou recebeu o corpo do filho. Nenhuma explicação. Morreu. Alguém da família, enquanto mudava a roupa do morto, notou que as carnes das costas estavam flácidas, pareciam engolidas pelo vão dos ossos. Percebeu também corte e linha dupla costurando o peito, a barriga, dois lugares nas costas. Abriram para ver. Tinha estopa no lugar do coração. Nas costas, um imenso oco. O pipoqueiro não deixaria que a história de Onirê tivesse o mesmo desfecho.

    Conto inédito de Cidinha da Silva publicado originalmente em alemão e inglês, na revista Latitude do Instituto Goethe (Berlim). As versões nessas duas línguas e também em Português (ligeiramente diferente desta aqui que foi revisada) podem ser consultados no site do Instituto.

  • Salve sua força, Marlene Silva! Obrigada.

    Salve sua força, Marlene Silva! Obrigada.

    Não há em Belo Horizonte, gente negra de mais de 40 anos, envolvida com o Movimento Negro ou com a cultura negra da dança que desconheça o significado do nome Marlene Silva para a cena da dança afro local e brasileira. E que alegria, senhora, saber que as devidas homenagens lhe foram prestadas em vida.

    Artistas negros da dança na cidade, na casa dos 40 anos ou mais, se não foram formados por Marlene Silva, passaram por suas mãos, receberam sua orientação, seu carinho e sua benção. Os mais jovens também, pois um currículo de dança rico e respeitável precisava abrigar os ensinamentos da mestra maior da dança afro.

    Marlene Silva, seu nome e seu legado povoam meu imaginário há 35 anos. Discípulos seus são amigos queridos e sempre me contaram de seu alto nível de exigência, compensado pelo sorriso largo.

    Pedimos desculpas, querida Marlene Silva, mas nossa responsabilidade uns com os outros nesse tempo de pandemia não permitirá que lhe prestemos a última homenagem com um gurufim à sua altura, repleto de história contada e cantada, uma cachacinha e comida de angu com rabada, pra dar sustança aos que comporiam seu cortejo fúnebre pela Afonso Pena, Praça Sete, Amazonas. Liderado por djembês, congas, atabaques, agogôs, seus alunos e alunas de todas as gerações, em lindas roupas coloridas, à frente de um corpo dançante que puxaria o caminhão do corpo de bombeiros que transportaria seu corpo para o descanso final.

    Aos transeuntes que perguntassem que autoridade era homenageada naquele cortejo, nós, suas admiradoras e as amigas responderíamos felizes e agradecidas: É Marlene Silva, Rainha da Dança Afro em Minas Gerais.

    • EM
      https://jornalistaslivres.org/cadeira-de-miss-davis/

    DO BLOG da autora:
    https://medium.com/@cidinhadasilva/salve-sua-for%C3%A7a-marlene-silva-obrigada-5c2ff1fcf967

  • De azul ou de rosa, crianças negras na linha de tiro do Estado genocida

    De azul ou de rosa, crianças negras na linha de tiro do Estado genocida

    Qualquer pessoa que tenha perdido uma criança na família sabe que não existe nada comparável à dor dos pais. Nada que seja equivalente à dor sentida pela mãe, que pode também ser a tia, a avó que cria, quase sempre uma mulher. Por isso não vou falar de dor, reservo às mães e aos pais essa prerrogativa.
    A gente sente ódio, impotência, medo, fracasso como ser humano. A gente pode chorar em solidariedade às mães e pais das crianças mortas na guerra às pessoas negras, faveladas e de periferia. A gente deve gritar porque a dor de perdas tão brutais cala a voz de quem gerou ou de quem cria essas crianças assassinadas. Por isso devoto tanto respeito e admiração às Mães de Maio e a outros coletivos de mães que, a despeito da dor imensurável da perda de filhos para a violência de Estado, conseguem erguer a voz para que não sejam esquecidos.
    O que sinto é um torpor que de alguma forma venço pela escrita. À revelia da letargia, ligo o computador, mas ao invés de abrir um arquivo, clico no ícone que desliga a máquina. Mesmo que o inconsciente não queira, preciso me reconectar a mais uma das inumeráveis e imensuráveis perdas dessa gente miúda que não é morta por acidente, por incidente colateral da guerra, mas como alvo de guerra.
    As mortes não doem igualmente, não repercutem da mesma forma e o assassinato de Ágatha Félix, uma menina de oito anos, no Complexo do Alemão, dentro do transporte da favela, acompanhada pela mãe, nos deixa em estado de desamparo absoluto. Ela estava protegida pela mãe – lembrem-se de que criamos a ilusão de que nos momentos que somos cuidados pela mãe, nada de mal nos acontecerá. Não foi assim, o tiro de fuzil do Estado não deu tempo para a mãe jogar-se sobre o corpo da filha e talvez receber o tiro em seu lugar.
    Entendem porque não há nada que se aproxime da dor sentida pela mãe dessa criança?
    Parece que a matança dos meninos negros já não nos sensibiliza tanto, talvez, naquele fundo da gente, bem escondido, procuremos explicações para o inexplicável, por exemplo, uma vida dupla, de manhã na escola e à tarde no tráfico; ou, más companhias; ou, o fascínio exercido pela figura do bandido todo-poderoso nos pequenos.
    O certo é que nos acostumamos a ver meninos negros como miniaturas de homens negros, alvo prioritário da perseguição racista. Lembro-me de um cortejo de Congada que acompanhei em Belo Horizonte e um garotinho negro de quatro anos no máximo, evoluía graciosamente com chocalhos nos pés. Uma adolescente branca à minha frente o observava, tão encantada quanto eu, quando chamou a atenção da mãe para o menino, ouviu este comentário como resposta: “bonitinho mesmo, pena que cresce”.
    Mas, dessa vez, mataram uma menina que “fazia inglês e balé”, como esbravejou o avô em desespero, acompanhada da mãe, dentro do transporte privado que serve à favela. Não dá para dizer que ela estava “solta” na rua, brincando. Não dá para criminaliza-la como suposta “amante” de traficante, como insinuam sobre as meninas de onze, doze anos, também assassinadas por balas de direção certa. Ágatha Félix era o ideal de criança de oito anos: saudável, bem cuidada e protegida pela família, estudiosa, alegre. Uma menina que se vestia de Mulher-maravilha, devia ter planos de poder e força.
    Alguém disse que Ágatha não teve tempo de ser Marielle. O velho e bom Steve Biko nos lembra que estamos por nossa própria conta, como sempre estivemos.
  • Setecentos motivos para desejar que o filme de Taís Araújo sobre a Doutora Joana D’Arc Félix aconteça

    Setecentos motivos para desejar que o filme de Taís Araújo sobre a Doutora Joana D’Arc Félix aconteça

    Eis que a imprensa de Pindorama resolveu destruir a imagem positiva de Joana D’Arc Félix, Doutora em Química, titulada pela UNICAMP, uma das universidades de maior prestígio nas Américas. A mesma imprensa que se mostra delicada e covardemente parcimoniosa com homens brancos que mentem de maneira descarada sobre suas titulações, conquistas, méritos.

     

    Querem exemplos? Deem-se vocês ao trabalho de procurar. Escarafunchem a vida acadêmica dos ministros deste desgoverno, de homens de mídia e do empresariado, de ministros do STF, de outros totens da meritocracia branca, como fizeram com a Doutora Joana D’Arc, uma mulher negra oriunda da pobreza.

     

    De maneira óbvia, o escrutínio ao currículo de Joana D’Arc aconteceu depois que a diretora Taís Araújo resolveu transformar a trajetória vitoriosa da professora de química em filme. Ah… isso era demais, um filme sobre aquela negrinha? Não devem ter faltado possíveis colegas de trabalho, ex-colegas do doutoramento, gente branca enciumada enfim, disposta a denunciá-la à imprensa que tratou então de transformá-la em caveira de burro, em nome do “bom jornalismo”.

     

    A ideia por trás da denúncia é colocar em prática uma da lições básicas da cartilha do racismo, ou seja, esvaziar o ícone negro de significação. Pega-se uma parte do todo, o pedaço trôpego, incongruente, maquiado, a seguir constroi-se uma engrenagem que o transforma no todo, naquela pessoa a ser destruída em praça pública porque errou.

     

    É assim com pretas e pretos desde sempre. Lembram-se de quando Celso Pitta foi prefeito de São Paulo, um desastroso prefeito? Houve muita gente que disse: viu o que dá votar em preto? Algo similar não disseram a respeito de Fernando Collor ou não dizem do clã Bolsonaro. Ninguém atribui os desmandos, ignorância, desonestidade, articulação com milícias, manifestos pelos membros do clã, ao fato de serem brancos. Mais do que artifícios, estamos diante de ferramentas eficientes do racismo estrutural para perpetuar lugares de subalternidade (intelectual, nesse caso) para pessoas negras.

     

    Como aqui por essas plagas ainda entendemos pouco sobre a operacionalidade do racismo, comemos o reggae da imprensa branca e sua necessidade de construção de judas para serem malhados enquanto a vida acontece à nossa revelia, e não comparamos, por exemplo, o tempo de permanência de um judas branco e de um judas negro no noticiário. É notório que a mídia tem os judas de maior e menor predileção e a execração de pretos dá ibope, é agente potencializador de longevidade da notícia.

     

    Insuflar judas pretos e pretas é de lei. Fazê-lo de maneira vil e cruel se faz adequado todas as vezes que a população negra ameaçar agir como povo. Todas as vezes em que insinuar um olhar de dentro para sua própria história e o consequente destaque daquilo que julgue apropriado e potente para formar juízos de valor sobre os seus e, principalmente, para inspirar os mais novos.

     

    O fantasma do Haiti de 1804 atormenta o imaginário da casa grande até hoje. Por isso transformaram o Haiti nesse espectro de miséria que vemos ao longo da História, para punir os revoltosos e para intimidar outros insurgentes que busquem a liberdade.

  • O dia que o livro foi traje de gala

    O dia que o livro foi traje de gala

    Cerimoniosas, escolhemos na estante nossa melhor roupa. Aquela túnica-palavra que mais emprestasse sentidos para a vida. Palavras de amar, de desaguar, de comover, de temperar, movimentar, fazer vibrar, acordar, transcender, trovejar, de ventar fundo e causar tremor em todas as camadas das águas.

    Nos vestimos belas e fomos para as ruas com nossas crianças que também escolheram as palavras que queriam vestir. Nossos livros ouviam e falavam pelo caminho até chegar ao lugar da grande escolha. Eram vistos, tocados, fotografados, inquiridos. Recebiam olhares de alegria, curiosidade, cumplicidade, consternação, aprovação.

    A caneta e o lápis, companheiros fiéis dos livros, entraram em ação, e umas pessoas anotavam os títulos das outras para pesquisar depois, para ler. Naquele dia o sonho da leitura como direito humano aconteceu. O sonho de sermos a agência da transformação pelo conhecimento, que antes de modelar os livros mora nas pessoas. O sonho do livro que não prime, não humilha, do livro que é companheiro de luta e de caminho.

    Naquele dia, orgulhosas, exibimos os livros que nos formaram, emocionaram, que nos fizeram mais humanas e que queríamos compartilhar com todos os seres, sem distinção. E fomos pássaros soltos, voamos alto. Seguimos em torno das roseiras, polinizando as flores, lutando e criando lugares de existência para seguirmos vivas.