Jornalistas Livres

Autor: Maria Carolina Trevisan

  • Silêncio como cúmplice

    Silêncio como cúmplice

    Há pouco mais de uma semana, os noticiários se viram diante da missão de informar e provocar reflexão sobre os eventos racistas em Charlottesville, na Virgínia, Estados Unidos. A imprensa estadunidense escolheu alcunhar os protagonistas da marcha de “supremacistas brancos”, de acordo com uma história em que um dos atores principais é a Klu Klux Klan. Os jornais brasileiros seguiram a mesma tendência.

    Reprodução do vídeo da materia da Vice.

    A novidade no noticiário do Brasil foi a utilização da palavra “racismo”, como pontuou a ombudsman da Folha, Paula Cesarino Costa. Ela destaca o excelente artigo de Janio de Freitas, que afirma que a palavra “supremacista” é um jeito de atenuar o que na realidade é “racismo”.

    Correto. O espantoso é que um evento racista como o que vimos, com suas consequências e revelações, não provoque um debate interno no Brasil sobre o nosso próprio racismo. Os jornais refletem essa postura. Aqui, a não ser nos estádios de futebol, o racismo não é escancarado e explosivo como na marcha da Virgínia. É contínuo desde que o Brasil é o Brasil. É diário. Mostra-se, em sua expressão mais aguda e letal, nas altas taxas de homicídios contra jovens negros: nosso País mata, a cada ano, cerca de 42 mil vidas negras, 70% do total de homicídios. Não enxergar a dimensão racial dessa violência é outra forma de racismo. Mas a notícia parece que só se torna relevante quando o racismo é flagrado pelas câmaras de TV nos estádios.

    Nas páginas dos jornais e no noticiário televisivo, nosso racismo se expressa silenciosamente. Está nas omissões e negligências jornalísticas. Faz parte de uma cultura que tenta, a todo custo, atenuar, relativizar e esconder o nosso racismo. É o que o dramaturgo, escritor e grande intelectual, Abdias Nascimento, classificou como “eufemismos raciais”, em seu livro O genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado ( Editora Perspectiva). “Não se trata de ingênuo jogo de palavras, mas sim de proposta vazando uma extremamente perigosa mística racista, cujo objetivo é o desaparecimento inapelável do descendente africano, tanto física quanto espiritualmente, através de um malicioso processo de embranquecer a pele negra e a cultura do negro”, escreve Abdias.

    Temos, arraigado no coração das redações, o antigo conceito de “democracia racial” por trás da construção das notícias e artigos de opinião. O maior defensor da democracia racial foi o historiador Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala. Mario de Andrade, o poeta angolano, foi um dos primeiros a refutar essa ideia, colocando-a como uma das ferramentas ardilosas do colonizador. O sociólogo Florestan Fernandes também se opôs a essa falsa noção de democracia racial.

    De acordo com a teoria da democracia racial, o Brasil seria uma espécie de “paraíso racial”, em que a miscigenação seria uma forma evolutiva e harmoniosa de convivência. Contestar essa suposta relação racial seria nossa função como jornalistas, se não por óbvia observação (se o jornalista for branco), pelo menos por meio da mera associação de dados sobre indicadores sociais e a base da pirâmide: a população negra segue sendo a mais vulnerável de toda a nossa sociedade. Ponto. Esse é o nosso contexto. Nós, brancos, somos privilegiados diante de uma parcela muito significativa da nossa sociedade. Isso não seria uma forma de “supremacia branca”? Mas vamos nos ater ao uso da expressão “racismo”.

    No jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, um dos primeiros artigos sobre Charlottesville se intitula “Racismo no Brasil é real, mas não se manifesta como ódio racial”, do economista Joel Pinheiro da Fonseca. Branco, mestre em filosofia, colaborador do Instituto Millenium, do Instituto Mises Brasil (que publicou texto de um dos líderes do movimento nazista em Charlottesville) e palestrante do movimento liberal brasileiro, se classifica como “libertário”. Corretamente, diz que os protestos em Charlottesville são racistas e “repugnantes”. Em seguida, minimiza o ato, ao considerar o grupo como “uma franja minoritária nos EUA”. Talvez para salvar a própria pele, ressalva que “não representa o grosso da direita americana”, a mesma que o inspira. Joel, então, adentra por um argumento que acaba por expor o seu próprio racismo. Afirma que um protesto como esses é “impensável por aqui”, País em que o racismo existe, mas “não se manifesta como ódio racial. Não temos, nem historicamente, nem no presente, grupos supremacistas brancos ou racistas com qualquer relevância. Nossa mistura das raças produziu uma realidade diferente da americana”. Essa argumentação não é cegueira. É o racismo perverso que faz com que a injustiça racial se perpetue eternamente. Nega-se o óbvio. “Mesmo grupos neonazistas brasileiros contam com mestiços em suas fileiras”, segue o jovem Joel, em uma afirmação sem sentido algum. Atrás de polemizar assuntos dessa natureza, a Folha deixa de cumprir sua função social como veículo jornalístico na engrenagem da democracia. Isso a ombdsman preferiu não dizer.

    Engana-se, no entanto, quem pensa que as escolhas de Joel são falta de conhecimento ou ingenuidade. O racismo no Brasil se fortalece em altas esferas intelectuais, tecnológicas e econômicas. “Não há inocência nem ignorância. O racismo nunca foi assunto de ignorantes. Há intencionalidade na escolha das palavras”, alerta a filósofa e doutora em Educação, Sueli Carneiro, uma das maiores representantes do movimento negro no Brasil. “A mídia vem oferecendo desde sempre um acordo de silêncio”, afirma. O silêncio não permite o debate. Nubla a realidade. Isso é uma forma bastante cruel de racismo.

    Nos jornais, o silêncio se impôs também na seleção dos articulistas, principal espaço de formação de opinião: desde sábado passado não houve, nem no Estadão, nem na Folha ou no Globo, sequer 1 (um) artigo produzido por alguns dos inúmeros intelectuais negros brasileiros acerca do que está ocorrendo nos Estados Unidos. Isso é jornalismo? É compromisso com informar o leitor? Não. Mas é uma maneira exitosa de amenizar a nossa responsabilidade.

    “A maneira como a sociedade americana trata raça é profundamente diferente de nós pois eles romperam o silêncio sobre racismo. E curiosamente chamamos eles de racistas e nós, não”, revela a socióloga negra Márcia Lima, professora da disciplina Desigualdades Raciais na USP. “A polícia no Brasil mata muito mais negros do que a polícia americana. Lá o assassinato de jovens negros é tratado pela imprensa brasileira como racismo. As nossas mortes, não.” A negligência jornalística se faz presente quando, sabendo que a abordagem policial é motivada pela cor da pele, esse tipo de atitude racista da polícia não é questionada pela imprensa. “A sociedade finge não perceber isso”, diz Márcia. E o jornalismo reafirma o “paraíso racial”, onde todos se relacionam alegremente.
    Questão doméstica

    No jargão jornalístico chamamos de “gancho” o período que favorece a publicação de uma determinada reportagem ou análise por conta do interesse gerado por determinado assunto. Assim, tanto melhor a audiência de do texto ou vídeo, quanto melhor for o ‘timing’ de sua publicação. Nesta segunda-feira 21, o Estadão publicou uma reportagem sobre o número muito elevado de homicídios no primeiro semestre deste ano. São 155 mortes diárias, 6 por hora, o que demonstra tendência de aumento em relação aos índices de 2016. “As características das mortes se repetem: ligada ao tráfico de drogas e tendo como vítimas jovens negros pobres da periferia executados com armas de fogo”. Essa é uma informação fortíssima que, se as vítimas fossem brancas, ganharia não só a manchete e a primeira página, como também os espaços de discussão do jornal. A função seria influenciar a demanda por políticas públicas específicas, constranger as esferas de poder para que façam algo para proteger os jovens negros. Mas é o silêncio que se destaca. Como se não tivéssemos nada para fazer diante disso. Como se fossem mortes naturais, “matáveis”. Como se o corpo negro tivesse mesmo que ser contido, restringido e eliminado, seguindo o curso da nossa história. A notícia teve a importância de uma notinha corriqueira para o Estadão.

    É no reconhecimento do racismo como elemento central da nossa sociedade que poderia se estabelecer uma discussão na tentativa de superar a realidade em que vivemos. Enquanto silenciarmos, seguiremos sendo cúmplices das milhares de mortes, da ferida aberta e cotidianamente aprofundada, da dor e da vulnerabilidade da população negra.

    Como disse Oracy Nogueira, um dos sociólogos brasileiros mais importantes, sobre esse silêncio: “em casa de enforcado não se fala em corda”.

  • Análise: matéria da Folha culpa moradores da cracolândia pela violência e pelo tráfico. Mas a questão é muito mais complexa

    Análise: matéria da Folha culpa moradores da cracolândia pela violência e pelo tráfico. Mas a questão é muito mais complexa

    A matéria poderia ser boa: tem relevância, interesse jornalístico, acompanha políticas públicas e deveria fiscalizar o poder, neste caso, o governo de São Paulo e a prefeitura da capital paulista. Ambos são responsáveis pelas recentes intervenções na região central de São Paulo conhecida como cracolândia, onde viviam dependentes de drogas, a maioria moradores de rua em situação de extrema vulnerabilidade.

    São pessoas, antes de qualquer outra qualificação.

    Na manhã desta quarta (2/8), a Folha de S.Paulo publicou um texto que, pretendendo ser factual, esquece que se refere a seres humanos. Começa contando que uma kombi precisou se desviar de carros de polícia para socorrer “uma usuária de drogas em trabalho de parto”. Em seguida, afirma que agentes de saúde tentaram abrir espaço em uma rua “repleta de viciados que fogem das bombas de gás” lançadas por homens da GCM. São vários os problemas em uma única frase do primeiro parágrafo da matéria:

    1. O uso de “repleta de viciados” cria no leitor a imagem de zumbis atrapalhando um salvamento. Não são zumbis. São pessoas em situação de extrema vulnerabilidade;
    2. Pelo zigue-zague descrito, quem está atrapalhando o socorro é a PM e não as pessoas que vivem nas ruas;
    3. Se existem tantos carros de polícia e tanta GCM, por que os agentes do Estado não estão cuidando de dar apoio ao atendimento da mulher grávida? A matéria deveria questionar essa posição.

    Seguindo no texto, o terceiro parágrafo qualifica como estopim para o uso de bombas de gás sobre pessoas a montagem de barracas “em meio à concentração de dependentes” (de novo, são pessoas, apesar da dependência química), locais em que seriam negociadas as vendas de crack. Pela tese da matéria da Folha, bastaria, assim, acabar com as barracas para “sufocar o tráfico”, expressão usada pela PM para invadir a favela do Moinho recentemente, ação que resultou na morte de Leandro, 17 anos. Assim, contra o tráfico vale tudo. Até matar.

    Legenda desumaniza moradores da cracolândia mas chama GCM e PM de “homens”. O que seriam os outros? Foto: Reprodução

    Logo abaixo, o texto afirma: “os viciados adaptam paus e lonas” para montar rapidamente a barraca. Mas faz confusão. São os usuários ou são os traficantes os donos das tendas?

    Algumas linhas adiante, a matéria diz que uma ação policial no final de maio “prendeu traficantes e desobstruiu algumas vias, não há mais, por exemplo, uma feira de drogas a céu aberto nem traficantes armados no meio das ruas”. Ué, então, o que são essas barraquinhas que a GCM e a PM vêm combatendo com bombas de gás? O texto se contradiz, além de sutilmente saudar uma operação violentíssima da Polícia Militar paulista cujo resultado foi aumentar ainda mais a vulnerabilidade das pessoas que vivem ali. O tráfico, obviamente, não acabou. Muito menos a condição que levou pessoas a viverem naquela situação, denominada de “cracolândia”.

    Para justificar a tese da manchete, a reportagem da Folha cita este exemplo: “a venda fiado de crack para usuários que moram na cracolândia foi retomada, um sinal de que o tráfico conseguiu fazer caixa e reconquistar essa clientela”. Ahn? Qual o nexo de uma coisa com a outra? É a reportagem que tem que atestar isso? Não era o caso de escutar um especialista, uma fonte, alguém que de fato conhece aquela dinâmica? A falta de se fazer entrevistas se nota no exemplo seguinte: “Outro exemplo é o oferecimento de um crack de melhor qualidade, para atender gente de maior poder aquisitivo que sai de diferentes áreas da cidade apenas para comprar e consumir a droga naquele ponto do centro da capital”. Alguém acha que a pessoa dependente de crack que tem recursos financeiros, casa, acesso à educação e à saúde vai mesmo se embrenhar na cracolândia atrás de um produto de melhor qualidade, sendo que o lugar está sitiado e vigiado? Ademais, esse não é o perfil de quem estava na cracolândia antes da operação da prefeitura e do governo paulista. Por isso, esse exemplo não cabe.

    Os problemas de qualidade jornalística não acabam aí. Ainda sem qualquer entrevista em ON, o texto diz que uma usuária foi revistada e estaria sendo presa quando a comunidade do fluxo reagiu à tentativa. Qual é o papel do repórter diante dessa informação? Ao invés de antecipadamente supor que a moça é culpada, poderia ter questionado a polícia sobre o motivo da abordagem, que causou revolta, e segundo o texto, aumentou a tensão no local.

    Para fechar esse intertítulo, a reportagem assume que as pessoas em situação de rua e dependentes de crack que estão naquela região montaram barricadas com “coquetéis molotov, pedras e paus”. Quem disse? O jornalista viu? Ou foi a PM e a GCM que afirmaram? O leitor fica sem saber. Não há imagem disso. Nas fotos, há uma legenda que diz que “dependentes químicos voltam a entrar em confronto com homens da GCM e da Polícia Militar, na região da cracolândia, no centro de São Paulo”. Quem entra em confronto primeiro? Quem é mais forte, claro, ao contrário do que supõe o texto. Além disso, a legenda humaniza as forças de segurança (homens da GCM) e desumaniza os que vivem naquela situação. São pessoas. E se o leitor olhar bem nas imagens, nos rostos e perceber as expressões, são pessoas sem nenhum amparo.

    Por fim, sem qualquer tipo de problematização sobre a situação de violação de direitos humanos a que essas pessoas estão diariamente submetidas, ou ainda, sem questionamento sobre os dados apresentados, a matéria traz os números: 313 pessoas presas ou apreendidas, 287 quilos de diversas drogas recolhidas e R$ 119 mil em dinheiro.

    Agora, sim, o paulistano está a salvo.

    Moradores protestam contra assassinato de Leandro durante invasão da PM à Favela do Moinho Foto: Jornalistas Livres

    Para quem quiser conferir a abordagem da Folha: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1906372-trafico-testa-policiamento-e-ensaia-retomar-acoes-na-cracolandia-de-sp.shtml

    • Maria Carolina Trevisan é jornalista, especializada em direitos humanos e Jornalista Amiga da Criança
  • A vida é um emaranhado de nós

    A vida é um emaranhado de nós

    Por Maria Carolina Trevisan
    Fotos: Sato do Brasil

    Em uma ação desastrosa da Prefeitura de São Paulo, três pessoas ficaram feridas pela derrubada de uma parede na rua Dino Bueno, 138, na região da Luz. Ao demolir um construção, descobriu-se que havia pessoas morando no local. O secretário Marcos Penido, de Infraestrutura Urbana e Obras, disse que todos foram informados da operação, que fitas foram passadas no entorno do terreno para impedir a entrada mas afirmou não ter entrado no imóvel. Classificou aqueles que se abrigavam no local como “invasores”. “Não vimos uma entrada clandestina onde estavam essas pessoas”, afirmou Penido. O secretário disse que cuidados adicionais precisam ser tomados mas não admitiu o erro, culpando os ocupantes por estarem lá no momento em que a retroescavadeira derrubou a parede. Pessoas moram naquele local. E o imóvel estava abandonado, ou seja, sem função social, como disse o próprio secretário Penido.

    As ruas da região da Luz e dos Campos Elíseos, no centro de São Paulo, abrigam historicamente pessoas em situação de rua e miséria. Muitas delas são dependentes de drogas. Desde os anos 1990, os poderes públicos tentam intervir na área com o objetivo de retirar essa população do local. As tentativas que partiram da segurança pública sempre trataram com repressão as pessoas que vivem ali, em ações como a Operação Limpeza (2005), a Operação Dignidade (2007) e a Operação Sufoco (2012). No último domingo, 21, sob parceria do prefeito da capital, João Dória Jr, e do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ambos do PSDB, uma megaoperação policial prendeu 38 supostos traficantes de drogas e deixou a esmo centenas de dependentes de crack e moradores das ruas da região, além de vulnerabilizar ainda mais a situação dos comerciantes da área. Segundo a prefeitura, 12 pessoas aceitaram a internação. Mas os abrigos – que não foram avisados da operação – ficaram superlotados. “Não há possibilidade da cracolândia voltar”, afirmou Dória Jr, após a intervenção de mais de 900 policiais militares e civis.

    Mas o que faz com que a cracolândia exista é uma conjunção de fatores complexos, em que se sobrepõem problemas de segurança pública, saúde pública, assistência social e, sobretudo, uma persistente carência de humanidade de quem olha (e deve gerir com políticas públicas) a região. Na história, as ações estritamente policiais serviram apenas para a “consolidação de uma territorialidade itinerante”, que ficou rotulada pejorativamente de “cracolândia”, como mostra o relatório de avaliação do programa De Braços Abertos, implantado na gestão de Fernando Haddad (PT) e que tem visibilidade no mundo todo como um caso de sucesso. Pela primeira vez, políticas públicas almejaram promover melhorias nas condições de vida e de saúde das centenas de pessoas, promovendo projetos de redução de danos e acolhimento da população dependente de drogas.

    O prefeito atual, no entanto, acabou com o programa De Braços Abertos. Substituiu por uma iniciativa chamada ‘Redenção’, que ainda não está pronta para funcionar. A prefeitura informou, em comunicado em janeiro deste ano, que o novo programa incorporaria o De Braços Abertos e o Recomeço, do governo paulista. Porém, as propostas são antagônicas por natureza: enquanto o De Braços Abertos propunha a acolhida dos usuários, independentemente do uso ou não de drogas, o Redenção sugere testes de urina para verificar abstinência. Mas como obrigar um dependente de drogas a não usar entorpecentes para conseguir acessar a política pública? Para o secretário de saúde do Estado de São Paulo, David Uip, a busca pelo programa ocorreria a princípio de forma inercial, em decorrência da intervenção policial. “Quando uma operação dessas tira o fluxo fácil da droga o usuário procura o atendimento espontaneamente”, afirmou. O secretário disse ainda que os que não forem por vontade própria serão convencidos por agentes do programa.

     

     

    “Operações como essa prendem muita gente e apreendem quantidades de drogas que parecem expressivas, mas a um custo enorme de violência contra as pessoas que vivem ali”, afirma o coordenador científico da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, Mauricio Fiore, pesquisador e diretor administrativo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo também se posicionou. Por meio de nota, afirmou: “novamente e quantas vezes forem necessárias, evidenciamos e nos posicionamos incisivamente contra as ações e planos acerca de políticas sobre álcool e outras drogas adotadas pelos governos do Estado e Município de São Paulo caracterizadas pelo silenciamento e segregação. Trata-se de um ataque à dignidade humana e à população. O interesse público é ignorado e violentado. A que e a quem serve a lógica higienista e proibicionista?”.

    A escolha por enfrentar o problema das drogas por meio do combate policial e militar não combina com o grau de vulnerabilidade das pessoas que precisam da atenção do Estado. O uso da força policial se justifica apenas com o objetivo de encarcerar e matar pessoas – geralmente pobres e negras. Não tem resultados positivos na venda de drogas. E as pessoas que são dependentes químicos e estão em situação de alta vulnerabilidade social não podem se sentir abandonadas pelo poder público. Segundo a Constituição brasileira, é papel do Estado tratar dessa situação pela ótica dos direitos humanos e não apenas da segurança pública.

    As iniciativas de sucesso para tratar a questão no mundo revelam que o mais importante é reconhecer no dependente de crack uma pessoa, com uma história de vida, um passado, uma família. “As evidências claramente mostram que programas como o De Braços Abertos tiveram sucesso porque se conectaram com pessoas que precisavam deles”, explica Liz Evans, uma das maiores autoridades do mundo em uso de drogas em ambientes supervisionados. Ela coordena dois dos mais importantes programas de redução de danos dos Estados Unidos, em Nova York e Washington. “Tentar corrigir o problema com o deslocamento das pessoas que viviam na cracolândia não melhora a segurança no bairro ou na comunidade ao redor. Moveu-se a situação de lugar e se causou mais confusão. Eles tiraram as pessoas dali. Mas elas não desapareceram. Agora estão vagando mais desesperadas e sem um lugar para voltar, sem apoio. A vida deles não melhorou. Continuam com as mesmas questões e necessidades de antes de serem forçados a mudar. Pior: hoje sua sobrevivência será ainda mais difícil”, alerta. Liz avisa que a única forma de curar o quadro de vulnerabilidade compilado na cracolândia – e agora dispersado, mas persistente – é a via da reflexão, criatividade, liderança, força e amor.

    Ao final da operação desta terça-feira, 23, um morador da cracolândia mandou um recado ao prefeito João Dória Jr: “Tem que tratar dependente químico é com amor, não é com guerra, não.”

    Segundos depois da declaração do morador, a PM começou a dispersar as pessoas com bombas de gás lacrimogêneo.

  • Para não perder foro, Temer fica

    Para não perder foro, Temer fica

    Acuado pela acusação de que concordou com a compra do silêncio de Eduardo Cunha para não ser delatado por corrupção, o presidente Michel Temer rejeitou a renúncia e decidiu se manter no cargo. Condicionou sua decisão ao fato de não ter tido acesso aos documentos que o acusam, agora públicos. No áudio da conversa, que aconteceu no Palácio do Jaburu, além de concordar com a forma de calar Cunha, Temer escuta de Joesley Batista, dono da JBS, que ele conseguiu aliados dentro da força-tarefa, um procurador e dois juízes. Temer optou por sangrar até o limite e salvar temporariamente a própria pele, ainda que isso custe instabilidade ao País.

    Mas há um outro componente fundamental nessa atitude: se Temer renunciasse, perderia o foro privilegiado e poderia ser preso. Assim como outros ministros que estão implicados em acusações na Operação Lava Jato. “O foro é uma prerrogativa do cargo. Renunciando ao cargo, perdem-se todas as prerrogativas a ele inerentes”, explica Cristiano Maronna, diretor do Instituto Brasileiro de Políticas Criminais. “Perdendo o foro por prerrogativa, qualquer juiz de primeiro grau poderia prendê-lo.”

    A situação do presidente é crítica e atrapalha as reformas trabalhista e da previdência, a que Temer estava se dedicando intensamente. Pelo menos dois ministros – Bruno Araújo (Cidades) e Roberto Freire (Cultura) – anunciaram que deixarão o governo. Também teve sua base de apoio rachada e a oposição entrou com pedido coletivo de impeachment. “Ele não vai conseguir governar o País. Perdeu a maioria parlamentar e também o apoio do capital financeiro. Sua saída é questão de dias”, avalia Guilherme de Almeida, professor da Faculdade de Direito da USP.

    Se Temer deixar o cargo, por renúncia ou impeachment, quem ocupar sua cadeira terá que pedir eleições indiretas, de acordo com a Constituição. Mas os presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Eunício Oliveira (PMDB-CE), também estão implicados em denúncias da Lava Jato. A terceira na linha sucessória seria a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia. Mesmo assim, a eleição indireta não seria garantia de estabilidade. “Hoje não há nenhuma condição de uma eleição indireta no Brasil. Qualquer um que fosse eleito não teria a mínima legitimidade de governar. O País só se resolve agora com eleições diretas”, afirma Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico da USP e autor de Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988.

    Bercovici vê com preocupação uma possível posse da ministra Cármen Lúcia. “Seria um governo tão ilegítimo quanto o governo Temer. Ela estaria tapando um buraco. Não tem a mínima condição de fazer essa travessia. E não representa alternativa de poder”, alerta. Carmen Lucia convocou, na segunda-feira, 8, um grupo de empresários para tratar de economia. Seria um sinal de que estaria se preparando para ocupar a Presidência da República. A seu favor, pesa a honestidade por ser ministra do Supremo e não estar ligada a nenhum partido político. “Ela não está acima de questões partidárias. Ela foi indicada pelo Lula, sempre foi próxima do Aécio e tem ótimas relações com o Michel Temer. Ministro do STF é um cargo político também. Não é só técnico. A diferença é que ela não está filiada a partido político nenhum e por isso não representa alternativa de poder.”

    Ação controlada

    A delação do dono da JBS Joesley Batista, trouxe um componente diferente do que tem sido visto nas investigações contra a corrupção. Sem o juiz Sergio Moro, a Polícia Federal fez, desta vez, uma “ação controlada”, ou seja, negociou com Batista para que pudesse obter provas concretas, como seguir o caminho da propina por meio de um chip nas malas de dinheiro, das atitudes ilícitas das autoridades envolvidas. Além de Michel Temer, Batista informou que o senador Aécio Neves (PSDB-MG), agora ex-presidente da sigla, recebeu propina milionária e ofereceu cargos em empresas estatais.

    A colaboração do dono da JBS também se diferencia pelo fato de ele não estar preso. Sendo assim, não está sendo coagido a delatar. “Foi um processo controlado, organizado. Não foi simplesmente para sair na mídia destruindo reputação de alguém, acusando alguém, correta ou incorretamente”, diz Bercovici. O resultado deu muito mais consistência para a acusação. “Moro terá que dar algumas explicações. Precisa dizer por quê vetou as perguntas que Eduardo Cunha queria fazer para Michel Temer, sabendo do envolvimento do presidente”, coloca.

    Eleições diretas por um novo pacto

    Manifestação na Paulista depois do discurso de Temer – Foto: Taba Benedicto, especial para Jornalistas Livres

    “O país tem pressa”, escreveu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em sua página no Facebook. Para ele, se comprovada sua culpa, o presidente Michel Temer deveria renunciar como forma de acelerar o fim da crise política. “Pressa para restabelecer a moralidade nas instituições e na conduta dos homens público.”

    Para dar legitimidade ao processo político, no entanto, é preciso respeitar as urnas e combinar um pacto no Parlamento em nome de superar a instabilidade. “Não tem como fazer pacto com um Congresso desse, com um governo desse. É o que há de pior na política brasileira”, alerta Bercovici. Para ele, o caminho é o respeito ao voto, que ficou fragilizado depois do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, promovido sob alegação de pedaladas fiscais.

    *texto originalmente publicado na Revista Brasileiros

  • Lula nega todas as acusações e reafirma determinação para disputar eleição

    Lula nega todas as acusações e reafirma determinação para disputar eleição

    Por Maria Carolina Trevisan
    Foto: Leandro Taques

    Ao pedir que manifestantes a favor da Lava Jato não fossem a Curitiba, o juiz Sergio Moro alegou que seria um interrogatório comum ao processo e que “nada de diferente da normalidade” aconteceria. Mas normalidade foi o que não houve em Curitiba.

    A rotina da cidade foi modificada, quarteirões no entorno do prédio da Justiça Federal foram fechados e só moradores e jornalistas credenciados tinham acesso ao espaço cercado por barricadas.

    O depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva mobilizou um contingente de cerca de 3 mil agentes de segurança. A Polícia Militar divulgou ter abordado uma parte dos 168 ônibus de manifestantes a favor de Lula. A maioria, 92 deles, viajou de outros estados. Apenas um veículo tinha irregularidades. Curitiba recebeu pelo menos 6,7 mil pessoas de ônibus.

    O ato de apoio a Lula juntou 30 mil manifestantes, de acordo com os organizadores. O grupo que apoiou a Lava Jato estava composto por 100 pessoas, segundo a Polícia Militar (ou 300, de acordo com organizadores).

    Os partidários do ex-presidente Lula ficaram na Praça Santos Andrade, no Centro de Curitiba, a cerca de 2,5 km de distância dos partidários da Lava Jato, que ficaram em frente ao Museu Oscar Niemeyer, no Centro Cívico.

    Em vídeo divulgado nas redes sociais, o juiz Sergio Moro alegou que seria um depoimento corriqueiro, dentro da normalidade. Porém, o interrogatório com Lula durou quase 5 horas. É um dos mais longos de toda a Operação Lava Jato.

    Usando uma gravata com as cores da bandeira brasileira, que Lula considera um acessório de sorte, o ex-presidente respondeu exclusivamente a Moro por 3 horas e 20 minutos. Ele prestou depoimento sobre o triplex do Guarujá e o acervo presidencial.

    Moro compareceu de camisa branca e gravata vermelha. Deixou de lado a tradicional camisa preta. Depois do magistrado, foi a vez de o Ministério Público Federal fazer perguntas. Ao final, a defesa fez considerações.

    As primeiras imagens divulgadas pela Justiça Federal mostraram que Moro insistiu diversas vezes vezes sobre o pertencimento do triplex ao ex-presidente. Lula negou ser dono do imóvel. Também negou que tenha pedido a Leo Pinheiro, da OAS, que apagasse as provas contra ele. “A verdade é a seguinte, doutor Moro: não recebi, não solicitei, não paguei e não tenho um triplex”, afirmou.

    Por volta das 19 horas, com o fim do depoimento, Lula foi ao encontro de seus apoiadores, entre eles, movimentos sociais, parlamentares e a ex-presidenta Dilma Rousseff.

    “Se não fossem vocês, eu não suportaria o que eles estão fazendo comigo”, disse Lula. “Eu não quero ser julgado por interpretações, quero ser julgado por provas. E eu queria dizer às pessoas mais velhas e às pessoas mais jovens. Eu queria que vocês olhassem no meu olho. Eu, quando pedi para que fosse transmitida ao vivo é porque a minha mãe nasceu, como todo mundo nasce, analfabeta. E a minha mãe morreu analfabeta. Mas ela dizia: Ô Lula, a gente conhece quando uma pessoa está falando a verdade não é pela boca. É pelos olhos. É por isso que eu queria que fosse transmitido ao vivo, para que as pessoas que vão assistir vejam os olhos de quem está perguntando e os olhos de quem está respondendo.”

    O ex-presidente nega todas as acusações e reafirma sua inocência. “Se um dia eu tiver que mentir para vocês, eu prefiro que um ônibus me atropele em qualquer rua deste País. Eu estou vivo”, concluiu, emocionado. Ele afirmou que  pretende se candidatar à Presidência da República.

    Em entrevista coletiva, os advogados de Lula disseram que “você não está diante de um processo jurídico, mas contra o Estado Democrático de Direito”.

  • “O orgulho negro é aprender a se manter vivo”

    “O orgulho negro é aprender a se manter vivo”

    Por Maria Carolina Trevisan
    Fotos: Terremoto
    Edição e montagem do vídeo: Joana Brasileiro

    A palavra organiza o caos. Em #Parem De Nos Matar!, livro mais recente da pensadora e dramaturga negra Cidinha da Silva a crônica tem a tarefa de entregar ao leitor a crueza da realidade. Com palavras precisas, perspicazes, com sofisticação linguística e estilo potente, Cidinha faz pensar sobre o cotidiano de forma crítica. Aborda principalmente o universo em que o racismo é um dos protagonistas, junto com outras interseccionalidades que geralmente envolve o preconceito racial no Brasil, como o machismo ou as questões de classe social.

    Como a realidade é árida, torna-se necessário lançar mão da beleza para tratar de temas tão duros. Nesse sentido, o texto literário atrai o leitor como se ele fosse mergulhar em uma viagem. E Cidinha emprega com sabedoria a poesia, que emociona o leitor. São “laivos de poesia e beleza para louvar a vida e a memória dos viventes exterminados pela violência física ou dos que sobreviveram, mas têm sua humanidade achatada pelo racismo”, explica a pensadora.

    Autora de 11 livros publicados, entre eles literatura infantil e juvenil, romances, poemas e contos, Cidinha também escreveu peças teatrais como “Os Coloridos e Engravidei”, “Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas”, ambas encenadas pela companhia de teatro negro Os Crespos. “Oh, Margem! Reinventa os Rios” (Selo Povo), “Racismo no Brasil e Afetos Correlatos (Conversê)”, “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil” (Fundação Cultural Palmares), “Sobreviventes!” (Pallas) e “Cada tridente em seu lugar e outras crônicas” (Instituto Kuanza).

    “#Parem de nos matar!” (Editora Ijumaa) é seu livro mais recente. Tem prefácio de Sueli Carneiro, uma das mais importantes lideranças do movimento negro no Brasil. Em São Paulo, teve lançamento no espaço Aparelha Luzia, de cultura negra.

    Jornalistas Livres – Como você descobriu o talento pelo texto literário?

    Cidinha da Silva – Primeiro aconteceu o encantamento pela leitura desde que me alfabetizei aos 6 anos e consequentemente veio o desejo de criar minhas próprias histórias. Tudo então se transformou num exercício de escrita frequente: as composições do grupo escolar, as redações do ensino fundamental e médio, os trabalhos escolares, as resenhas sobre livros lidos na escola, além dos poemas ridículos escritos na adolescência.

    De que maneira a literatura opera quando trata de temas tão delicados como as crônicas de sua obra mais recente “#Parem De Nos Matar!” ? O texto literário – e a poesia que tantas vezes está contida nos seus textos – ajuda a conscientizar os leitores? Por quê? 

    O fazer literário em #Parem de nos matar! é a construção e o refinamento de uma poética que trate de temas duros (racismo, extermínio, morte cultural e simbólica de pessoas negras), sempre que possível com laivos de poesia e beleza para louvar a vida e a memória dos viventes exterminados pela violência física ou dos que sobreviveram, mas têm sua humanidade achatada pelo racismo.

    Não nutro preocupações de conscientização ou convencimento a partir de minhas idéias, desejo, sim, abrir frestas de diálogo e de percepção sensível na literatura que faço.

    A literatura negra e autores negros podem contribuir para diminuir a desigualdade racial? De que maneira?

    Não creio. As desigualdades raciais são resultado do racismo estrutural que nos marca de maneira indelével como sociedade. Para combatê-lo, além de cravar o direito à vida sem racismo no rol efetivo dos Direitos Humanos, são necessárias políticas públicas estruturantes.
    A literatura é um sopro, um veio d’água, uma mina de ouro. Sua natureza é diferente da política de combate, a não ser que ela se pretenda combatente, o que não é o meu caso. Sua natureza é a natureza da voz que se lança no mundo e quer ser ouvida. Que pula no despenhadeiro confiante na experimentação do que vier a ocorrer.
    O que relaciona esta segunda parte da resposta às desigualdades raciais do enunciado é que as vozes negras, em sociedades racistas como a brasileira, são obstadas em seu vôo de liberdade. Nesse sentido, a literatura negra amplia nossa humanidade e nos posiciona no mundo como seres mais plenos.

    Na dimensão da literatura infantil, como se dá o enfrentamento ao racismo?

    Creio que isso acontece por alguns fatores articulados, a saber: Pela escolha temática e posso exemplificar como o fiz em meus 3 livros infanto-juvenis.

    Em “Os nove pentes d’África (2009)”, uma família negra feliz, solidária e fagueira enfrenta a morte de seu patriarca, Francisco Ayrá. Em “Kuami”, um romance de 2011, abordo a amizade de Janaína, uma sereia negra de dreadloks e Kuami, um pequeno elefante que nasce num barco no oceano Atlântico, na travessia de África para a Amazônia brasileira. “O Mar de Manu (2011)”, um conto, materializa-se em África, num vilarejo localizado em algum lugar entre 3 países da África Ocidental que não são banhados pelo mar, o Níger, o Burkina Faso e o Mali.

    Outros aspectos importantes são a construção de linguagem e de personagens para contar essas histórias, no Pentes, por exemplo, a narradora é uma das netas de Francisco Ayrá, Bárbara, de 16 anos, que mesmo sendo uma das netas do meio, em termos etários, apresenta-se como a mais velha, a mais madura, a depositária dos valores familiares. Desse modo, a narradora faz uma discussão subjetiva sobre a ancestralidade.

    Manu, por sua vez, é uma criança africana que aprende muito com a avó, Baya. Por exemplo, ele quer que o pai compre uma vara de pescar para que ele possa pescar estrelas, inspirado por uma história contada pela avó, dando conta de que os Tuareg (povo nômade do norte da África) quando se perdem no deserto espetam uma estrela com a lança e ela lhes ilumina o caminho de volta.

    A elaboração das imagens também é outro aspecto fundamental. O livro precisa apresentar imagens dignas das personagens, as negras, principalmente, evitando, assim, estigmas e estereótipos racistas na trama social brasileira.

    Uma de suas crônicas aborda a impunidade para crimes que envolvem práticas racistas (como a violência policial). Por que isso acontece, na sua opinião? Como podemos avançar? 

    O tratamento dado à Chacina do Cabula (19 de fevereiro de 2016), quando 12 homens negros foram mortos pela polícia sob alegações estapafúrdias de legítima defesa dos policiais, tratada como gol de placa pelo governador do estado e policiais inocentados pela justiça é um bom exemplo. A Campanha Reaja ou será morto! Reaja ou será morta! está lutando pela federalização do caso, como forma de enfrentar os vícios de produção de inocência no caso da justiça local quando os crimes envolvem policiais.

    Como mulheres negras preparam seus filhos para lidar com a polícia e ao mesmo tempo manter a autoestima e o orgulho de ser negro?

    Existe uma charge que circula pela internet bastante emblemática, um garoto branco vai sair e avisa a mãe. Ela responde: Tá bom, filho. Leva o agasalho, vai esfriar. Do outro lado, um garoto negro diz a mesma coisa à mãe e ela responde algo como: Não esqueça a carteira de identidade, não corra em hipótese alguma, nem para pegar ônibus, se tiver uma viatura policial por perto; se um policial te abordar, não se assuste, não fale alto, faça o que ele pedir, evite gestos bruscos, deixe as mãos à vista. Não esqueça de levar o agasalho. Vai esfriar.

    O orgulho negro, como se vê, é aprender a se manter vivo.

    Como você compreende a ascensão política de Fernando Holiday (DEM-SP), que rejeita o Hino da Negritude, entre outras expressões da luta pela justiça racial?

    Rejeitar o Hino da Negritude é um direito dele (nosso). A gente pode gostar ou não. A gente pode inclusive discordar do sentido político daquela letra. Ela pode se filiar a uma concepção de luta racial que não é a nossa. Não vejo problema nisso.

    Problemática é a postura política de direita representada por Holiday e o papel retrógrado do negro que é anti-negro, do gay que é anti-gay.

    A ascensão política de Holiday pode ser compreendida no escopo do crescimento da direita no mundo e que precisa escolher membros de grupos discriminados para vocalizar uma postura política que repudie as conquistas políticas de grupos assassinados diuturnamente, apensa por serem quem são.

    De que maneira age a naturalização da morte de pessoas negras? Por que a perda dessas vidas não gera comoção social ampla? Como isso pode ser desconstruído?

    As pessoas negras são portadoras de vidas que valem menos em sociedades racistas e de mentalidade escravocrata como a brasileira. Logo, é mais fácil tirá-las, pois isso não pesa, não comove, não agride, não violenta a humanidade dos que se beneficiam dos privilégios raciais. Ao contrário, o morticínio negro afirma o lugar de privilégio e proteção da branquitude. É cômodo. A desconstrução se dá pela luta política, pelo enfrentamento dos crimes, pela punição dos culpados, pelo fim da impunidade, pela elaboração de leis, práticas culturais e políticas que valorizem as pessoas negras e enfrentem as desigualdades raciais de maneira sistêmica.

    Que consequências pode ter para as conquistas da população negra – em especial, das mulheres negras – um governo que não reconhece a dimensão racial como uma linha fundamental de políticas públicas?

    As piores possíveis. Antes de qualquer coisa, esse governo não deveria estar aí. É ilegítimo. É usurpador. A luta deve ser para derrubá-lo, não para “melhorá-lo”. Não é possível “melhorá-lo” porque ele é um embuste desde o nascedouro.

    Por que é tão difícil a sociedade brasileira reconhecer seu racismo estrutural e as assimetrias raciais a que estamos submetidos até hoje?

    Porque é cômodo, confortável e lucrativo para a branquitude que se beneficia dos privilégios raciais.

    A repórter Maria Carolina Trevisan participou da leitura do livro no evento de lançamento, no Aparelha Luzia, ao lado do educador Ruivo Lopes. Assista a trechos do lançamento:

    Conheça aqui a obra completa de Cidinha.